INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
ADMINISTRADOR
GERENTE
Sumário

I - O incidente de Qualificação de Insolvência, constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor.
II - A verificação de alguma das situações previstas no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE faz presumir, de forma inilidível a culpabilidade na insolvência.
III - Da previsão do art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE resulta que não foi objetivo do legislador excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto da qualificação da insolvência como culposa, mas sim estendê-la a atos praticados por administradores de facto.
IV - A circunstância de a gerente de direito não exercer, de facto, tais funções, que eram desempenhadas por uma outra pessoa, não a isentava das suas obrigações legais, enquanto gerente de direito.
V - O alheamento da gerente de direito relativamente aos destinos da sociedade constitui, por si só, violação dos deveres gerais que se lhe impunham nessa qualidade.

Texto Integral

Proc. n.º 3377/20.8T8STS-A
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto -Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 3

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízas Desembargadores Adjuntas:

Lina Castro Baptista

Anabela Dias da Silva

SUMÁRIO:

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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

No processo n.º 3377/22.8T8STS relativamente aos quais os presentes autos correm por apenso, foi declarada a insolvência de A... UNIPESSOAL, LDA..

A Sra. AI veio apresentar parecer no sentido de qualificar com culpa aquela insolvência.

Requereu que os seus gerentes AA e BB fossem declarados afetados com a qualificação culposa da insolvência.

Para o efeito alegou que, pese embora não conste da certidão permanente da sociedade como gerente, o marido da insolvente – BB – exerceu/exerce funções de gerência de facto da sociedade.

À data da declaração da insolvência, não foi detetada qualquer atividade, facto que foi confirmado pela gerente da insolvente.

Não foram localizados quaisquer bens na esfera patrimonial da insolvente.

A insolvente tem registado na contabilidade um ativo superior ao passivo, do qual resulta um capital próprio de € 107.126,73, no ano de 2019, a rúbrica de ativos fixos tangíveis apresenta, no ano de 2019, um valor de € 36.492,55; do mapa de depreciações e amortizações da sociedade indica que esta dispõe de bens; encontra registado na rúbrica de investimentos em curso o valor de € 40.017,55, tendo sido esclarecido pelo contabilista certificado da sociedade que se trata de ferro (tubos e barras) adquiridos pela insolvente tendo em vista a construção de grades separadoras, bancadas e palcos.

Em 08/07/2021, foram enviadas comunicações à gerente de direito e ao gerente de facto, com vista à obtenção de informação sobre a localização de tais bens, o que não foi conseguido.

A rúbrica de clientes apresenta valores significativos no período em análise, a saber: € 13.863,32, em 2017, € 43.132,40, em 2018, €32.951,65, em 2019, e € 21.693,50, em 2020, mas contactado o maior devedor, CC – Rep. Publicidade e Produções, no valor de €7.380,00, o mesmo esclareceu, em 07/07/2021, que já procedeu ao pagamento do valor em dívida em numerário junto do gerente de facto BB, com conhecimento da gerente de direito.

Assim os saldos em causa encontram-se desatualizados em virtude da falta de atualização da contabilidade.

A conta de caixa e depósitos bancários apresenta um saldo de €13.557,83, no ano de 2017, de €8.136,47 no ano de 2018, de €30.298,94 no ano de 2019 e de €26.556,90, no ano de 2020 e tendo sido pedido aos gerentes informação sobre o paradeiro deste valor, as conta titulada pela insolvente na Banco 1... com o n.º ...68....0....14-2 apresenta um saldo atual de €129,78, sendo que a gerente de direito da sociedade não prestou, até à data, informações solicitadas na comunicação remetida em 08/07/2021.

Da análise do extrato bancário facultado pelo Banco 1..., S.A. da conta titulada pela insolvente, com o n.º ...68....0....14-2, por referência ao período compreendido entre 01/01/2020 e 14/07/2021, verifica-se que foram efetuados levantamentos em numerário/levantamentos de cheques no montante global de € 16.774,28, transferências à ordem da sociedade detida pelo gerente de facto da insolvente num total de € 4.434,53 (€ 4.872,53 – €438,00), transferência à ordem de conta pessoal da gerente da insolvente no valor de € 400,00 e pagamentos de compras em supermercados e restauração no valor de cerca de € 3.785,74, sendo que após as mencionadas movimentações, em 02/07/2021, a conta bancária em causa apresentava um saldo residual de €129,78 e um passivo da insolvente que ascendeu no ano de 2019 a € 11.889,37

A sociedade não se apresentou à insolvência, tendo a mesma sido requerida pelo trabalhador DD, em 11/12/2020.

Conclui verificar-se a situação prevista no art. 186.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) do CIRE.

Foi declarado aberto o incidente.

O Ministério Público conclui pela qualificação culposa, subscrevendo a factualidade alegada pelos credores e concluindo pela verificação de situações contempladas no art. art. 186.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a), d) e f) e n.º 3, alínea a) do CIRE.

A requerida AA apresentou oposição, alegando nunca ter sido gerente de fato uma vez que o gerente foi efetivamente o seu ex-marido. Percebeu que este último deixou de fazer os pagamentos devidos à Segurança Social pela sociedade insolvente, com o intuito de a prejudicar, referindo que tudo era tratado com este, que geria o negócio dos palcos através de uma ou outra sociedade, consoante o que lhe fosse mais favorável contabilisticamente.

Concluiu que a Oponente não reunia as condições necessárias para declarar a sociedade insolvente “voluntariamente”, pois desconhecia o exato ativo e passivo existente, uma vez que o gerente de facto era quem detinha todas as informações da já identificada sociedade, estando este presente em todos os atos empresariais desta.

O requerido BB veio invocar a ausência de qualquer culpa ou responsabilidade na situação de insolvência da devedora uma vez que nunca se considerou ou sentiu-se como um gerente de facto da devedora insolvente, apenas acompanhava a atividade da empresa da sua mulher, por que era casado com esta.

O oponente está seguro que em nada contribuiu para a situação de insolvência da devedora, não afetou, não criou e não agravou a situação de insolvência, pelo que a mesma não deve ser qualificada como culposa e este responsabilizado.

Foi dispensada a audiência prévia e foi proferido o Despacho-Saneador, e foi fixado o objeto do litígio e os temas de prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e, no final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“Em face do atrás exposto, decide-se julgar procedente, por provado, o incidente da qualificação e em consequência:

A. Qualifica-se como culposa a insolvência de A... UNIPESSOAL, LDA..

B. Considera-se afetados pela qualificação culposa AA e BB;

C. Fixa-se aos afetadas AA e BB, a sanção de inibição para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, prevista na alínea c) do n.º 2 do art.º 189º do CIRE, a qual, atendendo ao circunstancialismo apurado se fixa em três e seis anos, respetivamente;

D. Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pela AA e BB pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

E. Condena-se os requeridos AA e BB, a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, no valor de € 15.105,78.

F. Determina-se o registo nos termos e para os efeitos consignados no art. 189º, nº 3 do CIRE.

Custas pelos requeridos.”

Inconformada, AA, ... veio interpor o presente recurso de APELAÇÃO, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“a) A decisão recorrida padece de nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, pelo facto de existirem fundamentos que apontam num caminho diverso ao que foi decidido, além de a sentença recorrida ter considerado provados factos contraditórios entre si, nomeadamente os factos E), Q), T), U), V) e W);

b) Se por um lado a sentença recorrida assume que a gestão da insolvente era realizada pelo gerente de facto – conjuntamente com o contabilista -,considerando como convincentes, e verdadeiras, as declarações prestadas pela Recorrente, por outro, a final, profere uma decisão diversa, acabando a Recorrente por se ver afetada pela qualificação da insolvência como culposa;

c) A Recorrente não se conforma com a decisão proferida, por entender que a mesma não valorou, ou valorou erradamente, os elementos probatórios existentes nos autos, e que orientavam a sentença num sentido oposto;

d) Desde logo, a Recorrente considera que a sentença recorrida não valorou e / ou apreciou de forma correta os depoimentos da Recorrente, do gerente de facto e das respetivas testemunhas, além da prova documental que a Recorrente juntou com a sua oposição, integrando, por isso, nos termos dos artigos 640.º e 662.º o CPC, erro de julgamento da matéria de facto;

e) A Recorrente limitava-se a assinar os documentos pré-elaborados, sendo o gerente de facto quem efetivamente geria a sociedade insolvente, tal como se provou pelos depoimentos das testemunhas EE, FF, e pelo depoimento da própria Recorrente e do gerente de facto;

f) De toda a prova produzida, inclusive com os documentos n.º 18 a 22, juntos com a Oposição, e documento n.º 1, junto com o Requerimento apresentado em 28 de Novembro de 2022, resultou provado que o gerente de facto era quem lidava com os pagamentos a receber dos clientes, quem efetuava os pagamentos os salários aos trabalhadores, e pagava à Autoridade Tributária e Segurança Social, o que equivale a dizer que era este quem tomava todas as decisões;

g) O gerente de facto apresentava-se como sendo o gerente da sociedade insolvente, a todos os clientes e, inclusive, nos sites e páginas de Facebook;

h) Por via disso, os factos E) e Q), dos factos dados como provados, mostram-se incorretamente julgados:

a. O Facto E) deverá passar ter a seguinte redação:

“E. E. Apesar da situação descrita em D., BB estava habitualmente presente no dia-a-dia empresarial da insolvente e todas as decisões na atividade empresarial da insolvente eram sempre tomadas com o seu prévio responsável prévio conhecimento e concordância, sendo ele, nomeadamente, o responsável, pelas decisões sobre a gestão da insolvente, sendo ele quem tomava as decisões de gestão, incluindo as relativas aos pagamentos bem como as relações com clientes e/ou fornecedores, trabalhadores, fornecedores e credores em geral.

Eliminando-se o seguinte: “conjuntamente com a gerente de direito (...) sendo eles quem tomavam as decisões de gestão, incluindo as relativas aos pagamentos bem como as relações com clientes e/ou fornecedores, trabalhadores, fornecedores e credores em geral”.

b. O Facto Q) deve passar para a esfera dos factos não provados.

i) Da prova produzida resultou ainda evidente que o material inserido na contabilidade foi ocultado pelo gerente de facto, uma vez que este é gerente de facto e de direito da sociedade “B..., Lda.”, com o mesmo objeto social da sociedade insolvente, e sede, mostrando-se ainda assente que o material era utilizado pelas duas sociedades – algo que a Senhora Administradora de Insolvência, acabou por confirmar;

j) O gerente de facto continuou com a sua atividade – contrariamente à Recorrente -, sendo muito difícil identificar um palco desmontado, pois o mesmo aparenta ser um “conjunto de grades”;

k) Assim, também o facto 7. dos factos dados como não provados, face a prova produzida, encontra-se incorretamente julgado, razão pela qual deverá passar a constar da esfera de factos provados;

l) Como se demonstrou provado, através de toda a prova documental junta, e respetivos depoimentos das testemunhas, da Recorrente e o gerente de facto, toda a gestão da sociedade insolvente era feita pelo gerente de facto;

m) Sendo certo que, o gerente de facto era quem efetuava os pagamentos devidos aos trabalhadores e ao Estado;

n) Além disso, o gerente de facto, em conjunto com o contabilista, era quem tratava de toda a documentação contabilística necessária, tanto que, a Recorrente, após divórcio, tentou requerer a respetiva documentação e senhas do “TOC”, do portal das finanças e segurança social, junto do contabilista, sendo certo que, este último, se recusou a fornecer – facto que se demonstrou provado em V. e X.

o) O facto 8. encontra-se, também ele, incorretamente julgamento, face à prova produzida, devendo passar a constar da esfera de factos provados;

p) Do depoimento da Recorrente, e dos documentos n.º 7 a 13, juntos com a Oposição, será forçoso concluir que, efetivamente, o gerente de facto se socorreu do trabalhador DD, para requerer a insolvência da sociedade;

q) Assim, também o facto 9. se encontra incorretamente julgado, devendo, ao invés, passar para a esfera de factos provados;

r) Os artigos 186.º e 189.º do CIRE foram incorretamente interpretados, pois no entender da Recorrente, as referidas normas, em conjunto com toda a prova produzida, deveriam ter sido entendidas e interpretadas num outro sentido;

s) O legislador ao incluir nos 186.º e 189.º do CIRE, a conjunção alternativa “ou”, isto é, ou o gerente de direito “ou” o gerente de facto, podem ser abrangidos pela qualificação da insolvência como culposa, quis retratar situações como a dos presentes autos, ou seja, poder responsabilizar apenas e tão só os gerentes de facto que têm uma gestão efetiva da sociedade insolvente, sem que, para tanto, tenham de ser afetados pela qualificação da insolvência, os gerentes de direito que assumem uma posição passiva e se limitam a assinar;

t) Por via do exposto, a Recorrente deverá ser absolvida da afetação da qualificação da insolvência como culposa, e restantes sanções aplicadas.

TERMOS EM QUE, SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS., DEVE A PRESENTE APELAÇÃO SER JULGADA PROCEDENTE, POR PROVADA, E, EM CONSEQUÊNCIA:

A - SEJA DECLARADA NULA A SENTENÇA, POR PADECER DA D A NULIDADE PREVISTA NO ARTIGO 615.º N.º 1 C); E,

B - DEVERÁ DEVER Á SER SUBSTITUÍDA A SENTENÇA, POR UMA OUTRA, QUE DÊ COMO PROVADO A NOVA REDAÇÃO PARA O FACTO “E.”, O FACTO 7., O FACTO 8., E O FACTO 9., E COMO NÃO N ÃO PROVADO O FACTO “Q”; E,

C - DEVERÁ DEVER Á SER SUBSTITUÍDA A SENTENÇA, POR UMA OUTRA QUE ABSOLVA A RECORRENTE DA AFETAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA.”

BB, veio apresentar as suas CONTRA ALEGAÇÕES, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo:

“1ª-A sentença proferida pelo tribunal a quo não padece de qualquer nulidade – contradição entre os factos provados – nem de qualquer erro de julgamento da matéria de facto.

2ª -A recorrente nunca poderia ser afastada da alçada do nº1 do artigo 186º do CIRE.

3ª-A gerente de direito, ora recorrente, agiu por opção própria, intencional e conscientemente (dolosamente) no desfecho da sociedade insolvente.

4ª -Não foi feita qualquer prova, relativamente a qualquer vício de vontade suscetível de afastar a validade dos atos praticados pela, ora, recorrente.

5ª -A sentença, ora recorrida, encontra-se corretamente fundamentada, coerente e assertiva, sendo a condenação da recorrente expectável.”

O MINISTÉRIO PÚBLICO, também veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo que “Em face dos fatos dados como provados, resulta que a conduta da administradora de direito ao “dar o seu nome” para a constituição da empresa insolvente, permitindo a gestão de fato, com o seu conhecimento, foi também causadora da situação de insolvência da empresa, que a dada altura deixou de cumprir as suas obrigações vencidas, não podendo deixar de se considerar a mesma culposa

O recurso foi admitido como apelação com efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a dirimir, delimitadas pelas conclusões do recurso são as seguintes:

- Nulidade da sentença,

- Modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação;

- Saber se a Recorrente, enquanto gerente de direito, não deve ser afetada pela qualificação da insolvência, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 198º do CIRE.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença foram julgados provados os seguintes factos:

A. A insolvente é uma sociedade por quotas constituída em setembro de 2017, com sede registada na Rua ..., ..., ... ... e dedicou-se à atividade de montagem e Aluguer de palcos e bancadas e outras atividades ligadas ao espetáculo.

B. À data da declaração da insolvência, a insolvente tinha a sua sede registada na habitação da sócia gerente.

C. A insolvência foi requerida pelo trabalhador DD, residente na Rua ..., ... ..., com NIF ...80, tendo sido proferida sentença, já transitada em julgado, que decretou a respetiva insolvência em 19 de maio de 2021.

D. À data da declaração da insolvência constava inscrita no registo comercial como gerente da insolvente AA, contribuinte fiscal número ...30 e residência na Rua ..., ..., ..., ... ....

E. Apesar da situação descrita em D., BB estava habitualmente presente no dia-a-dia empresarial da insolvente e todas as decisões na atividade empresarial da insolvente eram sempre tomadas com o seu prévio conhecimento e concordância, sendo ele, nomeadamente, o responsável, conjuntamente com a gerente de direito da sociedade, pelas decisões sobre a gestão da insolvente, sendo eles quem tomavam as decisões de gestão, incluindo as relativas aos pagamentos bem como as relações com clientes e/ou fornecedores, trabalhadores, fornecedores e credores em geral.

F. O cliente CC informou que procedeu ao pagamento da quantia de € 7.380,00 a BB, em numerário, com conhecimento da mulher/gerente de direito da insolvente.

G. Tendo por base os elementos facultados pela insolvente, desde a data da sua constituição, a sociedade dedicou-se à atividade de montagem e Aluguer de palcos e bancadas e outras atividades ligadas ao espetáculo, encontrando-se inscrita junto da AT com o CAE 93294-R3 – Outras atividades de diversão e recreativas, n.e..

H. Da análise à informação contabilística disponível da sociedade constata-se que a insolvente apresenta os seguintes valores:

1. vendas de montantes crescentes até ao ano de 2019, sendo de referir que o sector de atividade da mesma – eventos e espetáculos – foi dos primeiros a encerrar em março de 2020 devido à pandemia - cfr. IES dos anos de 2017, 2018 e 2019.

2. as rúbricas correspondentes à classe de gastos e perdas apresentam valores crescentes até 2019, mas sempre de montantes inferiores ao volume de negócios, situação que se reverteu em 2020.

3. os resultados líquidos referentes aos exercícios económicos de 2017, 2018 e 2019 foram positivos.

4. tem registado na contabilidade um ativo superior ao passivo, do qual resulta um capital próprio de € 107.126,73, no ano de 2019.

5. a rúbrica de ativos fixos tangíveis apresenta, no ano de 2019, um valor de €36.492,55.

6. o mapa de depreciações e amortizações da sociedade indica que esta dispõe dos seguintes bens: cadeiras; reboque Krone BDF Open Laadb; palco Orbital 10x9.

7. encontra registado na rúbrica de investimentos em curso o valor de € 40.017,55, tendo sido esclarecido pelo contabilista certificado da sociedade que se trata de ferro (tubos e barras) adquiridos pela insolvente tendo em vista a construção de grades separadoras, bancadas e palcos.

8. A conta de caixa e depósitos bancários apresenta um saldo de €13.557,83, no ano de 2017, de € 8.136,47 no ano de 2018, de €30.298,94 no ano de 2019 e de € 26.556,90, no ano de 2020.

9. A conta titulada pela insolvente na Banco 1... com o n.º ...68....0....14-2 apresenta um saldo atual de € 129,78.

10. O passivo da insolvente ascendeu no ano de 2019 a €11.889,37.

I. Em 08/07/2021, foram enviadas comunicações à gerente de direito e ao gerente de facto, por carta registada com aviso de receção, com vista à obtenção de informação sobre a localização de tais bens, sendo que, na hipótese da sua disposição, a que título tal disposição ocorreu e quem foi o beneficiário, entregando para o efeito os documentos comprovativos da transferência de propriedade, cópia dos meios de pagamento e conta bancária onde foram depositados.

J. Nas referidas missivas foi feita a advertência que a obrigação de colaboração e de fornecer todas as informações relevantes para o processo é aplicável aos gerentes de direito e de facto do devedor e a todas as pessoas que tenham desempenhado esse cargo dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (art. 83º, n.º 4 do CIRE) assim como a empregados e prestadores de serviços (art. 83º, n.º 5 do CIRE) e que a falta de colaboração na entrega de documentos e dos esclarecimentos solicitados é fundamento objetivo para a qualificação da insolvência como culposa

K. As mencionadas comunicações foram rececionadas pelos respetivos destinatários em 13/07/2021 e 14/07/2021, respetivamente e em resposta, BB transmitiu que desconhece a sua existência, sendo que só a gerente AA poderia prestar os esclarecimentos pretendidos, uma vez que terá ficado com tudo, sendo que o gerente de direito da sociedade não prestou, até à data, as informações solicitadas na comunicação remetida em 08/07/2021. Apenas transmitiu, em momento anterior à elaboração do relatório a que alude o art. 155º CIRE, mais precisamente em 31/05/2021 e 17/06/2021 – por via telefónica, que os bens da sociedade se encontrariam num pavilhão utilizado pelo marido.

L. O gerente de facto da insolvente BB é também sócio e gerente de uma outra sociedade – B..., Ld.ª, com NIPC ...21, a qual tem a mesma sede e o mesmo objeto social que a insolvente, ou seja, tem sede na Rua ..., ..., ... ... e dedica-se à atividade de montagem e Aluguer de palcos e bancadas e outras atividades ligadas ao espetáculo.

M. Da análise do extrato bancário facultado pelo Banco 1..., S.A. da conta titulada pela insolvente, com o n.º ...68....0....14-2, por referência ao período compreendido entre 01/01/2020 e 14/07/2021, verifica-se que foram efetuados levantamentos em numerário/levantamentos de cheques no montante global de € 16.774,28, transferências à ordem da sociedade detida pelo gerente de facto da insolvente num total de €4.872,53, transferência à ordem de conta pessoal da gerente da insolvente no valor de €400,00 e pagamentos de compras em supermercados e restauração no valor de cerca de € 3.785,74.

N. Não foram, até à presente data, localizados quaisquer bens da insolvente, tendo sido reclamados e reconhecidos créditos no valor de € 15.075,78 referentes a contribuições devidas ao Instituto da Segurança Social, I.P. e ao trabalhador DD.

O. Em maio de 2020, a insolvente deixou de pagar os créditos laborais ao trabalhador DD, encontrando-se por liquidar o montante global de €13.194,52, à data da declaração da insolvência – 19/05/2021.

P. Em junho de 2020, a insolvente deixou, igualmente, de pagar as contribuições devidas ao Instituto da Segurança Social, I.P., cujo crédito global ascende a € 1.881,26, à data da declaração da insolvência.

Q. A insolvente e a respetiva gerente sabiam, sem poder desconhecer, que o valor de € 30.298,94 inscrito na conta de caixa e depósitos bancários era imprescindível para a satisfação dos créditos vencidos e inscritos na conta de passivo e dos créditos vincendos, nomeadamente do Instituto da Segurança Social, I.P. e do trabalhador DD.

R. Os requeridos foram casados até 17 de junho de 2021 e o período (meses) que se antecedeu ao divórcio foi bastante tumultuoso e conflituoso entre os cônjuges – como ainda hoje sucede entre os ex. cônjuges.

S. Em dezembro de 2015 foi constituída a sociedade comercial por quotas “B..., Lda.”, com o NIPC ...21.

T. Já em meados de 2017, o senhor BB convenceu a Oponente de que podiam constituir uma nova sociedade, a “A..., Unipessoal, Lda.”, onde indicou esta como Gerente – sendo que o senhor BB era quem detinha a gerência de facto da mencionada sociedade.

U. A Oponente AA nunca teve qualquer acesso ao dinheiro da sociedade insolvente, pois o gerente de facto era quem o controlava.

V. Quando esta soube que o gerente de facto tinha intentado a ação de divórcio, e porque se encontrava desamparada, com um “negócio em mãos”, no qual nunca tinha tido qualquer intervenção dirigiu-se ao contabilista da sociedade, como forma de procurar um amparo na procura de informações que lhe permitissem prosseguir com a atividade da empresa, mas, em vão porque a Oponente continuou sem respostas, tendo o próprio contabilista se recusado a fornecer-lhe as senhas de acesso ao programa “TOC.

W. Os negócios dos palcos ocorriam através de uma ou outra sociedade (da insolvente e B..., Ld.ª), consoante o que lhe fosse mais favorável contabilisticamente todos os documentos preparados pela contabilidade, advinham de conversas tidas entre o gerente de facto e o próprio contabilista, sendo certo que a gerente de direito se limitava a assinar.

X. A Oponente AA conseguiu ter acesso a alguma documentação relacionada com a sociedade insolvente, e guardou-a consigo e nessa documentação é possível verificar que o gerente de facto – pois era ele quem efetuava os pagamentos dos vencimentos e tudo o resto -, extraiu recibos de vencimento dos meses de Junho e Julho de 2020, relativos ao trabalhador requerente da insolvência - extraiu tais recibos de vencimento, mas não entregou a contribuição e / ou quotização devida à segurança social referente ao funcionário DD - por sinal, o requerente da insolvência da sociedade.

Y. Ao ser contactada telefonicamente pela Exma. Senhora Administradora de Insolvência, informando esta que os bens da sociedade insolvente se encontravam no pavilhão utilizado pela sociedade “B..., Lda.

Z. Oferecendo a Oponente a sua colaboração para se deslocar ao armazém da referida Sociedade, o que, efetivamente, veio a suceder, em meados do início do presente ano, com colaboradores da Exma. Senhora Administradora de Insolvência, sendo certo que não houve qualquer apreensão nessa ida, porque o gerente de facto se encontrava ausente do local, alegadamente (como referiu no dia) em “Alcácer do Sal”.

AA. O requerido BB informou o funcionário da Exma. Sra. Administradora Judicial aquando da visita deste ao armazém da sociedade B... Lda. que:

- o reboque não existia/desconhecia, além do mais, para existir tinha de estar registado e com matricula o que não sucede.

-Quanto ao palco Orbital foi esclarecido que também desconhecia/não existia e muito menos pelo valor que estava referido, no limite poder-se ia estar a falar de uma lona.

-Relativamente as cadeiras, ferros e tubos foi entregue o que exista – importa referir que estes bens encontravam-se no armazém da B... Lda. a pedido da gerente de direito.

- Que a gerente de direito levou bens para sucata que se encontravam no armazém e que oponente desconhecia

E foram julgados não provados os seguintes Factos:

1. Que o cônjuge marido deixou em fins do ano de 2019 de se interessar por todas as situações que envolviam a atividade da sua mulher, incluindo a sociedade insolvente.

2. Que não mais se interessou em saber o que se passa na devedora insolvente e que já desde o ano de 2018 que vinha a insistir com a gerente de direito (sua mulher à altura) para esta encerar a sociedade insolvente e que a gerente de direito nunca concordou com o encerramento da devedora insolvente.

3. Que foi a gerente de direito deixou de pagar ao gabinete de contabilidade à segurança social, ao trabalhador, e que não pagava a ninguém.

4. Que todos os valores que entravam na conta bancaria da insolvente a gerente de direito levantava e dava o uso que entendia.

5. Que o requerido BB não cuidava ou controlava a conta bancaria da devedora insolvente, nem efetuava movimentos bancários nesta.

6. Que foram prestados serviços pela sociedade B... Lda. à devedora insolvente e que foram pagos por esta – tudo dentro do trato comercial normal entre empresas e cumprindo os princípios legais.

7. Desde a altura em que foi constituída a sociedade “B..., Lda.”, que BB transferiu a propriedade de diversos bens pertencentes também à Oponente sem que, então, esta tivesse conhecimento desses atos.

8. Que a Oponente AA nunca teve qualquer acesso a qualquer documento contabilístico da sociedade insolvente, pois o gerente de facto era quem guardava toda a documentação, não permitindo que esta tivesse qualquer intervenção nos negócios dessa sociedade.

9. Que o requerido BB se socorreu do trabalhador DD –sobre o qual tinha e tem natural ascendente -, para requerer a insolvência da sociedade comercial por quotas “A..., Unipessoal, Lda.” com a intenção de prejudicar a requerida AA.

10. Que a oponente AA não tinha autonomia para comprar o que quer que fosse para a casa, para ela ou para o filho de ambos, acabando por ser o senhor BB quem fazia, inclusive, as compras do supermercado.

11. O BB desviou e, inclusive, deitou ao lixo, muitas das comunicações dirigidas à Oponente, remetidas pelo Tribunal.

IV-DA NULIDADE DA SENTENÇA:

A Apelante invoca a nulidade da sentença, com fundamento no art. 615º nº 1 al c) do CPC, invocando a existência de contradição entre a factualidade provada entre si e entre a factualidade provada e a decisão.

Alega para tanto que, a sentença recorrida deu como provados factos contraditórios entre si, isto porque, ou a Recorrente tinha acesso ao dinheiro da sociedade insolvente e efetivamente tomava decisões e geria a sociedade insolvente em conjunto com o seu ex-cônjuge, ou a Recorrente não tinha acesso ao dinheiro, ativos e passivos, da sociedade insolvente, e limitava-se a assinar o que o seu ex-cônjuge lhe exigia – o que, em boa verdade, foi o que resultou provado de toda a prova produzida.

E, ao mesmo passo, se por um lado a sentença recorrida dá como provado que quem tomava todas as decisões, quem orientava todos os destinos da insolvente, quem fazia os pagamentos, quem tinha acesso ao dinheiro e à contabilidade, era o ex-cônjuge da Recorrente, enquanto gerente de facto, e que a Recorrente apenas se limitava a assinar, sem ter acesso a quaisquer valores monetários e respetiva contabilidade, não podia dar como provado que a Recorrente sabia, e não podia desconhecer “que o valor de € 30.298,94 inscrito na conta de caixa e depósitos bancários era imprescindível para a satisfação dos créditos vencidos e inscritos na conta de passivo e dos créditos vincendos, nomeadamente do Instituto da Segurança Social, I.P. e do trabalhador DD”.

E ainda, na sentença afirma-se não haver dúvidas de que o ex-cônjuge da Recorrente era quem geria de facto a sociedade insolvente, e quem geria as contas bancárias e tratava de toda a contabilidade – em conjunto com o contabilista -, além de todas as ordens de trabalho que dava aos seus colaboradores e trabalhadores, e reconhece que a Recorrente nunca teve quaisquer acessos a dinheiro, e contabilidade, limitando-se a assinar tudo o quanto lhe era solicitado, aceitando, inclusive, o seu depoimento como “mais credível, até porque confirmado com outros meios de prova”, por outro um lado, e por outro, acaba por ser proferida uma decisão no sentido diverso, isto é: “(...) considera afetados pela qualificação culposa AA e BB,” com as legais consequências.

São apontadas pela Apelante duas ordens de contradições: entre os factos provados entre si e respetiva fundamentação e entre os factos provados e decisão.

A primeira contradição apontada, será analisada em sede de apreciação do erro de julgamento da matéria de facto invocado.

Com efeito, não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento (seja em matéria substantiva, seja em matéria processual). As primeiras (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à autenticidade, à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade da decisão ou do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito. As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por ser destituída de mérito jurídico (ilegal).

Neste sentido, o Prof. Antunes Varela salienta que “…não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário …”.[1]

Importará sim, porque dele nos ocupamos agora, analisar se ocorre o vício da nulidade da sentença invocado por os fundamentos estarem em oposição com a decisão.

Vejamos.

Como é sabido, os vícios determinantes da nulidade da sentença (decisão) correspondem a casos de irregularidades que afetam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.[2]

Os vícios determinantes da nulidade da sentença (elencados no art. 615º do CPC) correspondem a casos de irregularidades que afetam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).

Decorre do disposto no art.º 615.º n.º 1 alínea c), do CP Civil que a sentença é nula, entre o mais, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

Trata-se de um vício de natureza formal e não substancial.

Concretizando, ocorre uma situação de nulidade quando os fundamentos de facto e/ou de direito, de forma clara e evidente, não são passíveis de logicamente conduzir à decisão concreta escolhida.

Diz a apelante que tal situação se verifica na sentença recorrida uma vez que, na sentença apesar de se reconhecer que o ex-cônjuge da Recorrente era quem geria de facto a sociedade insolvente, e quem geria as contas bancárias e tratava de toda a contabilidade – em conjunto com o contabilista -, além de todas as ordens de trabalho que dava aos seus colaboradores e trabalhadores, e reconhece que a Recorrente nunca teve quaisquer acessos a dinheiro, e contabilidade, limitando-se a assinar tudo o quanto lhe era solicitado, acaba por ser proferida uma decisão no sentido diverso, isto é: “(...) considera afetados pela qualificação culposa AA e BB, com as legais consequências, nomeadamente sujeitando-a a sanção de inibição para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; determinando a perda da recorrente de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e condenando-a a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, no valor de € 15.105,78.

Ao contrário do defendido pela Recorrente não estamos perante qualquer incompatibilidade entre os fundamentos e decisão, quando por um lado, na sentença se reconhece que a insolvente era gerida de facto pelo ex-cônjuge da apelante e, no final vem a sujeitá-la ás sanções decorrentes da sua afetação na qualificação da insolvência.

Essa situação encontra-se devidamente explicitada e fundamentada na sentença, que justifica a afetação da gerente de direito desta forma: “Impõe-se então também aplicar à administradora/gerente de direito da devedora – AA - a sanção de inibição para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade.

Em face dos fatos dados como provados, resulta que a conduta da administradora de direito ao “dar o seu nome” para a constituição da empresa insolvente, permitindo a gestão de fato, com o seu conhecimento, foi também causadora da situação de insolvência da empresa, que a dada altura deixou de cumprir as suas obrigações vencidas, não podendo deixar de se considerar a mesma culposa.

Mesmo que se admita que essa falta de pagamento foi decidida pelo gerente de fato, a verdade é que a requerida AA acaba por permitir essa gestão, uma vez que ela, na qualidade de gerente da devedora, poderia proceder à sua extinção, designadamente promovendo a sua liquidação.

A requerida tinha conhecimento das movimentações da conta até por ser ela quem tratava da “papelada”, sabendo dos levantamentos, dos pagamentos em dinheiro, das transferências, da promiscuidade entre as duas empresas e nada fez.

Tal atuação deliberada da requerida, foi e é causa direta e necessária do agravamento dos prejuízos patrimoniais dos credores porque os ativos fixos tangíveis que constavam da contabilidade nunca foram localizados, devendo a requerida enquanto gerente de direito saber do seu paradeiro.

Os factos revelam que o comportamento da AA, foi, pelo menos, negligente, tendo agido com leviandade ou descuido grave e censurável, designadamente quando autorizou eu o requerido BB fizesse da sua empresa o que bem lhe apetecia, o que acontecia com o seu conhecimento.

A culpa da requerida não pode deixar de ser declarada, pois que os mais elementares deveres lhe impunham que se comportasse de forma diferente quanto à gestão do património e atividade da insolvente, tendo com a sua conduta agravado a situação dos credores, o que permite a formulação de um juízo de censura, no mínimo de culpa.”

Acresce que nas concretas sanções aplicadas na sentença, em consequência da afetação é feita desde logo uma distinção entre aqueles gerentes (de facto e de direito), relativamente ao grau da culpa de cada um, tendo sido aplicada à recorrente, em consequência do reconhecimento duma menor culpa, um período de inibição inferior ao aplicado ao gerente de facto da insolvente.

Em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se pela inexistência da nulidade suscitada.

V-MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO:`

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada em diversas disposições do Código de Processo Civil nomeadamente nos seus artigos 640º n.º 1, e 662º n.º 1.

Resulta do artigo 640º citado, que o recorrente, quando pretenda impugnar a matéria de facto, deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

No caso vertente, mostra-se cumprido este ónus pela Apelante, pelo que nada obsta à apreciação do recurso, na parte em que é feita a impugnação da matéria de facto.

Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa." (sublinhado nosso).

A “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei nº 113/XII salientou o intuito do legislador de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada ao referir que “para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória – são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material”.

O Tribunal da Relação deve, pois, exercer um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição da matéria de facto, sindicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida, e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

E a análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa atividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respetivas exceções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjetiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.

O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art.º 607.º do C.P. Civil, sem olvidar porém, o princípio da oralidade e da imediação.

Posto isto, pretende a recorrente ver alterada a decisão relativamente aos seguintes factos:

Facto E: “Apesar da situação descrita em D., BB estava habitualmente presente no dia-a-dia empresarial da insolvente e todas as decisões na atividade empresarial da insolvente eram sempre tomadas com o seu prévio conhecimento e concordância, sendo ele, nomeadamente, o responsável, conjuntamente com a gerente de direito da sociedade, pelas decisões sobre a gestão da insolvente, sendo eles quem tomavam as decisões de gestão, incluindo as relativas aos pagamentos bem como as relações com clientes e/ou fornecedores, trabalhadores, fornecedores e credores em geral.”, cuja redação pretende ver alterada;

Q. A insolvente e a respetiva gerente sabiam, sem poder desconhecer, que o valor de € 30.298,94 inscrito na conta de caixa e depósitos bancários era imprescindível para a satisfação dos créditos vencidos e inscritos na conta de passivo e dos créditos vincendos, nomeadamente do Instituto da Segurança Social, I.P. e do trabalhador DD”, que pretende ver julgado não provado;

.E os factos não provados:

“7. Desde a altura em que foi constituída a sociedade “B..., Lda.”, que BB transferiu a propriedade de diversos bens pertencentes também à Oponente sem que, então, esta tivesse conhecimento desses atos.

8. Que a Oponente AA nunca teve qualquer acesso a qualquer documento contabilístico da sociedade insolvente, pois o gerente de facto era quem guardava toda a documentação, não permitindo que esta tivesse qualquer intervenção nos negócios dessa sociedade.”, que pretende ver julgados provados.

9. Que o requerido BB se socorreu do trabalhador DD –sobre o qual tinha e tem natural ascendente -, para requerer a insolvência da sociedade comercial por quotas “A..., Unipessoal, Lda.” com a intenção de prejudicar a requerida AA.

Vejamos.

Quanto ao facto E, a recorrente aponta, como já tivemos oportunidade de assinalar a existência de contradição, (na parte sublinhada) com outros factos provados.

Pensamos que lhe assiste razão.

Com efeito, a segunda parte do facto E, reporta-se a uma gestão da insolvente realizada de forma conjunta (é mesmo usado o advérbio conjuntamente) entre a gerente de direito e o gerente de facto, seu ex-cônjuge, tomando as decisões de gestão “conjuntamente”.

É o que se retira das expressões: sendo ele o responsável, conjuntamente com a gerente de direito da sociedade, pelas decisões sobre a gestão da insolvente, … sendo eles quem tomavam as decisões de gestão.

Porém esta “gestão conjunta” da insolvente, mostra-se, de facto, contraditório com os seguintes factos julgados provados:

U. A Oponente AA nunca teve qualquer acesso ao dinheiro da sociedade insolvente, pois o gerente de facto era quem o controlava.

V. Quando esta soube que o gerente de facto tinha intentado a ação de divórcio, e porque se encontrava desamparada, com um “negócio em mãos”, no qual nunca tinha tido qualquer intervenção dirigiu-se ao contabilista da sociedade, como forma de procurar um amparo na procura de informações.

W. Os negócios dos palcos ocorriam através de uma ou outra sociedade (da insolvente e B..., Ld.ª), consoante o que lhe fosse mais favorável contabilisticamente todos os documentos preparados pela contabilidade, advinham de conversas tidas entre o gerente de facto e o próprio contabilista, sendo certo que a gerente de direito se limitava a assinar.

E aquele facto mostra-se igualmente em contradição com a fundamentação da decisão, já que julgador exprimiu a seguinte convicção, relativa ao funcionamento da gestão da insolvente e à atividade desempenhada pela gerente de direito e pelo gerente de facto: “Da conjugação da prova resulta que foi nossa convicção que a gerente AA era a gerente de direito da insolvente e que tinha conhecimento de algumas atividades da insolvente, até por ser ela quem tratava das questões administrativas.

Ou seja, não estamos propriamente perante uma gerente de direito que se limitou a constituir a sociedade e a assinar os documentos a pedido do gerente de fato BB, porque a mesma, ao tratar da parte administrativa, acabava por tomar conhecimento de alguma atividade da insolvente, participando nela, nem que fosse de forma mais passiva.

Sem prejuízo, ficámos convencidos, da conjugação da prova, que quem tomava todas as decisões, quem orientava todos os destinos da insolvente, quem fazia os pagamentos, quem determinava as encomendas, quem decidia o que era faturado pela insolvente e ela sociedade B... Limita era o gerente de fato, BB.” (sublinhado nosso).

Entendemos assim que, em face da prova produzida, vertida nomeadamente naqueles factos, impõe-se eliminar do facto E aquelas expressões, passando o mesmo a ter a seguinte redação, que se mostra conforme á prova produzida:

“E. E. Apesar da situação descrita em D., BB estava habitualmente presente no dia-a-dia empresarial da insolvente e todas as decisões na atividade empresarial da insolvente eram sempre tomadas com o seu prévio conhecimento e concordância, sendo ele, nomeadamente, o responsável, pelas decisões sobre a gestão da insolvente, sendo ele quem tomava as decisões de gestão, incluindo as relativas aos pagamentos bem como as relações com clientes e/ou fornecedores, trabalhadores, fornecedores e credores em geral.”

Quanto ao Facto Q, a discordância da Recorrente assenta nas mesmas razões.

Não concordamos porém com a discordância da recorrente, desde logo, porque como resulta da fundamentação da sentença, “Ou seja, não estamos propriamente perante uma gerente de direito que se limitou a constituir a sociedade e a assinar os documentos a pedido do gerente de fato BB, porque a mesma, ao tratar da parte administrativa, acabava por tomar conhecimento de alguma atividade da insolvente, participando nela, nem que fosse de forma mais passiva.”

Como gerente de direito, não podia naturalmente desconhecer “que o valor de € 30.298,94 inscrito na conta de caixa e depósitos bancários era imprescindível para a satisfação dos créditos vencidos e inscritos na conta de passivo e dos créditos vincendos, nomeadamente do Instituto da Segurança Social, I.P. e do trabalhador DD”.

Desta forma, improcede a impugnação.

Quanto aos factos julgados não provados (7 e 8), que a Recorrente pretende ver julgados provados,

“7. Desde a altura em que foi constituída a sociedade “B..., Lda.”, que BB transferiu a propriedade de diversos bens pertencentes também à Oponente sem que, então, esta tivesse conhecimento desses atos.

8. Que a Oponente AA nunca teve qualquer acesso a qualquer documento contabilístico da sociedade insolvente, pois o gerente de facto era quem guardava toda a documentação, não permitindo que esta tivesse qualquer intervenção nos negócios dessa sociedade.”,

9. Que o requerido BB se socorreu do trabalhador DD –sobre o qual tinha e tem natural ascendente -, para requerer a insolvência da sociedade comercial por quotas “A..., Unipessoal, Lda.” com a intenção de prejudicar a requerida AA.

Não concordamos com a discordância da Recorrente relativamente à factualidade julgada não provada.

Com efeito, relativamente ao facto 7, resulta da prova produzida que que a recorrente não desconhecia aquilo que na sentença se apelida de “promiscuidade” entre a sociedade ora insolvente e a empresa “B..., Lda.”, que BB geria.

Quanto ao facto 8, exercendo a recorrente funções de administrativa na empresa, não é crível que não tivesse acesso a documentos da contabilidade da empresa.

Finalmente quanto ao facto 9, não é feita prova concreta e suficiente da situação aí relatada, pelo que é de manter a factualidade julgada não provada.

Improcede pois, a alteração da matéria de facto, com exceção da analisada alínea E dos factos provados.

VI-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS

Decorre do disposto no art.º 185.º do CIRE que a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.

Esta dicotomia tem como pressuposto a consideração de que a situação de insolvência pode resultar de fatores alheios à vontade do Insolvente, tais como contingências económico-financeiras inesperadas ou situações de desemprego, divórcio ou doença.

Por inerência, o incidente de qualificação da insolvência tem por objeto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência.

O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor.

O art.º 186.º do CIRE define como insolvência culposa aquela em que a “situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”

A regra é, pois, a de que a atuação do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tem que ser apta à criação ou agravação do estado de insolvência, em termos de nexo de causalidade, e levada a cabo com dolo ou culpa grave.

Trata-se tipicamente de uma norma de proteção. As normas de proteção, como explica Manuel Carneiro da Frada [3] “levando longe a preocupação de prevenir com eficácia a lesão de um interesse ou bem jurídico, (…) permitem como que “pré protegê-lo” (ou “antecipar” a sua proteção), vedando ou prescrevendo condutas independentemente de se demonstrar que essas condutas apresentam no caso concreto um perigo para tal interesse ou bem jurídico (podem mesmo proibir a prova do contrário).

Este normativo consagra uma noção geral de insolvência culposa, limitando a relevância da atuação do devedor ou dos seus administradores nos termos aí descritos, para efeito dessa qualificação (como culposa), a determinado período de tempo, qual seja o triénio anterior ao início do processo de insolvência.

Na sentença, o tribunal a quo entendeu que a factualidade provada integra a verificação da situação prevista no art. 186º, nº 2, alínea a), do CIRE, nestes termos: “Resultou provada que a devedora fez desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.

Na verdade, e conforme resultou provado a rúbrica de ativos fixos tangíveis apresentava, no ano de 2019, um valor de € 36.492,55 e o mapa de depreciações e amortizações da sociedade indica que esta dispõe dos seguintes bens: cadeiras; reboque Krone BDF Open Laadb; palco Orbital 10x9., bens que nunca foram localizados.

Provou-se também que o valor de € 40.017,55, inscrito na rúbrica dos investimentos, e que foi dito pelo contabilista certificado da sociedade que se trata de ferro (tubos e barras) adquiridos pela insolvente tendo em vista a construção de grades separadoras, bancadas e palcos, nunca foram localizados.

Quanto aos dinheiros os fatos provados provam que eles desapareceram da conta bancária.

Na verdade, a conta de caixa e depósitos bancários apresenta um saldo de € 13.557,83, no ano de 2017, de € 8.136,47 no ano de 2018, de € 30.298,94 no ano de 2019 e de € 26.556,90, no ano de 2020, no entanto à data da insolvência a conta titulada pela insolvente na Banco 1... com o n.º ...68....0....14-2 apresenta um saldo de apenas de € 129,78.

Daí que se conclua pela verificação da situação prevista no art. 186º, nº 2, alínea a) do CIRE.

Assim, e sem mais considerações impõe-se concluir pela qualificação da insolvência da devedora como culposa, pela verificação da situação prevista no art. 186º, nº 2, alínea a), do CIRE.”

Mais se considerou (e bem) que, “Decorre, pois, deste artigo que, verificando-se uma das vicissitudes contempladas no n.º 2, aplicável, com as necessárias adaptações, às insolventes pessoas singulares, ex vi n.º 4, tem de se considerar a insolvência como culposa, atenta a presunção inilidível ou iuris et de iuris nele consagrada, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário – não é necessária prova da culpa nem é admitida prova em contrário – art. 350º, nº2, in fine, do Código Civil.”

Com efeito, o art.º 186.º do CIRE define como insolvência culposa aquela em que a “situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”

O n.º 2 da mesma norma dispõe que: “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a)Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;(…)

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;”

Por força do n.º 4, da norma em causa, “O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.”

Por fim, nos termos do n.º 5 da citada norma “Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.”

Da norma vinda de transcrever, desde logo decorre que, verificando-se uma das vicissitudes incluídas no n.º 2 do artigo 186.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, tem de considerar a insolvência como culposa, atenta a presunção inilidível ali consagrada.

Tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 186º nº 2, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato.

A discordância da Recorrente, porém não é dirigida à qualificação jurídica dos factos, como conducentes a uma situação de insolvência culposa, apenas tendo questionado o facto de na decisão ter sido afetada por essa qualificação culposa.

Diz a Recorrente que o legislador ao incluir nos 186.º e 189.º do CIRE, a conjunção alternativa “ou”, isto é, ou o gerente de direito “ou” o gerente de facto, podem ser abrangidos pela qualificação da insolvência como culposa, quis retratar situações como a dos presentes autos, ou seja, poder responsabilizar apenas e tão só os gerentes de facto que têm uma gestão efetiva da sociedade insolvente, sem que, para tanto, tenham de ser afetados pela qualificação da insolvência, os gerentes de direito que assumem uma posição passiva e se limitam a assinar.

Ora esta questão mostra-se devidamente apreciada e decidida na sentença, sendo que concordamos com a apreciação aí feita.

Com efeito, quanto à questão concreta da afetação da ora requerente, que cumpre apreciar, o artigo 189º do CIRE dispõe que, “Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:

a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;”

A ora recorrente assumiu a gerência da sociedade.

Provou-se, é certo que, gerência era efetivamente exercida por outrem (pelo seu ex-cônjuge, que era quem verdadeiramente a geria), remetendo-se a recorrente a um papel de “administrativa”.

A questão que se coloca é a de saber se nestas circunstâncias, em que a gerente de direito da sociedade, se encontra afastada da gestão da vida societária, pode, ainda assim ser afetada pela qualificação como dolosa da insolvência.

O tribunal a quo respondeu positivamente a esta questão e parece-nos que bem.

Com efeito, nos termos do disposto no art. 64.º do Código das Sociedades Comerciais:

“1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:

a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e

b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.

2 - Os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no interesse da sociedade.”

Sobre a gerente da insolvente, (a ora apelante) recaiam assim, por força da lei, especiais deveres de proteção do património da sociedade, tomando as medidas necessárias para que o mesmo se mantivesse intacto de modo a satisfazer na altura própria os interesses dos credores, dever com o qual não cumpriu.

A gerente ao assumir uma atitude passiva, aceitando a gestão de facto da sociedade por um terceiro, sem exercer qualquer controle daquela gestão, atuou com culpa.

Dessa forma, enquanto gerente de direito, incumpriu o seu dever de apresentação à insolvência, sendo que esse incumprimento causou prejuízos aos credores porquanto, limitando-se a cumprir as instruções que lhe eram dadas pelo gerente de facto, permitiu a “promiscuidade” das duas empresas a insolvente e a sociedade daquele gerente de facto, a sociedade B... Limitada, que de forma indiferenciada prestava serviços aos clientes, permitindo uma gestão que fez desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património da devedora, razão pela qual o ativo da insolvente não veio a ser apreendido no âmbito deste processo.

Para o Prof. Coutinho de Abreu,[4] resultando do disposto no artº 64º nº1 als. a) e b) CSComercial, os administradores têm poderes-função, poderes-deveres – e os deveres fundamentais são os deveres de cuidado e de lealdade.
No dever de cuidado englobam-se o dever de controlar e vigiar a condução da atividade da sociedade e o dever de se informar sobre as eventuais causas de danos sociais rectius de se informar sobre a situação económico-financeira da sociedade.

Desta forma, podemos dizer que a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade que caracterizam a atuação da aqui requerida constituem, só por si, uma violação dos deveres gerais que se lhe impunham, enquanto gerente da insolvente, como vimos.

No sentido que, da previsão do art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE verifica-se que não foi objetivo do legislador excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto da qualificação da insolvência como culposa, mas sim estendê-la a atos praticados por administradores de facto - cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 22.10.2019, proc. 327/15.7 T8VNG-B.P1; Ac. Rel. Porto de 10.12.2019, proc. 124/10.6 TYVNG-A.P1; Ac. Rel. Porto de 26.11.2019, proc. 524/14.2 TYVNG-B.P1, Ac. Rel. Porto de 22/02/2022, processo 309/11.8TYVNG-N.P2, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Como se pode ler no sumário do Acórdão do STJ de 6 de Outubro de 2021[5]: “I - A gerência é, por força da lei e salvo casos excecionais, o órgão da sociedade criado para lhe permitir atuar no comércio jurídico, criando, modificando, extinguindo, relações jurídicas com outros sujeitos de direito. Estes poderes não são restritos a alguma espécie de relações jurídicas; compreendem tantas quantas abranja a capacidade da sociedade (cfr. objeto social), com a simples exceção dos casos em que as deliberações dos sócios produzam efeitos externos, sendo pressuposto do esquema de organização societária, tal como legalmente desenhado.

II - Nos últimos anos assistiu-se a um conjunto de fenómenos de progressiva difusão dos poderes societários, que conduziram à transferência, ainda que parcial, das funções de gestão acometidas ao órgão – formal e institucionalizado – da administração para outros sujeitos estranhos à estrutura formal do ente societário, com claras consequências no modelo “fisiológico” de desenvolvimento da atuação da sociedade, sendo que esse exercício fáctico de funções de gestão por sujeitos que não se encontram regularmente investidos no cargo de gerentes e/ou administradores, desacompanhado da extensão dos mecanismos que os responsabilizam enquanto designados formalmente.

III - Acompanhando essa evolução social o direito insolvencial procurou ao longo dos anos regular esses comportamentos atípicos, instituindo normas disciplinadoras dos mesmos com a inerente responsabilização dos sujeitos visados. (…)

VI - Atualmente o CIRE, no seu art. 186.º, n.º 1, prevê expressamente a responsabilização dos administradores/gerentes societários, sejam eles de direito ou de facto, os quais estão sujeitos às mesmas sanções, pessoais e patrimoniais, nos termos do art. 189.º, n.º 2 do mesmo diploma, sendo certo que, por razões de interpretação sistemática do diploma, devemos entender que a qualificação do sujeito como administrador/gerente, de facto ou de direito, é indiferente nesta sede, uma vez que o art. 6.º, n.º 1, al. a), prevê que «Para efeitos deste Código, são considerados administradores a) (…) aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente;».

Em face do exposto, não pode ser acolhida a argumentação da ora apelante no sentido de não dever ser afetada pela qualificação da insolvência como dolosa.

Improcede assim a sua pretensão recursiva.

VI-DECISÃO

Pelo exposto e em conclusão, acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.


Porto, 10 de setembro de 2024

Alexandra Pelayo

Lina Castro Baptista

Anabela Dias da Silva


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[1] In “Manual de Processo Civil”, pg. 686.
[2] V. ac. da RP 19.5.2014 (relator: Manuel Fernandes), in dgsi.pt.
[3] In A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, 2005, disponível em www.oa.pt.
[4] In Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade, 2010, pg. 25.
[5] Relatora Ana Paula Boularot, proferido no P 616/12.2TYVNG-F.P1.S1 e disponível in www.dgsi.pt,