EXCESSO DE PRONÚNCIA
CAUSA DE PEDIR
NULIDADE
INTERVENÇÃO MÉDICA
Sumário

Ao conhecer de causa de pedir não invocada pela autora, nela baseando a parcial procedência da pretensão indemnizatória que havia sido deduzida com base noutro fundamento, a 1.ª instância apreciou questão de que não podia tomar conhecimento, o que configura excesso de pronúncia, causa de nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do CPC.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 2656/18.9T8PTM.E2
Juízo Central Cível de Portimão
Tribunal Judicial da Comarca de Faro


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

(…) intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Hospital de (…), S.A. e (…), médico, todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação dos réus a pagarem à autora: a) a quantia de € 90.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais; b) a quantia de € 181.608,00, a título de indemnização por danos patrimoniais, sem prejuízo de ampliação do pedido; c) juros moratórios sobre todas quantias peticionadas, à taxa legal vigente, desde a data da citação até integral pagamento; d) sanção pecuniária compulsória de montante não inferior a € 150,00, por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações a que qualquer dos réus for condenado; e) a quantia correspondente a todas as despesas supervenientes à entrada desta ação que a autora seja forçada a satisfazer com consultas, exames, tratamentos, fisioterapia, internamentos e cirurgias, para debelar e/ou atenuar os danos que lhe foram causados pela má intervenção do 2.º réu, incluindo as despesas supervenientes com a empregada doméstica que foi obrigada a contratar.
A justificar o pedido, alega que, na sequência de fratura do úmero esquerdo decorrente de queda que sofreu a 05-07-2017, veio a ser sujeita no dia 25-07-2017, no contexto que descreve, a intervenção cirúrgica realizada no hospital 1.º réu pelo médico 2.º réu, no decurso da qual foi colocada cavilha fixada por parafusos, tendo, por má prática médica, em violação das leges artis, que imputa ao 2.º réu, ficado bloqueado o movimento do ombro e sido provocada lesão do nervo radial, o que lhe causou danos patrimoniais e não patrimoniais, como tudo melhor consta da petição inicial.
O réu Hospital de (…), S.A. contestou, sustentando não decorrer da matéria de facto alegada pela autora a responsabilidade civil do 1.º réu e impugnando parte da factualidade alegada, como tudo melhor consta do articulado apresentado.
O réu (…) contestou, invocando a observância das leges artis, bem como a prestação pela autora de consentimento informado, e defendendo-se por impugnação motivada; mais requereu a intervenção acessória provocada de (…) – Companhia de Seguros, S.A., sustentando que a responsabilidade civil emergente da sua atividade profissional se encontra transferida para a referida companhia de seguros, a qual garante o pagamento de eventual indemnização que lhe possa vir a ser exigida.
A autora apresentou articulado no qual se pronuncia sobre a matéria invocada na contestação apresentada pelo 1.º réu, bem como articulado em que se pronuncia sobre matéria invocada na contestação deduzida pelo 2.º réu.
Por despacho de 20-05-2019, foi admitida a intervenção principal provocada de (…) – Companhia de Seguros, S.A..
Citada, a interveniente apresentou contestação, na qual declarou fazer sua a contestação apresentada pelo 2.º réu.
Dispensada a audiência prévia, foi fixado o valor à causa, saneado o processo – tendo sido relegado para final o conhecimento das exceções deduzidas –, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença em 13-06-2022, da qual foi interposto recurso por cada um dos réus e pela interveniente, recursos que foram admitidos.
Por acórdão de 02-03-2023 desta Relação, foi julgado procedente o recurso interposto pelo 2.º réu, ao qual aderiu o 1.º réu, e considerada prejudicada a apreciação do recurso interposto pela interveniente, ao qual aderiu o 1.º réu, tendo-se decidido anular a decisão recorrida e determinar a reabertura da audiência final, para que seja assegurado o contraditório imposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, mediante a comunicação às partes da possibilidade de virem a ser considerados os factos constantes dos pontos 41 a 44 de 2.1.1., praticando-se os demais atos subsequentes.
Regressados os autos à 1.ª instância, foi concedido contraditório às partes, na sequência de vicissitudes várias, e proferida sentença em 31-01-2024, na qual se decidiu o seguinte:
Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência, decido:
a) Condenar solidariamente a (…) – Companhia de Seguros, S.A., e o Hospital de (…), S.A., no pagamento à autora (…) da quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais (acrescida de juros legais de mora após 13 de junho de 2022, data da prolação da primeira sentença), num total até hoje de € 37.282,19 (trinta e sete mil e duzentos e oitenta e dois euros e dezanove cêntimos), além dos juros vincendos até integral pagamento;
b) Condenar solidariamente a (…) – Companhia de Seguros, S. A., e (…), assim como o Hospital de (…), S.A., no pagamento à autora (…) da quantia de € 12.962,55 (doze mil e novecentos e sessenta e dois euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescidos de juros legais desde o dia seguinte ao da citação, a título de danos patrimoniais nas seguintes proporções: Hospital de (…), S.A. (100%); (…) – Companhia de Seguros, S.A. (90%) e … (10%)
Acrescem as despesas supervenientes que a autora venha a realizar por via de eventual cirurgia de transferência tendinosa;
c) No mais, absolver os réus do pedido.
Custas a cargo das partes na proporção do decaimento.
Valor da ação: o já fixado de € 271.608,43, conforme despacho de 15 de dezembro de 2019 – fls. 221.
Registe e notifique.
Novamente inconformados, o 2.º réu e a interveniente interpuseram, separadamente, recurso desta decisão.
O 2.º réu terminou as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A) Na sequência de notificação para o efeito, decorrente de anterior Acórdão desta Relação, foi assinalado pelo recorrente que a matéria do consentimento informado não encontrava eco na causa de pedir dos autos.
B) Na petição inicial, com mais de 150 artigos, sem nunca se referir à ausência de consentimento informado, apenas no artigo 90º há uma imprecisa e residual referência a aspetos menos positivos do tratamento a que a autora terá sido submetida.
C) O Tribunal, ainda que afastando a alegada má prática médica, julgou a ação procedente com fundamento na invalidade do consentimento prestado pela autora.
D) A ação de indemnização por danos provocados por uma alegada prestação médica violadora das legis artis, viu ampliada a causa de pedir fora dos requisitos legais.
E) Sem alegação na PI de quaisquer factos essenciais quanto à matéria do consentimento, o Tribunal substituiu-se nessa matéria à parte.
F) Ora, com exceção dos factos instrumentais, complementares, concretizadores ou notórios, não pode o tribunal considerar outros factos além daqueles que foram alegados pelas partes.
G) Assim o impõe o n.º 1 do artigo 5.º do CPC que determina que às partes compete alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.
H) O juiz da causa não está sujeito às alegações das partes em matéria de direito, mas já o está relativamente aos factos essenciais alegados pelas partes – n.º 3 do artigo 5.º do CPC (a contrario).
I) São as partes quem, no exercício da sua liberdade de propositura da ação, delimitam o seu objeto ou, melhor dizendo, a sua causa de pedir.
J) A presente ação é uma típica ação por má prática médica, pois funda-se exclusivamente na alegada má atuação técnica do segundo réu – cfr. arts. 88º a 148º do petitório.
K) A mesma conclusão se retira da análise dos temas da prova indicados pelo Tribunal, não existindo qualquer tema relativo à matéria do consentimento informado.
L) No tema das legis artis não se pode incluir o tema do consentimento informado, apenas este poderá influenciar aquele.
M) Não existe sequer nos autos uma causa de pedir subsidiária assente na alegação de factos relativos a matéria atinente à violação do consentimento informado.
N) E, não constando da petição inicial, a alteração da causa de pedir só poderia admitir-se nos termos dos artigos 264.º, 46.º e 265.º do CPC, o que manifestamente não sucedeu.
O) A matéria atinente ao consentimento não foi alegada pela autora na petição inicial, não existindo assim qualquer matéria complementar daquela.
P) Assim como não foi pedida qualquer indemnização por violação do direito ao consentimento informado.
Q) Nunca se invoca a violação do direito à liberdade e à autonomia do doente, como razão para a reclamada indemnização.
R) O objeto do processo é determinado pelo pedido e pela defesa deduzidas pelas partes nos articulados e suas alterações, ao abrigo do princípio do dispositivo.
S) O Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
T) Donde, ser nula a sentença nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
U) O consentimento informado é um processo dialógico, maioritariamente oral, entre médico e paciente, com exceção dos doentes tratados por equipas multidisciplinares.
V) Na sua avaliação, juridicamente, deve ser considerado o paciente concreto em cada caso, ao invés do que habitualmente sucede quando se apela para o critério do Homem médio.
W) Pelo que o dever de informação é elástico, não sendo igual para todos os doentes na mesma situação clínica.
X) Abrange o diagnóstico e as consequências do tratamento, mas já não exige uma referência à situação médica em detalhe, como se assume na sentença recorrida, nem sequer a referência aos riscos de verificação excecional ou rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento.
Y) Assume por isso especial relevo em matéria de consentimento informado a importância que a intervenção assume para aquele concreto paciente.
Z) No caso dos presentes autos, pelo menos desde o dia 6/07/2017 que a autora sabia, porque lhe foi explicado, qual a complexidade/gravidade da fratura – cfr. pontos 23 e 24 da matéria provada.
AA) E que como tratamento mais adequado, com o aval do ora recorrente, lhe foi apresentado o tratamento conservador – cfr. pontos 30 e 31 da matéria provada.
BB) Naquela data e por oposição à proposta do tratamento cirúrgico que lhe foi apresentada no Hospital Público de Portimão – intervenção cirúrgica (ponto 19 dos factos provados) – a autora ficou a saber que eram maiores os riscos da cirurgia do que os do tratamento conservador, assumido como golden standard para o seu tipo de fratura.
CC) Por outro lado, o tratamento cirúrgico proposto e ministrado pelo ora recorrente era o adequado face às dificuldades apresentadas pela autora que não suportava os incómodos causados pelo gesso.
DD) Quando procurou pessoalmente o recorrente já era possuidora de todas as informações estando convencida que se tratava de uma intervenção segura – cfr. ponto 38.
EE) Mais sabendo a autora que há sempre riscos inerentes a qualquer intervenção cirúrgica.
FF) Assim, ao recorrente apresentou-se uma doente consciente de que pretendia substituir um tratamento conservador recomendado por um tratamento cirúrgico.
GG) Por outro lado, não sendo a cirurgia em causa de elevado risco não era exigível ao recorrente que detalhasse os riscos específicos da mesma.
HH) Aliás, a autora só não foi operada no Hospital Público porquanto não quis aguardar pelo tempo necessário para a concretização da cirurgia por falta de anestesista.
II) O dano iatrogénico foi recuperável, ainda que tivesse sido necessária uma nova cirurgia para reconstrução do nervo o que é diferente de um dano irreversível.»
A interveniente, por seu turno, terminou as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A) A Interveniente, ora recorrente, vem interpor o presente recurso, questionando a determinação de invalidade do consentimento prestado pela Autora e consequente ilicitude da intervenção do médico, o Réu, Dr. (…), para além de questionar ainda, por cautela, os montantes indemnizatórios fixados a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais, considerados pelo douto Tribunal a quo;
B) Com interesse para a apreciação do presente recurso, foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 5 de julho de 2017, em consequência de uma queda acidental na rua após uma tontura, a autora fraturou um osso, o úmero esquerdo, tendo sido transportada para as urgências do Hospital do (…), onde foi assistida, tendo feito rx, com fratura oblíqualonga da diáfise proximal do úmero esquerdo, com 3.º fragmento, e aí feito o diagnóstico de fratura da diáfise do úmero esquerdo e imobilizado o membro com imobilização de tio (…), sem dor significativa no ombro, sem sinais de compromisso neurovascular do membro – fls. 102 verso – artigo 18º dos factos provados;
2. Foi-lhe comunicado que tinha de ser operada, mas que essa operação apenas se poderia realizar no prazo mínimo de onze dias, devido a falta de anestesista – artigo 19º dos factos provados;
3. O úmero é um osso par localizado no braço, sendo o maior osso dos membros superiores; articula-se superiormente com a omoplata através do complexo articular do ombro; e, inferiormente, com o rádio e o cúbito, através da articulação do cotovelo; é constituído por uma parte longa e mais ou menos cilíndrica (diáfise) e por duas extremidades com forma triangular (epífises); o úmero é “acompanhado” pela artéria braquial que atravessa o próprio osso e que em parte o “alimenta” de sangue; e, ainda, pelos nervos cubital e radial; este “acompanhamento” ocorre ao longo da goteira radial que se inicia entre 97 e 142 mm da face externa da apófise terminal da omoplata (parte saliente ou acrómio) e termina entre 101 e 148 mm da extremidade do úmero. O músculo braquioradial é um dos músculos do antebraço enervado pelo nervo radial – fls. 299 – artigo 20º dos factos provados;
4. O nervo radial inicia o seu trajeto no compartimento posterior do braço e passa para o compartimento anterior atravessando a parede divisória muscular (septo) entre 7,5 e 10 cm da extremidade inferior do úmero; a localização deste nervo apresenta uma variabilidade anatómica significativa, pois ainda que conhecido o seu trajeto anatómico, a sua localização exata varia de pessoa para pessoa – artigo 21º dos factos provados;
5. A diáfise do úmero pode fraturar de múltiplas maneiras em resposta a vários tipos de violência; é uma fratura comum e decorre na maior parte das vezes de quedas da própria altura, como no caso concreto – artigo 22º dos factos provados;
6. Do ponto de vista da respetiva gravidade, estas fraturas são classificadas entre fraturas simples (A1 a A3), em cunha (B1 a B3) e complexas (C1 a C3): as fraturas 7 do úmero das categorias B e C, apresentam risco de lesão do nervo radial decorrente da própria fratura, pois que com a deslocação dos fragmentos ósseos característica destas fraturas, eles próprios podem lesar o nervo radial – fls. 298 – artigo 23º dos factos provados;
7. No caso da autora, a fratura não exposta do úmero esquerdo que apresentava foi classificada como sendo do tipo C2, ou seja, complexa e segmentar por se terem separado diversas porções do próprio osso – fls. 102 – artigo 24º dos factos provados;
8. Face às dores de que padecia, e ao tempo que teria de esperar até que fosse sujeita à referida intervenção cirúrgica naquela Unidade Hospitalar, no dia seguinte, dia 6, a autora solicitou que lhe fosse dada alta médica, e pediu uma ambulância para a transportar para o Hospital (…) do Algarve – fls. 18 – artigo 29º dos factos provados;
9. Nesse dia 6 de julho, a autora foi admitida nas urgências do Hospital (…) do Algarve, no (…), onde o médico ortopedista que a atendeu (Dr. …), em concordância com outro seu colega da mesma especialidade (Dr. …), entenderam que era preferível a imobilização gessada com tala em U e assim fez o médico Dr. (…) – fls. 18 verso/103 – artigo 30º dos factos provados;
10. No Hospital (…) do Algarve foram realizados vários exames à autora, como rx de controlo na sequência do que que foi confirmado padrão de fratura oblíqua longa aceitável para tratamento conservador que a autora aceitou depois de explicada à doente a situação clínica, opção gold standard para este tipo de fratura, com bons resultados em mais de 90% dos pacientes – fls. 18 verso/102 verso – artigo 31º dos factos provados;
11. No caso, a opção em primeira linha pelo tratamento conservador visou reduzir os riscos de lesão do nervo radial, pois nesse momento a autora não apresentava quaisquer indícios de compromisso desse nervo, embora estivesse dependente do alinhamento conseguido com a imobilização – fls. 298 (art. 31º da contestação do réu …): após manipulação do braço pelo médico é inicialmente aplicada uma imobilização gessada para estabilização da fratura, redução da dor e redução do edema. Cerca de duas semanas depois esta pode ser substituída, ou não, por uma ortótese funcional que exerce pressão sobre os tecidos e o úmero – artigo 32º dos factos provados;
12. O Dr. (…) agendou nova consulta para dali a duas semanas para avaliação da evolução da consolidação da fratura com controlo radiológico, dando alto com analgesia e AINE em SOS – fls. 102 verso – artigo 33º dos factos provados;
13. No dia 10 de julho, tendo conhecimento que o Dr. (…) dava consultas no Hospital (…), em (…), a autora marcou uma consulta 9 com este especialista, tendo-lhe transmitido que não aguentava mais o pesado lastro no cotovelo – fls. 20 – artigo 36º dos factos provados;
14. Nessa consulta, o Dr. (…) transmitiu à autora que a única solução para evitar o desconforto e as dores causadas pelo lastro no cotovelo seria abordar a fratura diafisária do úmero esquerdo com uma intervenção cirúrgica e que seria expectável que com essa cirurgia ficaria curada após três meses de fisioterapia – fls. 20 – artigo 37º dos factos provados;
15. Na opção pela osteossíntese com cavilha intramedular UHN, um dos critérios a ponderar será a incapacidade por parte do doente de suportar os incómodos e dores da imobilização gessada, embora também seja igualmente encarada como tratamento de primeira linha. Esta técnica pode apresentar vantagens em comparação com a osteossíntese com placa e parafusos em fraturas mais cominutivas, segmentares oblíquas, como foi o caso, ou fraturas patológicas – fls. 298 verso – artigo 38º dos factos provados;
16. A autora tinha a expectativa de deixar de sentir o peso e o desconforto provocados pelo tratamento conservador e de libertar o braço de qualquer tipo de imobilização e a ver consolidada a fratura num período de cerca de três meses e foi essa a motivação que a levou a procurar o médico (…) e a aceitar a proposta de cirurgia pelo mesmo apresentada, em face das queixas por si apresentadas, mesmo ciente dos riscos inerentes a uma cirurgia com anestesia geral, como seria a proposta, não demonstrando qualquer receio – artigo 39º dos factos provados;
17. Na sequência dessa consulta, o Dr. (…) marcou a cirurgia para o dia 25 de julho de 2017, a realizar no Hospital (…), entidade que fez a admissão da autora pelas 7H15 e lhe cobrou a quantia pelos serviços prestados – fls. 106/20 verso/22 – artigo 40º dos factos provados;
18. Na data da admissão, a autora assinou a “prestação de serviços clínicos a doentes com terceiros pagadores” de fls. 367 de onde consta “o utente declara estar esclarecido da sua situação clínica, aceitando ser submetido à terapêutica que lhe foi proposta pelo seu médico assistente/responsável pelo internamento. O utente declara também que lhe foram explicados, pelo seu médico assistente/responsável pelo internamento, todos os procedimentos de tratamento, as suas eventuais consequências e as possíveis complicações e riscos cirúrgicos e anestésicos. Declara ainda que é por sua livre e consciente vontade que se submete aos procedimentos de tratamento propostos” – fls. 367 – artigo 41º dos factos provados;
19. Foi anotado o consentimento da autora conforme fls. 384 verso que assinou o formulário, o qual também se encontra assinado pelo médico – fls. 384 verso – artigo 42º dos factos provados;
20. No mesmo documento, após “a preencher pelo doente (…)” antes da assinatura consta o seguinte: por favor, leia com atenção todas as indicações constantes neste documento. Não hesite em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido. Verifique se tem toda a informação de que necessita. Se tudo estiver conforme, então, assine este documento. A autora não leu o documento antes de assinar nem lhe foi explicado o seu conteúdo – artigo 43º dos factos provados;
21. Foi confirmado o consentimento pela autora à enfermeira do bloco conforme fls. 379 verso – artigo 44º dos factos provados;
22. Após ter efetuado um eletrocardiograma no dia 21 de julho, no dia 25 de julho, a autora que dera entrada com dores e fora medicada com metamizol magnésio foi operada pelo Dr. (…) no Hospital (…) – fls 22 – artigo 45º dos factos provados;
23. De um lado, o método mais antigo, a osteossíntese com placa e que consiste na aplicação sobre o osso de uma placa de compressão que fixa todos os elementos separados pela fratura – figura 16 de fls. 103 verso; para tanto, é necessário visualizar diretamente o foco da fratura através da dissecação dos tecidos e afastamento destes do osso; esta técnica, devido à elevada extensão da dissecação dos tecidos para efeito de introdução e fixação da placa e ao necessário afastamento destes do osso, provoca a perda de suprimento sanguíneo do local da fratura, o que se mostra associado a índices de atraso ou não consolidação da fratura mais elevados; Pode levar a deslocamentos do próprio material – cfr. figura 16 de fls. 103 verso – e, ainda, a lesões iatrogénicas do nervo radial, ou seja, a lesões provocadas pelo próprio ato médico; De outro lado, o método mais recente utilizado pelo médico no caso da autora, ou seja, a osteossíntese com cavilha intramedular, introduzida através do ombro e fixada por parafusos. Permite alinhar devidamente os elementos da fratura com o próprio eixo da diáfise do osso, submetendo-a a menor força de flexão por se encontrar numa posição central – cfr. figura 17 de fls. 103 verso. Não interfere com o hematoma fraturário deixando-o ser absorvido naturalmente pelo organismo, não toca no suprimento sanguíneo do osso, pois não necessita de dissecação dos tecidos no local da fratura e apresenta menor tempo cirúrgico – fls. 103 verso – artigo 46º dos factos provados;
24. Neste segundo método, também podem acontecer conflitos articulares com o ombro e, tal como no primeiro método, lesão iatrogénica do nervo radial, ou seja, lesão provocada pelo próprio ato médico. Estas lesões podem acontecer tanto no primeiro método como no segundo por causa da dissecação dos tecidos ou da manipulação do braço, introdução e fixação do material de osteossíntese, porquanto a variabilidade anatómica humana não permite reconhecer com exatidão o local por onde passa o nervo radial – artigo 47º dos factos provados;
25. Como consequência da lesão do nervo radial, a autora ficou com total incapacidade em pegar em qualquer objeto com a mão esquerda, pois, a mão caía desamparada e imóvel, com muito fraca mobilidade nos respetivos dedos – artigo 104º dos factos provados;
26. A autora teve um período sem conseguir pintar, quer em razão da sua incapacidade física, quer em razão da consequente desmotivação que os constrangimentos dessa incapacidade lhe causaram – artigo 105º dos factos provados;
27. Em razão desta incapacidade, a autora, que até então sempre cuidou da lide da casa sozinha, e do jardim, foi forçada a contratar a empregada por mais horas de modo a que a auxiliasse nas tarefas de higiene, lide da casa (limpeza e cozinha), jardinagem – artigo 106º dos factos provados;
28. Embora a autora seja destra, a total incapacidade da sua mão esquerda impediu-a ou limitou-a na realização de tarefas de higiene pessoal, como lavar o cabelo e o corpo do lado direito, cortar as unhas da mão direita, vestir-se e calçar-se normalmente, sobretudo, quando na presença de botões e/ou colchetes, bem como de atacadores de sapatos e/ou botas, limpeza da casa, fazer a cama, lavar a loiça, lavar roupa e estendê-la, passar a ferro, preparar e cozinhar alimentos, cortar alimentos para comer (comer de faca e garfo), tratar do jardim, andar de bicicleta, e/ou conduzir o seu automóvel, além de exercer a atividade de arquiteta e de pintar que a realizavam pessoalmente e do ponto de vista económico – artigo 107º dos factos provados;
29. A autora sofreu, pois, sentia-se uma inválida por não conseguir mexer a sua mão esquerda, e consequentemente estar privada de pintar – artigo 108º dos factos provados;
30. A autora beneficiou da ajuda de várias amigas que a acompanharam na fase mais crítica, não apenas nas várias deslocações a consultas, exames e tratamentos, mas também no auxílio nas idas a outros locais – artigos 110º dos factos provados;
31. Em consequência das complicações da cirurgia, a autora sofreu um enorme desgaste e sofrimento, além da nova intervenção cirúrgica para reparação – artigo 112º dos factos provados;
32. Caso a primeira cirurgia tivesse decorrido sem complicações, a autora já estaria recuperada da primeira lesão provocada pela queda no dia 5 de julho de 2017 (previsão de engessamento mais 3 meses de fisioterapia) – artigo 113º dos factos provados;
33. No dia 25 de junho de 2020, a autora apresentava ainda as seguintes queixas: a nível funcional, sensação de “peso” desde o indicador e polegar até ao cotovelo; formigueiro e perda de sensibilidade na superfície cutânea inervada pelo radial. “Problema de circulação” que agrava com alteração do [tempo para] frio. Não consegue dormir em decúbito lateral esquerdo; a nível profissional e de formação, reformada de arquiteta na data da cirurgia (…) refere que não consegue usar o computador para fazer os desenhos relacionados com arquitetura. Ainda é pintora e dextra, referindo dificuldades quando tem de usar a mão esquerda para segurar a paleta. Refere que após a queda, esteve um ano sem poder pintar. A data da 23 consolidação médico-legal das lesões foi fixada em 29 de maio de 2018 – fls. 275, tendo sido valorizados os seguintes danos: défice funcional temporário total de 8 dias, tendo em conta os períodos de internamento, e parcial de 321 dias, considerando o restante período de tempo até à data de consolidação, em que foi submetida a tratamentos médicos (recuperação de cirurgias, fisioterapia); repercussão temporária na atividade profissional total fixável em 329 dias; quantum doloris no grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade; défice funcional permanente da integridade físicopsíquica: parésia do nervo radial esquerdo (enquadrável no código Na0207) e limitação na mobilidade do ombro esquerdo (enquadrável no código Ma0207), num défice fixável em 11,8 pontos; repercussão permanente na atividade profissional: as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares; dano estético permanente fixável no grau 3 numa escala de sete graus (cicatriz da segunda intervenção) – artigo 114º dos factos provados;
34. Pode vir a ser necessária a realização de cirurgia de transferência tendinosa – fls. 298b – artigo 115º dos factos provados;
C) A Interveniente, ora Recorrente, considera que não se verifica qualquer invalidade na forma de prestação de consentimento informado pela Autora, porquanto, em 25 de Julho de 2017, aquando da entrada no Hospital de (…), S.A., aquela assinou um documento denominado “Prestação de serviços clínicos a doentes com terceiros pagadores”, nos termos do qual declara expressamente que se encontrava esclarecida quanto à sua situação clínica, aceitando ser submetida à terapêutica que lhe foi proposta pelo seu médico, o Réu, Dr. (…), tendo-lhe sido explicado por este todos os procedimentos de tratamento, suas eventuais consequências e possíveis complicações e riscos cirúrgicos e anestésicos, conforme resulta de fls. 367 dos autos, tendo ainda sido confirmado o consentimento prestado à enfermeira do bloco, conforme resulta de fls. 379 verso dos autos;
D) Em 10 de Julho de 2017 a Autora deslocou-se ao Hospital de (…), S.A., a fim de ser atendida especificamente pelo Réu, Dr. (…), tendo aquele transmitido que, dado que a Autora se queixava de não suportar o peso e desconforto que a imobilização gessada lhe provocava, sugeriu a realização de osteossíntese com cavilha intramedular UHN, procedimento que foi aceite pela Autora, mesmo ciente dos riscos inerentes a uma cirurgia com anestesia geral, como seria a proposta, não demonstrando qualquer receio;
E) Relativamente a esta matéria, da validade e total eficácia do consentimento prestado pela Autora, a Interveniente, ora Recorrente, adere às alegações de recurso a apresentar pelo Réu (…) e eventualmente a apresentar pelo Réu Hospital de (…), S.A.;
F) Pelo que se conclui que mal andou o Tribunal a quo ao considerar ilícita a intervenção do Réu, Dr. (…), enquanto médico ortopedista, devendo ser considerado válido e eficaz o consentimento informado prestado pela Autora, (…), conduzindo à absolvição do Réu e, consequentemente, da ora Interveniente, com as legais consequências;
G) Por mera cautela, se este não for o entendimento seguido por V. Exas., sempre se questionarão de seguida os montantes indemnizatórios arbitrados a título de danos não patrimoniais e patrimoniais;
H) Pelo Tribunal a quo foi fixado o pagamento de uma indemnização à autora de € 35.000,00 a título de danos não patrimoniais, sendo que se considera este montante salvo o devido respeito, elevado e não respeita os critérios legal e jurisprudencial aplicáveis a casos semelhantes;
I) Para aferir do dano não patrimonial sofrido pela Autora, há que ter por base as conclusões do Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil realizado, que fixam à Autora um défice funcional temporário total de 8 dias, com défice funcional temporária parcial fixado em 321 dias, uma repercussão temporária na actividade profissional total de 329 dias, sendo as sequelas compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares, considerando a informação de que esta prestaria a actividade remunerada de pintura, um Quantum Doloris de grau 5, numa escala de 1 a 7, e um dano estético de grau 3, numa escala de 1 a 7, ficando portadora de um défice funcional permanente da integridade físico-psiquica de 11,8 Pontos;
J) Assente nos factos considerados provados, nos períodos de incapacidade fixados, no défice funcional permanente de que ficou portador que lhe conferem uma incapacidade permanente, veio a sentença recorrida a fixar o montante indemnizatório, a título de danos não patrimoniais, em € 35.000,00, o que, salvo o devido respeito, leva a concluir que o montante fixado para a indemnização, a título de danos não patrimoniais, é elevado, atento os critérios legal e jurisprudencial vigentes para casos semelhantes;
K) Atendendo aos pressupostos narrados nestas Alegações, a Interveniente, ora Recorrente, entende que, na fixação do montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais à Autora, não foram observados e, por conseguinte, foram violados os normativos legais estabelecidos nos artigos 496.º, n.º 3 e 494.º, ambos do Código Civil, pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada nesta parte, devendo, a título de danos não patrimoniais, ser fixado um montante não superior a € 15.000,00;
L) Quanto à indemnização fixada a título de danos patrimoniais, de € 10.000,00, a título de reparação pelos danos patrimoniais sofridos, no que à necessidade de contratar terceira pessoa para apoiar a Autora durante o período mais crítico de incapacidade, de 329 dias, sempre se dirá que a mesma não tem suporte fático e/ou documental em que se alicerce, pelo que sempre deverá ser considerada excessiva;
M) Considerou o Tribunal a quo, e bem, que a Autora não logrou provar que despesas concretas esta teve que suportar com o auxílio de empregada doméstica que lhe prestou maior assistência nos períodos de incapacidade, por não ter junto aos autos qualquer documento comprovativo de qualquer pagamento realizado a este título à pessoa que lhe prestou essa assistência;
N) Relativamente à prestação de assistência por terceira pessoa, prestou depoimento a testemunha (…), que referiu conhecer a Autora porque trabalhou em casa desta até ao ano de 2020 e durante cerca de 9 a 10 anos. Durante esse período temporal, referiu que inicialmente auferia mensalmente cerca de € 500,00 por mês, sendo que após a queda sofrida por aquela em 5 de Julho de 2017, houve necessidade de realizar mais horas de trabalho em casa daquela e passou a auferir cerca de € 1.000,00;
O) Assim, sem outra prova, não poderá resultar provado que a Autora teve um encargo acrescido com a prestação de serviços de limpeza e acompanhamento no domicílio pela testemunha (…), superior a € 500,00 por mês, pelo que não deverá ser arbitrada indemnização a este título em montante superior a € 5.000,00.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações dos recorrentes, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) no âmbito do recurso interposto pelo 2.º réu:
- da nulidade da decisão recorrida;
- da responsabilidade civil por ato médico;
ii) no âmbito do recurso interposto pela interveniente:
- da responsabilidade civil por ato médico;
- subsidiariamente, da quantificação da indemnização devida à autora.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto
2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
Da autora
1. A autora foi arquiteta de profissão e simultaneamente pintora, designadamente, de óleos sobre telas, com exposições regulares em várias galerias (desde 2002 até 2017) e participações em vários eventos festivos, integrando várias coleções privadas em Portugal, Alemanha, Espanha, França, Bélgica, Suécia, Inglaterra, Dinamarca e Estados Unidos da América – fls. 59 verso (art. 111º da petição inicial).
2. Para além da reforma que recebe em resultado dos anos de trabalho como arquiteta na Administração Local, antes da intervenção do réu médico, a autora conseguia pintar cerca de 14 quadros por ano, e fazer em média 150 desenhos (art. 112º da petição inicial).
3. Os quadros e desenhos da autora eram expostos para venda a preços que variavam entre os € 110,00 e os € 1.960,00 – fls. 60 verso (art. 113º da petição inicial).
4. Através das exposições que fazia nas várias galerias de arte e a amigos, a autora conseguia vender alguns quadros por ano por montantes, em concreto, não apurados (art. 114º da petição inicial).
5. Antes desta cirurgia, a autora tinha mobilidade e apreensão normais nas mãos e dedos – fls. 18 verso (art. 10º da petição inicial).
6. Em julho de 2017, a autora tinha 66 anos de idade. Assinalou aquando da entrada no Hospital do (…), além da tontura antes da queda, e tonturas intermitentes, episódios sincopais sem pródromos de longa data (não estudados) sem movimentos tónico-ciónicos nem perda de controlo de esfíncteres associado e outros antecedentes como insónias crónicas, osteoporose, disipidemia e epistaxe. Noutros elementos é feita referência expressa a síndrome vertiginoso. No exame neurológico foi assinalado discreto nislagmo horizontal esgotável à esquerda. Foi dada indicação para estudo e seguimento em consulta externa de medicina interna, quanto às síncopes – fls. 102 verso/103/272 verso (arts. 117º da petição inicial e 21º da contestação do réu …).
7. A autora vivia e vive sozinha há muitos anos, numa casa que sempre foi da família, constituída por três pisos e com jardim (art. 120º da petição inicial).
8. A autora era uma mulher independente, com muita energia, muito ativa, com enorme alegria de viver, e grande capacidade de trabalho, integrada na sociedade, participando em diversos eventos culturais e sociais (art. 137º da petição inicial).
Do Hospital
9. O Hospital de (…) é uma instituição de saúde cuja unidade que explora obedece a todas as exigências legais, requisitos, recomendações, detendo bloco operatório dotado de utensílios e tecnologia adequados aos procedimentos cirúrgicos e meios colocados à disposição dos médicos que colaboram no Hospital (art. 7º da contestação do Hospital).
10. Também colaboram com o Hospital médicos de diversas especialidades, entre eles anestesistas e cirurgiões, que uns com os outros formam as equipas que considerarem adequadas (art. 9º da contestação do Hospital).
11. O Hospital tem atendimento permanente, com serviço de urgência e de múltiplas valências médico-cirúrgicas (art. 92º da petição inicial),
Do réu (…)
12. (…) é licenciado em medicina e especialista em Ortopedia e Fraturas pelo Hospital de S. José, Lisboa. Foi Assistente Hospitalar de Ortopedia e Fraturas no Hospital de S. José, Lisboa entre 1992 e 1994, Assistente Hospitalar no Hospital (…) entre 1994 e 1997, Assistente Graduado de Ortopedia e Fraturas no Hospital Distrital de (…) entre 1997 e 1999; Posteriormente, exerceu como Assistente Graduado, no Centro Hospitalar (…) entre 1999 e 2013 e foi Diretor Adjunto do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar do (…) entre 2013 e 2014; é Diretor do Departamento de Ortopedia do Hospital (…), Assistente de Ortopedia do Hospital de (…), assim como Assistente de Ortopedia do Hospital (…) e, ainda, Assistente de Ortopedia do Hospital … (arts. 217º a 223º da contestação do réu …).
13. Participou ou foi conferencista em cursos relativos ao tratamento de fraturas – fls. 109 (art. 224º da contestação do réu …).
14. A colaboração do Dr. (…) mantém com o Hospital tem a natureza de prestação de serviços (art. 9º da contestação do Hospital).
15. O Dr. (…) é médico cirurgião ortopedista especialista reconhecido pelos seus pares (art. 12º da contestação do Hospital).
Do seguro
16. O réu (…) transferiu para a “(…)” a responsabilidade de indemnizar terceiros por atos médicos de ortopedia por si praticados. Para tanto, celebrou com a identificada seguradora contrato de seguro de responsabilidade civil, cuja apólice tem o número (…) e o capital de € 600.000,00 – fls. 109 verso (arts. 239º e 240º da contestação do réu …).
17. Os limites contratuais estabelecidos pela apólice n.º (…), em matéria de responsabilidade civil em que pudesse incorrer o tomador do seguro em virtude da sua atividade médica, são os constantes das condições gerais de fls. 188 e particulares de fls. 202 v. “O capital indicado como garantido pela Cobertura Responsabilidade Civil Profissional é definido para cada anuidade, ficando limitado, em cada sinistro, ao valor indicado como Sub-Limite do Capital Seguro”, sendo aplicada a cada sinistro uma franquia “Tipo 30 – Esta cobertura(s) fica(m) sujeita(s) a uma franquia de 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais, no mínimo de € 125,00” – fls. 110 (arts. 2º e 3º da contestação da “…”).
Do evento, antecedentes e consequências
De 5 a 24 de julho de 2017
18. No dia 5 de julho de 2017, em consequência de uma queda acidental na rua após uma tontura, a autora fraturou um osso, o úmero esquerdo, tendo sido transportada para as urgências do Hospital do (…), onde foi assistida, tendo feito rx, com fratura oblíqualonga da diáfise proximal do úmero esquerdo, com 3.º fragmento, e aí feito o diagnóstico de fratura da diáfise do úmero esquerdo e imobilizado o membro com imobilização de tio Gerdy, sem dor significativa no ombro, sem sinais de compromisso neurovascular do membro – fls. 102 verso (arts. 1º da petição inicial e 20º da contestação do réu …).
19. Foi-lhe comunicado que tinha de ser operada, mas que essa operação apenas se poderia realizar no prazo mínimo de onze dias, devido a falta de anestesista (art. 2º da petição inicial).
20. O úmero é um osso par localizado no braço, sendo o maior osso dos membros superiores; articula-se superiormente com a omoplata através do complexo articular do ombro; e, inferiormente, com o rádio e o cúbito, através da articulação do cotovelo; é constituído por uma parte longa e mais ou menos cilíndrica (diáfise) e por duas extremidades com forma triangular (epífises); o úmero é “acompanhado” pela artéria braquial que atravessa o próprio osso e que em parte o “alimenta” de sangue; e, ainda, pelos nervos cubital e radial; este “acompanhamento” ocorre ao longo da goteira radial que se inicia entre 97 e 142 mm da face externa da apófise terminal da omoplata (parte saliente ou acrómio) e termina entre 101 e 148 mm da extremidade do úmero. O músculo braquioradial é um dos músculos do antebraço enervado pelo nervo radial – fls. 299 (arts. 4º a 10º da contestação do réu …).
21. O nervo radial inicia o seu trajeto no compartimento posterior do braço e passa para o compartimento anterior atravessando a parede divisória muscular (septo) entre 7,5 e 10 cm da extremidade inferior do úmero; a localização deste nervo apresenta uma variabilidade anatómica significativa, pois ainda que conhecido o seu trajeto anatómico, a sua localização exata varia de pessoa para pessoa (arts. 11º e 12º da contestação do réu …).
22. A diáfise do úmero pode fraturar de múltiplas maneiras em resposta a vários tipos de violência; é uma fratura comum e decorre na maior parte das vezes de quedas da própria altura, como no caso concreto (arts. 13º a 16º da contestação do réu …).
23. Do ponto de vista da respetiva gravidade, estas fraturas são classificadas entre fraturas simples (A1 a A3), em cunha (B1 a B3) e complexas (C1 a C3): as fraturas do úmero das categorias B e C, apresentam risco de lesão do nervo radial decorrente da própria fratura, pois que com a deslocação dos fragmentos ósseos característica destas fraturas, eles próprios podem lesar o nervo radial – fls. 298 (arts. 17º e 18º da contestação do réu …).
24. No caso da autora, a fratura não exposta do úmero esquerdo que apresentava foi classificada como sendo do tipo C2, ou seja, complexa e segmentar por se terem separado diversas porções do próprio osso – fls. 102 (art. 19º da contestação do réu …).
25. Uma fratura, além da quebra da própria integridade do tecido ósseo, envolve a disrupção local dos tecidos moles e a alteração da integridade vascular com sangramento (art. 23º da contestação do réu …).
26. Este hematoma e a inflamação dos tecidos envolventes onde existem células de diversos tipos acabam por formar no local um edema que será absorvido pelo organismo ou removido conforme a terapêutica aplicada (art. 24º da contestação do réu …).
27. Por outro lado, graças à intensa dinâmica do tecido ósseo, pois este cresce, remodela-se e mantém-se ativo durante toda a vida, é possível consolidar as fraturas através de novo tecido ósseo e não através de tecido cicatricial, como ocorre com outros tecidos (art. 25º da contestação do réu …).
28. A base do tratamento das fraturas assenta nas supra referidas características do tecido ósseo: cresce, remodela-se e mantém-se ativo durante a vida (art. 29º da contestação do réu …).
29. Face às dores de que padecia, e ao tempo que teria de esperar até que fosse sujeita à referida intervenção cirúrgica naquela Unidade Hospitalar, no dia seguinte, dia 6, a autora solicitou que lhe fosse dada alta médica, e pediu uma ambulância para a transportar para o Hospital Particular do (…) – fls. 18 (art. 3º da petição inicial).
30. Nesse dia 6 de julho, a autora foi admitida nas urgências do Hospital Particular do (…), onde o médico ortopedista que a atendeu (Dr. …), em concordância com outro seu colega da mesma especialidade (Dr. …), entenderam que era preferível a imobilização gessada com tala em U e assim fez o médico Dr. (…) – fls. 18 verso/103 (arts. 4º da petição inicial e 35º da contestação do réu …).
31. No Hospital (…) foram realizados vários exames à autora, como rx de controlo na sequência do que que foi confirmado padrão de fratura oblíqua longa aceitável para tratamento conservador que a autora aceitou depois de explicada à doente a situação clínica, opção gold standard para este tipo de fratura, com bons resultados em mais de 90% dos pacientes – fls. 18 verso / 102 verso (arts. 5º da petição inicial e 26º a 28º, 30º e 32º da contestação do réu …).
32. No caso, a opção em primeira linha pelo tratamento conservador visou reduzir os riscos de lesão do nervo radial, pois nesse momento a autora não apresentava quaisquer indícios de compromisso desse nervo, embora estivesse dependente do alinhamento conseguido com a imobilização – fls. 298 (art. 31º da contestação do réu …): após manipulação do braço pelo médico é inicialmente aplicada uma imobilização gessada para estabilização da fratura, redução da dor e redução do edema. Cerca de duas semanas depois esta pode ser substituída, ou não, por uma ortótese funcional que exerce pressão sobre os tecidos e o úmero (arts. 33º e 34º da contestação do réu …).
33. O Dr. (…) agendou nova consulta para dali a duas semanas para avaliação da evolução da consolidação da fratura com controlo radiológico, dando alto com analgesia e AINE em SOS – fls. 102 verso (art. 36º da contestação do réu …).
34. Recuperando o tratamento aplicado à autora, apesar de este ser bem tolerado pelos pacientes, a imobilização gessada exige a cooperação do doente, pois pode causar algum incómodo, obrigando-as a dormir sentado durante todo o tempo, para o peso fazer o seu efeito, sob pena de ser ineficaz (art. 41º da contestação do réu …).
35. O engessamento causa e causou incómodos à autora, que não aguentava o pesado “lastro” no cotovelo, uma vez que este lhe feria o tronco, quer pelo peso, quer pela irregularidade da sua espessura, causando-lhe dores, dificultando o descanso e a locomoção (art. 6º da petição inicial).
36. No dia 10 de julho, tendo conhecimento que o Dr. (…) dava consultas no Hospital (…), a autora marcou uma consulta com este especialista, tendo-lhe transmitido que não aguentava mais o pesado lastro no cotovelo – fls. 20 (art. 7º da petição inicial).
37. Nessa consulta, o Dr. (…) transmitiu à autora que a única solução para evitar o desconforto e as dores causadas pelo lastro no cotovelo seria abordar a fratura diafisária do úmero esquerdo com uma intervenção cirúrgica e que seria expectável que com essa cirurgia ficaria curada após três meses de fisioterapia – fls. 20 (art. 8º da petição inicial).
38. Na opção pela osteossíntese com cavilha intramedular UHN, um dos critérios a ponderar será a incapacidade por parte do doente de suportar os incómodos e dores da imobilização gessada, embora também seja igualmente encarada como tratamento de primeira linha. Esta técnica pode apresentar vantagens em comparação com a osteossíntese com placa e parafusos em fraturas mais cominutivas, segmentares oblíquas, como foi o caso, ou fraturas patológicas – fls. 298 verso.
39. A autora tinha a expectativa de deixar de sentir o peso e o desconforto provocados pelo tratamento conservador e de libertar o braço de qualquer tipo de imobilização e a ver consolidada a fratura num período de cerca de três meses e foi essa a motivação que a levou a procurar o médico (…) e a aceitar a proposta de cirurgia pelo mesmo apresentada, em face das queixas por si apresentadas, mesmo ciente dos riscos inerentes a uma cirurgia com anestesia geral, como seria a proposta, não demonstrando qualquer receio (arts. 90º da petição inicial e 64º da contestação do réu … e 5.º do CPCivil).
40. Na sequência dessa consulta, o Dr. (…) marcou a cirurgia para o dia 25 de julho de 2017, a realizar no Hospital (…), entidade que fez a admissão da autora pelas 7H15 e lhe cobrou a quantia pelos serviços prestados – fls. 106/20 verso/22 (arts. 9º e 91º da petição inicial).
Do dia 25 de julho
41. Na data da admissão, a autora assinou a “prestação de serviços clínicos a doentes com terceiros pagadores” de fls. 367 de onde consta “o utente declara estar esclarecido da sua situação clínica, aceitando ser submetido à terapêutica que lhe foi proposta pelo seu médico assistente/responsável pelo internamento. O utente declara também que lhe foram explicados, pelo seu médico assistente/responsável pelo internamento, todos os procedimentos de tratamento, as suas eventuais consequências e as possíveis complicações e riscos cirúrgicos e anestésicos. Declara ainda que é por sua livre e consciente vontade que se submete aos procedimentos de tratamento propostos” – fls. 367.
42. Foi anotado o consentimento da autora conforme fls. 384 verso que assinou o formulário, o qual também se encontra assinado pelo médico – fls. 384 verso.
43. No mesmo documento, após “a preencher pelo doente (…)” antes da assinatura consta o seguinte: por favor, leia com atenção todas as indicações constantes neste documento. Não hesite em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido. Verifique se tem toda a informação de que necessita. Se tudo estiver conforme, então, assine este documento. A autora não leu o documento antes de assinar nem lhe foi explicado o seu conteúdo.
44. Foi confirmado o consentimento pela autora à enfermeira do bloco conforme fls. 379 verso (artigo 5.º do Código de Processo Civil).
45. Após ter efetuado um eletrocardiograma no dia 21 de julho, no dia 25 de julho, a autora que dera entrada com dores e fora medicada com metamizol magnésio foi operada pelo Dr. (…) no Hospital (…) – fls. 22 (art. 11º da petição inicial).
46. De um lado, o método mais antigo, a osteossíntese com placa e que consiste na aplicação sobre o osso de uma placa de compressão que fixa todos os elementos separados pela fratura – figura 16, de fls. 103 verso; para tanto, é necessário visualizar diretamente o foco da fratura através da dissecação dos tecidos e afastamento destes do osso; esta técnica, devido à elevada extensão da dissecação dos tecidos para efeito de introdução e fixação da placa e ao necessário afastamento destes do osso, provoca a perda de suprimento sanguíneo do local da fratura, o que se mostra associado a índices de atraso ou não consolidação da fratura mais elevados; Pode levar a deslocamentos do próprio material – cfr. figura 16, de fls. 103 verso – e, ainda, a lesões iatrogénicas do nervo radial, ou seja, a lesões provocadas pelo próprio ato médico; De outro lado, o método mais recente utilizado pelo médico no caso da autora, ou seja, a osteossíntese com cavilha intramedular, introduzida através do ombro e fixada por parafusos. Permite alinhar devidamente os elementos da fratura com o próprio eixo da diáfise do osso, submetendo-a a menor força de flexão por se encontrar numa posição central – cfr. figura 17, de fls. 103 verso. Não interfere com o hematoma fraturário deixando-o ser absorvido naturalmente pelo organismo, não toca no suprimento sanguíneo do osso, pois não necessita de dissecação dos tecidos no local da fratura e apresenta menor tempo cirúrgico – fls. 103 verso (arts. 49º a 57º da contestação do réu …).
47. Neste segundo método, também podem acontecer conflitos articulares com o ombro e, tal como no primeiro método, lesão iatrogénica do nervo radial, ou seja, lesão provocada pelo próprio ato médico. Estas lesões podem acontecer tanto no primeiro método como no segundo por causa da dissecação dos tecidos ou da manipulação do braço, introdução e fixação do material de osteossíntese, porquanto a variabilidade anatómica humana não permite reconhecer com exatidão o local por onde passa o nervo radial (arts. 58º a 60º da contestação do réu …).
48. Como supra se referiu, esta variabilidade pode atingir dois ou mais centímetros, a partir do ponto de referência que é a extremidade inferior do úmero (art. 61º da contestação do réu …).
49. O réu optou pelo tratamento cirúrgico da autora mediante a colocação de cavilha, porquanto se tratava de uma fratura segmentar e também por se tratar de um osso osteoporótico, pois a possibilidade de deslocação da placa de osteossíntese no primeiro método é elevada, para além das restantes dificuldades já antes descritas. Apesar disso, a técnica usada na colocação dos parafusos tem uma maior probabilidade de lesar o nervo radial, do que outra técnica conhecida como técnica antero-posterior (de frente para trás), visto que o nervo passa por fora, e não pela frente, e o médico colocou de fora para dentro – fls. 297 (arts. 65º e 66º da contestação do réu …).
50. A cirurgia consistiu numa incisão longitudinal ao nível da apófise terminal da omoplata (acrómio) e posterior mobilização do músculo deltóide através da separação das suas fibras; separadas as fibras do músculo deltoide é possível visualizar a membrana ou bursa subdeltoideia que se encontra sob aquele músculo, assim como o músculo supra espinhoso; procedeu então à divisão deste músculo na sua posição mediana, paralelamente às suas fibras, cerca de 1 a 2 cm; o médico verificou que o diâmetro endomedular (interior) da diáfise do úmero apresentava bom tamanho, apto para tolerar a presença de uma cavilha de cerca de 7 mm, sem necessidade de qualquer desbaste ósseo; por tração e manipulação da fratura efetuou a sua redução alinhando os segmentos ósseos separados; introduziu a cavilha e fixou-a através da colocação de dois parafusos; por fim, suturou todos os tecidos dissecados, encerrou a ferida operatória e realizou o penso respetivo – fls. 104 (arts. 68º a 75º da contestação do réu …).
51. Houve anestesia geral e o ajudante foi (…) – fls. 353 (artigo 5.º do Código de Processo Civil).
52. O parafuso colocado é rombo para evitar que seccione qualquer estrutura em que toque – fls. 383 verso. O parafuso foi colocado de fora para dentro num dos orifícios predeterminados, numa zona que deveremos sempre admitir que o nervo possa passar. Se está acima ou abaixo é sempre difícil de determinar com toda a certeza embora pelos cálculos (…) deveria estar por baixo. O problema é que a broca pode aumentar a zona de lesão e tracionar o nervo a uma distância maior. Se o parafuso fosse colocado no outro orifício predeterminado anteroposterior o risco de lesão do nervo radial seria menor, pois a introdução anteroposterior é considerada mais segura evitando-se caso a cavilha esteja com a rotação adequada as estruturas vasculonervosas do terço distal do braço – fls. 300 (art. 177º da contestação do réu …).
53. Durante a execução do procedimento cirúrgico não sobreveio qualquer facto conhecido anormal que se intrometesse, atrasasse ou obrigasse à suspensão do procedimento que estava a ser executado (art. 76º da contestação do réu …).
54. A possibilidade da alta no dia 26 de julho de 2017 adiantada pelo médico só teria lugar caso não houvesse queixas álgicas. O médico deu indicação de que havendo queixas álgicas, a autora teria alta na quinta-feira, dia 27 de julho – fls. 106 (arts. 13º e 14º da petição inicial e 88º da contestação do réu …).
55. Após a cirurgia, a autora refere queixas álgicas intensas e náuseas tendo sido administrada medicação – fls. 105 verso (artigo 5.º do Código de Processo Civil).
Do dia 26 de julho em diante
56. No dia seguinte, dia 26, a autora mantinha dores intensas, tendo sido administrada morfina. Foi contactado o médico réu, pelas 9H15, por a autora referir dormência em toda a mão à exceção da extremidade dos dedos, não conseguindo fazer a extensão de qualquer dos dedos, apenas flexão, situação que foi evoluindo positivamente no decorrer do turno, contudo sente alguma dormência na palma da mão. Fez rx ao membro intervencionado de que resultou o seguinte relatório: no estudo realizado observa-se uma fratura aguda cominutiva atingindo a região média e superior da diáfise umeral do lado esquerdo. Observa-se material de síntese cirúrgico correspondente com cavilha intramedular comprida com parafusos de fixação distal e proximal. O parafuso distal está a cerca de 7 cm do rebordo ósseo condilar no limite da entrelinha articular radio-umeral, segundo a medição comparativa com a escala presente no estudo radiológico. O eixo longitudinal ósseo está reposto. Observa-se um normal relacionamento das superfícies articulares da cabeça umeral e cavidade glenoideia. Fratura simples do décimo arco costal esquerdo. Sem outros achados de relevância clínica. Foi observada pelo médico réu, pelas 15H30. A situação mantinha-se nos dias 27 e 28. Foi observada pelo médico réu que deu indicação para colocar tala imobilizadora de punho, como recomendado, mantendo suporte de braço, facto que foi classificado como complicação da cirurgia que de facto é. Cumpriu crioterapia. Teve alta no dia 28 –fls. 104 verso e seguintes/20 verso/273/296 verso/297 (arts. 12º e 15º da petição inicial e 91º e 92º da contestação do réu …).
57. O médico réu fez a prescrição externa que segue: ultramidol, ananase, zaldiar, pregabalina (substância utilizada contra a dor neuropática) e vimovo, conforme fls. 104 verso (arts. 16º da petição inicial, 79º e 80º da contestação do réu … e art. 5.º do Código de Processo Civil) e fez um pedido de exame para que esta realizasse uma eletromiografia (incluindo velocidades de condução) no dia 04 de agosto, com a seguinte informação clinica: “status pos encavilhamento fechado do úmero esquerdo com sinais de paresia do radial. Avaliação do tipo de compromisso” – fls. 21 (art. 16º da petição inicial).
58. A mão depende do nervo radial e do nervo cubital para funcionar em pleno, dividindo-se estes dois nervos na importância que têm nos movimentos da mão (art. 207º da contestação do réu …).
59. Os axónios são as extensões das células do sistema nervoso central responsáveis por levar os impulsos elétricos às unidades motoras dos órgãos recetores; a sua lesão é classificada como axonotemese quando há rutura dos axónios, mas ainda assim é mantida a integridade da bainha do nervo; e como neurotmese quando há rutura parcial ou completa dos axónios e da bainha que os envolve. No primeiro caso, axonotemese, a recuperação espontânea é possível, mas pode demorar de meses até um ano e no segundo, não é expectável uma recuperação espontânea, situação em que será necessária uma intervenção cirúrgica – fls. 300 (arts. 104º a 107º da contestação do réu …).
60. Na realização da cirurgia foi lesado o nervo radial – fls. 296 verso (art. 52º da petição inicial). O parafuso inferior colocado lesou o nervo radial involuntariamente, embora o mais frequente seja o nervo ser apanhado pelo movimento rotativo da broca e não durante a introdução do parafuso – fls. 297 verso. O nervo radial aflora a porção lateral do úmero a 10.5+/1.3 cm da porção proximal da fosseta oleocraniana e atravessa o septo sempre acima dos 7.5 c, da linha articular distal do úmero. A localização exata varia de pessoa para pessoa – fls. 298 verso (arts. 82º, parte, e 84º da petição inicial).
61. A paresia do nervo radial constitui uma complicação bem reconhecida nestas fraturas não só pela variação da localização, mas sim pelo seu trajeto à volta do úmero e passagem no septo intermuscular o que a torna particularmente vulnerável, ocorrendo tanto em cirurgia aberta como fechada – fls. 298 verso. A lesão secundária do nervo radial reportado na literatura varia entre 6% e 32%. Existe elevada percentagem de recuperação verificada nas lesões do nervo radial no contexto de fratura do úmero: vários cirurgiões optam por aguardar (com taxas de recuperação de 75%) enquanto outros, sobretudo em lesões secundárias como esta, optam por explorar o nervo precocemente (com taxas de recuperação de 88%) – fls. 297. Não ocorrendo neurotemese do nervo radial, os sintomas regridem e a recuperação pode demorar de vários meses a um ano – fls. 299 (arts. 82º a 84º da contestação de …).
62. A lesão do nervo radial é uma complicação das fraturas diafisárias do úmero quer em situações cirúrgicas quer em situações não cirúrgicas – fls. 108 verso. O período expectável para a recuperação de uma contusão do nervo encontra-se bem reportado na literatura e varia entre 3 e 12 meses com a grande maioria a mostrar sinais de recuperação aos 6 meses – fls. 296 verso (arts. 81º, 85º, 86º e 184º da contestação do réu …).
63. Do ponto de vista de redução e estabilização da fratura, o réu médico aplicou bem a técnica com uma excelente redução da fratura (…) não conseguiu evitar a lesão iatrogénica do nervo radial aquando do bloqueio distal da cavilha. A secção do nervo, não sendo uma complicação frequente, pode ocorrer em determinadas localizações onde não é possível determinar com certeza o trajeto do nervo, podendo a dissecação aberta diminuir esse risco – fls. 299 verso (art. 158º da contestação do réu …).
64. No dia 3 de agosto de 2017, a autora deslocou-se a consulta, tendo o médico referido que a recuperação levaria cerca de 3 a 12 meses com fisioterapia que anotou: status pós encavilhamento aparafusado do úmero esquerdo com lesão do radial. Ferida cirúrgica ok – fls. 296 verso / 273 (arts. 17º da petição inicial e 97º da contestação do réu …).
65. No dia 7, a autora submeteu-se ao exame solicitado, devido à preocupação revelada pela autora do membro superior esquerdo para obter alguma informação adicional que pudesse tranquilizar a autora, embora fosse ainda muito cedo para uma avaliação fidedigna do estado do nervo radial, o qual foi realizado pelo Dr. (…) que concluiu: plexopatia braquial E – cordão posterior (envolvimento do n. radial e axilar) – por lesão axonotmética parcial. Ainda numa fase muito precoce para avaliação neurofisiológica, contudo já se encontra alguma atividade de desnervação ativa – fls. 273 (arts. 20º da petição inicial e 93º a 95º da contestação do réu …).
66. No dia 10, no Hospital, a autora foi observada pelo médico réu apresentando EMG confirma VCS mantida. Pede-se observação por fisiatria para eventual prescrição de tratamentos – fls. 273 (art. 98º da contestação do réu …).
67. No dia 31 de agosto, fez EMG do membro superior esquerdo e o Dr. (…) concluiu: estudo eletromiográfico sugestivo de plexopatia braquial E – cordão posterior, por lesão axonotmética parcial - em relação ao exame anterior já com evidência de reinervação precoce e escassa e ligeira atividade de desnervação ativa nos músculos proximais (deltoide e tricipede braquial) contudo os músculos distais (extensor comum dos dedos e braquiorradial) com intensa desnervação ativa, não se verificando qualquer recrutamento de unidades motoras ao nível do extensor comum dos dedos – fls. 106 verso/107/276. O relatório aponta para uma lesão elerofisiológica grave e não secção anatómica parcial ou total – fls. 299. O músculo braquiorradial é um dos músculos do antebraço inervado pelo nervo radial e vascularizado pela artéria recorrente radial; e é o primeiro nervo a dar sinais de recuperação após lesão do nervo radial – fls. 299 (arts. 22º, parte, da petição inicial, 108º, 123º a 126º da contestação do réu …).
68. Entretanto, o réu médico não mais observou a autora por esta não o ter mais procurado (art. 100º da contestação do réu …).
69. No dia 7, preocupada que estava com o facto de ter a mão paralisada e temendo pela sua reabilitação, a autora fora a uma consulta de medicina geral na Clínica “(…), Serviços Saúde, Unipessoal, Lda.” – fls. 23 verso (art. 23º da petição inicial).
70. A autora procurou o Dr. (…), Ortopedista no Hospital (…), especialista de doenças dos ossos, músculos e tendões, fratura dos ossos no adulto, lesões do cotovelo, lesões do ombro, tendinite, com as seguintes áreas de diferenciação cirurgia do ombro, artroscopia, traumatologia desportiva do membro superiorhttps://www.cuf.pt/medicos/...-... (art. 24º, parte, da petição inicial e artigo 5.º do Código de Processo Civil).
71. No dia 16 de agosto, a autora deslocou-se a uma consulta com o Dr. (…), no Hospital (…), em Lisboa, o qual, após examiná-la pediu que lhe fosse realizado um RX convencional – fls. 246/264 (art. 25º da petição inicial).
72. Nesta consulta, o Dr. (…) prognosticou um primeiro indício de melhoria na mão e nos dedos apenas a partir do 3.º ou 4.º mês de fisioterapia, com uma recuperação total ao fim de um ano, e aconselhou a autora um fisioterapeuta de (…), Dr. … (art. 26º da petição inicial). Prescreveu tratamentos de fisioterapia à autora, na expetativa de que o nervo radial fosse recuperando a sua função, melhorando o desempenho do punho da mão esquerda: tratamento conservador do nervo radial, através de exercícios específicos de fisioterapia coordenados por um médico fisiatra (arts. 154º e 160º da contestação do réu …).
73. No dia 19 de agosto, a autora teve a primeira consulta no Hospital (…), com o fisiatra Dr. (…) – fls. 25 (art. 29º, parte, da petição inicial).
74. No dia 21 de agosto, a autora iniciou a 1.ª série de fisioterapia na Clínica (…), Lda., com o fisioterapeuta (…), tendo concluído as primeiras sessões em 28 de setembro de 2017 – fls. 35 verso (art. 30º, parte, da petição inicial).
75. No dia 12 de outubro, a autora esteve presente no Hospital (…), para a 2.ª consulta com o fisiatra Dr. (…), que a informou que teria de fazer mais uma segunda serie de tratamentos de fisioterapia – fls. 26 (art. 31º, parte, da petição inicial).
76. No dia 5 de dezembro, a autora concluiu a segunda série de 15 sessões de fisioterapia – fls. 26 verso (art. 32º, parte, da petição inicial).
77. No dia 7 de dezembro, a autora esteve presente na terceira consulta com o médico especialista em medicina física e de reabilitação, Dr. (…) – fls. 27 (art. 33º, parte, da petição inicial).
78. Nessa altura, a autora apresentava limitação articular do ombro esquerdo e défice de força na zona da radial esquerda, tendo o médico pedido nova eletromiografia e mais quinze sessões de fisioterapia – fls. 27 verso a 28 verso (art. 34º da petição inicial).
79. No dia 15 de dezembro, no Hospital (…), a autora fez uma nova eletromiografia aos membros superiores ou inferiores, e de cujo relatório consta ausência de deteção do potencial sensitivo do nervo radial D; Intensa desnervação ativa nos músculos extensor comum dos dedos E e braquiorradial E não recrutando qualquer unidade motora no esforço voluntário máximo a sugerir um processo de desnervação completa; deteção de muita escassa atividade espontânea em repouso (ondas positivas e fibrilações) no músculo deltoide E. Sem qualquer melhoria em relação ao músculo extensor comum dos dedos e desta vez o músculo braquioradial não recrutou qualquer unidade motora sugerindo um processo de desnervação completa ao nível dos músculos distais inervados pelo nervo radial, mas sem referência a pedido urgente de reconstrução do nervo – fls. 32 verso / 273 verso (arts. 36º, parte, 37º da petição inicial e 129º e 130º da contestação do réu …).
80. No dia 20 de dezembro de 2017, a autora foi a uma consulta com o Dr. (…), no Hospital (…), em Lisboa, onde fez um novo RX, de onde resulta o seguinte: o parafuso encontrava-se a 6.42 cm da interlinha articular, tendo por referência a dimensão do parafuso distal de bloqueio, com 3.9 mm de espessura como descrito na técnica UHN – fls. 299 (art. 38º da petição inicial).
81. O Dr. (…) desconhecia a exata localização da lesão que se confirma com exames complementares e depois com a cirurgia (art. 152º da contestação do réu …).
82. Nesta consulta, o Dr. (…) entregou à autora uma carta para ela levar ao Prof. (…), cirurgião plástico de reconstrução dos nervos, a fim de ser agendada uma cirurgia com a intervenção destes dois médicos. Dizia: Caro (…), a doente supracitada tem uma paralisia do radial, por cirurgia por # do úmero – fls. 30 verso / 275 verso (arts. 40º e 41º da petição inicial).
83. No dia 27 de dezembro de 2017, a autora deslocou-se a consulta com o Prof. Dr. (…), onde foram marcados os seguintes exames: uma Eco Partes Moles e uma Ressonância Magnética Plexo-Braquial, urgente, em pré cirurgia para observação exata do rompimento do nervo radial – fls. 31/273 verso (art. 42º da petição inicial).
84. No dia 4 de janeiro de 2018, foi entregue à autora o relatório de imagiologia com o resultado destes dois últimos exames, de onde se retira: nervo radial: observa-se no nervo radial distal a cerca de 4 cm proximalmente à interlinha articular do cotovelo uma lesão nodular em continuidade com o tronco nervoso sugestiva de neuroma com cerca de 14 mm de maior eixo e um aumento da área do nervo para 34 mm2. Continuidade do tronco do radial conservada. Esta área está em relação com a presença de parafuso distal na cavilha intramedular do úmero que exerce moldagem e conflito com o nervo radial (…) Atrofia marcada de grau 3 dos compartimentos musculares extensores dependentes do radial (…) Nervo mediano: sem alterações. Nervo cubital: sem alterações. Conclusão:1. Neuroma em continuidade do nervo radial distal em área onde se observa conflito com parafuso cirúrgico. 2. Plexo braquial sem alterações – fls. 33 verso/34/274 (art. 44º da petição inicial).
85. No dia 5 de janeiro de 2018, a autora esteve em nova consulta com o Prof. Dr. (…) – fls. 36 verso (art. 45º da petição inicial).
86. Nos dias 5, 6 e 8 de janeiro, a autora realizou vários exames médicos pré-cirúrgicos solicitados pelo Dr. (…) – fls. 35 verso - 37 verso (art. 47º da petição inicial).
87. No dia 16 de janeiro, a autora foi submetida a nova intervenção cirúrgica no Hospital (…), em Lisboa, efetuada pelo ortopedista Dr. (…), que procedeu à extração de cavilha do úmero esquerdo (cavilha e parafusos, que haviam sido colocada na 1.ª cirurgia efetuada em …), tendo o Prof. Dr. (…) reconstruído o nervo radial mediante enxerto de 3 nervos retirados da perna e pé da A. Dr. (…): “remoção de material de osteossíntese”; Prof. (…): exploração de nervo radial que se verifica com secção completa ao nível da inserção de parafuso inferior de fixação de cavilha, excisão e neuroma e glioma até nervo viável e enxerto de 3 cabos denervo sural esquerdo para colmatar déficit de 3,5 cm. Hemostase cuidadosa. A cirurgia foi realizada na sequência de uma lesão iatrogénica descrita na literatura – fls. 38-40/274/297 verso (art. 49º da petição inicial).
88. No dia 18, a autora teve alta de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva e Estética medicada com brufen (SOS), paracetamol (500 mg 8/8h) e tromboprofilaxia e com indicação para fazer mobilização sem esforço (fisioterapia diária para mobilização passiva e ativa assistida), manter mão e pé esquerdo elevados. Foi-lhe atribuída incapacidade laboral durante 3 semanas – fls. 41/41 verso/274 (arts. 51º e 53º da petição inicial).
89. A autora teve necessidade de recorrer à ajuda de uma canadiana (art. 54.º, parte, da petição inicial).
90. No dia 24, a autora teve consulta pós-operatória de cirurgia plástica e reconstrutiva e estética, com o Prof. Dr. (…) – fls. 43 (art. 55º da petição inicial).
91. Nessa consulta o Prof. Dr. (…) entregou à autora a “Informação Clinica” para fisioterapia de membro superior esquerdo, onde descreve o historial sobre o diagnóstico e a cirurgia – fls. 42 verso (art. 56º da petição inicial).
92. No dia 1 de fevereiro, a autora esteve na 4.ª consulta de Fisiatria com o Dr. (…), que lhe pediu a realização de vários tratamentos/fisioterapia – fls. 43 verso/44 (art. 59º da petição inicial).
93. A autora reiniciou as sessões de fisioterapia e realizou-as de 5 a 26 de fevereiro – fls. 45/274 (arts. 58º a 61º da petição inicial).
94. No dia 27, a autora esteve na 5.ª consulta de Fisiatria com o Dr. (…), tendo o referido especialista pedido a realização de mais uma série de tratamentos / fisioterapia – fls. 46 (art. 63º da petição inicial).
95. Nesse mesmo dia, a autora iniciou a 5.ª série de fisioterapia – fls. 47/47 verso (art. 65º da petição inicial).
96. No dia 12 de abril, a autora esteve numa consulta de cirurgia plástica e reconstrutiva com o Prof. Dr. (…), no Hospital (…), em Lisboa, que solicitou a realização de uma eletromiografia (4.ª) que a autora fez – fls. 49 (art. 68º da petição inicial e artigo 5.º do Código de Processo Civil).
97. No dia 10 de maio, a autora esteve numa consulta de Fisiatria (7.ª), no Hospital de (…), de onde consta o seguinte: limitação da abdução do ombro aos 80˚ e das rotações externa + e rotação interna ++. Parésia do radial, com limitação da extensão do punho e dedos. Tem tala de posicionamento do punho. Plano: confeção de tala dinâmica funcional do punho/mão por terapia ocupacional. 15 sessões de fisioterapia – fls. 50/274 (art. 70º da petição inicial).
98. A autora realizou as sessões de fisioterapia de 14 a 29 de Maio – fls. 63 verso /74/274 (art. 73º, parte, da petição inicial).
99. No dia 10 de Maio, a autora procedeu à marcação dos seguintes exames pedidos: a) - Confeção de Ortóteses Dinâmica; b) – Sessão de Terapia Ocupacional; Terapia Ocupacional; d) – 7.ª série de fisioterapia – fls. 50 verso - 51 verso (art. 72º da petição inicial).
100. No dia 17 de maio, a autora esteve numa consulta de Fisiatria (8.ª), no Hospital de (…) – (art. 74º da petição inicial).
101. Nesse mesmo dia, procedeu também à marcação de nova sessão de fisioterapia (8.ª) – doc. 66 (art. 76º da petição inicial).
102. No dia 15 de junho, a autora realizou o exame de eletromiografia no Hospital (…), em Lisboa, em cujo relatório consta: interperetação: no estudo de condução nervosa salienta-se a ausência do potencial de ação sensitivo e diminuição da amplitude do potencial motor do nervo radial esquerdo. O estudo de condução nervosa dos nervos mediano (motora e sensitiva) e cubital (motora e sensitiva) do lado esquerdo é normal. No EMG de agulha, observam-se abundantes potenciais de fibrilação e ausência de atividade voluntária nos músculos braquiradial, extensor radial do carpo e extensor comumdos dedos. Nos músculos deltoide, tricípite braquial, pronator teres e primeiro interósseo dorsal, do lado esquerdo observam-se potenciais de unidade motora estáveis, de duração e amplitude normais, o padrão de recrutamento é normal e não se observa atividade patológica espontânea. Conclusão: Achados eletrofisiológicos no membro superior esquerdo compatíveis com lesão axonal do nervo radial esquerdo, no braço (entre os ramos para os músculos tricipite braquial e braquioradial), de gravidade severa (neurotemesis) – fls. 55-57/274 verso (art. 77º da petição inicial).
103. No dia 28 de junho, a autora esteve em nova consulta de fisiatria (9.ª), na Santa Casa da Misericórdia de (…) – fls. 58 (art. 79º da petição inicial).
Dos danos não patrimoniais
104. Como consequência da lesão do nervo radial, a autora ficou com total incapacidade em pegar em qualquer objeto com a mão esquerda, pois, a mão caía desamparada e imóvel, com muito fraca mobilidade nos respetivos dedos (art. 110º da petição inicial).
105. A autora teve um período sem conseguir pintar, quer em razão da sua incapacidade física, quer em razão da consequente desmotivação que os constrangimentos dessa incapacidade lhe causaram (art. 115º da petição inicial).
106. Em razão desta incapacidade, a autora, que até então sempre cuidou da lide da casa sozinha, e do jardim, foi forçada a contratar a empregada por mais horas de modo a que a auxiliasse nas tarefas de higiene, lide da casa (limpeza e cozinha), jardinagem (art. 121º, parte, da petição inicial).
107. Embora a autora seja destra, a total incapacidade da sua mão esquerda impediu-a ou limitou-a na realização de tarefas de higiene pessoal, como lavar o cabelo e o corpo do lado direito, cortar as unhas da mão direita, vestir-se e calçar-se normalmente, sobretudo, quando na presença de botões e/ou colchetes, bem como de atacadores de sapatos e/ou botas, limpeza da casa, fazer a cama, lavar a loiça, lavar roupa e estendê-la, passar a ferro, preparar e cozinhar alimentos, cortar alimentos para comer (comer de faca e garfo), tratar do jardim, andar de bicicleta, e/ou conduzir o seu automóvel, além de exercer a atividade de arquiteta e de pintar que a realizavam pessoalmente e do ponto de vista económico (arts. 125º a 131º e 136º da petição inicial).
108. A autora sofreu, pois, sentia-se uma inválida por não conseguir mexer a sua mão esquerda, e consequentemente estar privada de pintar (arts. 132º e 138º da petição inicial).
109. Chorou muito e teve receio de nunca mais poder mexer a mão, e isolou-se socialmente (arts. 133º, 138º e 139º da petição inicial).
110. A autora beneficiou da ajuda de várias amigas que a acompanharam na fase mais crítica, não apenas nas várias deslocações a consultas, exames e tratamentos, mas também no auxílio nas idas a outros locais (art. 135º da petição inicial).
111. Tudo, com uma enorme e desgastante carga emocional e traumática (art. 140º da petição inicial).
112. Em consequência das complicações da cirurgia, a autora sofreu um enorme desgaste e sofrimento, além da nova intervenção cirúrgica para reparação (art. 84º da petição inicial).
113. Caso a primeira cirurgia tivesse decorrido sem complicações, a autora já estaria recuperada da primeira lesão provocada pela queda no dia 5 de julho de 2017 (previsão de engessamento mais 3 meses de fisioterapia) – (art. 88º da petição inicial).
114. No dia 25 de junho de 2020, a autora apresentava ainda as seguintes queixas: a nível funcional, sensação de “peso” desde o indicador e polegar até ao cotovelo; formigueiro e perda de sensibilidade na superfície cutânea inervada pelo radial. “Problema de circulação” que agrava com alteração do [tempo para] frio. Não consegue dormir em decúbito lateral esquerdo; a nível profissional e de formação, reformada de arquiteta na data da cirurgia (…) refere que não consegue usar o computador para fazer os desenhos relacionados com arquitetura. Ainda é pintora e dextra, referindo dificuldades quando tem de usar a mão esquerda para segurar a paleta. Refere que após a queda, esteve um ano sem poder pintar. A data da consolidação médico-legal das lesões foi fixada em 29 de maio de 2018 – fls. 275, tendo sido valorizados os seguintes danos: défice funcional temporário total de 8 dias, tendo em conta os períodos de internamento, e parcial de 321 dias, considerando o restante período de tempo até à data de consolidação, em que foi submetida a tratamentos médicos (recuperação de cirurgias, fisioterapia); repercussão temporária na atividade profissional total fixável em 329 dias; quantum doloris no grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade; défice funcional permanente da integridade físico-psíquica: parésia do nervo radial esquerdo (enquadrável no código Na0207) e limitação na mobilidade do ombro esquerdo (enquadrável no código Ma0207), num défice fixável em 11,8 pontos; repercussão permanente na atividade profissional: as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares; dano estético permanente fixável no grau 3 numa escala de sete graus (cicatriz da segunda intervenção) – fls. 275 verso - 277 (arts. 83º, 142º, 143º da petição inicial).
115. Pode vir a ser necessária a realização de cirurgia de transferência tendinosa – fls. 298 (art. 134º da petição inicial).
Das despesas da autora
116. Com a consulta de 3 de agosto de 2017, a autora despendeu € 3,99 – fls. 21 verso (art. 18º da petição inicial).
117. No dia 4 de agosto, pela intervenção cirúrgica executada pelo médico réu, a autora pagou ao Hospital a quantia de € 474,50 – fls. 22 (art. 19º da petição inicial).
118. Na consulta de 7 de agosto, a autora despendeu a quantia de € 50,00 – fls. 23 verso (art. 24º, parte, da petição inicial).
119. Pelo exame realizado no dia 7, a autora pagou ao Hospital Particular do (…) a quantia de € 80,00 – fls. 22 verso (art. 21º da petição inicial).
120. Com a segunda eletromiografia de dia 31, a autora despendeu a quantia de € 80,00 – fls. 23 (art. 22º, parte, da petição inicial).
121. Pela consulta com o Dr. (…) de agosto de 2017 e com o exame/ RX, a autora pagou ao Hospital (…), a quantia de € 93,90 – fls. 24/24 verso (art. 28º da petição inicial).
122. Na consulta de 19 de agosto, no Hospital (…), com o fisiatra Dr. (…), a autora despendeu a quantia de € 3,99 – fls. 25 (art. 29º, parte, da petição inicial).
123. Pela primeira série de sessões de fisioterapia, a autora despendeu a quantia de € 915,00 – fls. 25 verso (art. 30º, parte, da petição inicial).
124. Pela consulta de fisiatria de 12 de outubro, a autora pagou a quantia de € 3,99 – fls. 26 (art. 31º, parte, da petição inicial).
125. Pela segunda série de sessões de fisioterapia, a autora pagou a quantia de € 900,00 – fls. 26 verso (art. 32º, parte, da petição inicial).
126. Pela consulta de 7 de dezembro, a autora despendeu a quantia de € 3,99 – fls. 27 (art. 33º, parte, da petição inicial).
127. Com a eletromiografia de 15 de dezembro, a autora despendeu a quantia de € 80,00 – fls. 29 (art. 36º, parte, da petição inicial).
128. Pela consulta e exame/RX de 20 de dezembro, a autora despendeu a quantia total de € 83,90, a que acresceram as despesas com a sua deslocação de € 32,40, num total de € 116,30 – fls. 29 verso/30/33 (art. 39º da petição inicial).
129. Com a deslocação e consulta de 27 de dezembro, a autora despendeu a quantia de € 31,90 e € 3,99, num total de € 35,89 – fls. 31 verso/32 (art. 43º da petição inicial).
130. Com a consulta de 5 de janeiro de 2018, a autora despendeu a quantia de € 3,99 e € 24,70 com deslocações – fls. 34 verso/35 (art. 46º da petição inicial).
131. Com os exames dos dias 5, 6 e 8 de janeiro de 2018, a autora despendeu a quantia total de € 73,00 – fls. 35 verso - 37 verso (art. 48º da petição inicial).
132. Com a intervenção cirúrgica de 16 de janeiro, a autora despendeu a quantia total de € 1.140,22, a que acresceu ainda a quantia de € 14,50 em despesas de farmácia – fls. 38 verso - 40 verso (art. 50º da petição inicial).
133. Pela canadiana a autora pagou a quantia de € 16,48 – fls. 42 (art. 54º, parte, da petição inicial).
134. Pela consulta de 24 de janeiro, a autora despendeu mais € 3,99 – fls. 43 (art. 57º da petição inicial).
135. Com a consulta de dia 1 de fevereiro, a autora despendeu a quantia de € 3,99 – fls. 44 verso (art. 60º da petição inicial).
136. Com a fisioterapia de 9 a 26 de fevereiro, a autora despendeu mais € 21,45 – fls. 45 (art. 62º da petição inicial).
137. Com a consulta de 27 de fevereiro, a autora despendeu a quantia de € 3,99, a que acresceram despesas com a deslocação de € 32,40, num total de € 36,39 – fls. 46/46 verso (art. 64º da petição inicial).
138. No dia 17 de março, a autora deslocou-se a consulta de fisiatria no Hospital de (…), com a qual despendeu € 3,99 – fls. 48 (art. 66º da petição inicial).
139. No dia 27 de março, despendeu com sessões de fisioterapia a quantia de € 36,60 ao Hospital de (…) – fls. 48 verso (art. 67º da petição inicial).
140. Com a consulta de dia 12 de abril, a autora despendeu a quantia de € 3,99 – fls. 49 verso (art. 68º da petição inicial).
141. Com a consulta de dia 10 de maio, a autora despendeu a quantia de € 3,99 – fls. 50 (art. 71º da petição inicial).
142. No dia 10 de maio, a autora liquidou àquele Hospital uma fatura de € 26,74 relativa à 6.ª série de fisioterapia – fls. 50 verso (art. 71º, parte, da petição inicial).
143. No dia 14 de maio, a autora despendeu com prótese de terapia ocupacional a quantia de € 80, e no dia 30, a quantia de € 217,23 com a 7.ª série de fisioterapia – fls. 52/52 verso (art. 73º, parte, da petição inicial).
144. Com a consulta de dia 17 de maio, a autora despendeu a quantia de € 3,99 – fls. 54 (art. 75º da petição inicial).
145. Com a sua deslocação a Lisboa e regresso a Lagos no dia 15 de junho, a autora despendeu a quantia de € 16,70 e € 15,70 em comboio, e ainda a quantia de € 10,25 e € 7,65 com serviço de táxi em Lisboa, tudo no total de € 52,30 em transportes – fls. 57 verso (art. 78º da petição inicial).
146. Com a consulta de dia 28 de junho, a autora despendeu a quantia de € 3,99 – fls. 58 (art. 80º da petição inicial).
147. No dia 5 de julho, a autora despendeu a quantia de € 34,58 com a 8.ª série de fisioterapia – fls. 58 verso (art. 81º da petição inicial).

2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
- Que na consulta ou antes da cirurgia, o médico tivesse chamado a atenção da autora para os riscos específicos e eventuais complicações da cirurgia a que iria ser submetida, especificando, em concreto, a possibilidade de lesão do nervo radial e concretas consequências na vida da paciente (arts. 44º e 47º da contestação do réu …);
- Que não tenham sido praticadas as melhores artes médicas no sentido estrito, na intervenção cirúrgica propriamente dita – fls. 296 verso (art. 82º, parte, da petição inicial);
- Que a segunda cirurgia não tenha resultado (art. 87º da petição inicial);
- Que a grande maioria dos danos ocorridos adviriam sempre da queda de 5 de julho de 2017 e que deu causa ao tratamento (art. 21º da contestação do Hospital);
- Quais os montantes pagos pela autora à empregada doméstica após a realização da cirurgia (arts. 121º, parte, e 123º da petição inicial);
- Quais os concretos montantes por que vendeu os seus quadros no passado (art. 114º da petição inicial).

2.2. Apreciação do objeto dos recursos

2.2.1. Nulidade da decisão recorrida
Na apelação que interpôs, o 2.º réu arguiu a nulidade da sentença recorrida, sustentando que a 1.ª instância baseou a decisão condenatória que proferiu numa causa de pedir não invocada pela autora, o que entende configurar o vício previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Alega o recorrente que a autora baseou o pedido indemnizatório que deduziu na presente ação na má prática médica que imputa ao 2.º réu – a qual foi considerada não verificada – e não na falta de consentimento informado ou na invalidade do consentimento prestado pela apelada; acrescenta que não foi peticionada qualquer indemnização com fundamento na falta de consentimento informado, nem invocada a violação do direito à liberdade e à autonomia do doente como razão para a reclamada indemnização.
Defende o apelante que a 1.ª instância, ao considerar verificada a invalidade do consentimento prestado pela autora e, com fundamento na violação do direito ao consentimento informado, julgar procedente o pedido indemnizatório que havia sido deduzido com fundamento na má prática médica imputada ao 2.º réu, conheceu de causa de pedir não invocada pela autora, da qual não podia tomar conhecimento, e nela baseou a decisão condenatória proferida.
As causas de nulidade da sentença encontram-se previstas no n.º 1 do invocado artigo 615.º, nos termos do qual é nula a sentença quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
A nulidade prevista na citada alínea d) ocorre quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, assim incumprindo o estatuído no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, nos termos do qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Esclarecem José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 737) o seguinte: «Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artigo 608.º-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado (…)». Com relevo para o caso presente, acrescentam os autores (loc. cit.) o seguinte: «Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (artigo 608.º-2), é nula a sentença em que o faça».
Cumpre apreciar se a decisão padece do vício de excesso de pronúncia arguido pelo apelante 2.º réu, aferindo se foi conhecida causa de pedir não invocada pela autora.
Elencando os requisitos da petição inicial, dispõe o n.º 1 do artigo 552.º do CPC, além do mais, o seguinte: 1 - Na petição, com que propõe a ação, deve o autor: (…) d) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação; e) Formular o pedido; (…).
O n.º 4 do artigo 581.º do mesmo código, por seu turno, dispõe o seguinte: Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Reportando-se à fundamentação da pretensão, explicam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, AAFDL Editora, 2022, pág. 21) o seguinte: «O autor, além de formular um pedido de tutela de uma determinada situação subjectiva, tem de designar o facto de que faz decorrer esta situação subjectiva, ou seja, a via da investigação através de qual (e só dela) o tribunal irá apreciar a procedência do seu pedido». Acrescentam os autores (ob. cit., pág. 411): «O pedido formulado pela parte tem de ser fundamentado, ou seja, tem de assentar numa causa de pedir. A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material ou o direito potestativo alegado pelo autor. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico: é a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir. Portanto, a causa de pedir é um conceito processual que é construído com base na previsão de regras de direito substantivo.»
Afirma José Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, 4.ª edição, Coimbra, Gestlegal, 2017, pág. 69) o seguinte: «A nossa lei define a causa de pedir como o facto jurídico constitutivo do efeito pretendido pelo autor (artigo 581.º-4), como tal contraposto aos factos impeditivos, modificativos e extintivos desse mesmo efeito. (…) Esta definição aponta, como referência fundamental do conceito, para as normas de direito substantivo em cuja previsão se contém o facto para o qual estatuem o efeito jurídico pretendido.»
Este autor explica (ob. cit., pág. 44) o seguinte: «A causa de pedir exerce função individualizadora do pedido para o efeito da conformação do objeto do processo. Por isso, o tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (artigo 608.º-2), sob pena de nulidade da sentença (artigo 615.º-1-d): não pode, por exemplo, em ação em que se pretenda o reconhecimento do direito de propriedade adquirido por um contrato de compra e venda, reconhecê-lo com fundamento na aquisição por testamento; ainda que a ocorrência e o conteúdo deste tenham sido introduzidos no processo pelas partes, só a sua elevação a nova causa de pedir (subsidiária ou substitutiva da primeira), nos termos em que a lei o consente, permitiria ao juiz tal decisão. Por isso, a sentença de mérito que venha a ser proferida só vincula no âmbito objetivamente definido pelo pedido e pela causa de pedir (artigo 581.º-1).»
Pretende a autora, com a presente ação, obter a condenação dos réus ao pagamento de indemnização pelos danos emergentes de intervenção cirúrgica a que foi submetida no dia 25-07-2017, no contexto que descreve, realizada pelo médico 2.º réu no hospital 1.º réu.
A autora alega que, na sequência de fratura do úmero esquerdo decorrente de queda que sofreu a 05-07-2017, veio a ser sujeita à referida intervenção cirúrgica, no decurso da qual foi colocada cavilha fixada por parafusos, sendo que, por má prática médica, em violação das leges artis, que imputa ao 2.º réu, ficou bloqueado o movimento do ombro e foi provocada lesão do nervo radial, o que causou lhe causou danos patrimoniais e não patrimoniais cuja indemnização peticiona.
Analisando a petição inicial, verifica-se que a autora baseou a pretensão que deduziu, isto é, o pedido indemnizatório que formulou, na má prática médica, violadora das leges artis, que imputa ao médico 2.º réu, conforme se extrai, designadamente, dos artigos seguintes:
97.º - O 2.º R. atuou com imperícia, na cirurgia que efetuou à A. em 25/07/2017, uma vez que introduziu mal os parafusos cirúrgicos, bloqueando-lhe em consequência das suas más práticas médicas o movimento do ombro, e rompendo-lhe totalmente o nervo radial que afeta o movimento da mão (cfr. docs. 28 e 31).
98.º - Além de que, o 2.º R. na sua proposta terapêutica, garantiu à A. que após a cirurgia e seis meses de fisioterapia, voltava ao normal, o que nunca aconteceu devido aos erros cometidos naquela cirurgia.
99.º - Com a sua atuação, o 2.º R. violou de forma expressa e ostensiva o disposto no n.º 1 do artigo 135.º do DL 282/77, de 5 de julho (Estatuto da Ordem dos Médicos), uma vez que na colocação dos parafusos cirúrgicos não atuou de acordo com as leges artis, tendo lesado de forma séria o nervo radial com a aplicação do parafuso distal, que poderia, e deveria, ter aplicado doutra forma.
100.º - Como consequência direta das más práticas médicas do 2.º R., a A. sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais que merecem a tutela do Direito, nos termos do disposto nos artigos 493.º, n.º 2, 798.º e 800.º, n.º 1, todos do Código Civil.
No âmbito da alegação dos concretos danos patrimoniais e não patrimoniais que pretende sejam ressarcidos, igualmente especifica a autora como causa desses danos a má prática médica que imputa ao 2.º réu, que indica como fundamento do pedido indemnizatório formulado.
Tal decorre, designadamente, dos artigos seguintes:
110.º - Como consequência direta das supra referidas más práticas médicas do 2.º R., que não operou a A. com os cuidados que se exigiam, esta ficou com total incapacidade em pegar em qualquer objeto com a mão esquerda, pois, a mão cai desamparada e imóvel, e tem muito fraca mobilidade nos respetivos dedos.
117.º - Se considerarmos que, à data da má intervenção do 2.º R., a A. tinha 66 (sessenta e seis) anos de idade, sendo previsível que continuasse a pintar e desenhar da forma que antes fazia, ou, pelo menos, de uma forma muito aproximada, no que respeita à produção anual, pelo menos nos próximos 10 anos, dado tratar-se de uma pessoa saudável, sem qualquer doença grave conhecida, teremos que considerar um prejuízo de pelo menos € 165.000,00 (cento e sessenta e cinco mil euros).
119.º - A este prejuízo, acresce ainda, as despesas médicas com consultas, internamentos, tratamentos e exames, com farmácia e deslocações, que neste momento apenas consegue apurar na quantia de € 4.608,43 (…)
121.º - Em razão desta incapacidade, a A., que até então sempre cuidou da lide da casa sozinha, e do jardim, foi forçada a contratar uma empregada que a auxiliasse nas tarefas de higiene, lide da casa (limpeza e cozinha), jardinagem, serviços pelos quais lhe paga a quantia de € 1.000,00/mês.
122.º - Quantia essa que, não fosse a má intervenção do 2.º R., certamente se teriam esgotado nos três primeiros meses e que, assim, a A. se vê obrigada a pagar ainda, pelo menos, enquanto dispuser de economias para o fazer!
123.º - Considerando que, o acidente da A. ocorreu em 25/07/2017, com um período de recuperação estimado de três meses, tal significa que, desde Novembro de 2017 até hoje (Outubro de 2018 – 12 meses) por culpa da má intervenção do 2.º R. a A. é obrigada a suportar o pagamento da quantia de € 1.000,00/mês à sua empregada, tendo até esta data despendido a esse título, a quantia de € 12.000,00 (doze mil euros).
124.º - Prejuízo esse que, não teria sofrido não fosse a negligência do 2.º R., e que consequentemente também devem merecer a tutela do Direito e ser indemnizados a título de danos patrimoniais sofridos.
139.º - Devido ao sofrimento que tem pautado a sua vida, causado pela má intervenção médica do 2.º R., a A. vive em sofrimento!
140.º - Tudo, com uma enorme e desgastante carga emocional e traumática, pelo facto de não ter sequer um prognóstico que lhe garanta poder voltar a mexer a sua mão normalmente.
141.º - Todos este danos decorrentes da má atuação do 2.º R., o consequente sofrimento e dores decorrestes dos tratamentos, os incómodos e aborrecimentos vários, com sucessivas deslocações a consultas, exames e tratamentos, internamentos e cirurgias, devem ser ressarcidos, afigurando-se-nos equitativa, e não exagerada, a esse título, a quantia de € 80.000,00.
142.º - E como se não bastasse, em virtude da intervenção cirúrgica reconstrutiva efetuada pelo Dr. (…) no dia 16/01/2018, à qual teve que ser submetida para corrigir a 1.ª cirurgia que foi efetuada pelo 2.º R., com enxerto de 3 nervos retirados da perna e pé, para reconstrução do nervo radial destruído por culpa da sua má intervenção, a A. ficou com enormes cicatrizes naquele membro, o que também lhe causa profunda tristeza, e a vai inibir para o resto da vida (doc. 75).
143.º - Com efeito, a A. ficou com uma grande cicatriz permanente na área intervencionada, o que a tem deixado muito a desgosta, sentindo-se envergonhada e com baixa auto estima por ter de exibir tal cicatriz, que naturalmente, a desfavorece esteticamente, uma vez que é uma parte do corpo que se encontra exposta, tanto mais que adora usar/calçar sandálias, e uma das coisas que mais gostava de fazer e que lhe dava enorme prazer, era passear na praia.
144.º - Em razão desta enorme cicatriz, a A. sente-se agora inibida e com muitas resistências em ter a descoberto essa parte do corpo, o que não é nada fácil.
149.º - A aqui A. tem direito a ser indemnizada pelos danos morais e patrimoniais sofridos, acrescidos de juros à taxa legal até integral e efetivo pagamento, em resultado do grave erro médico praticado pela 2.º R. na clínica do l.º R., consubstanciado na errada colocação dos parafusos cirúrgicos, que foram causa efeito das lesões causadas à A., e que impediram a sua recuperação.
150.º- Consequentemente, os RR. estão obrigados a indemnizar a A. no montante de € 271.608,43 (duzentos e setenta e um mil, seiscentos e oito euros e quarenta e três cêntimos) a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, sem prejuízo da ampliação do pedido quanto a estes últimos, para execução de sentença, porque a A. continua a receber tratamentos para tentar recuperar os movimentos da mão e dos dedos, e a suportar os custos com os mesmos, da mesma forma que, continua a custear as despesas de € 1.000,00/mês com a empregada, uma vez que necessita de auxílio permanente.
Na sentença proferida, em sede de apreciação do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, no âmbito da verificação da existência de ilicitude, foi considerada não verificada a má prática médica imputada pela autora ao 2.º réu, conforme se extrai do excerto que se transcreve:
2.5.3. Dos pressupostos da responsabilidade civil
2.5.3.1. Em geral
Na petição, a autora apresentou vários fundamentos que, uma vez provados, permitem avançar, com vista ao preenchimento dos pressupostos da obrigação de indemnizar: sumariamente, violação de direito alheio por facto ilícito e culposo do réu (…), danos na esfera da autora e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
2.5.3.2. Da ilicitude
(…)
2.5.3.2.1. Da má prática médica
2.5.3.2.1.1. Em geral
(…)
No caso, ficou demonstrado que em face da fratura que a autora apresentava e que resultara de um acidente, havia a opção cirúrgica (a apontada no início no HBA) e o tratamento mais conservador, pela qual o Dr. (…) optou e com a concordância do ora réu. Em vista das queixas de dores e desconforto revelado pela autora que procurou o médico réu em consulta, este propôs a solução cirúrgica com o que a autora concordou.
Centremo-nos nos fundamentos alegados pela autora.
2.5.3.2.1.2. Do caso concreto
A autora alegou que ao efetuar a cirurgia, o réu causando à autora “a mão paralisada, não conseguindo mexer os dedos” devido a “paresia do nervo radial” porque “o parafuso superior tinha bloqueado o movimento do ombro” e “o parafuso inferior colocado na mesma cirurgia tinha danificado (rompido) totalmente o nervo radial que afeta o movimento da mão” (arts. 12º, 16º, 38º da petição inicial).
Da prova produzida, resultou que:
- A lesão do nervo radial foi consequência da atuação do réu (e não da fratura antes ocorrida), como o réu médico chegou a insinuar no art. 21º da respetiva contestação;
- A lesão do nervo radial constitui complicação iatrogénica da cirurgia levada a cabo pelo réu médico;
- Ainda que pudesse haver outra abordagem cirúrgica possível e protocolada, a opção do réu não foi considerada desdequada.
A circunstância de na autora se terem cumprido as estatísticas relativas aos riscos da cirurgia continua a obrigar investigação com vista a apurar se esta complicação se deveu a alguma ação ou omissão do réu ou se cai no âmbito da falibilidade da medicina. Com efeito, a medicina não é uma ciência exata o que contrasta com as expectativas dos pacientes e da autora em particular. Só assim se explica a conduta da autora de sucessivamente procurar diversos profissionais, ao pedir transferência do HBA, ao não comparecer na consulta indicada pelo Dr. (…) que havia executado a imobilização, ao procurar ainda resposta na consulta na clínica “(…)” e, por fim, ao marcar consulta e ser seguida pelo Dr. (…), ficando por aí, e obtendo sucesso na segunda intervenção após fisioterapia de alguns meses.
Da prova produzida, não resultou que:
- O médico réu tivesse usado procedimento desadequado ou tivesse tido falta de cuidado na cirurgia;
- O réu médico não tivesse reagido à complicação da cirurgia – cfr. procedimentos pós-operatórios, fisioterapia e medicamentos prescritos.
- Apesar da alegação da autora quer na petição (quanto à forma de colocação dos parafusos ou quanto ao facto de o réu médico não ter valorizado os sinais evidenciados pela autora após a cirurgia) e na audiência (ao alegar que deveria ter-se optado por uma cirurgia aberta), não foi apontada ao réu qualquer má prática, nem no procedimento, nem posteriormente. Note-se que contactado em consulta o Dr. (…), a quem não é atribuída qualquer má prática pela autora, também ele lhe propôs fisioterapia até dezembro, até concluir que seria necessário proceder de outra forma.
De seguida, considerou-se inválido o consentimento prestado pela autora à realização pelo 2.º réu da intervenção cirúrgica em apreciação e, em consequência, foi tida por ilícita esta intervenção do réu médico, motivo pelo qual se considerou preenchido o aludido pressuposto da responsabilidade civil, nos termos seguintes:
2.5.3.2.2. Da falta de consentimento informado
A autora alegou que o réu omitiu à autora os aspetos menos positivos do tratamento que lhe aplicou e que a levariam a recusar essa terapêutica, caso tivesse deles conhecimento, convencendo-a que era uma intervenção segura (art. 90º da petição inicial).
(…)
Ficou provado que:
- Após queda acidental e consequente fratura da diáfise do úmero esquerdo foi aplicado à autora tratamento conservador, com imobilização, a que não se adaptou devidos às dores e desconforto;
- Em consulta com o réu, após a apresentação da proposta cirúrgica, a autora tinha a espectativa de ver reparada a fratura, após alguns meses de fisioterapia;
- Na consulta, o réu manifestou-se otimista;
- A autora sabia que o réu médico era a favor do tratamento conservador e procurou-o em busca de outra solução, sabendo também que qualquer cirurgia, incluindo com anestesia geral, tem riscos;
- Aquando da admissão, a autora assinou acordo de onde consta o utente declara estar esclarecido da sua situação clínica, aceitando ser submetido à terapêutica que lhe foi proposta pelo seu médico assistente/responsável pelo internamento. O utente declara também que lhe foram explicados, pelo seu médico assistente/responsável pelo internamento, todos os procedimentos de tratamento, as suas eventuais consequências e as possíveis complicações e riscos cirúrgicos e anestésicos. Declara ainda que é por sua livre e consciente vontade que se submete aos procedimentos de tratamento propostos.
- E assinou o formulário de fls. 384 v. designado por consentimento informado para atos médicos, cirúrgicos ou exames /MCDT’s, onde constava recebi e compreendi a informação que me foi transmitida pelo médico acima identificado, necessária para formar devidamente a minha vontade e que concordo com o que me foi proposto e explicado pelo médico que assina este documento, tendo tomado esta decisão livremente, mas também não desejo obter informação completa sobre o ato médico indicado, não tendo sido assinalada qualquer das hipóteses no quadrado respetivo. Antes da assinatura, na mesma página consta tenho conhecimento que o consentimento agora prestado pode ser livremente revogado a todo o momento, por qualquer modo ou forma, devendo essa revogação ser inequivocamente efetuada – fls. 384 verso. Não se provou que tivesse havido qualquer pedido esclarecimento por parte da autora relativamente à cirurgia e/ou aos riscos e complicações associadas, nem tal foi alegado. Esse documento também está assinado pelo Dr. (…) que declara assim: confirmo que esclareci o doente de forma adequada e inteligível a condição clínica do doente, os tratamentos propostos, os potenciais benefícios e prejuízos, as alternativas possíveis, a probabilidade de êxito da sua aplicação, possíveis problemas relacionados com a recuperação e possíveis resultados da decisão de não realização dos tratamentos – fls. 384 verso.
Resumindo, sabemos que:
- A autora tinha a expectativa de se submeter a uma intervenção cirúrgica, que havia exames prévios a realizar, que a autora fez, que o objetivo era o de reparar a fratura da diáfise do úmero esquerdo, uma vez que não se havia adaptado ao tratamento conservador, com gesso, após a queda que havia sofrido 20 dias antes.
Portanto, daqui resulta que o procedimento teria alguma complexidade, maior do que a do tratamento conservador e que a autora, mulher instruída, sabia que uma cirurgia, ainda mais com anestesia geral, tinha riscos. Na verdade, de todos os aspetos referidos no acórdão citado, o crítico neste caso é apenas o da comunicação dos riscos possíveis da cirurgia a que a autora iria ser sujeita.
- Na consulta prévia, o médico réu não explicou à autora os riscos específicos da cirurgia de reparação da fratura da diáfise do úmero esquerdo e era ao médico que iria executar a técnica com os riscos associados que deveria ter informado a autora da possível lesão do nervo radial e consequências, como a paralisação da mão. E essa informação e explicação em nada belisca a relação de confiança médico-paciente, nem impede que o médico se revele otimista relativamente ao resultado pretendido com a intervenção, mas impõe a comunicação dos resultados possíveis.
- A autora assinou um formulário sobre consentimento – fls. 384 verso. Trata-se de uma formalidade que não tem dentro qualquer substância, pois que, pela leitura do documento, não fica a saber-se se à paciente, aqui autora, foram explicados os procedimentos tal como o médico enunciou na contestação ou os seus riscos específicos, pois que quanto à cirurgia em geral, admite-se, como ficou dito, que a autora conhecia, tudo sem prejuízo da necessária adequação de discurso ou de explicação de um termo mais técnico que a interação pessoal pudesse justificar (…)
- Antes da realização do procedimento, no bloco operatório, a enfermeira confirmou o consentimento da autora – fls. 379 verso.
Existe um texto inserido num formulário com função declarativa para o paciente e para os médicos, com espaços reservados para cada um. Não obstante tal declaração, não se afigura que seja esse o procedimento a ter e que a assinatura daquele formulário com uma declaração pré-feita pelo hospital seja forma de quem presta cuidados de saúde se eximir a qualquer responsabilidade de, verdadeiramente, informar e, depois, esclarecer. O formulário serve para facilitar o registo daquilo que aconteceu. Os elementos escritos podem ser muito úteis para completar a informação que é dada oralmente e que a ser entregue ao paciente permitirá a reflexão e a obtenção de um consentimento verdadeiramente esclarecido. No caso de uma intervenção cirúrgica com anestesia geral, o risco maior será o de não despertar, mas existirão outros que o paciente poderá valorizar até mais, e que sejam específicos de determinado procedimento, como a cirurgia de reparação da fratura da diáfise do úmero cujo risco que se concretizou foi a lesão do nervo radial com consequente paralisação da mão.
É notório que nem os profissionais de saúde nem o Hospital dão relevância a esse aspeto da relação entre médico e paciente (…)
O réu Hospital já tinha introduzido as regras, em parte, nos seus procedimentos – cfr. o formulário de fls. 384 verso, mas sem, por exemplo, um texto explicativo dirigido aos pacientes sobre a reparação da fratura do úmero e riscos associados. No formulário não são assinalados os campos relevantes possíveis, de modo a que o formulário, uma vez assinado, tenha um valor declarativo: no caso, a fls. 384 verso, a autora queria dizer que estava esclarecida ou que não queria ser esclarecida? Estando implementado o consentimento escrito, não era garantida a entrega de um exemplar dos documentos ao paciente, como acontece com o mais simples contrato e já estava previsto nas normas da DGS; temos o consentimento informado como um formalismo burocrático, sem que os profissionais de saúde lhe confiram a densidade devida.
A referência sobre o procedimento e a menção a riscos (sem especificar quais), no dia da intervenção, agora como em 2017, não permitiu nem permite a necessária reflexão por parte do paciente e também da autora.
Concluímos, assim, que houve consentimento da autora – cfr. a deslocação ao hospital, assinatura do contrato, conjugação da assinatura do formulário de fls. 384 verso com o assentimento colhido pela enfermeira no bloco. Esse consentimento até foi escrito – cfr. assinatura do formulário. Ocorre que não tendo sido precedido de qualquer informação relevante (no caso, informação sobre os riscos específicos do procedimento, a saber, entre outros, a lesão do nervo radial com consequente paralisação da mão), não é válido.
A nosso ver, não seria necessário a autora alegar e provar que, não fora a falta de informação objetiva, clara, adequada e atempada, nunca aceitaria fazer o procedimento. De resto, os réus não provaram que a autora sempre teria aceitado submeter-se à cirurgia (…)
Neste quadro, é de concluir que o consentimento da autora é inválido e, assim, ilícita a intervenção do médico réu. (…)
Tendo-se apurado a relevância da ilicitude, há que proceder à apreciação das questões subsequentes, como as relativas à culpa, aos danos e ao nexo entre o facto e os danos e à concreta obrigação de indemnizar por cada um dos réus.
No que respeita aos demais pressupostos da responsabilidade civil, foi considerada verificada presunção legal de culpa, não ilidida pelos réus, reportada à realização do ato médico sem o consentimento informado da autora, conforme decorre do excerto seguinte:
2.5.3.3. Da culpa
(…)
No entanto, já vimos que a culpa do agente se presume – artigo 799.º do Código Civil. Os réus não a ilidiram, muito embora também tivesse havido alguma contribuição da autora para a falta de consentimento. Apesar de os pacientes também terem deveres – como afirmou o réu médico em declarações – os pacientes que não sejam médicos não têm de conhecer riscos específicos de uma intervenção cirúrgica nem saber que implicações tem a lesão do nervo radial. Competia ao médico e ao Hospital, enquanto profissional e entidade que se dedicam à prestação de cuidados de saúde, a organização da informação relevante e o esclarecimento de todas as dúvidas que a informação suscitasse.
De seguida, foram tidos por preenchidos os demais pressupostos da responsabilidade civil e reconhecido à autora o direito a indemnização pelos danos decorrentes da cirurgia realizada pelo 2.º réu, pelo que se julgou a ação parcialmente procedente e se decidiu o seguinte:
a) Condenar solidariamente a (…) – Companhia de Seguros, S.A., e o Hospital de (…), S.A., no pagamento à autora (…) da quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais (acrescida de juros legais de mora após 13 de junho de 2022, data da prolação da primeira sentença), num total até hoje de € 37.282,19 (trinta e sete mil, duzentos e oitenta e dois euros e dezanove cêntimos), além dos juros vincendos até integral pagamento;
b) Condenar solidariamente a (…) – Companhia de Seguros, S.A., e (…), assim como o Hospital de (…), S.A., no pagamento à autora (…) da quantia de € 12.962,55 (doze mil e novecentos e sessenta e dois euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescidos de juros legais desde o dia seguinte ao da citação, a título de danos patrimoniais nas seguintes proporções: Hospital de (…), S.A. (100%); (…) – Companhia de Seguros, S.A. (90%) e (…) (10%).
Acrescem as despesas supervenientes que a autora venha a realizar por via de eventual cirurgia de transferência tendinosa;
c) No mais, absolver os réus do pedido.
Decorre do exposto que o tribunal apreciou e decidiu o pedido indemnizatório formulado na ação com fundamento em causa de pedir diversa da invocada pela autora.
Efetivamente, o pedido indemnizatório foi formulado com base na imputação ao 2.º réu de atuação consubstanciada em má prática médica, a qual foi considerada não verificada; a 1.ª instância reconheceu o direito à peticionada indemnização com outro fundamento, a saber, com base na invalidade do consentimento prestado pela autora e na realização do ato médico sem o seu consentimento informado, o que configura causa de pedir diversa da invocada.
É certo que a matéria da informação prestada à autora previamente à realização da cirurgia foi introduzida nos autos na petição inicial, em cujo artigo 90º a autora imputa ao médico 2.º réu, além do mais, o facto de ter omitido ao A. os aspetos menos positivos do tratamento que lhe aplicou, e que, a levariam a recusar essa terapêutica, caso tivesse deles conhecimento, convencendo-a que era uma intervenção segura.
Porém, a pretensão indemnizatória não foi deduzida com base em tal fundamento, conforme claramente se extrai dos supra transcritos artigos da petição inicial, nem se vislumbra que tenha a autora requerido qualquer ampliação subsequente da causa de pedir.
Em conclusão, verifica-se que a 1.ª instância conheceu de causa de pedir não invocada pela autora, questão da qual não podia tomar conhecimento, nela tendo baseado a condenação proferida.
Ao conhecer de causa de pedir não invocada pela autora, nela baseando a parcial procedência da pretensão indemnizatória deduzida, a 1.ª instância apreciou questão de que não podia tomar conhecimento, o que configura a causa de nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, invocada pelo 2.º réu recorrente.
Procedendo a arguição de nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia, na parte relativa ao conhecimento de causa de pedir não invocada e consequências daí decorrentes, cumpre atender à regra da substituição ao tribunal recorrido estatuída pelo artigo 665.º do CPC, cujo n.º 1 dispõe que ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.
Nesta conformidade, considerando que a Relação dispõe de todos os elementos que permitem suprir a nulidade da decisão recorrida, cumpre apreciar a questão suscitada, operando a substituição ao tribunal recorrido.
Procede, assim, a arguição de nulidade parcial da decisão recorrida, a qual será suprida pela Relação.

2.2.2. Responsabilidade civil por ato médico
Pretende a autora, com a presente ação, obter a condenação dos réus no pagamento de indemnização por danos emergentes de intervenção cirúrgica realizada pelo médico 2.º réu no hospital 1.º réu, a que foi submetida no dia 25-07-2017, na sequência de fratura do úmero esquerdo decorrente de queda que sofreu a 05-07-2017.
Alega a autora que, no decurso da referida intervenção cirúrgica, lhe foi colocada cavilha fixada por parafusos, sendo que, por má prática médica, em violação das leges artis, que imputa ao 2.º réu, ficou bloqueado o movimento do ombro e foi provocada lesão do nervo radial, o que lhe causou danos patrimoniais e não patrimoniais cuja indemnização peticiona.
Está em causa, nos presentes autos, uma relação jurídica estabelecida entre a autora e os réus – o médico 2.º réu e o hospital 1.º réu –, qualificada na decisão recorrida como contrato de prestação de serviços médicos, o que não vem questionado nos recursos, encontrando-se as partes de acordo a tal respeito.
Pelos motivos expostos em 2.2.1., foi declarada a nulidade da sentença proferida, na parte em que se considerou inválido o consentimento prestado pela autora à realização pelo 2.º réu da intervenção cirúrgica em apreciação e, em consequência, se teve por ilícita esta intervenção do réu médico, se considerou verificada presunção legal de culpa reportada à realização do ato médico sem o consentimento informado da autora e se reconheceu, com o indicado fundamento, o direito da autora a indemnização pelos danos decorrentes da cirurgia realizada pelo 2.º réu.
Face à declaração de nulidade da parte da sentença em que o tribunal apreciou e decidiu o pedido indemnizatório com fundamento em causa de pedir diversa da invocada pela autora, cumpre operar a substituição ao tribunal recorrido e apreciar se assiste à autora o direito à indemnização peticionada, com fundamento na causa de pedir invocada.
Em segmento da sentença não afetado pela declaração de nulidade, a 1.ª instância considerou não verificada a má prática médica, em violação das leges artis, imputada pela autora ao 2.º réu, o que não vem posto em causa em qualquer das apelações, nas quais defendem os recorrentes que tal impede a procedência da pretensão indemnizatória formulada pela autora, impondo a total absolvição dos réus dos pedidos formulados.
Efetivamente, tendo a 1.ª instância considerado não verificada a atuação ilícita imputada ao 2.º réu pela autora, matéria que não integra o objeto de qualquer dos recursos interpostos e que se encontra esta Relação impedida de reapreciar, cumpre concluir que não logrou a autora demonstrar, conforme lhe incumbia, a atuação ilícita ou o incumprimento contratual em que baseia a pretensão deduzida, pelo que não lhe assiste o direito a ser indemnizada pelos danos sofridos em resultado da cirurgia a que se submeteu no dia 25-07-2017.
Nesta conformidade, mostra-se totalmente improcedente o pedido formulado, impondo-se a absolvição dos réus e a condenação da autora nas custas da ação (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Procedem, assim, ambas as apelações.
As custas dos recursos recaem sobre a recorrida, na vertente de custas de parte (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar procedentes ambas as apelações, em consequência do que se decide:
a) declarar a nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia, na parte relativa ao conhecimento de causa de pedir não invocada e consequências daí decorrentes, vício que se decide suprir;
b) julgar improcedente a ação, absolvendo os réus dos pedidos formulados.

Custas na 1.ª instância pela autora.
Custas de cada um dos recursos pela apelada, na vertente de custas de parte.
Notifique.
Évora, 12-09-2024
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Maria Domingas Simões (1.ª Adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2.ª Adjunta)