PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
INTERESSE DO PROCURADOR
Sumário

I. A regra da revogabilidade da procuração vigora para o caso típico (mais frequente) de procuração conferida no exclusivo interesse do dominus (n.º 2 do artigo 265.º do CC); nos casos de procuração conferida no interesse conjunto do dominus e do procurador, ou de terceiro, só por acordo de ambos poderá ser revogada (n.º 3 do mesmo artigo), sem prejuízo da “revogação” com justa causa.
II. O interesse do procurador, ou de terceiro, a que se reporta o n.º 3 do artigo 265.º do CC é um interesse próprio, específico, objetivo e direto na execução do negócio que constitui a relação subjacente, destinando-se a procuração a executar o negócio correspondente.
III. Um contrato-promessa nulo por falta de forma escrita legalmente exigida não pode ser objeto de execução específica.

Texto Integral

Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
«AA», contribuinte n.º …, autora na presente ação declarativa de condenação, que move ao seu irmão «BB», contribuinte n.º …, notificada da sentença proferida em 21/02/2024, que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo o réu do pedido, e com essa sentença não se conformando, interpôs o presente recurso.
Na sua petição, a autora pede para ser declarada dona e legítima proprietária da fração “G” do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º …7 da freguesia de Mafra, condenando-se o réu a reconhecer o direito de propriedade plena sobre o citado imóvel.
Para sustentar o pedido alega, em síntese, que:
- Autora e réu são irmãos e são os únicos herdeiros de seus pais, «DD» e «CC»;
- Os bens sujeitos a registo que havia a partilhar à data do óbito do último progenitor eram o veículo automóvel marca Skoda, matrícula …97, e a fração autónoma designada pela letra “G” do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º …7, da freguesia de Mafra;
- As partes acordaram a partilha de bens nos seguintes termos: o réu ficou com o veículo automóvel pelo valor de 10.000,00€, e a autora com o identificado imóvel pelo valor de 38.316,25€;
- Em 25/09/2018, 14 dias após o óbito do pai, as partes foram ao Cartório Notarial do Dr.ª … onde foi outorgada procuração pela qual o réu lhe conferiu poderes para proceder à partilha daquele imóvel e à adjudicação à ora autora do referido bem;
- O réu ficou de imediato com o veículo automóvel, Skoda no valor de 10.000,00€ e a autora ficou na posse da descrita procuração;
- Nessa data, o imóvel estava na posse da Câmara Municipal de Mafra, havendo que resgatá-lo e fazer obras para a tornar habitável;
- A CMM devolveu o imóvel à autora no final de janeiro de 2019;
- A autora realizou as obras de restauro da cozinha, wc, piso dos quartos, pintura de paredes e portas, no que despendeu cerca de 9.000,00€;
- A partir de outubro de 2019, a autora começou a pagar as tornas devidas e a que tinha direito o seu irmão (no valor de 14.200,00€), o que fez até novembro de 2021;
- A autora passou a viver no imóvel, e pagou os IMI de 2018, 2019, 2020 e 2021, no valor de 172,42€ cada, no total 689,68€;
- No início de dezembro de 2021, a autora recebeu um instrumento de revogação de procuração, no qual o réu declara revogar a procuração que havia outorgado a favor da irmã, em 25 de setembro de 2018;
- A autora já entregou ao réu 12.823,67€, faltando-lhe pagar menos de 2.000,00€.
Pessoal e regularmente citado, o réu não deduziu contestação.
Em consequência, por despacho de 07/11/2022, consideraram-se confessados os factos alegados na petição inicial.
Em 21/02/2024, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o réu do pedido.
A autora não se conforma e recorre, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«A) Nestes autos, veio a A. pedir que fosse reconhecida como dona e legítima proprietária plena da fração autónoma designada pela letra G do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º …7, da freguesia de Mafra.
B) Alegando como causa de pedir que, sendo o referido imóvel propriedade de seus pais, «CC» e «DD», estes faleceram e deixaram como únicos herdeiros a ora recorrente e o seu irmão aqui R. «BB».
C) Mais alegou que acordou na partilha dos bens com o aqui R. na qual o referido imóvel lhe era adjudicado mediante o pagamento de tornas no valor de 14.200,00€ (além do veículo automóvel que cedeu ao R.).
D) A A. tomou posse do imóvel e o R. tomou posse do veículo automóvel e transferiu o direito de propriedade para o seu nome.
E) A A. foi pagando o valor das tornas fixado naquela procuração ao longo de mais de 2 anos.
F) Veio o R. revogar a procuração quando a A. já tinha pago as tornas devidas.
G) O R. não contestou a ação.
H) O Tribunal a quo entendeu que o pedido formulado consubstanciava o cumprimento de um contrato-promessa e que não tendo este a forma legal exigida, indeferiu a ação, por não provada.
I) Foi dado por provado o Acordo de Partilha sobre os 2 bens existentes – carro e andar – a outorga da escritura de Habilitação de Herdeiros e Procuração Notarial na qual o R. conferia poderes à A. para outorgar a escritura de Partilha. Outorgados ambos perante Notário.
J) O R. outorgou procuração conferindo poderes à A., para além do mais:
“para, em seu nome, proceder à partilha extrajudicial dos bens deixados por óbito de seus pais, «CC» e «DD», relativamente à fração autónoma designada pela letra “G”, do prédio urbano, sito na Urbanização … Mafra, inscrito na matriz sob o artigo …7, da freguesia e concelho de Mafra, outorgar e assinar as respetivas Escrituras Públicas ou PDA, proceder à adjudicação a ela mandatária do imóvel partilhado, pelo valor patrimonial correspondente, e pagar as respetivas tornas ao mandante por cheque bancário a ser emitido e depositado numa conta em nome do mesmo.” – Certidão notarial junta aos autos como documento n.º 4.
K) A. e R. tomaram de imediato posse dos respetivos bens adjudicados.
L) A A. pagou as tornas desde Outubro de 2019 a Novembro de 2021 e o R. recebia e emitia mensagens a confirmar o valor recebido.
M) A A. fez obras no imóvel e encetou processo de regaste do imóvel junto da Câmara Municipal no que gastou mais de 21.000€.
N) A A. desde Novembro de 2019 que vive no imóvel como dona, pagando os impostos e encargos devidos.
O) O R. após receber o valor das tornas revogou a Procuração emitida em 25/09/2018 sem que para tal tenha apresentado qualquer fundamento.
P) O Tribunal ao longo do processo foi pedindo Licença de Utilização porque estava em causa a transmissão do imóvel, Registo da Ação, prova do Estado Civil dos Herdeiros, etc. e em contra corrente, profere Sentença que declara a Ação Improcedente por falta de prova.
Q) O Tribunal a quo omitiu factos alegados e não contestados, ínsitos nos art.ºs 4º e 15º da P.I. e ainda que nos termos da Procuração outorgada o R. aceitou o pagamento diferido das tornas.
R) A decisão de declarar nulo o contrato promessa de partilha por falta de forma escrita é contrário aos factos, à Lei e à Jurisprudência.
S) Os factos demonstram – na procuração feita com Termo de Autenticação (formalidade superior ao reconhecimento de assinatura) que houve um negócio – partilha, o objeto do negócio – andar – o valor do negócio, as partes do negócio e a forma de pagamento.
T) O negócio teve ainda expressão de facto com inúmeros escritos (SMS) juntos aos autos que provam o pagamento feito e recebido.
U) E no mais alegado o R. não contestou.
V) Considera por isso a A. que está demonstrado com validade o contrato firmado através da Procuração.
W) O qual preenche os pressupostos para a sua validade nos termos dos art.ºs 292º ou 293º do C. Civil.
X) Não se admitindo como válida a revogação da procuração uma vez que ela foi feita também no interesse do mandatário (art.º 265º n.º 3 do C. Civil).
Y) Quanto à validade do contrato promessa de partilha com deficiências de forma a Doutrina e Jurisprudência têm sido abundantes em soluções de conversão e redução (art.º 292º e 293º do Código Civil).
Z) Devendo sempre atender-se aos princípios gerais do favor negotii.
AA) E assim, caso se entendesse necessário teria de recorrer ao disposto nos art.ºs 292º e 293º do C. Civil porque verificados os respetivos pressupostos.
BB) Impugnando-se também o dispositivo final da Sentença que em face de tese defendida sempre conduzia à absolvição da Instância.
CC) Ao decidir em contrário o Tribunal a quo:
a) Omitiu matéria de facto relevante para a apreciação do presente (art.º 608º n.º 2 e 615º do Cód. Processo Civil).
b) Fez incorreta aplicação do direito violando o disposto nos art.ºs  442º, 830º, 265º n.º 3, 292º e 293º, todos os C, Civil.
DD) Com o que revogando-se a Sentença proferida e em sua substituição proferido Acórdão que declare a A. como dona e legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao terceiro andar esquerdo, para habitação, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra, sob o n.º 12 da freguesia de Mafra, com licença de utilização emitida pela edilidade em 30-01-1985, sito na Rua …, em Mafra.»
Não foram oferecidas contra-alegações.
Colhidos os vistos, nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) O tribunal a quo omitiu matéria de facto alegada, provada e relevante para a apreciação da causa, devendo completar-se a decisão de facto?
b) A procuração conferida pelo réu à autora – para proceder à partilha extrajudicial dos bens deixados por óbito de seus pais, relativamente à fração autónoma designada pela letra “G” …, outorgar e assinar a respetiva escritura pública ou DPA, proceder à adjudicação a ela, mandatária do imóvel partilhado, pelo valor patrimonial correspondente –, foi feita também no interesse da autora, sendo, por isso, irrevogável?
c) As partes celebraram um contrato-promessa de partilhas, tendo a autora direito à sua execução específica?
II. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos (provados por documentos autênticos e confissão ficta), sendo a segunda parte do facto 5 acrescentada por esta Relação, completando a transcrição da procuração, e o facto 5-A aditado, pelos motivos explanados em III.i.:
1. A. e R. são filhos de «DD» e de «CC» (certidões dos assentos de nascimento juntas em 08/08/2023).
2. Por escritura de 25-09-2018, A. e R. foram habilitados como únicos herdeiros de seus pais, «DD», falecida a 06-01-2010, e «CC», falecido a 11-09-2018 (certidão notarial junta como doc. 1 com a p.i.).
3. Do acervo patrimonial deixado por óbito dos falecidos consta a fração autónoma designada pela letra G, correspondente ao 3.º andar esquerdo, para habitação, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra, sob o nº 12 da freguesia de Mafra, com licença de utilização emitida pela edilidade em 30-01-1985, sito na Rua … (certidão permanente da fração e do prédio junta aos autos em 07-06-2023).
4. Também no dia 25-09-2018, A. e R. acordaram, verbalmente que seria adjudicado ao R. um veículo automóvel também parte do acervo hereditário, pelo valor de 10.000,00 €, e à A. a referida fração autónoma pelo valor de 38.316,25 €, cabendo ainda de tornas ao R. da quantia de 14.200,00 € (catorze mil e duzentos euros).
5. Também na mesma data, o R. outorgou procuração conferindo poderes à A. para, além do mais:
«em seu nome, proceder à partilha extrajudicial dos bens deixados por óbito de seus pais, «CC» e «DD», relativamente à fracção autónoma designada pela letra “G” do prédio urbano sito na Urbanização … Mafra, inscrito na matriz sob o artigo …7 da freguesia e concelho de Mafra, outorgar e assinar as respetivas escrituras públicas ou DPA, proceder à adjudicação a ela, mandatária do imóvel partilhado, pelo valor patrimonial correspondente, e pagar as respetivas tornas ao mandante por cheque bancário a ser emitido numa conta em nome do mesmo
Consta, ainda, da mesma procuração:
«Mais lhe confere os necessários poderes, para o representar junto da Camara Municipal respectiva, onde pode requerer vistorias e licenças de construção ou de utilização, assinar e apresentar quaisquer requerimentos, para nas Repartições Públicas e Administrativas, designadamente no Serviço de Finanças respectivo, onde em seu nome, pode requerer avaliações fiscais, pagar contribuições e impostos, apresentar IMI, prestar declarações, requerer inscrições e rectificações matriciais e ainda para na Conservatória do Registo Predial respectiva, requerer quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos, averbamentos e cancelamentos, podendo lá prestar declarações complementares e de um modo geral praticar e assinar tudo o que seja necessário aos fins acima referidos.
E finalmente, requerer, praticar e assinar tudo o que seja necessário ao cumprimento do presente mandato, ficando obrigada a prestar contas.   
Fica especificamente autorizada à prática de negócio consigo mesma.
ASSIM O OUTORGOU.
Esta procuração foi lida ao outorgante e ao mesmo explicado o seu conteúdo, à qual confiro fé pública, pessoa cuja identidade verifiquei pela exibição do Cartão de Cidadão, número 09199916 2ZY6, válido até 05 de Abril de 2020, emitido pelas entidades competentes da República Portuguesa.» (certidão notarial junta como doc. 4 com a p.i.).
5-A. A referida procuração foi elaborada no Cartório Notarial da Dr.ª …, pela respetiva notária.
6. O R. ficou de imediato com o veículo automóvel.
7. Em setembro de 2018 a A. não tinha dinheiro para pagar de imediato ao R. a quantia referida no ponto 4., tendo o R. aceitado que lhe pagasse de forma faseada.
8. Em setembro de 2018 a fração era detida pela Câmara Municipal de Mafra.
9. A fração foi entregue à A., pela Câmara Municipal de Mafra em janeiro de 2019.
10. A A. fez na fração obras de restauro, da cozinha, wc, piso dos quartos, pintura de paredes e portas, no que despendeu cerca de 9.000,00 € (nove mil euros).
11. A A. para reaver a fração da Câmara Municipal de Mafra e nas referidas obras gastou mais de 12.000,00 € (doze mil euros).
12. A A. pagou o Imposto Municipal sobre Imóveis da referida fração, dos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021, no valor total de 689,68 € (seiscentos e oitenta e nove euros e sessenta e oito cêntimos).
13. A A. passou a viver na referida fração, o que faz até ao presente.
14. Entre outubro de 2019 e 25/09/2018, a A. pagou ao R. a quantia de 12.823,67 € (doze mil oitocentos e vinte e três mil euros e sessenta e sete cêntimos), que o R. aceitou.
15. Em 29-11-2021, o R. outorgou instrumento de revogação no qual refere:
«Que pelo presente instrumento revoga a partir desta data, todos os poderes por ele conferidos a favor de «AA», casada, natural da freguesia de São Martinho, concelho de Sintra, residente na rua da … concelho de Mafra, contribuinte fiscal número …, na procuração que outorgou aos vinte e cinco de Setembro de dois mil e dezoito, no Cartório Notarial de Mafra.» (certidão notarial junta como doc. 35 com a p.i.)
16. O R. deu conhecimento à A., por escrito, no início de dezembro de 2021, da referida revogação.
III. Apreciação do mérito do recurso
III.i. Da seleção da matéria de facto
No seu recurso, a recorrente suscitou a omissão na sentença dos factos contidos nos artigos 4.º, 15.º e 16.º da p.i., pedindo que os mesmos sejam acrescentados ao elenco. Alegou, para tanto, que tais factos, por si alegados, foram confessados pelo réu (confissão ficta por falta de contestação) e têm interesse para a decisão da causa (al. Q) das conclusões de recurso). A impugnação da matéria de facto concretamente deduzida é processualmente admissível, ao abrigo do disposto no artigo 640.º do CPC.
Os mencionados artigos da petição têm o seguinte texto:
«4.º No dia 25 de Setembro de 2018, (14 dias após o óbito do pai) A. e R. foram ao Cartório Notarial do Dr.ª … onde aquela lhes prestou conselho jurídico e elaborou a procuração que consubstanciava a Partilha dos Bens (Doc. n.º 4).»
«15.º Em Setembro de 2018, a A. não tinha dinheiro para pagar de imediato as tornas no valor de 14.200,00€.
16.º E o irmão, aqui R., aceitou receber o pagamento daquela forma faseada, o que se efetivou durante mais de 2 anos.»
Começando pelos últimos – artigos 15.º e 16.º da p.i. –, os seus conteúdos já se mostram provados nos factos 7 e 14, que apresentam a seguinte redação:
«7. Em setembro de 2018 a A. não tinha dinheiro para pagar de imediato ao R. a quantia referida no ponto 4., tendo o R. aceitado que lhe pagasse de forma faseada.»
«14. Entre outubro de 2019 e 25/09/2018, a A. pagou ao R. a quantia de 12.823,67 € (doze mil oitocentos e vinte e três mil euros e sessenta e sete cêntimos), que o R. aceitou.»
Consequentemente, indefere-se nesta parte a pretensão da recorrente.
O conteúdo útil do artigo 4.º da p.i. – que a procuração foi elaborada pela notária – resulta do facto 5, na parte em que reproduz o seguinte trecho da procuração: «Esta procuração foi lida ao outorgante e ao mesmo explicado o seu conteúdo, à qual confiro fé pública (…).»
Se o conteúdo foi lido e explicado ao outorgante é porque a procuração foi elaborada pela notária; e, por isso, esta lhe conferiu fé pública.
Ainda assim, e para que dúvidas não haja, acrescentamos um facto 5-A com a seguinte redação:
«5-A. A referida procuração foi elaborada no Cartório Notarial da Dr.ª …, pela respetiva notária.»
III.ii. Da procuração, do negócio que lhe subjaz e da irrevogabilidade da primeira
Percorrendo os factos, deles resulta que autora e réu, em setembro de 2018, acordaram na forma de partilhar o acervo hereditário deixado pelos seus pais, dos quais eram os únicos e universais herdeiros.
No que respeita à partilha dos bens sujeitos a registo, um carro e um apartamento, acordaram que o primeiro, ao qual atribuíram o valor de € 10.000,00, seria adjudicado ao réu, e o segundo, ao qual atribuíram o valor de € 38.316,24, seria adjudicado à autora, dando esta ao irmão tornas no montante de € 14.200,00.
A partilha extrajudicial, no que ao imóvel respeita, exige a formalização por escritura pública ou documento particular autenticado (v. artigo 875.º, ex vi do artigo 939.º, ambos do CC). Portanto e para tanto, o réu outorgou à autora procuração conferindo-lhe poderes para, em seu nome, efetivar a partilha extrajudicial da fração autónoma, outorgar e assinar a respetiva escritura pública ou documento particular autenticado, proceder à adjudicação a ela, mandatária do imóvel partilhado, pelo valor patrimonial correspondente (€ 38.316,24), e pagar as respetivas tornas ao mandante por cheque bancário a ser emitido numa conta em nome do mesmo.
Tratou-se de procuração exarada por notário, em conformidade com as declarações do réu, cujo conteúdo foi lido e explicado ao outorgante, fazendo fé das declarações do mesmo. Um documento autêntico, portanto (artigo 35.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Notariado, e artigo 363.º, n.º 2, do CC). Nos termos do disposto no artigo 262.º do CC, a procuração – ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos – deve revestir a forma exigida para o negócio que ao procurador incumbe celebrar. No caso, essa forma foi respeitada.
O réu ficou na posse do veículo e a autora ficou com o apartamento. Recuperou-o da Câmara Municipal de Mafra, que na altura o detinha, passou a pagar os respetivos IMI, pagou as obras que nele mandou realizar, e passou a nele residir. Não dispondo de liquidez que lhe permitisse pagar, de imediato, as tornas devidas ao irmão, este aceitou que as mesmas lhe fossem pagas de forma faseada. Assim fez, durante cerca de dois anos, faltando pagar menos de € 2.000,00, quando o irmão lavrou um instrumento de revogação da procuração.
Aprofundemos as figuras jurídicas correspondentes aos descritos factos, e as normas que lhes são aplicáveis.
O tribunal a quo qualificou a relação objeto de litígio como um contrato-promessa de partilha e, considerando a sua falta de forma escrita, necessária à partilha do imóvel, julgou-o nulo e, sem mais, absolveu o réu do pedido. Não contestamos que, a montante do mandato que imediatamente subjaz à procuração outorgada pelo réu esteja uma promessa de partilha do imóvel, mas para um bom enquadramento jurídico dos factos não devemos esquecer os negócios concomitantes e ulteriores a esse acordo.
Além dos referidos veículo e apartamento, constavam do acervo hereditário valores monetários depositados em várias contas bancárias (cf. comprovativo de participação de transmissões gratuitas, «Anexo I – Relação de bens» do Imposto de Selo, junto como doc. 2 com a p.i.).
Do alegado nos artigos 1.º a 5.º da petição, é de presumir que a partilha se consumou relativamente a todos os bens, com exceção do imóvel, relativamente ao qual era necessária a celebração por documento autêntico. Para ela, o réu outorgou à autora procuração com os referidos poderes, claramente no interesse de ambos, e sobretudo no interesse da representante a quem, segundo acordaram, o imóvel em causa seria adjudicado.
Imediatamente na base da procuração está um (contrato de) mandato para a realização de uma partilha de imóvel a celebrar por escritura pública ou documento particular autenticado. O Código Civil português consagrou a teoria da abstração da procuração, discernindo o poder gestório do mandatário do poder de representação, o que permite mesmo que a procuração – negócio unilateral de atribuição de poderes de representação – não tenha necessária origem num contrato de mandato, podendo tê-la noutro tipo de contratos, como outras prestações de serviço, empreitadas, contratos de agência, administração de sociedades, contratos de trabalho (sobre o tema, v. da autoria da ora relatora, O contrato de mediação, Almedina, 2014, pp. 328-332, e doutrina aí citada, sobretudo nas notas 845 e 847). Na situação dos autos, e na falta de outra relação de gestão entre as partes, a procuração está associada a um mandato para a celebração de outro contrato (como é habitual) – v. noção de mandato no artigo 1157.º do CC. Esse outro contrato é, in casu, uma partilha de imóvel em que o mandante é interessado e que a mandatária realizará por conta do mandante (e por conta da própria, enquanto cointeressada na mesma partilha). Mandato representativo, sendo os poderes de representação atribuídos pela dita procuração.
O negócio celebrado entre as partes foi, assim, muito além de uma mera promessa de partilha de imóvel que, sem dúvida, também existiu.
A procuração – negócio unilateral de atribuição de poderes representativos – encontra-se prevista e regulada nos artigos 258.º a 269.º, em sede de representação, maxime de representação voluntária; o mandato – negócio bilateral ou contrato, pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra (ainda que o dito contrato possa ser unilateral, se o mandato for gratuito) –, encontra-se previsto e regulado nos artigos 1157.º a 1184.º do CC. Ao mandato com representação, como o dos autos, é também aplicável o disposto nos artigos 258.º e seguintes (artigo 1178.º).
Em geral, a procuração é livremente revogável pelo representado, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação (assim o afirma o n.º 2 do artigo 265.º do CC). A menos que se trate de procuração conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, pois neste caso não  pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa (esta é a disciplina imposta pelo n.º 3 do mesmo artigo e diploma). Da conjugação das normas contidas nos dois citados números resulta que, por um lado, para que a procuração seja irrevogável, não basta que tal irrevogabilidade seja nela afirmada; mas, por outro lado, a procuração é irrevogável quando conferida no interesse do procurador, independentemente dessa afirmação de irrevogabilidade. A declaração de irrevogabilidade não é necessária ao estatuto de procuração irrevogável; e, desde que conferida no interesse do procurador, a procuração é sempre irrevogável, ou seja, insuscetível de cessação por mera vontade do representado, sem justa causa.
Se a procuração for substancialmente irrevogável, por ter sido outorgada também no interesse do procurador ou de terceiro, «decai a possibilidade de revogação ou de restrição ou modificação ad nutum [cfr. ainda o artigo 1170.º, n.º 2, norma semelhante para o mandato; como resulta do próprio preceito e ainda do artigo 1172.º, al. c), o carácter oneroso, isto é, retribuído do mandato, não implica por si que ele seja também conferido no interesse do mandatário]. De todo o modo, não se trata de uma irrevogabilidade absoluta, a qual implicaria uma restrição inadmissível da autodeterminação do representado. Existindo justa causa, ou tendo cessado o interesse do procurador ou do terceiro, ou extinta a relação subjacente ou alterada substancialmente esta, não se mostra necessário o assentimento do interessado» - Raúl Guichard, Catarina Ribeiro e Ana Teresa Ribeiro, anotação ao artigo 265.º do CC, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCP, 2014, pp. 645-647 (647).
A regra da revogabilidade da procuração vigora, portanto, para o caso típico (mais frequente) de procuração conferida no exclusivo interesse do dominus (n.º 2 do artigo 265.º do CC). Nos casos de procuração conferida no interesse conjunto do dominus e do procurador, só por acordo de ambos poderá ser revogada (n.º 3 do mesmo artigo) – Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, 2.ª ed., Almedina, 2016, pp. 107, 159-160, e José Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, 7.ª ed., Lisboa, 1992, p. 91, citado pelo primeiro.
É, então, fundamental esclarecer quando é que uma procuração é (substancialmente) irrevogável, ou seja, quando é que ela é também conferida no interesse do procurador ou de terceiro.
O interesse do procurador a que a norma se reporta há de ser um interesse «próprio, específico, objetivo e direto na execução do negócio que constitui a relação subjacente, de tal modo que o procurador tenha uma posição própria no âmbito da relação de representação, uma posição autónoma da posição da pessoa que representa» – Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., p. 105.
Um interesse próprio «do procurador na conclusão ou na execução do negócio que constitui a relação subjacente. O que é essencial, para que se trate de uma procuração no interesse comum, é que haja mais de um interesse primário – mais de um interesse juridicamente relevante – na conclusão do negócio que constitui a relação subjacente à procuração». Um interesse objetivo na execução do negócio que constitui a relação subjacente, «não pode ser um interesse que resulte pura e simplesmente de um estado psicológico, subjetivo do procurador». Um interesse específico na conclusão do negócio que constitui a relação subjacente, «não pode relevar um mero interesse geral ou genérico do procurador na execução do negócio que constitui a relação subjacente. Qualquer procurador tem, em princípio, um interesse geral em que o negócio que constitui a relação subjacente se conclua ou se execute da melhor forma. Pode considerar-se que todas as pessoas têm um interesse geral na conclusão dos negócios jurídicos em que estão envolvidas. Todas as pessoas têm um interesse no bom funcionamento do tráfego jurídico. Um interesse como este não pode fundar a irrevogabilidade da procuração, não pode ser um interesse primário. O interesse primário tem de ser um interesse na execução do negócio, como já se viu, mas tem de ser um interesse específico nessa execução». Um interesse direto na conclusão do negócio que constitui a relação subjacente; «o interesse só será direto se o procurador for parte no negócio que constitui a relação subjacente ou beneficiar diretamente desse negócio» (as frases deste parágrafo sinalizadas com aspas são extratadas de Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., pp. 102-104).
Quanto à caracterização do «interesse do procurador», há-se ser um interesse direto, integrado numa relação vinculativa, «[a] procuração irrevogável tem de se fundar numa especial necessidade de proteção de uma posição ou de um direito do interessado. Aliás, a irrevogabilidade da procuração não se afere, segundo os n.ºs 2 e 3, só pelos termos da sua declaração, mas segundo a relação subjacente» - Raúl Guichard, Catarina Ribeiro e Ana Teresa Ribeiro, ob. e loc. cit.
«A irrevogabilidade da procuração apenas é admitida em casos nos quais a relação fundamental, justificativa da procuração, imponha como um seu trecho a manutenção do vínculo procuratório, pois, de outra maneira se violaria essa relação fundamental» – Código Civil Comentado, Parte Geral, coord. de António Menezes Cordeiro, Almedina, anotação ao artigo 265.º do CC, pp. 774-777 (776).
A procuração dos autos foi celebrada também no interesse da procuradora?
O interesse primário da autora na celebração da escritura de partilha do imóvel é claramente próprio, específico, objetivo e direto, tendo a autora uma posição própria no âmbito da relação de representação, uma posição autónoma da posição da pessoa do réu.
A procuração outorgada pelo réu em 25-09-2018 – pela qual conferiu à autora os poderes necessários para, em seu nome, proceder à partilha extrajudicial dos bens deixados por óbito de seus pais, relativamente à fração autónoma designada pela letra “G” do prédio urbano sito na Urbanização … Mafra – foi outorgada também no interesse da autora, pelo que tal procuração não será revogável (citado n.º 3 do artigo 265.º do CC). Conforme já acima referido, o que determina a irrevogabilidade da procuração, e do respetivo mandato representativo, é o interesse do procurador/representante/mandatário, com as referidas características, independentemente de estipulação expressa na procuração nesse sentido – trata-se da disciplina resultante dos n.ºs 2 e 3 do artigo 265.º do CC. Também assim, Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., p. 108; Raúl Guichard, Catarina Ribeiro e Ana Teresa Ribeiro, ob. cit., p. 647.
Exige-se outrossim, que a procuração seja celebrada por instrumento público. Nos termos do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código do Notariado, as procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial (sobre o tema, v. ainda Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., pp. 245-250).
Como acima referimos, a propósito de a procuração ter de revestir a forma exigida para o negócio a realizar (artigo 262.º do CC), a procuração dos autos foi exarada por notário, em conformidade com as declarações do réu, cujo conteúdo foi lido e explicado ao outorgante, fazendo fé das declarações do mesmo. Um documento autêntico, portanto (artigo 35.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Notariado, e artigo 363.º, n.º 2, do CC).
Em suma, se a procuração tiver sido validamente conferida também no interesse do procurador, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa. In casu, não foi invocada justa causa e, considerando os factos assentes, a mesma não existiu. A revogação ad nutum, unilateral e imotivada, de uma procuração irrevogável é ineficaz – assim, Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., p. 175 (em conclusão do anteriormente exposto); Código Civil Comentado, Parte Geral, cit., p. 777.
III.iii. Da execução específica
Na presente ação, a autora pede para ser declarada dona e legítima proprietária da fração “G” do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º …7 da freguesia de Mafra, condenando-se o réu a reconhecer-lhe o direito de propriedade plena sobre o citado imóvel. Para sustentar o pedido subsume o negócio celebrado com o seu irmão sobre as heranças dos pais, no que ao imóvel respeita, a um contrato-promessa de partilha, cuja execução específica pretende, ao abrigo do disposto no artigo 830.º do CC.
Não obstante a confissão ficta dos factos pelo réu, a ação foi julgada improcedente por o invocado contrato-promessa ser nulo por falta de forma, que, reportando-se a um imóvel, teria de ser escrita. Com efeito, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula; e, no caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fração autónoma dele, o documento deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do(s) promitente(s) (artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CC). A partilha extrajudicial, no que ao imóvel respeita, exige a formalização por escritura pública ou documento particular autenticado (v. artigo 875.º, ex vi do artigo 939.º, ambos do CC), pelo que o contrato-promessa de partilha do mesmo teria de ter sido celebrado por escrito, o que não foi o caso. O único escrito existente foi a procuração, de cujo texto não conseguimos extrair a vinculação às prestações próprias de um contrato-promessa de partilha, mas apenas a concessão de poderes por uma parte à outra para celebrar a escritura de partilha.
Nos termos do disposto no artigo 220.º do CC, a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei. A execução específica de um contrato-promessa nulo por falta da forma legalmente prescrita não se nos afigura possível.
Em todo o caso, conforme obiter dictum já exposto, a autora está, ao que tudo indica, munida de uma procuração que lhe permite, sem mais qualquer intervenção do réu, celebrar o negócio que deseja (factos 4 e 5). Apenas terá de pagar o remanescente de tornas em falta, menos de 2.000,00 (v. factos provados 4, 7 e 14).
Não existe um contrato-promessa formalmente celebrado por escrito, com os dizeres relativos às prestações típicas de um contrato-promessa, mas existe um mandato representativo e uma procuração irrevogável que confere poderes à autora para celebrar diretamente o contrato definitivo de partilha do imóvel (ou prévia promessa, formalmente válida, desse contrato, se assim o entender).
Se, por um lado, não estão reunidas as condições para a procedência do pedido, por falta de contrato-promessa válido em que aquele pedido se alicerça, por outro, a autora não precisa do tribunal para realizar a escritura (ou documento particular autenticado) de partilha sobre o imóvel. A autora está munida de uma procuração irrevogável que lhe confere poderes para celebrar escritura de partilhas referente à fração “G” do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º …7 da freguesia de Mafra, com adjudicação do citado imóvel a ela mesma. E até pode, sem necessidade de ação judicial, celebrar o contrato-promessa que, por enquanto, lhe falta (embora, repete-se, dele não necessite para formalizar a partilha definitiva do imóvel).
Basta-lhe que pague o remanescente das tornas ainda em falta; o valor de 12.823,67 € mostra-se pago, conforme provado por confissão do réu nesta ação.
Não se vislumbram razões para que a autora venha a enfrentar dificuldades na realização da aludida escritura (ou DPA); mas se as vier a ter, o caminho para fazer valer a sua pretensão tem uma diferente causa de pedir, e um pedido diverso também (como tal, também não se pode dizer que se verifique neste processo a exceção dilatória da falta de interesse em agir, que conduziria à não apreciação do mérito e à absolvição do réu da instância).
O pedido formulado, com a respetiva causa de pedir, é, porquanto exposto, improcedente (sem prejuízo da, obiter dictum, irrevogabilidade da procuração).

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 12/09/2024
Higina Castelo
Inês Moura
António Moreira