RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
TRIBUNAL TERRITORIALMENTE COMPETENTE
Sumário

1 – É irrecorrível o despacho que declara a incompetência do tribunal e determina a remessa do processo ao tribunal tido por competente.
2 – Apenas a decisão que desatende a excepção de incompetência territorial é recorrível, subindo o recurso nos próprios autos e com o que vier a ser interposto da decisão que puser termo à causa.
(Sumário do Relator

Texto Integral

Processo n.º 813/21.0T9STR-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local de Competência Criminal de Santarém – J1
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I – Relatório:
(…) veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
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O arguido (…) foi acusado pela prática de um crime de violação do segredo de justiça, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 371.º do Código Penal.
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Inconformado com a acusação, o arguido requereu a abertura de instrução, invocando, para além do mais, a incompetência territorial do Tribunal da Comarca de Santarém, defendendo que a competência pertencia aos Tribunais da Comarca de Lisboa.
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Foi proferido despacho que considerou o Juízo de Instrução Criminal de Santarém competente e desta decisão foi interposto recurso, fundado na violação das regras de incompetência territorial, defendendo o arguido que a fase de instrução deveria ser realizada pelo Juízo de Instrução Criminal de Lisboa.
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O arguido foi pronunciado pela prática de um crime de violação do segredo de justiça, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 371.º do Código Penal.
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Os autos foram remetidos para o Juízo Local de Competência Criminal de Santarém, o arguido apresentou contestação e voltou a suscitar a questão da incompetência territorial, defendendo que o processo fosse julgado pela Comarca de Lisboa ou, caso assim não se entendesse, pelo Juízo Local Criminal de Abrantes.
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Por decisão datada de 29/05/2024, o Tribunal a quo decidiu julgar procedente a excepção de competência em razão do território invocada pelo arguido, em consequência, determinou a remessa dos autos para o Juízo Local Criminal de Abrantes.
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O arguido veio interpor recurso da mencionada decisão.
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O Tribunal a quo não admitiu o recurso interposto e, na parte mais pertinente, deixou exarada a seguinte fundamentação:
«(…) A este propósito, estatui o artigo 33.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, declarada que seja a incompetência de um Tribunal, o processo é remetido para o Tribunal competente.
Como é bom de ver, a declaração de incompetência não envolve apenas um Tribunal (o declarado incompetente) mas sim, e pelo menos, um outro (o declarado competente, nos termos do artigo 33.º daquele diploma legal).
Por seu turno, a declaração de incompetência coloca apenas termo à causa circunscrita ao Tribunal declarado incompetente (cfr. artigos 33.º e 407.º do Código de Processo Penal).
Já no que tange especificamente à declaração de incompetência, a lei não contemplou qualquer hipótese a respeito do recurso dessa decisão, até porque o n.º 2 do artigo 407.º do Código de Processo Penal não tem, manifestamente, aplicação neste caso.
Assim, diferentemente do que ocorre quanto à declaração de competência por parte do Tribunal, nos termos da qual o recurso dessa decisão (de competência) será julgado apenas a final (cfr. artigo 407.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), em caso de declaração de incompetência o único meio de reação contra a decisão é a sua resolução em sede de conflito de competências e, mesmo este, condicionado pelo disposto no artigo 34.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Neste conspecto, a questão da competência está subtraída à litigância das partes, cabendo a estas tão só a legitimidade para a denúncia do conflito (artigo 35.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), devendo conformar-se com a declaração de competência sobre um deles, nos termos do citado artigo 34.º, n.º 2 (isto é, quando exista aceitação da competência, o conflito cessa de imediato), e sem prejuízo do disposto no artigo 407.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Significa isto que o recurso da decisão de incompetência em razão do território não é o meio adequado para o arguido reagir processualmente.
(…)
A este propósito, a jurisprudência já teve oportunidade de se pronunciar, de modo pacífico, salientando-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14.09.2022, processo n.º 1555/14.8TAGMRE.P1, relatado por Paulo Costa, do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.02.2021, processo n.º 521/19.1JALRA-A.C1, relatado por Maria José Nogueira e do Tribunal da Relação de Évora de 19.11.2015, processo n.º 1758/09.7TAFAR.E1, relatado por Clemente Lima, disponíveis in www.dgsi.pt.
Destes arestos conclui-se, essencialmente, que «é irrecorrível o despacho que declara a incompetência do Tribunal e determina a remessa do processo ao tribunal tido por competente» e que «perante a não aceitação da competência pelo tribunal para onde os autos forem remetidos, o legislador criou um específico procedimento apto a dirimir o conflito, qual seja, o previsto nos artigos 34.º a 36.º do CPP» - cfr. o já citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.02.2021, processo n.º 521/19.1JALRA-A.C1.
Acresce que o próprio Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 158/2003, decidiu não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 33.º, 34.º, 36.º e 399.º do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido da irrecorribilidade da decisão de tribunal criminal que se declare territorialmente incompetente (acessível in www.tribunalconstitucional.pt).
Na mesma linha de raciocínio, escreve o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, «Com a declaração da incompetência do tribunal, o processo é simultaneamente remetido para o tribunal competente. A decisão de incompetência é notificada aos sujeitos processuais, mas não aguarda o prazo do recurso. A decisão do tribunal penal que se declara territorialmente incompetente é irrecorrível, pois só por meio do conflito de competência, e não do recurso, é admissível reagir contra a decisão da incompetência (acórdão do TRL de 14.1.1998, in CJ, XXIII, 1, 140, e acórdão do TRL de 28.4.1999, in CJ, XXIV, 2, 152, cuja jurisprudência foi confirmada pelo acórdão do TC n.º 158/2003). Este regime é, aliás, o único consentâneo com a previsão do artigo 34.º, n.º 2, nos termos do qual a decisão de incompetência pode ser revogada oficiosamente pelo tribunal remetente em qualquer momento» - [cfr. Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 114].
Assim, entende-se ser cristalino que a decisão em crise não é passível de recurso, cuja inadmissibilidade decorre do artigo 400.º, n.º 1, alínea g), conjugado com a disciplina instituída nos artigos 33.º a 36.º, todos do Código de Processo Penal, impondo-se, assim, a sua rejeição, tudo nos termos do disposto no artigo 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Note-se que, in casu, o conflito não está sequer definido enquanto tal, pois que o Tribunal competente não teve sequer oportunidade de se pronunciar a tal respeito.
Pelo exposto, decide-se rejeitar o recurso interposto pelo arguido».
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II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal.
Em primeiro lugar, cumpre salientar que, face ao pretensão subsidiária deduzida, o arguido obteve vencimento na sua pretensão, não se podendo assim considerar que se está perante uma decisão contra si proferida[2], carecendo, assim, nessa dimensão, de interesse em agir.
Depois, a decisão em causa não é definitiva. Efectivamente, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 33.º[3] do Código de Processo Penal, declarada a incompetência do tribunal o processo é, de imediato – não aguardando, como referido no despacho em crise, o trânsito da decisão – remetido ao tribunal competente, podendo então este (i) aceitar a competência ou (ii) entendendo que a competência pertence ao tribunal inicialmente declarado incompetente, ou a um terceiro, declarar-se também ele incompetente.
Isto é, no momento da interposição do recurso, não existe notícia que o Juízo Local de Competência Criminal de Abrantes tivesse aceite ou declinado a competência e, caso não concorde com a decisão previamente tomada, poderá suscitar um conflito de competência.
De harmonia com o n.º 1 do artigo 34.º do Código de Processo Penal, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou contrário, que, da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido.
E, caso se venha a verificar esse cenário, existe um processo próprio tipificado nos artigos 35.º[4] e 36.º[5] do Código de Processo Penal que visa solucionar o impasse processual que decorre da prolação de duas decisões de igual valor, de sentido contrário que, na prática, se anulam e que nenhuma delas produz os seus efeitos[6] [7] [8].
Por isso, é aceite que é irrecorrível o despacho que declara a incompetência do tribunal e determina a remessa do processo ao tribunal tido por competente[9] e essa interpretação normativa foi julgada não inconstitucional pelo Tribunal Constitucional[10] que considerou conformes à Lei Fundamental «as normas dos artigos 33.º, 34.º, 36.º e 399.º do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido da irrecorribilidade da decisão de tribunal criminal que se declare territorialmente incompetente».
Neste campo, apenas a decisão que desatende a excepção de incompetência territorial é recorrível – o que não sucedeu, pois a decisão atendeu à pretensão subsidiária do reclamante –, subindo o recurso nos próprios autos e com o que vier a ser interposto da decisão que puser termo à causa[11] [12].
Por outras palavras, ainda que os factos descritos e imputados ao arguido na pronúncia autorizassem o entendimento que o crime em discussão tivesse indiciariamente ocorrido na área territorial de Lisboa, o que não se demonstra através da leitura das peças acusatórias, apenas o desatendimento da excepção de incompetência territorial permitiria a admissão do recurso nos termos atrás referenciados, mas isso já não sucede nas hipóteses de despacho a declarar a incompetência do Tribunal.
Neste espectro lógico-jurídico, mantém-se o despacho de não admissão de recurso, por irrecorribilidade legal, indeferindo-se a pretensão formulada pelo arguido.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, mantém-se o despacho reclamado, não se admitindo o recurso interposto.
Custas a cargo do arguido, fixando a taxa de justiça em 2 Uc´s.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 18/09/2024

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
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[1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[2] Artigo 401.º (Legitimidade e interesse em agir):
1 - Têm legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;
b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;
c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão.
2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.
[3] Artigo 33.º (Efeitos da declaração de incompetência):
1 - Declarada a incompetência do tribunal, o processo é remetido para o tribunal competente, o qual anula os actos que se não teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo e ordena a repetição dos actos necessários para conhecer da causa.
2 - O tribunal declarado incompetente pratica os actos processuais urgentes.
3 - As medidas de coacção ou de garantia patrimonial ordenadas pelo tribunal declarado incompetente conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência, mas devem, no mais breve prazo, ser convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente.
4 - Se para conhecer de um crime não forem competentes os tribunais portugueses, o processo é arquivado.
[4] Artigo 35.º (Denúncia do conflito):
1 - O tribunal, logo que se aperceber do conflito, suscita-o junto do órgão competente para o decidir, nos termos dos artigos 11.º e 12.º, remetendo-lhe cópia dos actos e todos os elementos necessários à sua resolução, com indicação do Ministério Público, do arguido, do assistente e dos advogados respectivos.
2 - O conflito pode ser suscitado também pelo Ministério Público, pelo arguido ou pelo assistente mediante requerimento dirigido ao órgão competente para a resolução, contendo a indicação das decisões e das posições em conflito, ao qual se juntam os elementos mencionados na parte final do número anterior.
3 - A denúncia ou o requerimento previstos nos números anteriores não prejudicam a realização dos actos processuais urgentes.
[5] Artigo 36.º (Resolução do conflito):
1 - O órgão competente para dirimir o conflito envia os autos com vista ao Ministério Público e notifica os sujeitos processuais que não tiverem suscitado o conflito para, em todos os casos, alegarem no prazo de cinco dias, após o que, e depois de recolhidas as informações e as provas que reputar necessárias, resolve o conflito.
2 - A decisão sobre o conflito é irrecorrível.
3 - A decisão é imediatamente comunicada aos tribunais em conflito e ao Ministério Público junto deles e notificada ao arguido e ao assistente.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 33.º.
[6] Figueiredo Dias e Nuno Brandão, “Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal”, Texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016), disponível em https://.apps.uc.pt/mypage/faculty/nbrandao/pt/003
[7] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 211.
[8] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 114.
[9] Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 19/11/2015, de 22/10/2015, de 03/11/2015, do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/11/2007 e de 22/02/2021 e na decisão proferida pelo Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 09/03/2009, consultáveis em www.dgsi.pt.
[10] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 158/2003, de 19/03/2003, divulgado em www.tribunalconstitucional.pt.
[11] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 114 e 1070.
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/06/1994, CJ XIX, 3, 58.