EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPESAS ELEGÍVEIS
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Sumário

- o rendimento disponível para cessão que acautelará o pagamento de despesas e o reembolso dos credores é definido consoante as despesas constantes, reiteradas e habituais que sejam inerentes ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, considerando as respetivas condições pessoais (idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos);
- as despesas que, à luz do disposto no artigo 239.º/3, alínea iii), do CIRE, podem ser ressalvadas do rendimento disponível para cessão serão outras despesas para além das que foram consideradas para definir o montante excluído do rendimento disponível para cessão, nos termos das alíneas i) e ii);
- outras despesas serão despesas imprevisíveis, extraordinárias, inerentes a evento inusitado e infrequente e, para além disso, serão despesas que os Devedores, no contexto que lhes é imposto de com empenho e sacrifício, comprimirem ao máximo os gastos, não podiam deixar de realizar.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrentes / Insolventes: (…) e (…)
Recorridos / Credores: (…), (…) e outros

No âmbito do processo de insolvência, foi deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo formulado pelos Devedores Insolventes, tendo-se determinado que cada um dos Devedores entregasse ao fiduciário o valor do seu rendimento anual que exceda o correspondente à retribuição mínima mensal garantida por mês.
Os Devedores Insolventes foram notificados para disponibilizarem os elementos necessários para aferir dos rendimentos daqueles no 2.º ano de cessão de rendimentos (entre Janeiro e Dezembro de 2023), sob pena de se considerarem incumpridas as obrigações a que alude o artigo 239.º, n.º 4, alíneas a) e d), do CIRE.

II – O Objeto do Recurso
Na sequência de tal notificação, os Devedores Insolventes apresentaram-se a requerer autorização para abatimento ao rendimento disponível da despesa extraordinária realizada no ano de 2023, no montante de € 3.117,26.
Para tanto, invocaram ter tido necessidade de fazer face a despesas de saúde extraordinárias e inesperadas, a saber:
- tratamentos dentários, pelo que tiveram de fazer uma intervenção urgente, o que perfez o valor global de € 690,70;
- consulta de médico dentista, com vista a assegurar o devido acompanhamento e procedimentos necessários para a resolução dos seus problemas dentários;
- face à idade que têm, tiveram vários momentos que careceram de acompanhamento médico, de urgência ou especialidade, para o qual não lograram acompanhamento atempado pelo SNS, motivo pelo qual, face à urgência tiveram de se socorrer de serviços de saúde alternativo ao SNS;
- a despesa conjugada de ambos os requerentes, perfez um valor global de € 785,94;
- face ao aumento generalizado do custo de vida, e ao agravamento da situação de saúde, em face da avançada idade dos insolventes, pelas despesas de farmácia que têm vindo a representar um peso no orçamento dos insolventes, de acordo com as faturas das farmácias, entre produtos de higiene pessoal, essenciais à manutenção de uma vida condigna dos insolventes, e bem assim, os medicamentos para controlo das diversas maleitas das quais padecem, representa uma custo anual de cerca de € 1.640,62;
- na situação em que se encontram, não consegue os requerentes suportar as despesas fixas mensais, ceder o rendimento disponível e ainda fazer face a despesas extras de saúde;
- as despesas que se invocam não são consideradas supérfluas nem exageradamente onerosas para a massa insolvente, atento o seu carácter absolutamente excecional.
Posteriormente, a Devedora Insolvente mais se apresentou a requerer seja autorizada a proceder ao abatimento ao rendimento disponível da despesa extraordinária no montante de € 1.140,00, invocando o seguinte:
- teve de fazer face a despesa extraordinária de saúde dentária derivada de uma infeção dentária;
- foi necessária a colocação de uma coroa dentária, de modo a assegurar a saúde dentária da Requerente e a mastigação dos alimentos;
- teve de consultar um médico dentista, com vista a assegurar o devido acompanhamento e procedimentos necessários para a resolução do seu problema dentário;
- tal despesa foi necessária, inesperada e extraordinária;
- na situação em que se encontra, não consegue suportar as despesas fixas mensais, ceder o rendimento disponível e ainda fazer face a despesa extra.
Em resposta, os Credores (…) e (…) pugnaram pelo indeferimento da pretensão dos Devedores Insolventes. Sustentaram que:
- nenhuma das despesas alegadas é extraordinária, são antes despesas constantes, recorrentes e, como tal, despesas ordinárias;
- nada justifica que deixem de entregar ao fiduciário o valor do rendimento anual de cada um deles que exceda o correspondente à retribuição mínima mensal garantida por mês;
- a pretensão deduzida revela que continuam a preferir o recurso a serviços de medicina privados em detrimento do recurso ao Serviço Nacional de Saúde.
Foi proferida decisão indeferindo a pretensão dos Devedores, exarando-se que, tendo em consideração as despesas alegadas e demonstradas, a mesma carece de fundamento legal.
Inconformados, os Devedores Insolventes apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que defira o pedido de dispensa de cessão do valor suportado com as despesas extraordinárias demonstradas nos autos. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I. Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho proferido em 16 de maio de 2024, nos autos do processo supra referenciado, que indeferiu o pedido de dispensa de cessão relativo a despesas extraordinárias.
II. Salvo o devido respeito por melhor opinião, a decisão recorrida peca por alguma superficialidade, notório e evidente erro na apreciação das provas e dos factos, insuficiente apreciação para a decisão da matéria de facto e não fez a correta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis, devendo, por conseguinte, ser revogada e substituída por outra decisão que revogue a decisão proferida.
III. Crê-se, porém que, salvo o devido respeito por melhor opinião, a decisão recorrida não fez a correta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis, nomeadamente do artigo 239.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas – CIRE, devendo, por conseguinte, ser revogada e substituída por outra decisão que aplique o direito ao caso concreto.
IV. A situação de insolvência pessoal dos Apelantes, foi declarada por sentença de 13 de outubro de 2017.
V. O pedido de exoneração do passivo restante que veio a ser liminarmente concedido, por despacho proferido em 16.12.2021.
VI. Ou seja, nos termos do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, o Tribunal a quo fixou naquela data que os devedores entreguem ao fiduciário o valor do seu rendimento anual que exceda o correspondente a 2 retribuições mínimas mensais garantidas por mês, ou seja 2 salários mínimos nacionais para fazer face às despesas do agregado familiar.
VII. Em 02.04.2024 e em 16.04.2024 os insolventes efetuaram requerimentos aos autos com Refª 12341144 e 12388319 respetivamente, onde informam relativamente a despesas extraordinárias que tiveram de suportar, mais especificamente despesas de saúde.
VIII. Nomeadamente tratamentos dentários inesperados, consultas de especialidade tais como ortopedia e raio-x a uma mão no seguimento de uma queda, portanto, tudo relativo a situações inesperadas, ao contrário do que consta do douto despacho decorrido!
IX. Veja-se que os insolventes são um casal de idade avançada, em que a insolvente mulher conta já com 81 anos e o insolvente marido com 79 anos. X. A insolvente mulher padece de Parkinson, doença neurológica que afeta os movimentos do doente, rigidez muscular, lentidão de movimentos, alterações de fala e de escrita e que se deve à degeneração das células situadas no cérebro, dando-se assim a morte das células cerebrais que produzem a dopamina.
XI. Ora tratando-se de uma doença degenerativa, obviamente que a situação médica da insolvente se vai agravando, todavia não se pode prever, nem se consegue estimar de que forma a doença evolui bem como as suas consequências e necessidades de acompanhamento, tratamentos, etc….
XII. As despesas médicas da insolvente mulher são imprevisíveis e por conseguinte, tratando-se de uma pessoa estrangeira, que não fala português, seja necessário um acompanhamento médico mais próximo tudo isto já havia sido trazido aos autos de forma diligente e voluntária pelos insolventes, através de requerimento datado de 08.05.2023.
XIII. É que o estigma de que os insolventes pretendem fugir às obrigações a que estão vinculados no período de cessão, ou que o seu objetivo é furtar-se à obrigação de cedência de parte do seu rendimento, é reprovável, mais ainda quando vem do Tribunal.
XIV. O despacho recorrido labora em erro quando diz: “Tendo em vista proporcionar aos devedores um novo começo livre de dividas, o artigo 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece que, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.”
XV. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, o artigo 235.º do CIRE estabelece que “Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste” … nos 3 anos posteriores ao encerramento, e não 5.
XVI. Vem ainda o douto despacho referir que “A alteração do valor do rendimento indisponível para cessão depende de uma nova avaliação das condições de vida do devedor, pelo que cabe a este alegar e demonstrar que as circunstâncias de facto em que assentou a decisão se alteraram.”
XVII. Posição com a qual os apelantes concordam, motivo pelo qual não requereram a alteração do valor do rendimento disponível, pois as suas condições de vida mantêm-se basicamente iguais, o que difere é o avançar normal da idade e com ele vêm as despesas inesperadas de saúde. Despesas essas que o douto Tribunal de 1ª instância parece ter grandes dificuldades em aceitar.
XVIII. Atente-se no seguinte, no requerimento de pedido de dispensa de cessão datado de 02.04.2024 consta uma despesa do insolvente marido referente a consulta de ortopedia e raio-x a uma mão.
XIX. Ora, tal ocorre como consequência de uma queda dada pelo insolvente marido. Tal despesa é previsível??
XX. Entendem os apelantes que não. Mais ainda quando os insolventes têm idades tão avançadas, as quedas, são algo frequente, mas imprevisível!
XXI. Constam ainda daquele requerimento, despesas de consultas de neurologia da insolvente mulher que sofre de Parkinson.
XXII. É previsível que a insolvente necessite de consultas de neurologia ao longo de cada ano de cessão? Obviamente que sim.
XXIII. Mas de quantas consultas estamos a falar por ano?? - Pois não se sabe, uma vez que se trata de uma doença degenerativa e que evoluiu de forma irregular e imprevisível, pelo que não podem os insolventes apresentar um valor fechado de despesas médicas.
XXIV. Consta ainda do despacho recorrido “A possibilidade de ressalvar do rendimento a ceder determinadas despesas, é uma possibilidade de caráter excecional, que só deve ser usada à posteriori quando efetivamente ocorra uma situação de facto extraordinária e pontual que não era previsível à data da decisão.”
XXV. E isso foi exatamente o que fizeram os insolventes. E já o fizeram mais do que uma vez.
XXVI. Ainda assim, tendo tais pedidos também sido indeferidos, os insolventes não se furtaram à cessão de rendimentos a que estão adstritos.
XXVII. Continua ainda o douto despacho dizendo “Não se pode transformar num expediente a que o devedor recorre anualmente para se desobrigar da cedência dos valores apurados”.
XXVIII. Não conseguem os apelantes almejar qual é a tentativa de se desobrigarem da cedência de valores, a que o Tribunal de 1ª instância se reporta, pois têm vindo a ceder.
XXIX. Não podem os Apelantes deixar de manifestar a sua estupefação em relação à análise que o douto tribunal fez relativamente às despesas extraordinárias apresentadas pelos apelantes.
XXX. Fundamenta o douto despacho que “No caso das despesas de saúde elas são incluídas no conceito de despesas inerentes ao sustendo digno do devedor, pelo que não têm qualquer contabilização à parte do valor fixado como indisponível. Só se justifica a ressalva pontual de alguma destas despesas a posteriori nos termos da alínea iii) do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando seja uma situação excecional ou isolada. Se for de carácter permanente deve levar a uma alteração do valor do rendimento indisponível mediante a demonstração da alteração das circunstâncias.”
XXXI. Como é óbvio partir um ou mais dentes, ou ter um ou mais dentes estragados de forma a que já não são recuperáveis, ainda que aos 81 anos, parece ser do senso comum que é uma situação extraordinária.
XXXII. Tal como foi o caso da insolvente mulher que necessitou de reabilitar com recurso a coros dentarias os dentes 15 e 34, fazer uma limpeza dentaria e um tratamento ao dento 14, é claramente um tratamento pontual e que não se repete mensalmente, semelhante ao que sucede com a toma de medicação para uma doença crónica, por exemplo.
XXXIII. Um insolvente que padeça de uma doença crónica e que toma diariamente medicação fixa, sabe que mensalmente tem aquele encargo para suportar.
Esse não é o caso dos presentes autos.
XXXIV. Também quanto a este ponto, a análise efetuada pelo tribunal de 1ª instância peca por alguma superficialidade, notório e evidente erro na apreciação das provas e dos factos, insuficiente apreciação para a decisão da matéria de facto provada.
XXXV. As questões de saúde da insolvente influenciam todo o quotidiano dos insolventes, marido e mulher, que acrescido do suprarreferido, leva a que se desloquem com frequência ao médico e a recorrer aos serviços de saúde, a que acresce a questão da idade dos insolventes, já avançada, que afeta tanto a agilidade física, como mental de ambos, além do mais, os insolventes, não falam português, nem dominam a língua portuguesa.
XXXVI. Face a esses condicionalismos, os insolventes mantiveram sempre o seu seguro de saúde ativo, de forma a possibilitar um atendimento mais breve, encurtando a espera, e bem assim, um serviço de apoio à saúde com o qual lograssem comunicar face ao desconhecimento da língua portuguesa.
XXXVII. A que vem ainda acrescer o facto de a insolvente mulher já se encontrar acamada e a necessitar de ajuda de 3ª pessoa.
XXXVIII. O Tribunal a quo ignora deliberadamente todos os circunstancialismos e condicionantes de saúde dos insolventes, bem como a sua idade avançada, de forma a justificar o indeferimento reiterado dos pedidos de dispensa de cessão apresentados pelos insolventes.
XXXIX. Escusa-se repetidamente numa necessidade de afastamento da intenção deliberada de não ceder, como se esse fosse o intuito dos insolventes.
XL. Entendem os apelantes que as despesas extraordinárias trazidas aos autos são manifestamente inesperadas e imprevisíveis, justificando assim o seu carácter extraordinário.
XLI. Atente-se ainda que a dispensa de cessão das despesas extraordinárias, requerida pelos apelantes, não terá como consequência que os apelantes nada cedam.
XLII. Mesmo que os pedidos de dispensa sejam atendidos pelo Venerando Tribunal da Relação, ainda assim, os apelantes terão de ceder parte do seu rendimento, pelo que não se trata, no caso em apreço, de uma tentativa de nada ceder!
XLIII. Assim, temos de concluir que o douto despacho recorrido, sempre com o devido respeito, violou, por deficiente interpretação, o artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea iii), do CIRE, gerando a consequente inconstitucionalidade material por violação do princípio do Estado de Direito e proporcionalidade em sentido estrito, o que desde já se argui para todos os legais efeitos.
XLIV. Salvo o devido respeito, não entendemos que o “sustento minimamente digno” equivalha à atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência; de outro modo negar-se-ia ao instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver.
XLV. As interpretações punitivas da lei correspondem, quantas vezes, a preconceitos e, num domínio em que o conceito de dignidade e a ideia de subsistência são primordiais, o padrão a adotar deve ser aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afete o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem.- Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 19.02.2019 e disponível para consulta em
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/38e4bb8aa556e
fc4802583c50050c48e?OpenDocument
XLVI. Nos termos dos artigos 1.º e 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP, o reconhecimento do princípio da dignidade humana exige do ordenamento jurídico estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.
XLVII. O mecanismo da exoneração do passivo restante foi criado, não para que os credores vejam satisfeitos a totalidade dos seus créditos no período da cessão de rendimento disponível, mas sim para possibilitar às pessoas singulares (mediante o preenchimento de determinados requisitos que indicam que a sua insolvência é fortuita, sem culpa dos insolventes no seu sobre-endividamento e correspondente falência) uma vida digna durante aquele período com um objetivo final de exoneração dos créditos não pagos nesses 36 meses.
XLVIII. Não se trata, portanto, de satisfação dos créditos, mas sim da criação de um mecanismo de proteção das pessoas singulares que de facto vêm a sua vida ser devastada (nomeadamente com a liquidação de todos os seus bens) e que não tiveram outra alternativa que não a sua apresentação à insolvência.
XLIX. No caso sub judicie, mais que a subsistência dos apelantes em si mesmos, impõe-se também a subsistência com recurso a condições de saúde e tratamentos que permitam um mínimo de vivência condigna ao agregado familiar.
L. Não se concebendo que estes valores e interesses, nomeadamente acesso a acompanhamento médico, tratamentos, etc… sejam preteridos em prevalência da satisfação dos direitos dos credores.
LI. A figura jurídica da exoneração do passivo restante justifica, efetivamente, um maior rigor e controlo em relação aos gastos dos insolventes, contudo quando é aplicada deve ter que ser calculada em relação a cada situação em concreto.»

Em resposta, o Ministério Público sustentou ser de manter a decisão recorrida, já que não merece qualquer censura.

Cumpre apreciar se existe fundamento para abater ao rendimento disponível para cessão, no ano de 2023, o montante global de € 4.257,26 (quatro mil e duzentos e cinquenta e sete euros e vinte e seis cêntimos).

III – Fundamentos
A – Dados a considerar
O que decorre do que acima consta relatado e, bem assim, o seguinte:
- foram apresentadas faturas/recibos pela prestação de cuidados de saúde a (…) em clínicas e hospitais particulares reportando-se a consultas de medicina geral e familiar, de hematologia, de medicina interna e de ortopedia (€ 15,00), a episódios de urgência geral, a procedimento de flebotomia terapêutica, a endoscopia e colonoscopia com biópsias, a Rx mão (€ 1,10), a análises clínicas e a serviços de enfermagem;
- foram apresentadas faturas/recibos pela prestação de cuidados de saúde a (…) em clínicas e hospitais particulares reportando-se a consultas de medicina geral e familiar, de neurologia, e a prescrição médica;
- foram apresentadas faturas/recibos pela aquisição de medicamentos e produtos de higiene em estabelecimentos farmacêuticos;
- foi apresentada fatura/recibo pela realização de tratamento dentário a (…) em clínica particular (€ 500,00);
- foi apresentada fatura/recibo pela realização de tratamento dentário a (…) em clínica particular (€ 130,00);
- foram apresentadas faturas/recibos pela prestação de cuidados de saúde a (…) em clínica particular reportando-se a coroa provisória e espigão com sistema de retenção (€ 225,00), a restauração provisória (€ 50,00), a coroa cimentada sobre dente (€ 50,00), a destartarização bimaxilar (€ 75,00), a consulta de medicina dentária (€ 40,00), a coroa cerâmica (€ 300,00), a coroa cerâmica e cimentação de prótese fixa sobre dentes (€ 400,00);
- tais documentos não foram impugnados.

B – A questão do Recurso
Nos termos do disposto no artigo 235.º do CIRE, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência se não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.
Entre essas disposições consta o artigo 239.º do CIRE, cujo n.º 2 estatui que o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
Segue o n.º 3 determinando que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Trata-se de uma medida inovadora de proteção do devedor pessoa singular, permitindo que se liberte do peso das suas dívidas, podendo recomeçar de novo a sua vida[1]. Destina-se, pois, a promover a reabilitação económica do devedor a que alude o preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de março.
Não descurando, no entanto, os interesses dos credores, tal regime impõe ao devedor a cedência do seu rendimento disponível a um fiduciário nomeado pelo tribunal, que afetará, no final de cada ano, os montantes recebidos ao pagamento dos itens enunciados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, designadamente distribuindo o remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores. A excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.[2]
Decorrido o período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção dos créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados – cfr. artigos 244.º, n.º 1 e 245.º do CIRE.
Proferido que seja o despacho inicial da exoneração, o devedor fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no artigo 239.º do CIRE. Terminado o período da cessão, cabe ao juiz decidir sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, sendo que a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente – cfr. artigo 244.º, n.º 1 e 2, do CIRE. Aplica-se, assim, o regime inserto no artigo 243.º do CIRE nos termos do qual a recusa da exoneração ocorre quando venha a verificar-se que o devedor não é digno de beneficiar do referido procedimento, implicando na recusa superveniente da exoneração – artigo 243.º, n.º 1, do CIRE.
Precisamente por se tratar de instituto jurídico de exceção por via do qual, e inteiramente à custa do património dos credores, o devedor alcança o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas com vista à respetiva reabilitação económica, é consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, durante o período de cessão, não é assegurada a manutenção do nível de vida que o devedor tinha antes da declaração de insolvência. Aliás, a situação de insolvência tem como primeira consequência a impossibilidade de manutenção do anterior nível de vida. A exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor; implica empenho e sacrifício do devedor, devendo tomar consciência de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a alcançar equilíbrio entre dois interesses contrapostos.[3]
Para que o instituto em causa cumpra a sua função, a fixação do montante de rendimento indisponível, embora tenha que atender às condições pessoais do devedor e do seu agregado familiar (idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos), condições essas ponderadas à luz do princípio da salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal (cfr. artigos 1.º, 13.º, 59.º/1 e 67.º/1, da CRP, e artigos 1.º e 25.º/1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem), terá de ficar aquém do rendimento normal e regular do devedor, só assim se salvaguardando minimamente a posição dos credores. O rendimento disponível a ceder ao fiduciário para acautelar o pagamento de despesas e reembolso dos credores não há de ser insignificante a ponto de tornar quase virtualmente irrecuperáveis para os credores os valores em dívida. Por conseguinte, o devedor deverá resultar sensibilizado a empenhar-se, de forma esforçada, no controlo da sua economia doméstica, adequando as despesas ao seu nível de rendimento disponível.[4]
Neste enquadramento, as despesas que, à luz do disposto no artigo 239.º/3, alínea iii), do CIRE, podem ser ressalvadas do rendimento disponível para cessão serão outras despesas para além das que foram consideradas para definir o montante excluído do rendimento disponível para cessão, nos termos das alíneas i) e ii). As despesas constantes, reiteradas e habituais que sejam inerentes ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, considerando as respetivas condições pessoais (idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos), relevando para efeitos de determinação, ou subsequente e superveniente alteração, do rendimento disponível, não integram a natureza de outras despesas previstas na alínea iii) do citado preceito legal.
Importa, assim, apreciar se as despesas elencadas e comprovadas pelos Devedores configuram outras despesas relativamente àquelas que se destinam a assegurar o sustento minimamente digno daqueles concretos Devedores, atentas as suas condições pessoais. Ou seja, se configuram despesas imprevisíveis, extraordinárias, inerentes a evento inusitado e infrequente. E, para além disso, se são despesas que os Devedores, no contexto que lhes é imposto de, com empenho e sacrifício, comprimirem ao máximo o que despendem, não podiam deixar de realizar.
Analisando as despesas que os Devedores pretendem abater ao rendimento disponível, constata-se inexistir evidência de que respeitem a despesas de cariz imprevisível ou extraordinário em face das condições pessoais dos Devedores, salvo as que se reportam a intervenções de estomatologia / implantologia dentária apresentadas pela Devedora. Estão em causa despesas com consultas médicas, procedimentos médicos, aquisição de medicamentos e de produtos de higiene inerentes à idade dos Devedores e, por certo, às concretas patologias de que padecem.
A despesa decorrente da realização do Rx à mão, ascendendo ao montante de € 1,10, nem sequer assume relevância bastante que sustente a pretensão de abatimento – note-se que apenas em sede de alegação de recurso vem invocado ter o Devedor sofrido uma queda (evento tido como inusitado e imprevisível) que implicou na realização da despesa com o Rx à mão, no valor de € 1,10, e com a consulta de ortopedia, no valor de € 15,00.[5]
As despesas decorrentes da prestação de cuidados de saúde a (…) com a implantação de coroa provisória e espigão com sistema de retenção (€ 225,00), a restauração provisória (€ 50,00), a coroa cimentada sobre dente (€ 50,00), a coroa cerâmica (€ 300,00), a coroa cerâmica e a cimentação de prótese fixa sobre dentes (€ 400,00) configuram já despesas extraordinárias. Conhecidas que são as lacunas do Serviço Nacional de Saúde na especialidade de estomatologia / implantologia, afigura-se que estão em causa despesas que a Devedora não pôde evitar. Reconduzem-se, portanto, às outras despesas a que alude a alínea iii) do n.º 3 do artigo 29.º do CIRE.

Procedem as conclusões da alegação do presente recurso quanto à verba de € 1.025,00 (mil e vinte e cinco euros).

As custas recaem sobre os Recorrentes e os Recorridos na proporção do decaimento – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se revoga parcialmente a decisão recorrida, excluindo-se a verba de € 1.025,00 (mil e vinte e cinco euros) ao rendimento disponível da Devedora Insolvente relativo ao ano de 2023, confirmando-se, no mais, o decidido em 1.ª Instância.

Custas pelos Recorrentes e pelos Recorridos na proporção do decaimento.

*


Évora, 12 de setembro de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Emília Ramos Costa
José Manuel Tomé de Carvalho

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[1] V. Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis 2005, pág. 167.
[2] Cfr. Ac. TRC de 07/03/2017 (Jorge Manuel Loureiro).
[3] Ac. do TRP de 25/09/2012, in dgsi.pt.
[4] Ac. TRE de 03/12/2015, relatado por Mário Serrano, in dgsi.pt.
[5] Os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o Tribunal recorrido no momento da prolação da decisão. Em regra, o tribunal não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados, já que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas – Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., LEX, Lisboa 1997, pág. 395.