I. O crime de falsidade de testemunho, previsto no artigo 360.º, § 1.º CP, reporta-se à responsabilização de quem, como testemunha, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, prestar depoimento falso, atendendo à relação entre o depoimento prestado e o conhecimento dos factos que a testemunha tiver realmente adquirido.
II. O tipo base comporta pena agravada se, conforme se prevê no § 3.º do artigo 360.º CP, o agente tiver sido advertido das consequências da prestação de depoimento falso e prestado o competente juramento.
III. A falsidade de declaração, no âmbito da perspetiva subjetivista, corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida (a sua efetiva ciência), independentemente da verdade que se tenha apurado no processo (e qual seja ela, dada a sua natureza contingente).
O arguido apresentou contestação na qual ofereceu o merecimento dos autos. A final veio a ser condenado pela prática de um crime falsidade de testemunho, previsto no artigo 360.º, § 1.º e 3.º CP, na pena de 250 dias de multa, à razão diária 5€, perfazendo uma multa total de 1 250€.
b. Inconformado com a decisão dela recorreu o arguido, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (só se transcrevendo as que minimamente o sejam em sentido técnico (2)):
«III – (…) a acusação é manifestamente infundada, por não conter os elementos típicos do ilícito que deveria imputar ao recorrente, e a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” enferma dos mesmos vícios, havendo condenado o recorrente sem que se houvesse discutido a conduta típica do ilícito que se imputa ao recorrente, o que determina a procedência total do recurso, com absolvição do recorrente.
IV - A Sentença considerou que o recorrente depôs falsamente, em sede de audiência de julgamento, sobre factos relativamente aos quais devia depor com verdade, depois de ter sido advertido, pela Meritíssima Juiz de Direito Presidente, de que estava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas sobre a matéria em causa nos autos, e de que, caso não o fizesse, incorria na prática de um ilícito criminal, tendo ele ficado ciente de tais advertências, e, bem assim, depois de ter prestado juramento legal.
VI - Isso pois, o recorrente em sede de audiência de julgamento corrigiu a informação prestada em sede de interrogatório na Polícia Judiciária, pois teria havido uma errada interpretação das questões feitas pelo Inspetor acerca da assinatura contida em dois contratos.
V - Isto porque, no inquérito constou que o arguido reconhecia como sua a assinatura nos contratos que lhe foram exibidos, dando a entender que o mesmo quem firmou a sua assinatura no documento.
VI - Contudo, posteriormente, quando em audiência de julgamento, ao ver novamente o documento e ter sido abordada pelo Tribunal de forma clara a questão a apreciar, o arguido apercebeu-se do erro da informação disponibilizada por si no interrogatório prestado na Polícia Judiciária, pois apesar de reconhecer uma assinatura, não a reconhecia como sua, isso é, uma assinatura escrita e feita por si.
VII - O recorrente afirma que nunca assinou os contratos, e que em sede de interrogatório junto ao Inspetor da Polícia Judiciária não lhe teria sido esclarecido que se perguntava se a assinatura era sua, mas se reconhecia uma assinatura no documento, tendo sido esta a interpretação do recorrente, que se revelou posteriormente, como equivocada, mas, diante de um erro de interpretação e nunca uma falsidade.
VIII - Houve erro quanto à apreciação da questão. Erro este que o arguido se apercebeu quando questionado pelo Juiz na audiência de julgamento, pois este sim clarificou a pergunta, ao questionar se a assinatura teria sido feita por si, se era sua.
IX - Momento em que o arguido afirma que não. O que não corresponde dizer que o arguido prestou falso depoimento, uma vez que, o depoimento verdadeiro foi o prestado em sede de audiência de julgamento, e não o prestado na Polícia Judiciária, uma vez que aquando desta ocasião houve um erro pelo recorrente na interpretação da questão sobre a assinatura.
X - Infundadamente, a Sentença afirma e conclui que o depoimento era contraditório e que o falso era o prestado em sede de audiência de julgamento, e ainda, que o recorrente teria por objetivo de prejudicar a boa administração da Justiça.
XI - Este entendimento está equivocado, pois o arguido jamais teria, conforme explicitado, a intenção de prejudicar a administração da Justiça, tendo incorrido em erro apenas. Erro este que fez questão de corrigir.
XII - Erro esse que a decisão deveria ter esmiuçado e contextualizado junto aos factos relativos à suposta contradição. E, não apenas ter se limitado radicalmente a afirmar que se tratava de um testemunho falso somente porque existiram versões diversas, que contudo não consistiam numa real contradição, e sim numa apreciação errada dos factos questionados nos dois momentos.
XIII - Além disso, a própria sentença afirma que tal confronto de depoimentos não teve o condão de prejudicar o desfecho da absolvição no processo, facto que deveria ter sido levado em consideração pelo Tribunal “a quo”.
XIV - Relativamente ao crime de falsidade de testemunho, seja pela teoria objetiva, seja pela subjetiva da falsidade, a verdade é que na sentença recorrida não restou demonstrado o contrário daquilo que foi declarado em uma das versões, a considerada falsa, tampouco restou comprovado que a testemunha, ora recorrente, agiu intencionalmente e que já conhecia o contrário daquilo que declarou. No caso, nada disso resulta indiciado sequer, tendo sido apenas alegado na acusação e absorvido pela sentença.
XV - A Sentença apenas afirma deliberadamente e sem fundamentação legítima, apenas por ordem cronológica, que o recorrente prestou testemunho falso na audiência de julgamento, somente por ser diferente do testemunho prestado na Polícia Judiciária.
XVI - Não foi produzida qualquer prova que permita afirmar qual o acontecimento verdadeiro que o recorrente, enquanto testemunha naquele outro processo, deturpou com consciência de que o fazia, não é possível condenar o recorrente pela prática do crime de falsidade de testemunho, sendo certo que a sentença apenas afirma e não prova que o segundo testemunho foi dolosamente falso.
XVII - Há que adequar o contexto das representações do agente, e, ainda, a perceção do sujeito com uma importância autónoma, embora não isolada da realidade.
XVIII - O recorrente não faltou à verdade sobre um acontecimento real discutido no interrogatório, apenas deu-lhe interpretação diversa daquela compreendida em sede de julgamento, por ter incorrido em erro na apreciação das questões sobre os ditos contratos.
XIX - Uma testemunha pode estar convencida do sentido da perceção que teve de um acontecimento, e que relatou em fase de inquérito, contudo, chegada a audiência, confrontada com outros documentos, toma consciência da inverdade do que estava convencida e altera o seu depoimento, sem que isso represente um ilícito.
XX - Ao considerar que as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de julgamento são falsas, sem afirmar quais os factos objectivos e concretos donde emerge tal afirmação, limita-se o Tribunal a quo a proferir uma conclusão, um juízo de valor desacompanhado das provas e fundamentos donde aquela se pudesse extrair.
XXI - Sobre a medida concreta da pena, não pode o arguido concordar nem conformar-se com a pena que lhe foi aplicada, pois a mesma revela-se excessiva, desproporcional e desmedida, em total desrespeito e violação das normas que determinam a escolha e medida da pena, ínsitas nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal.
XXII - Em caso algum, a pena aplicada pode ultrapassar a medida da culpa. As penas têm uma dupla finalidade: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
XXIII – Para além disso, o Tribunal a quo deveria ter atendido ao grau de ilicitude do facto e ao modo de execução deste, à intensidade do dolo. Dolo este que o recorrente não ao agir com a conduta descrita.
XIV - As penas aplicadas devem ser necessárias para satisfazer as exigências de prevenção, não devendo nunca ser fixada uma pena excessiva e que ultrapasse o limite do razoável e do adequado.
XXV - Pelo exposto, impõe-se, antes, a absolvição do recorrente, e a consequente revogação da sentença recorrida e substituição por outra que absolva o recorrente da prática do crime de que vem acusado.»
c. Admitido o recurso o Ministério Público respondeu, sintetizando-se a sua posição nos seguintes termos:
«(…) Ao prestar dois depoimentos contraditórios entre si acerca dos mesmos actos, prestou, necessariamente, em determinado momento, um depoimento falso, isto é, que não corresponde à realidade, independentemente do momento em que tal tenha acontecido.
- O agravamento da pena, no caso dos autos, em virtude do que dispõe o n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal, resulta da circunstância de o arguido ter prestado o depoimento falso, quando inquirido, na qualidade de testemunha, no decurso da audiência de discussão e julgamento, depois de o arguido ter prestado juramento e de ter sido advertido das consequências penais a que se expõe.
- Tal é que o resulta, aliás, indubitavelmente, do texto do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1517/18.6…, onde se pode ler que o depoimento prestado, naquela sede, pelo ora arguido, se revelou claramente interessado, contraditório e evidentemente em desrespeito da lógica e da experiência comum, reconhecendo-se, claramente, naquele âmbito, que o agora arguido descaradamente faltou à verdade (a este respeito, veja-se, com particular enfoque, as páginas 14 e 15 do acórdão).
- Ante a prova produzida, nos presentes autos, em sede de audiência de discussão e julgamento, não podia o Tribunal a quo decidir de forma diversa daquela que decidiu.
- As necessidades de prevenção geral, que são, in casu, elevadas, as necessidades de prevenção especial, que, no caso, são medianas, atendendo à condenação já averbada ao certificado do registo criminal do arguido, o grau de ilicitude mediano da conduta perpetrada pelo arguido, atendendo às circunstâncias em que foi praticada e às consequências causadas que não tiveram particular impacto negativo face ao desfecho do processo n.º 1517/18.6…, e o dolo directo com que o mesmo actuou, demandam a aplicação àquele da pena de 250 dias de multa, à razão diária de €5,00, que consideramos adequada, equilibrada e justa.
- (…) é entendimento do Ministério Público que o Tribunal a quo julgou correctamente, no caso dos autos, todos os factos constantes dos factos provados, em face dos meios de prova produzidos, em sede de audiência de julgamento, impondo-se, por via disso, a condenação do recorrente, nos exactos termos constantes da sentença recorrida, pelo cometimento, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho agravado.»
d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu parecer no exato sentido da resposta já dada ao recurso.
e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º do CPP, veio o recorrente reiterar sumariamente a argumentação já apresentada no recurso.
f. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A. Objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (3), estando neste caso suscitadas duas questões: i. qualificação jurídica dos factos; ii. medida da pena.
B. Da sentença recorrida
B.1 Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
«1. No dia 11 de julho de 2018, pelas 11h40m, nas instalações do Departamento de Investigação Criminal de … da Polícia Judiciária, o arguido AA foi inquirido, na qualidade de testemunha, no âmbito do inquérito n.º 1517/18.6…, que correu os seus termos no DIAP de …, e em que era arguido BB e assistente CC.
2. Na ocasião, quando inquirido acerca do contrato que se encontrava junto àqueles autos, a fls. 13 e 14, contrato que lhe foi exibido, o arguido AA declarou, além do mais, que reconhecia a assinatura aposta no verso de fls. 14 como sendo sua.
3. Declarou, também, reconhecer como sua a assinatura aposta no contrato de fls. 16 e 17 daqueles autos, na decorrência do que não tinha quaisquer dúvidas de que o assistente daquele inquérito tinha direito a dois períodos de férias de sete dias cada, por força da vigência e aplicação de tais contratos.
4. No dia 30 de outubro de 2019, pelas 13h30m, nas instalações do Tribunal Judicial de …, teve lugar a audiência de julgamento, realizada no âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 1517/18.6…, do Juízo Central Criminal – J… – de …, em que era arguido BB e assistente CC.
5. No decurso da audiência de julgamento referida em 4., foi inquirido, na qualidade de testemunha, o ora arguido AA.
6. Na ocasião, o arguido AA foi advertido pela Meritíssima Juiz de Direito Presidente de que estava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas sobre a matéria dos autos, sob pena de, não o fazendo, incorrer em responsabilidade criminal, após o que o arguido AA prestou juramento legal.
7. O arguido AA declarou, então, ao ser-lhe exibido o contrato que se encontrava junto àqueles autos, a fls. 13/14 e 16/17, que a assinatura aposta no verso de fls. 14 não era sua.
8. Ao atuar da forma anteriormente narrada, o arguido AA prestou, conscientemente, dois depoimentos contraditórios, tendo prestado, em sede de audiência de julgamento, um depoimento que não correspondia à verdade, de teor absolutamente divergente do teor do depoimento que prestara, no âmbito do mesmo processo, na fase de inquérito.
9. O arguido AA agiu da forma supra descrita, depondo falsamente, em sede de audiência de julgamento, sobre factos relativamente aos quais devia depor com verdade, depois de ter sido advertido, pela Meritíssima Juiz de Direito Presidente, de que estava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas sobre a matéria em causa nos autos, e de que, caso não o fizesse, incorria na prática de um ilícito criminal, tendo ele ficado ciente de tais advertências, e, bem assim, depois de ter prestado juramento legal.
10. Ao prestar depoimento nos termos em que o fez, conforme anteriormente relatado, no decurso da audiência de julgamento que se realizou no âmbito do processo supra referenciado, o arguido AA sabia que o mesmo não correspondia à verdade, tal como sabia que estava obrigado a responder com verdade ao que lhe fosse perguntado acerca da matéria em causa nos autos, e, não obstante, não se absteve de proceder nos moldes anteriormente enunciados.
11. Agiu o arguido AA, ao atuar da forma supra descrita, com a intenção de prejudicar a boa administração da Justiça, bem sabendo que não prestava depoimento genuíno em audiência de julgamento, apesar de ter sido previamente advertido das consequências penais a que se expunha e de ter prestado juramento legal.
12. O arguido AA agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
13. O arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado:
No âmbito do processo número 175/18.2.. do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, Juiz …, por sentença proferida em 29.06.2022, transitada em julgado em 15.09.2022, pela prática em 2017 de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5€, o que perfaz um montante global de 500€.»
B.2 Para melhor esclarecimento dos factos supra transcreve-se também a motivação que o tribunal a quo registou na sentença relativamente ao julgamento de facto:
«O Tribunal formou a sua convicção, no que concerne aos factos provados, tendo por base a análise global e a valoração crítica da prova, à luz do estatuído no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, aliado às regras da experiência comum e à livre convicção do julgador.
Regularmente notificado para comparência o arguido não compareceu nas diligências agendadas, motivo pelo qual não foi possível apurar a sua versão dos factos.
Não obstante, atendendo à natureza dos factos e à prova documental junta aos autos – concretamente, a certidão, de fls. 3 a 9, o auto de transcrição do depoimento prestado pelo arguido, na qualidade de testemunha, em sede de audiência de julgamento, no âmbito do processo n.º 1517/18.6…, de fls. 17 a 84 e a certidão do acórdão proferido no âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 1517/18.6…, de fls. 113 a 126 – o Tribunal não teve dúvidas em dar como provados os factos constantes nos pontos 1) a 7).
De facto, e atentando na prova documental acima transcrita, a qual não foi alvo de qualquer impugnação que pudesse infirmar a conclusão que daí se retira, verifica-se que o arguido apresentou dois depoimentos contraditórios sobre factos relativamente aos quais devia depor com verdade, depois de ter sido devidamente advertido pelo Tribunal de que, se não o fizesse, incorreria na prática de um crime.
No que respeita à factualidade constante dos pontos 8) a 12), a mesma resulta do cotejo da matéria objetiva dada como provada, que permitiu a este Tribunal, com base na prova produzida, em conjugação com as regras de experiência comum, concluir pela sua verificação.
Assim, os factos praticados pelo arguido são considerados pela generalidade das pessoas como proibidos e punidos por lei, pelo que sendo o arguido o que se designa por «homem médio», o mesmo sabia que os factos por si praticados eram proibidos e punidos criminalmente, não podendo ser outra a sua vontade que não a de praticá-los.
Consigna-se que, pese embora tenham sido realizadas as pesquisas nas bases de dados disponíveis neste Tribunal e que constam dos autos, não foi possível apurar as condições pessoais, económicas e familiares do arguido.
No que respeita à factualidade vertida em 13), referente aos antecedentes criminais do arguido, tal resulta da análise do certificado de registo criminal, de fls. 154 e ss.»
C. Dos fundamentos do recurso
C.1 Nota prévia
Apesar de ser manifesto o desconforto do recorrente com a factualidade julgada provada na sentença recorrida, certo é que nenhuma impugnação se mostra efetuada, quer nos termos amplos previstos no artigo 412.º, § 3.º CPP; quer por via da revista alargada do artigo 410.º do mesmo código! Cinge-se a uma referência vaga à acusação… que considera «manifestamente infundada»! Pretendendo estender esse conceito - que é exclusivo daquela - para qualificar a sentença! Como se esta pudesse padecer dos vícios que a lei refere àquela (artigo 311.º, § 2.º, al. a) e 3.º CPP)! E como assim tal alegação não constitui efetivo fundamento do recurso da sentença. Breve: A matéria de facto julgada provada é suficiente para a decisão que vem impugnada; a sentença não contém sobre a mesma questão posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente, ou que não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito; nem qualquer erro notório evidenciador de na sua decisão o tribunal recorrido ter violado as regras da experiência, efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. Ou que nela se tenham violado regras sobre prova vinculada ou das leges artis. Não encerraremos este proemio sem duas outras referências, que pela sua objetividade se afiguram eloquentes (e, porventura, esclarecedoras) sobre as omissões impugnatórias quanto à matéria de facto: uma é a referência crítica constante da sentença proferida no processo n.º 1517/18.6…; e outra é a ausência do arguido/recorrente na audiência de julgamento deste processo!
A primeira elucida o modo como o arguido se comportou na audiência desse processo; e a segunda, evidencia um desperdício de direitos de defesa, incompreensível para quem se considera (pelo menos como se afirma) injustiçado! Enfim. A matéria de facto fixada na sentença recorrida, sendo nestes termos indiscutida tornou-se indiscutível. Razão pela qual será com base no acervo factológico que da mesma consta que se ajuizará a correção jurídica da condenação e da medida concreta da pena aplicada.
C.2 Da qualificação jurídica dos factos
O crime de falsidade de testemunho tutela o bem jurídico da realização da justiça, enquanto função do Estado, estando previsto no artigo 360.º CP, ali se preceituando que:
1. Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
(…)
3. Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.»
São seus elementos constitutivos quanto ao tipo objetivo:
-Que o agente, investido na qualidade processual de testemunha, preste depoimento falso;
- Perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento.
E na vertente subjetiva:
- que o agente tenha atuado com conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
Trata-se de crime de mera atividade pois, para além da verificação da conduta típica, não se exige a verificação de qualquer outro resultado; sendo também um crime de perigo abstrato, pois não se mostra necessário que a declaração falsa influencie, de modo efetivo, o esclarecimento da verdade, nem que, em concreto, tenha criado esse risco. E é também um crime de mão-própria. Constituindo ainda um crime de mão-própria, na exata medida em que só pode ser praticado por determinadas pessoas investidas numa certa qualidade (testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete).
O tipo base comporta pena agravada se, conforme se prevê no § 3.º do artigo 360.º CP, o agente tiver sido advertido das consequências da prestação de depoimento falso e prestado o competente juramento. A perspetiva que temos por ajustada no concernente ao crime de falsidade de testemunho (artigo 360.º, § 1.º CP) é a que habitualmente é denominada de perspetiva subjetivista, que entende que o cerne da incriminação do falso testemunho, consiste na responsabilização penal de quem, como testemunha, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, prestar depoimento falso, atendendo à relação entre o depoimento feito e o conhecimento dos factos que a testemunha tiver realmente adquirido. (4)
A falsidade de declaração a que se reporta o § 1.º do artigo 360.º CP corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida (a sua ciência), independentemente da verdade que se tenha apurado no processo (e qual seja ela, dada a sua natureza contingente). Este modo de ver as coisas (na perspetiva que – como já referimos – consideramos ajustada ao ilícito em referência) respeita integralmente a função processual da testemunha - que tem o dever de prestar depoimento verdadeiro e completo – artigos 91.º, 132.º, § 1.º, al. d), 138.º, § 3.º e 348.º CPP) - e a tutela do bem jurídico protegido, que é realização da justiça, enquanto função do Estado, com aquele conexionado. Ex adverso, conforme é patente, a teoria objetivista, de matriz germânica (entre nós vem sustentada por A. Medina de Seiça e por Paulo Pinto de Albuquerque) (5), assenta numa «realidade» que parece não estar pressuposta no tipo de ilícito aqui em causa, isto é, no que o tribunal terá fixado como «verdade» noutro processo! Sendo essa a perspetiva que parece subjazer à acusação, à sentença recorrida e também ao recurso... Há bastas e profundas críticas que a nossos olhos, muito justamente, se vêm apontando à perspetiva «objetivista», que vê a falsidade do testemunho previsto no artigo 360.º, § 1.º CP, como uma desconformidade entre a narração do declarante e aquilo que o tribunal, em face da prova tenha dado por acontecido (a chamada «verdade histórica» - que é apenas, deveras, uma «verdade processualmente construída»).
A crítica mais assertiva da doutrina a esse modo de ver o ilícito de falsidade de testemunho, surge na pena de Nuno Brandão (6), sustentando a perspetiva «subjetivista». Afirma o referido autor, de modo que consideramos bem sustentado, que as teorias objetivista e subjetivista constituem distintas compreensões sobre o que seja a falsidade pressuposta pelo tipo objetivo de ilícito em referência. A teoria tradicional – que aqui seguimos - crismada de «subjetivista», inscreve-se, afinal, numa linha de continuidade entre o «falso testemunho» do artigo 238.º do Código Penal de 1886 e o atual crime de falsidade de testemunho, previsto do artigo 360.º, § 1.º CP, entendendo que a falsidade corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida (a sua ciência), independentemente da verdade que se tenha apurado no processo (e qual seja ela, dada a sua já referida natureza contingente). Não se exigindo, pois, que a verdade histórica objetiva tenha de ser apurada (e por isso logo e para tanto deva constar da acusação). Volvamos às circunstâncias do caso. Entre o mais que se alegou na acusação e que, na sequência dela, se julgou provado na sentença, está relevantemente provado, em síntese, que:
- No dia 11 de julho de 2018, pelas 11h40m, o arguido/recorrente foi inquirido nas instalações do Departamento de Investigação Criminal de … da Polícia Judiciária, como testemunha, no âmbito do inquérito n.º 1517/18.6… (em que era arguido BB e assistente CC);
- Nessa ocasião e circunstância, inquirido acerca do contrato que se encontrava a fls 13/14 daqueles autos, declarou que reconhecia a assinatura aposta no verso de fls. 14 como sendo sua. Mais declarando reconhecer, também como sua, a assinatura aposta no contrato de fls. 16 e 17 daqueles autos;
- Posteriormente, no dia 30 de outubro de 2019, pelas 13h30m, na audiência de julgamento, do Processo n.º 1517/18.6…, do Juízo Central Criminal de …, em que era arguido BB e assistente CC, foi inquirido na qualidade de testemunha, após ser advertido pela Meritíssima Juiz de Direito Presidente de que estava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas sobre a matéria dos autos, sob pena de, não o fazendo, incorrer em responsabilidade criminal;
- O arguido AA prestou juramento legal, tendo logo após declarado, ao ser-lhe exibido o contrato que se encontrava junto àqueles autos, a fls. 13/14 e 16/17, que a assinatura aposta no verso de fls. 14 não era sua.
- Ao atuar deste modo o arguido AA agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei, prestou, dois depoimentos contraditórios, pois em sede de audiência de julgamento, prestou um depoimento (…) de teor incompatível com o que prestara, no âmbito do mesmo processo e sobre a mesma factualidade, na fase de inquérito.
Nestes termos mostra-se absolutamente evidente o preenchimento dos elementos objetivos (duas declarações distintas, antagónicas, inconciliáveis, em dois distintos momentos, perante entidades distintas sobre a realidade por ele apreendida); e subjetivo do tipo de ilícito em referência (com evidente intenção de impedir a realização da justiça), incluindo a agravação do § 3.º, uma vez que o arguido prestou juramento após ter sido advertido das consequências penais a que se expunha.
C.2 Medida da pena O recorrente sustenta que a pena aplicada pelo tribunal recorrido é «excessiva, desproporcional e desmedida, em total desrespeito e violação das normas que determinam a escolha e medida da pena, ínsitas nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal». Já o Ministério Público, por seu turno, considera serem elevadas as exigência de prevenção geral e medianas as necessidades de prevenção especial e, «atendendo às circunstâncias em que foi praticada e às consequências causadas que não tiveram particular impacto negativo face ao desfecho do processo n.º 1517/18.6…» … deverá manter-se a condenação. Comecemos por lembrar que os recursos penais são remédios jurídicos, vocacionados para colmatar erros de julgamento, despistando ou corrigindo, cirurgicamente, eventuais erros in judicando (por violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (por violação de normas de direito processual). Isto é, «o tribunal ad quem não julga de novo, não determinando concretamente a pena como se inexistisse uma decisão de primeira instância. E a sindicância dessa decisão (…) não inclui ainda a compressão da margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar, sendo que a margem de liberdade do juiz de julgamento nos limites expostos, abrange todo o processo prático de decisão sobre a pena.» (7)
Em conformidade com a matriz constante do artigo 40.º do Código Penal, toda a pena tem como finalidades «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, (…) em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.»
Nos termos do artigo 71.º do Código Penal, para a determinação da medida concreta da pena, cumpre atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.
Numa primeira fase a medida concreta da pena atende à medida da culpa do arguido e às exigências de prevenção, atendendo numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.
Daquela primeira aproximação decorrem duas regras basilares: a primeira, explícita, consiste em que a culpa é o fundamento para a concretização da pena, devendo esta proteger eficazmente os bens jurídicos violados; a segunda, que está implícita, é que se impõe ter em conta os efeitos da pena na vida futura do arguido no seio da comunidade e da necessidade desta dele se defender, mantendo a confiança na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada.
Em suma, a pena concreta haverá de resultar da ponderação de todo o circunstancialismo provado, bem assim como dos caracteres de personalidade do agente, observando os princípios e regras de direito que regem esta matéria. Devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador (com referência ao arguido), sendo aplicada com a finalidade primordial de restabelecer a confiança coletiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. (8) A moldura abstrata da pena para o crime de falsidade de testemunho, está legalmente fixada entre 1 mês e 5 anos de prisão ou 10 a 600 dias de multa. As circunstâncias que se afiguram mais relevantes para aferir da medida concreta da pena são as caracterizadoras da atividade ilícita concreta (o modo como foi cometido o ilícito), os antecedentes criminais do arguido (que os tem) e em último lugar a anomia face ao procedimento (a ausência injustificada à audiência é evidenciadora de um certo modus). Dando tradução prática à preferência legal da pena alternativa não privativa da liberdade, o tribunal recorrido optou por aplicar uma pena de multa. O respeito por este princípio - da prevalência das penas não privativas da liberdade -, sendo uma decorrência do direito fundamental à liberdade que assiste a todos os cidadãos (cf. artigo 27.º, § 1.º da Constituição da República), só pode ser restringido quando se revele necessário, adequado e proporcional à satisfação de outros interesses constitucionalmente protegidos (cf. artigo 18.º, § 2.º da Constituição) -, evidencia justeza no critério de escolha da pena. Quedou-se a medida concreta da pena de multa significativamente abaixo do meio da moldura abstrata, fixando-se depois o seu quantitativo diário no mínimo legal, em razão de ser desconhecida a situação económica do arguido. Nestas circunstâncias mal se compreende a adjetivação recursiva, ao considerar a medida da pena «excessiva», «desproporcional», «desmedida», em «total desrespeito e violação das normas que determinam a escolha e medida da pena, ínsitas nos artigos 40.º, 70.º e 71.º».
Mas porquê?
Nada se diz!
As circunstâncias provadas arredam qualquer dúvida no sentido de a medida da culpa ser (pelo menos) mais que mediana; mostrando-se as exigências de prevenção geral também elevadas, em razão dos antecedentes e da ausência de interesse pelo processo, não sobrando igualmente dúvida que o arguido/recorrente carece de socialização, de molde a adquirir os valores de fidelidade ao direito, tendo em vista a prevenção da prática de futuros crimes, sendo neste conspecto mais que medianas também as exigências de prevenção especial. Breve: a sentença recorrida contém todos os ingredientes de facto e de direito que justificam, plenamente, a qualificação jurídica efetuada pelo tribunal recorrido e a medida da pena aplicada, razão pela qual nela não constatamos erro de julgamento nem qualquer desconformidade com os princípios ou as regras do direito. Tudo razões pelas quais o recurso se não mostra merecedor de provimento.
III – Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a douta sentença recorrida.
b) Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigo 513.º, § 1.º e 3.º do CPP e artigo 8.º Reg. Custas Processuais e sua Tabela III).
Évora, 10 de setembro de 2024
J. F. Moreira das Neves (relator)
Jorge Antunes
Laura Goulart Maurício
..............................................................................................................
1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).
2 As conclusões são «um resumo das questões discutidas na motivação» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14); não podem constituir uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim constituírem uma síntese essencial dos fundamentos do recurso» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp. 23; «devem ser concisas, precisas e claras (…)» (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335). Neste mesmo sentido vem a jurisprudência decidindo: cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, Desemb. Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, Desemb. Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, Desemb. Filipa Costa Lourenço; e do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 9mar2023, proc. 135/18.3SMLSB.L2-9, Desemb. João Abrunhosa.
3 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.
4 Neste sentido pode ver-se acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 13 de julho de 2021, proc. 486/19.0T9STB.E1, em que foi relator aquele que neste cumpre a mesma função.
5 A. Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, Coimbra Editora, 2001, pp. 473 ss. [anotação ao artigo 360.º CP]; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pp. 846/849, anotação ao artigo 360.º CP [mormente pontos 11, 16 e 18].
6 Nuno Brandão, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 3/2010, pp. 477-504.
7 Ac. TRÉvora, de 16jun2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1. Desemb. Clemente Lima; e também DSum. TRE, 20/2/2019, Desemb. Ana Brito, proc. 1862/17.8PAPTM.E1.
8 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18mar98, Cons. Leonardo Dias, proc. 98P194, www.dgsi.pt ; e Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 227.