EFEITOS DO CASO JULGADO
ERRO MATERIAL E ERRO DE JULGAMENTO
TAXA APLICADA DE JUROS DE MORA
Sumário

I - O trânsito em julgado, conforme decorre claramente do art.º 628.º do CPC, ocorre quando uma decisão se torna insusceptível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário. Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado, que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.
II - Do caso julgado decorrem dois efeitos essenciais, a saber: a impossibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que proferiu a decisão, voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida - efeito negativo - e a vinculação do mesmo tribunal e eventualmente de outros, estando em causa o caso julgado material, à decisão proferida - efeito positivo do caso julgado.
III - Nos termos do art.º 613.º do C.P. Civil, proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ressalvando-se os casos de rectificação de erros materiais que é lícito suprir, nos termos do art. 614º do mesmo código.
IV - Constitui erro de julgamento e não erro material a fixação na sentença de uma taxa de juros moratórios diferente da estabelecida na Portaria em vigor em determinado período temporal. Sendo interposto recurso da sentença, sem que tal erro tenha sido invocado e transitando a mesma em julgado nos termos em que foi proferida, torna-se imodificável não podendo ser alterada a taxa dos juros moratórios por despacho posterior proferido na 1ª instância.

Texto Integral

Apelação- Proc. 1400/13.1TTPRT.P2
Juízo do Trabalho do Porto-J1

I.Relatório

Neste processo especial para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, em que é Autor / Sinistrado AA e Ré/ Entidade Responsável A..., S.A.D., em 20.9.2021. foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Termos em que julgo a presente ação procedente e, em consequência, condeno, com efeitos a partir de 21/10/2000 (dia seguinte ao da alta), o Réu A..., S.A.D. a pagar ao Autor:
- o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia, no montante de €1.122,30 (mil, cento e vinte e dois euros e trinta cêntimos), no valor de €19.613,31 (dezanove mil, seiscentos e treze euros e trinta e um cêntimos) acrescido de juros de mora à taxa legal anual de 4%, ou da que sucessivamente estiver em vigor, contados desde o dia seguinte ao da alta, até integral pagamento, que perfazem na presente data a quantia de €16.423,50 (dezasseis mil, quatrocentos e vinte e três euros e cinquenta e nove cêntimos);
- a quantia de €39.357,20 (trinta e nove mil, trezentos e cinquenta e sete euros e vinte cêntimos), a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta (320 dias) e de proporcionais de subsidio de Natal e férias, acrescida de juros de mora à taxa legal anual de 4%, ou da que sucessivamente estiver em vigor, contados desde o dia do último acidente, até integral pagamento, que perfazem na presente data a quantia de €33.012,60 (trinta e três mil e doze euros e sessenta cêntimos).

Custas, nesta parte, a cargo do Réu A..., S.A.D., encontrando-se as custas a cargo da Ré Seguradora já fixadas em sentença anterior.

Valor da ação para efeitos de custas: €58.970,51 nos termos do artigo 120.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e da Portaria nº 11/2000, de 13/01.

Oportunamente, vão os autos ao Ministério Público, nos termos e para os fins dos artigos 148.º n.ºs 3 e 4, "ex vi" do artigo 149.º, todos do Código de Processo do Trabalho.

Registe e notifique.”

Inconformados com a sentença, dela interpuseram recurso o Autor e a Ré, não tendo nenhuma das partes suscitado qualquer questão no que concerne à condenação relativa aos juros de mora.
Ambos os recursos foram julgados improcedentes por acórdão desta Relação proferido em 3.10.2022, que confirmou integralmente a sentença recorrida.

A Ré interpôs recurso de revista excepcional, que não foi admitido por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça prolatado em 29.3.2023.

Remetidos os autos à 1ª instância, foi efectuado o cálculo do capital de remição e dos juros de mora, à taxa anual de 4%, conforme consta na sentença.

Notificado dos cálculos, o sinistrado em 10.7.2023, apresentou por mail um requerimento (ref. 36185226), com o seguinte teor:
“A douta sentença que condenou a entidade patronal refere “acrescido de juros de mora à taxa legal anual de 4%, ou da que sucessivamente estiver em vigor, contados desde o dia seguinte ao da alta, até integral pagamento …”.
Assim sendo e salvo melhor opinião, os juros estão mal calculados, pois que, desde então, as taxas que sucessivamente estiveram em vigor são de 7% até 01/05/2003 (data da entrada em vigor da taxa de 4% da Portaria 291/03) e 4%, o que não foi atendido no cálculo efetuado e remetido para a entidade patronal, pelo que se requer que tal lapso seja corrigido e remetida nova notificação para a entidade patronal, com os valores corretos.”
O Autor não notificou a Ré deste requerimento.
Após promoção do Ministério Público, em 7. 9. 2023, foi proferido o seguinte
Despacho:
“Compulsados os autos e no seguimento da douta promoção que antecede, determina-se a rectificação da decisão final aqui proferida (cfr. art. 614º do C.P.C.) determinando-se a data de início dos vencimentos dos juros de mora, como sendo 07/03/2000 e procedendo-se ao cálculo dos juros de mora aqui a apreciar nos termos solicitados pelo sinistrado no seu requerimento refª 36185226.
Proceda-se, deste modo, a novo cálculo do capital de remição em conformidade.
Notifique.”
Notificadas ambas as partes deste despacho, a Ré/Entidade responsável, em 21.9.2023, apresentou o seguinte requerimento:

“A..., SAD, Entidade Patronal, tendo sido notificada do despacho de 7.9.2023, vem dizer o seguinte:
1 O A. apresentou um requerimento, em 10.7.23, não tendo notificado a R., que deu conta do sucedido, ao ter sido notificada do despacho em causa;
2 O fundamento subjacente a tal requerimento prende-se, na verdade, com uma discordância do decidido, em sentença, visto que aí se condena no pagamento de juros de mora à taxa legal anual de 4% ou da que sucessivamente estiver em vigor, não tendo o Tribunal verificado que, à data da prolacção da sentença, em20.9.21, a taxa lega lanual era de 7% e não de 4%.
3 Tal discordância seria fundamento para recurso do decidido, e, não tendo sido o caso, não pode agora o A. pretender alterar o teor da sentença, sob pena de violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e do caso julgado – cfr. art. 613º, nº 1 e 619º, nº 1 do CPC – além de ter sido violado o princípio do contraditório e de igualdade das partes – cfr. arts. 3º, nº 3 e art. 4º CPC.
4 Certo é que, quanto à aplicação da taxa de juro a 4%, o cálculo está elaborado correctamente, de acordo com o decidido na sentença, só cabendo aplicar outra taxa, caso seja diferente de 4%, a partir da prolacção da sentença (sendo esse o significado “Da que sucessivamente estiver em vigor”).
5 Na sequência deste requerimento, o Tribunal ordenou a vista ao MP para “rectificação da decisão”, em violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e do caso julgado, mais crendo que a entidade patronal requereu com o mesmo propósito.
6 Ora, a R. limitou-se a evidenciar um lapso cometido pela secção, quanto à data de início da contagem dos juros de mora referente aos períodos de IT (de 17-10-1999 07/03/2000), de acordo com o decidido na sentença (visto que é o dia do último
acidente, conforme facto provado 21. e págs. 18 e 21 da sentença).
7 Não é, pois, claramente o mesmo propósito, na medida em que não se pretende alterar o já decidido, mas antes cumpri-lo!
8 Em 4.9.23, o MP, em resposta ao ordenado, não se pronuncia sobre o requerido pela entidade patronal, mas somente pelo sinistrado, ocorrendo omissão de pronúncia.
9 Por fim, em 7.9.23, o Tribunal rectifica a sentença proferida, em 20.9.21 (cerca de dois anos depois!), ao abrigo do disposto no art. 614º CPC, o qual prevê o seguinte:
“1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões
devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antesde ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.”
10 Ora, em primeiro lugar, alterar o decidido (taxa legal de 4% para 7%) não se trata de qualquer rectificação quanto a “omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”.
11 E, por outro lado, houve recurso pelo sinistrado, não tendo essa questão sido aí levantada, como impõe o nº 2 do art. 614º CPC.
12 Ao ser agora suscitada esta questão nova, estamos perante um vício de extemporaneidade que cumpre sanar, e, subsequentemente, o despacho ora proferido viola o princípio de caso julgado e de esgotamento do poder jurisdicional – cfr. art. 613º, nº 1 e 619º, nº 1 CPC.
13 - Assim, requer-se que seja eliminada a decisão referente à alteração da taxa de juro aplicada (de 4% para 7%), sob pena de violação dos inúmeros princípios supra referidos.

*
O Ministério Público pronunciou-se dizendo que a retificação da sentença relativamente ao fator de cálculo dos juros se enquadra no conceito de erro de cálculo, uma vez que a taxa legal decorre da lei, concretamente das portarias em vigor na data do vencimento das dívidas, não estando dependente de qualquer interpretação ou decisão judicial, devendo substituir-se a referência à taxa de 4% pela expressão “taxa de juro legal”.
O sinistrado também se pronunciou no sentido de a referência à taxa legal de 4% se tratar de um erro material causado por manifesto lapso que pode e deve ser corrigido a todo o tempo, uma vez que desde da data da contagem dos juros ocorreu alteração à taxa legal, inexistindo violação do caso julgado ou esgotamento do poder jurisdicional.

Em 10.10.2023, foi proferido o seguinte

Despacho:
“Considerando-se que estamos perante um erro de cálculo, sendo certo que a taxa de juros (por manifesto lapso de escrita consta taxa de justiça) decorre de critério legal e não é fixado por entendimento discricionário do Tribunal e considerando-se os argumentos expandidos na douta promoção que antecede, com os quais se concorda em absoluto, mantém-se a decisão exarada nos autos quanto á determinação do valor dos juros a atender para a fixação do capital de remição, assim se indeferindo o solicitado pela entidade responsável.
Notifique.”

É deste despacho que em 2.11.2023, a Ré/ Entidade Responsável apresenta recurso, terminando com as conclusões que se transcrevem:

1 Entende a EP que o Tribunal andou mal ao considerar que a presente alteração da taxa de juro aplicável aos montantes em dívida de 4% para 7% se trata de um erro de cálculo da sentença transitada e proferida, em 20.9.21, a rectificar, nos termos do disposto no art. 614º CPC, quando os pressupostos da sua aplicação não se verificam, nem a questão foi suscitada, no momento próprio.

2 Na verdade, não só o A. recorreu da sentença, não tendo suscitado qualquer questão quanto à taxa de juro aplicável, deixando transitar a decisão proferida, como a primeira instância liquidou os juros devidos, os quais foram calculados correctamente e fundamentados no disposto nos arts. 135.º do CPT, e art.s 805.º, n.º 3 e 806.º, n.s 1 e 2 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 08/04.

3 Assim, não só é extemporânea a questão ora suscitada pelo sinistrado, como não há qualquer discricionariedade quanto ao decidido, em sentença, que obedeceu às disposições legais supra referidas, agora indevidamente em causa, em clara violação dos princípios de caso julgado e de esgotamento do poder jurisdicional – cfr. arts. 613º, nº 1 e 619º, nº 1 CPC.

Nestes termos e nos demais de direito deverá proceder o recurso interposto pelo R.., fazendo-se, assim, a costumada JUSTIÇA.


O Autor apresentou resposta, dizendo, no essencial que:
- a matéria que constitui objeto do presente recurso (alegada alteração da taxa de juro aplicável de 4% para 7%) – cfr. conclusões da douta alegação, já foi julgada por despacho de 7.9.2023 e a recorrente não interpôs recurso, pelo que deve considerar-se a decisão como definitiva e insuscetível de, agora, ser objeto de recurso ordinário.
- O critério do cálculo de juros foi, como não poderia deixar de ser, a aplicação da taxa de juros legal em vigor desde o momento do vencimento do capital de remição e das indemnizações por ITA; a fixação de 4% como sendo a taxa de juro legal anual constituiu um mero erro de cálculo ou de escrita, que, facilmente, se conclui pela referência a “taxa de juro legal ou da que sucessivamente estiver em vigor” desde um determinado acontecimento até efetivo e integral pagamento.
- E nos termos do art. 613ºe 614º do C.P.C. tal erro pode ser rectificado por iniciativa do juiz ou a requerimento das partes, como sucedeu.
Terminou, pugnado pelo indeferimento do recurso.
*
O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
*
O Exmo Procurador Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer, dizendo, no essencial, que:

“Na verdade, tendo o sinistrado recorrido da sentença, como referido pelo Recorrente, deveria ter pedido a rectificação da taxa de juro e esta rectificação só podia ter lugar antes de ele subir. – 614º, 2, CPC.
Sendo posteriormente requerida e deferida a rectificação, como foi, esta decisão, seria passível de recurso nos termos do art.º 644º, 2, g) CPC, o que não se verificou.
Em vez disso o Recorrente veio requerer a eliminação desta parte da decisão.
Ora este requerimento não tem, não pode ter, senão os processos não findavam, a virtualidade de suspender o decurso do prazo de recurso.
Quando em 02.11.2023, recorre entende-se que foi já ultrapassado o prazo de 15 dias, prazo para interposição de recurso.
Assim, independentemente de saber se estamos perante um erro material (ou não), entende-se que aquele despacho/decisão transitou, sendo extemporâneo o recurso.
4.4. Além disso entende-se que da decisão constam as datas a partir das quais são devidos juros de mora, sendo a taxa de juro a que estiver em vigor a cada momento.
É o que se depreende da expressão “ou da que sucessivamente estiver em vigor”.
Entende-se que a sentença se encontrava correcta/inteligível desde início (com a eventual ressalva da menção de 4%), pois, por extenso refere a sentença que se deverá aplicar a taxa de juro em vigor no momento em que são devidos juros de mora e a partindo dessa data, aplicando a taxa que sucessivamente estiver em vigor.

Pelo que, quer porque transitou em julgado a decisão, sendo extemporâneo o recurso dela interposto, quer porque do ponto de vista material, se lapso havia era o da referência à taxa de juro de 4% apenas, estando correcta a decisão que remete para a taxa de juro que, a cada momento estiver em vigor, deverá negar-se provimento ao recurso e ser mantido o despacho/decisão recorrido, por se afigurar que está correcto e em consonância com a douta sentença.”
*
Notificadas deste parecer, as partes nada vieram dizer.
*
Tendo o recorrido aventado a questão da inadmissibilidade do recurso, foi ouvida a recorrente nos termos do disposto no art. 655º, nº2 do C.P.Civil, tendo a mesma vindo dizer que o recurso é tempestivo, pois foi interposto do despacho proferido em 10.10.2023, cuja notificação foi certificada em 16.10.2013, pelo que o prazo só terminaria em 3.11.2023, sendo tal despacho passível de recurso porque o tribunal se pronunciou de novo sobre a questão aderindo aos argumentos expendidos do Ministério Público, não se limitou a manter o despacho de 7.9.2023.
*
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

Questão prévia – Admissibilidade do recurso /recorribilidade do despacho

O sinistrado e o Ministério Público sustentam que a questão objecto de recurso, foi julgada pelo despacho proferido em 7.9.2023, do qual a R. não interpôs recurso pelo que deve considerar-se a decisão proferida como definitiva e insusceptível de recurso ordinário, porquanto o requerimento a apresentado em 21.9.2023 não tem a virtualidade de suspender o prazo de recurso.
Vejamos
As incidências fáctico-processuais relevantes são as constantes do antecedente relatório.
Na verdade, caso o sinistrado tivesse notificado a Ré do requerimento que apresentou em 10.7.2023, a invocar o erro no cálculo dos juros, tendo esta tido a oportunidade de se pronunciar sobre a questão antes de ser proferido o despacho de 7.9.2023, teria que ter recorrido de tal despacho, sob pena da decisão se tornar definitiva, transitando em julgado.
Porém, o que verificamos é que o sinistrado não notificou a Ré do requerimento que apresentou e o Tribunal decidiu sem o exercício prévio do contraditório, que se impunha nos termos do disposto no art. 3º, nº3 do C.P.Civil.
E notificada do despacho proferido a R. mediante requerimento de 21.9.2023 invocou tal omissão, que consubstancia uma nulidade processual, e pronunciando-se sobre a questão, sustentou que a alteração pretendida pelo sinistrado, alteração da taxa de juro de 4% para 7% até 1.5.2003, não constituía a rectificação de um erro material enquadrável no art. 614º do C.P.Civil, sendo inadmissível por se mostrar esgotado o poder jurisdicional do tribunal e violar o caso julgado.
Face a tal requerimento, depois de ouvidos o Ministério Público e o Sinistrado, o Tribunal proferiu novo despacho sustentando, em suma, que a taxa de juros decorre de critério legal, não sendo fixada por entendimento discricionário do Tribunal, e aderindo aos argumentos do Ministério Público, manteve a decisão anterior.
Como se vê, o Tribunal não se limitou a remeter para o despacho anterior, ponderou a posição da Ré, suprindo a omissão verificada, e proferiu uma nova decisão.
E consubstanciando o despacho de 10.10.2023 uma nova decisão, na qual o Tribunal acompanhando a promoção do Ministério Público desatendeu os argumentos da Ré, mantendo o teor da decisão anterior, não temos dúvidas de que tal despacho é recorrível, sendo o recurso interposto pela R. em 2.11.2023 legal e tempestivo, pelo que se conhecerá do mesmo.

II. Delimitação do objecto do recurso / Questões a decidir

Como decorre do disposto nas disposições legais conjugadas dos artigos 635º, nº 3 e 4, 637º, nº 2, 1ª parte, 639º, nºs 1 a 3 do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, aquilo que importa apreciar e decidir é:
- Saber se o tribunal recorrido errou ao deferir o requerimento do sinistrado, determinando que o cálculo dos juros devia ser efectuado à taxa de 7% até 1.5.2003, não obstante a sentença referir 4%, considerando tratar-se de um lapso de cálculo, susceptível de rectificação, nos termos do art. 614º do C.P.Civil, que não envolve violação do caso julgado.

III. Fundamentação

- De Facto

Com interesse para a apreciação do recurso relevam os factos elencados no relatório, designadamente o teor da sentença proferida em 20.09.2021 e a tramitação subsequente.

1. No dispositivo da sentença consta: “Termos em que julgo a presente ação procedente e, em consequência, condeno, com efeitos a partir de 21/10/2000 (dia seguinte ao da alta), o Réu A..., S.A.D. a pagar ao Autor:
- o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia, no montante de €1.122,30 (mil, cento e vinte e dois euros e trinta cêntimos), no valor de €19.613,31 (dezanove mil, seiscentos e treze euros e trinta e um cêntimos) acrescido de juros de mora à taxa legal anual de 4%, ou da que sucessivamente estiver em vigor, contados desde o dia seguinte ao da alta, até integral pagamento, que perfazem na presente data a quantia de €16.423,50 (dezasseis mil, quatrocentos e vinte e três euros e cinquenta e nove cêntimos);
- a quantia de €39.357,20 (trinta e nove mil, trezentos e cinquenta e sete euros e vinte cêntimos), a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta (320 dias) e de proporcionais de subsidio de Natal e férias, acrescida de juros de mora à taxa legal anual de 4%, ou da que sucessivamente estiver em vigor, contados desde o dia do último acidente, até integral pagamento, que perfazem na presente data a quantia de €33.012,60 (trinta e três mil e doze euros e sessenta cêntimos).

Custas, nesta parte, a cargo do Réu A..., S.A.D., encontrando-se as custas a cargo da Ré Seguradora já fixadas em sentença anterior.
Valor da ação para efeitos de custas: €58.970,51 nos termos do artigo 120.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e da Portaria nº 11/2000, de 13/01.
Oportunamente, vão os autos ao Ministério Público, nos termos e para os fins dos artigos 148.º n.ºs 3 e 4, "ex vi" do artigo 149.º, todos do Código de Processo do Trabalho.
Registe e notifique.”

2. Na fundamentação a única menção aos juros consta no último parágrafo, após o cálculo do capital de remição e da indemnização pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho, onde se lê: “A estas quantias acrescem juros de mora, calculados à taxa legal de 4% ao ano – cfr. art.º 135.º do CPT, e art.s 805.º, n.º 3 e 806.º, n.s 1 e 2 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 08/04.”

3. Autor e a Ré, interpuseram recurso não tendo nenhuma das partes suscitado qualquer questão no que concerne à condenação relativa aos juros.

4. Ambos os recursos foram julgados improcedentes por acórdão desta Relação proferido em 3.10.2022, que confirmou integralmente a sentença recorrida.

5. A Ré interpôs recurso de revista excepcional, que não foi admitiu por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça prolatado em 29.3.2023.

- De Direito

Face a estes factos é inquestionável que a sentença transitou em julgado nos precisos termos em que foi proferida.
E o que importar saber é se o Tribunal de primeira instância violou, como sustenta a recorrente, o caso julgado ao deferir o requerimento posterior do sinistrado de alteração da taxa de cálculo dos juros de mora de 4% para 7% até 1.5.2003.
O trânsito em julgado, conforme decorre claramente do art.º 628.º do CPC, ocorre quando uma decisão é já insusceptível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário. Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado, que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.
Quer o sinistrado, quer o Tribunal entenderam que tal alteração era admissível ao abrigo do art. 614º do C.P.Civil, considerando-se tratar-se da retificação de um erro material, que não acarretava violação do caso julgado.
Vejamos
No art. 613º, com a epígrafe “Extinção do poder jurisdicional e suas limitações” lê-se:
1. Proferida a sentença,fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto á matéria da causa.
2. É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidade e reformar a sentença nos termos dos artigos seguintes.
3. O disposto nos números anteriores, bem como nos subsequentes, aplica-se com as necessárias adaptações aos despachos

E o artigo 614.º do CPC, com a epígrafe “Retificação de erros materiais” preceitua:
1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.

Como flui dos nºs 2 e 3 o erro de escrita ou de cálculo, se for manifesto, é susceptível de correcção, por simples despacho, oficiosamente pelo próprio juiz ou a requerimento das partes.
Os erros materiais susceptíveis de rectificação são aqueles que se enquadram na disciplina do art.º 249.º do Código Civil, a propósito dos negócios jurídicos, ai se dispondo o seguinte: “O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”.
A admissibilidade da rectificação destes erros explica-se pelo facto de se tratar de alterações que não modificam o que foi decidido.
E tal retificação, oficiosa ou a requerimento das partes, em caso de recurso, só pode ter lugar antes da subida do recurso. Inexistindo recurso, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.

A propósito deste último normativo, elucida o Ac. do STJ de 06-10-1994: “I. O erro de cálculo, o erro de escrita e o erro de expressão são modalidades de erro obstáculo ou erro na declaração, caracterizando-se por a vontade do declarante se formar correctamente, com perfeito conhecimento de todas as circunstâncias susceptíveis de influirem na sua formação, sucedendo que, ao transmitir-se a vontade se diz coisa diferente da que se quer dizer, representando um erro que acontece na formulação da vontade. II. A inexactidão em que se traduz o erro de cálculo tem que revelar-se pelo teor da declaração emitida, (..)”- [ Proc.º n.º 085562, Conselheiro Costa Raposo, disponível em www.dgsi.pt.]
E, mais recentemente, o STJ reiterou tal entendimento, no Ac. de 10-02-2022, assim sumariado: .
I. Os erros materiais da decisão, a que se alude no artº 614º/1 do CPC, têm lugar quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever.
II. Tal divergência deve ressaltar, de forma clara e ostensiva, do teor da própria decisão, só desta, do seu contexto ou estrutura, sendo possível aferir se ocorreu ou não esse erro. Ou seja, é o próprio texto da decisão que há-de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão.
III. Há que não confundir o erro material da decisão com o erro de julgamento: naquele, o juiz escreveu coisa diversa da que queria escrever, não coincidindo o teor da sentença ou despacho com o que o juiz tinha em mente exarar (em suma, a vontade declarada diverge da vontade real); neste, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados.
IV. O erro material da decisão é passível de rectificação, nos termos do artº 614º, nº 1, CPC; já no erro de julgamento não pode o juiz socorrer-se deste preceito para o rectificar. Só em vias de recurso tal é possível.
V. Não decorrendo da decisão proferida a existência de um erro ou lapso evidente, ostensivo ou manifesto (ou seja, que resulte de forma clara da mera leitura da decisão ou dos termos que a precederam), não pode a mesma ser simplesmente rectificada, dado tal importar uma alteração substancial ao conteúdo da decisão.
VI. O mesmo é dizer que tal modificação traduz manifesta alteração do julgado, que não é admissível. Pelo que, não se estando perante um erro material, aquela sentença, devidamente transitada em julgado, não pode ser ulteriormente alterada ou modificada, dada a formação do caso julgado (artº 613º, nº 1 CPC). (..)”[ Proc.529/17.1T8AVV-A.G1.S1, Conselheiro Fernando Baptista, disponível em www.dgsi.pt]

Na mesma linha, vide o Ac. desta Relação do Porto de 16.1.2024, Proc. 1248/20.7T8GDM.P1 (Alberto Taveira) e o Ac. desta Secção Social de 14.7.2021, Proc. 1106/11.6T4AVR.P1 (Jerónimo Freitas)

Volvendo-nos agora para o caso subjudice, importa notar que não foi efectuada oficiosamente, nem requerida qualquer rectificação da sentença antes da subida do recurso, nem a questão dos juros foi objecto do recurso, tendo a sentença transitado em julgado nos precisos termos em que foi proferida após a rejeição do recurso de revista excepcional por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça prolatado em 29.3.2023.

Mas atentemos no teor da sentença, a fim de aferirmos se a mesma padece de erro material manifesto ou ostensivo nos termos explicitados.
A Mmª Juíza a quo na sequência da asserção feita no último parágrafo da fundamentação, onde escreveu que às quantias apuradas a título de capital de remição e indemnização pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho, acresciam juros de mora, calculados à taxa legal de 4% ao ano – cfr. art.º 135.º do CPT, e art.s 805.º, n.º 3 e 806.º, n.s 1 e 2 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 08/04.”, no dispositivo determinou:
[“julgo a presente ação procedente e, em consequência, condeno, com efeitos a partir de 21/10/2000 (dia seguinte ao da alta), o Réu A..., S.A.D. a pagar ao Autor:
- o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia, no montante de €1.122,30 (mil, cento e vinte e dois euros e trinta cêntimos), no valor de €19.613,31 (dezanove mil, seiscentos e treze euros e trinta e um cêntimos) acrescido de juros de mora à taxa legal anual de 4%, ou da que sucessivamente estiver em vigor, contados desde o dia seguinte ao da alta, até integral pagamento, que perfazem na presente data a quantia de €16.423,50 (dezasseis mil, quatrocentos e vinte e três euros e cinquenta e nove cêntimos);
- a quantia de €39.357,20 (trinta e nove mil, trezentos e cinquenta e sete euros e vinte cêntimos), a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta (320 dias) e de proporcionais de subsidio de Natal e férias, acrescida de juros de mora à taxa legal anual de 4%, ou da que sucessivamente estiver em vigor, contados desde o dia do último acidente, até integral pagamento, que perfazem na presente data a quantia de €33.012,60 (trinta e três mil e doze euros e sessenta cêntimos).

Com já ficou dito, na esteira do ensinamento de Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 130, não há que confundir o erro material da decisão com o erro de julgamento: naquele, o juiz escreveu coisa diversa da que queria escrever, não coincidindo o teor da sentença ou despacho, do que que se escreveu, com o que o juiz tinha em mente exarar (quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real); neste, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra factos apurados.

Ora, lendo a parte da fundamentação da sentença no que respeita aos juros de mora e o respectivo dispositivo, salvo o devido respeito por diverso entendimento, não se detecta qualquer divergência entre a vontade real e a vontade declarada pela julgadora a quo.
Tendo afirmado na fundamentação que eram devidos juros de mora, à taxa legal de 4%, nos termos da Portaria n.º 291/03, de 08/04, no dispositivo condenou a Ré nos montantes apurados a título de capital de remição e indemnização e nos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, calculando os vencidos até à data da sentença à referida taxa anual de 4%, como dissera, inexistindo qualquer erro de cálculo ou de escrita evidenciado pelo próprio texto.
É manifesto que a remissão para outra taxa legal que sucessivamente estiver em vigor, é feita somente para os juros vincendos a partir da data da sentença até integral pagamento.
Destarte, ao invés do sustentado pelo sinistrado e pelo Ministério Público, entendemos que a sentença não apresenta qualquer erro material susceptível de rectificação, nos termos do art. 614º do C.P.Civil.
A Mma Juíza a quo incorreu foi num erro na determinação da norma aplicável, pois considerou que era aplicável a todo o período de juros de mora vencidos até à data da sentença a taxa de 4%, fixada pela Portaria 291/03 de 8.4, quando até 1.5.2003 esteve em vigor a Portaria 263/99 de 12.4 que fixava a taxa dos juros de mora em 7%.
Trata-se não de erro material revelado pelo próprio texto da sentença, mas de erro de julgamento e os erros de julgamento, com excepção das situações previstas no nº2 do art.616º do C.P.Civil, só podem ser invocados e corrigidos em sede de recurso.
Cremos que o erro ocorrido terá resultado de manifesto lapso da Mma Juíza a quo, a que não será alheio o facto do vencimento das quantias em causa remontar ao ano 2000, o que não é habitual, pois, na generalidade dos processos, aplica-se a taxa de 4% fixada pela Portaria 291/03 em vigor desde 1.5.2003.
E sendo um erro de julgamento decorrente de manifesto lapso na determinação da norma aplicável, caso a sentença não admitisse recurso, o Autor podia ter requererido a respectiva reforma nessa parte, nos termos previstos no art. 616º, nº2. al.a) do C.P.Civil.
No entanto, como referem Lebre de Freitas e Isabel, Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2ª, 4ª ed, pág 742: “A expressão manifesto lapso, não tem, no nº2 do art. 616º, o mesmo alcance e significado que no art. 614-1(inexactidões devidas a lapso manifesto): não se trata já de erros revelados pelo próprio contexto da sentença ou das peças do processo para que ela remete, nem de omissões sem consequência no conteúdo da decisão, mas de erro revelado por recurso a elementos que lhe são exteriores.”

Sucede que a sentença admitia e foi objecto de recurso, inclusive por parte do A., que no recurso não suscitou qualquer questão relativa aos juros.
Assim sendo, tendo a sentença transitado em julgado nos precisos termos em que foi proferida, após a rejeição do recurso de revista excepcional, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça prolatado em 29.3.2023, tornou-se imodificável e o despacho do tribunal a quo que alterou a taxa dos juros moratórios na mesma fixada violou o princípio da extinção do poder jurisdicional consagrado no art. 613º do C.P.Civil e o caso julgado e não pode subsistir, sob pena de ser posto em causa o princípio da segurança jurídica.
É controversa a classificação do vício de que enfermam tais decisões.
O Prof. Alberto dos Reis, in ob. cit., págs 118-121, refere que o Prof. Paulo Cunha dava como exemplo de sentença inexistente a sentença contraditória com outra proferida em primeiro lugar, mas discorda de tal posição, reservando a sanção da inexistência jurídica da sentença para aquelas situações em que o acto é praticado por pessoa que não se encontra investida de poder jurisdicional. Afasta tal consequência no caso de terem sido proferidas duas sentenças (ou despachos) sucessivas e contraditórias. Neste caso, fazendo apelo ao disposto no art.º 675.º (a que corresponde agora o já citado art.º 625.º, que consagra a mesma solução), conclui que ambas têm existência jurídica, ficando paralisada a eficácia da que passou em julgado em segundo lugar. Mas se assim considera no caso de estarmos perante duas decisões transitadas em julgado, já nada diz quando o vício da violação do princípio da extinção do poder jurisdicional seja invocado antes do trânsito em julgado de qualquer uma delas. Parece-nos, no entanto, que a sanção deverá ser, a ineficácia da decisão modificativa.
De todo o modo, e em conclusão, seja pela via da inexistência jurídica, seja por via da mera ineficácia, dúvidas não restam de que a decisão modificativa proferida em violação do princípio da extinção do poder jurisdicional do juiz consagrado no artigo 613.º do CPC e de sentença anterior transitada em julgado, não produz quaisquer efeitos jurídicos.
Em suma, resta concluir pela procedência do recurso.

IV. Decisão

Em face do exposto, as Juízas da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, acordam em julgar procedente a apelação da recorrente, declarando que o despacho impugnado não produz quaisquer efeitos jurídicos e que a sentença proferida em 20.9.2021, transitada em julgado, deve ser cumprida nos seus precisos termos.

Custas a cargo do recorrido – art. 526º, nº 1 e 2 do C.P.Civil.
Notifique
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Porto, 10 de Julho de 2024
As Juízas Desembargadoras
Eugénia Pedro
Teresa Sá Lopes
Rita Romeira