CONTRATO PROMESSA
CONTRATO PROMETIDO
PRAZO DE CUMPRIMENTO
INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO
Sumário

I - O prazo fixado no contrato-promessa para a celebração do contrato prometido pode constituir um termo essencial objectivo, ou um termo essencial subjectivamente absoluto ou subjectivamente relativo.
II - A determinação da natureza do prazo resulta da interpretação do convencionado entre as partes.
III - No caso de um contrato-promessa escrito, a sua interpretação, designadamente quanto à natureza do prazo estabelecido para a celebração do contrato prometido, não pode conduzir a um resultado que não tenha no texto um mínimo de correspondência.
IV - Se as partes estabeleceram no texto do contrato, assertivamente e de forma inequívoca, ser condição essencial do contrato o respeito pelo prazo fixado, que a sua inobservância implica a perda de interesse do contraente não faltoso e que o incumprimento do prazo equivaleria a incumprimento definitivo do contrato promessa, a interpretação de tais cláusulas não permite que se venha a concluir que o prazo fixado é subjectivamente relativo, em atenção a circunstâncias tais como o comportamento ulterior do promitente não faltoso e o seu interesse no contrato, ou outras circunstâncias externas, pois que isso não teria no texto do contrato qualquer correspondência.

Texto Integral

PROC. Nº 3377/21.0T8VNG-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 4

REL. N.º 893
Juiz Desembargador Relator: Rui Moreira
1º Adjunto: Juiz Desembargador João Diogo Rodrigues
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Anabela Andrade Miranda

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO

AA e BB foram declarados insolventes, por sentença proferida nos autos principais e transitada em julgado.
Subsequentemente, no apenso respectivo, o Sr. Administrador da insolvência juntou aos autos a lista de todos os credores por si reconhecidos, obedecendo a todas as formalidades legais.
O credor Banco 1..., SA veio impugnar a lista de créditos reconhecidos, quanto à natureza e ao crédito reclamado por CC e DD, dado esse crédito ter sido reconhecido como garantido por direito de retenção sobre três fracções (uma habitação e dois estacionamentos cobertos e fechados) que lhe haviam sido prometidas em venda pelos insolventes e que lhe teriam sido entregues, mas quanto às quais não chegou a ser celebrado o contrato prometido, que se teve por definitivamente incumprido.
O credor CC respondeu, mantendo a pretensão de reconhecimento do crédito nos termos em que o foi pelo senhor Administrador da Insolvência.
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Foi proferido despacho saneador e realizou-se a audiência de julgamento.
Sucessivamente, foi proferida sentença que reconheceu o referido crédito e declarou que o mesmo beneficiava de direito de retenção sobre as referidas fracções. Sobre as mesmas, reconheceu ainda um crédito do Banco 1..., qualificando-o como garantido por hipoteca.
Mais graduou os créditos a serem pagos pelo produto da venda de tais fracções nos seguintes termos:
“1) As dívidas da massa insolvente saem precípuas (n.º 1 e n.º 2 do artigo 172.º do CIRE);
2) o crédito reclamado pela Autoridade Tributária e Aduaneira referente a IMI, pelo produto da venda do imóvel a que respeita o imposto;
3) Crédito de CC e DD, que beneficia de direito de retenção;
4) crédito hipotecário de Banco 1..., SA, pelo produto da venda do imóvel sobre que incide a hipoteca;
5) do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos comuns.”
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É contra esta decisão que vem oposto o presente recurso, que o credor Banco 1... termina formulando as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida em 01.03.2024, que reconheceu ao Recorrido CC um crédito no montante de 190.000,00 €, correspondente ao sinal que este prestou, em dobro, em consequência do alegado incumprimento definitivo, por parte dos Insolventes, do contrato promessa entre ambos celebrado.
2. Resulta da factualidade dada como provada:
a) Que em 08.11.2018, o Recorrido e os Insolventes celebraram um contrato promessa nos termos do qual aquele prometeu comprar e estes prometeram vender três fracções autónomas (facto provado A.).
b) Na cláusula 4ª daquele contrato, ficou estabelecido que a escritura pública seria outorgada no dia 28 de fevereiro de 2019, pelas 15 horas, no Cartório Notarial da Dra. Cartório Notarial de EE, sito no Gaveto da rua ... com a rua ..., Edifício ..., ..., loja ..., ... ... (facto provado C.).
c) Os contraentes declararam ainda, na da cláusula 5ª do dito contrato, que era condição essencial que o contrato definitivo de compra e venda se realizasse até ao dia 28 de fevereiro de 2019 e que no caso de tal não acontecer por culpa de um dos contraentes, o outro perderia interesse no negócio e considerava definitivamente incumprido o contrato (factos provados Z. e AA.).
d) Mais declararam, no nº 4 da dita cláusula 5ª que, no caso de incumprimento definitivo e culposo imputável aos promitentes vendedores, assistia ao promitente comprador o direito a resolver o contrato e a exigir o sinal em dobro (facto provado BB.).
e) Os promitentes vendedores (ora insolventes) não compareceram para a outorga da escritura agendada para o dia 28 de fevereiro de 2019 (facto provado X.).
f) O promitente comprador, ainda tentou, durante os meses de Março e Abril, que os Insolventes pudessem cumprir o referido acordo, mas tal revelou-se impossível (facto provado CC.).
g) Em 16 de maio de 2019 o Reclamante marido, notificou os Insolventes do incumprimento definitivo e resolveu o referido acordo (facto provado DD.).
3. No entendimento do Recorrente, com base na factualidade dada como provada, não houve incumprimento definitivo do contrato promessa, razão pela qual a declaração resolutiva datada de 16.05.2019 foi ilegítima e infundada, não podendo produzir os efeitos pretendidos pelo Recorrido e reconhecidos pela sentença.
4. Analisadas as cláusulas 4ª e 5ª do contrato promessa, não restam dúvidas de que estamos perante uma obrigação com prazo certo.
5. No entanto, dos factos dados como provados não resulta que se tratasse de um prazo “absolutamente fixo”, antes pelo contrário, tudo indica que se tratava, na realidade, de um prazo “relativamente fixo”.
6. Na verdade, dos factos dados como provados, resulta que o Recorrido, após a falta de comparência dos promitentes vendedores na escritura, ainda tentou, durante os meses de Março e Abril, que os Insolventes pudessem cumprir o referido acordo, mas tal revelou-se impossível. - cfr. facto CC dos factos provados.
7. Ou seja, do comportamento do promitente comprador resulta que não era condição essencial do negócio que o contrato prometido se realizasse até ao dia 28.2.2019 pois que, decorrido aquele prazo, ainda mantinha o interesse na sua concretização, tendo inclusivamente diligenciado nesse sentido.
8. Além deste facto, temos outros indícios nos autos de que o prazo não era, de facto, “absolutamente fixo”.
9. Da conjugação dos factos dados como provados sob os pontos A), D), E), F), G), H), I), J), M), N), O e P) com o teor do contrato promessa junto aos autos, resulta que o Recorrido não dependia de qualquer financiamento bancário que caducasse após o decurso daquele prazo, pois que dispunha de meios próprios para pagar a totalidade do preço.
10. De igual forma, resulta dos factos dados como provados sob os pontos L), Q), R), S), T), U) e V) que o Recorrido sempre teve a disponibilidade das frações, que usava em seu proveito desde que delas tomou posse em 11.01.2019.
11. Ou seja, da conjugação da factualidade carreada para os autos não resulta demonstrado que aquele prazo fosse essencial e de que após aquele momento o negócio perderia o interesse, para o Recorrido ou para a contraparte, pelo contrário.
12. Era ao Recorrido que competia alegar e provar os factos objectivos e concretos que consubstanciam a perda do interesse, nos termos das regras gerais sobre ónus da prova consagradas nos artigos 342º/1 e 346º do CC, o que este manifestamente não fez.
13. Deste modo, a omissão dos Insolventes, não comparecendo na escritura, colocou-os em situação de mora mas não ainda em situação que legitimasse o Recorrido a resolver o contrato, pois que não se verificavam os necessários pressupostos - perda do interesse na prestação ou interpelação admonitória, a converter a mora em incumprimento definitivo (art. 808.º).
14. No âmbito do contrato promessa de compra e venda, em que tenha havido lugar à constituição de sinal, só o incumprimento definitivo e culposo dá lugar às cominações previstas no art. 442.º, n.º 2, designadamente à devolução do sinal em dobro.
15. Pelo que, só sendo possível considerar que os promitentes vendedores se encontravam em mora, e não em incumprimento definitivo, não assiste qualquer direito ao Recorrido de que lhe seja devolvido, em dobro, o sinal.
16. Esta questão foi objeto de Uniformização do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 27.04.2021, proferido no processo nº 872/10.0TYVNG-B.P1.S1-A, onde se decidiu o seguinte: Quando o administrador de insolvência do promitente vendedor optar pela recusa do cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, o promitente comprador tem direito a ser ressarcido pelo valor correspondente à prestação efectuada, nos termos dos arts. 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 3, do CIRE, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18-03.
17. Nos presentes autos, o imóvel objeto do contrato promessa foi vendido, o que equivale a uma recusa do cumprimento por parte da Senhora Administradora de Insolvência.
18. Nos termos e pelos motivos acabados de expor, apenas deverá ser reconhecido ao Recorrido um crédito sobre a insolvência correspondente à restituição, em singelo, do sinal pago.
19. A sentença recorrida violou, por deficiente interpretação e aplicação das disposições do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes, as normas atinentes à interpretação dos negócios jurídicos constantes dos artigos 236.º a 239.º do Código Civil.
20. Ao deferir as pretensões do Recorrido, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação dos artigos 442º e 808.º do Código Civil e 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 3, do CIRE.
21. Impondo-se, pelos motivos acabados de expor, a sua revogação e, consequentemente, a sua substituição por outra que ordene que o crédito reconhecido ao Recorrido corresponda ao sinal entregue aos Insolventes, no montante de 95m€.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, ser revogada a decisão proferida em primeira instância. Assim se fazendo inteira JUSTIÇA!”
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CC e DD ofereceram resposta ao recurso, concluindo pela confirmação da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, discute-se se os insolventes, enquanto promitentes vendedores, incorreram em incumprimento definitivo do contrato promessa, ou se apenas em mora, e assim se, por violação do contrato, aos mesmos deve ser reconhecido um crédito pelo dobro do sinal prestado, ou pelo valor do mesmo, em singelo.
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O tribunal deu por provados os factos seguintes:
A. Em 8 de novembro de 2018, CC celebrou com os insolventes BB e AA, um acordo escrito, nos termos do qual aquele prometia comprar e estes prometiam vender as seguintes frações autónomas:
A) Fração designada pela letra "T", composta por Habitação no 4° andar recuado-direito, com entrada pelo nº ......;
B) Fração designada pela letra "G", composta por estacionamento coberto e fechado na cave, com entrada pelo nº ...; e
C) Fração designada pela letra "F", composta por composta por estacionamento coberto e fechado na cave, com entrada pelo nº ..., todas fazendo parte do prédio constituído no regime da propriedade horizontal sito na Rua ..., nºs ..., ... e ... e Rua ..., da freguesia ..., Concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial sob o artigo ..., descrito na conservatória do registo predial de Vila Nova de Gaia sob o nº ..., titular do alvará de utilização nº ..., emitido pela Câmara Municipal ... em 1996-10-15.
B. No referido acordo, foi estabelecido que as referidas frações seriam vendidas livre de quaisquer ónus, encargos, hipotecas, penhoras, pessoas ou qualquer tipo de responsabilidades, pelo preço total de € 135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros).
C. Ficou ainda acordado que a escritura pública seria outorgada no dia 28 de fevereiro de 2019, pelas 15 horas, no Cartório Notarial da Dra. Cartório Notarial de EE, sito no Gaveto da rua ... com a rua ..., Edifício ..., ..., loja ..., ... ....
D. Como sinal e princípio de pagamento o reclamante marido entregou aos Insolventes no ato da celebração do referido contrato a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros).
E. Tendo tal cheque sido descontado da conta do Reclamante marido com o n.º ... do Banco 2..., no dia 09-11-2018.
F. De acordo com a cláusula 2ª, nº 3 do acordo, os Reclamantes entregaram, na data da outorga do contrato promessa, dois cheques pós-datados no montante global de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), para reforço de sinal.
G. Pelo que, o Reclamante marido entregou aos insolventes o cheque do Banco 2... nº ..., pós-datado para 15-11-2018, no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros).
H. Tendo tal cheque sido descontado da conta do Reclamante marido com o n.º ... do Banco 2..., no dia 15-11-2018.
I. Bem como entregou, o Reclamante marido, aos insolventes, o cheque do Banco 2... nº ..., pós-datado para 22-11-2018, no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).
J. Tendo tal cheque sido descontado da conta do Reclamante marido com o n.º ... do Banco 2..., no dia 22-11-2018.
K. De acordo com a cláusula 2ª, nº 4 do acordo e ainda a título de sinal, o Reclamante marido, comprometeu-se a entregar aos Insolventes, no prazo de 60 dias, ou seja, até 08-01-2019, a quantia de 30.000,00 €, recebendo destes, no mesmo momento, as chaves das frações referidas.
L. Assim sendo, em 11-01-2019, os Insolventes entregaram as chaves das identificadas frações ao Reclamante marido.
M. Tendo os Insolventes recebido, como reforço do sinal, do Reclamante marido, nesse mesmo dia 11-01-2019, o cheque do Banco 2... nº ... a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros).
N. Tendo tal cheque sido descontado da conta do Reclamante marido com o n.º ... do Banco 2..., no dia 11-01-2019.
O. Na mesma data, ainda a título de reforço de sinal, o Reclamante marido entregou aos Insolventes a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), através de cheque pós-datado, número ... do Banco 2..., pós-datado para o dia 18-01-2019.
P. Tendo tal cheque sido descontado da conta do Reclamante marido com o n.º ... do Banco 2..., no dia 18-01-2019.
Q. Passando, o Reclamante marido usar e fruir as identificadas frações.
R. Ficando, ainda, os Reclamantes autorizados a realizar nas frações as obras que entendessem necessárias, bem como a requerer água e eletricidade em seu nome.
S. A partir de 11 de janeiro de 2019, o reclamante marido passou a ocupar a fração, uma vez que se estava a separar da sua esposa.
T. Na posse das identificadas frações, o Reclamante marido celebrou um contrato de prestação de serviços de água e um contrato de prestação de serviços de eletricidade.
U. O Reclamante marido mobilou e equipou as frações, nomeadamente instalando frigorifico, máquinas de lavar roupa e louça, colocando cadeiras, mesas e carpetes nas salas, e camas e demais mobiliários e roupa de cama em cada um dos quartos que compõem as frações.
V. O Reclamante marido passou a habitar nas referidas frações, aí comendo, dormindo, passando os tempos livres, recebendo familiares e amigos, procedendo ao pagamento das despesas inerentes ao uso do prédio, nomeadamente, água, eletricidade e condomínio.
W. No dia 28 de fevereiro de 2019, pelas 15 horas, o Reclamante marido compareceu, para outorga da escritura, no Cartório Notarial de EE, sito no Gaveto da rua ... com a rua ..., Edifício ..., ..., loja ..., ... ..., conforme ficara acordado entre as partes, na cláusula quarta do acordo.
X. Contudo, os Insolventes não compareceram para a realização da escritura prometida.
Y. Na cláusula 5ª, n.º 1 do referido acordo, os Reclamantes e os Insolventes expressamente declararam que, era condição essencial do referido contrato promessa que o contrato definitivo de compra e venda se realizasse até no dia 28 de fevereiro de 2019.
Z. Mais declarando Reclamantes e Insolventes que “no caso, não esperado, de tal não acontecer, por culpa de qualquer dos outorgantes, declara-se, desde já, que o outro outorgante deixa de ter interesse na realização deste negócio”, cfr. cláusula 5ª, n.º 1 do referido acordo.
AA. Declararam ainda as partes “que, no caso, não esperado, de existir incumprimento na outorga do contrato definitivo de compra e venda no dia 28 de fevereiro de 2019, por culpa de qualquer dos outorgantes, considerar-se-á como havendo incumprimento definitivo do contrato promessa aqui estabelecido por parte do outorgante incumpridor” cláusula 5ª, n.º 2 do referido contrato promessa.
BB. Estabelecendo, ainda, que “em caso de incumprimento definitivo e culposo, total ou parcial do presente contrato promessa de compra e venda, imputável aos primeiros outorgantes, confere-se ao Segundo Outorgante, o direito de resolver o presente contrato e receber o sinal prestado em dobro” cláusula 5ª, n.º 4 do referido contrato promessa.
CC. O Reclamante marido, ainda tentou, durante os meses de Março e Abril, que os Insolventes pudessem cumprir o referido acordo, mas tal revelou-se impossível.
DD. Pelo que, em 16 de maio de 2019 o Reclamante marido, notificou os Insolventes do incumprimento definitivo e resolveu o referido acordo.
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FACTOS NÃO PROVADOS
EE. Nunca os Reclamantes quiseram prometer comprar e nunca os Insolventes quiseram prometer vender as fracções em causa.
FF. Os Credores Reclamantes e os Insolventes, em comunhão de estratégia e de esforços, combinaram entre si declarar a existência de um contrato promessa e a tradição das fracções objecto da promessa, sem que tal correspondesse à sua vontade real, por forma a subtraí-los à acção dos credores dos executados, maxime do credor hipotecário. *
Foram vários os fundamentos invocados pelo credor Banco 1... para que não fosse reconhecido o crédito dos recorridos CC e DD bem como para obviar a que o mesmo fosse qualificado como garantido, por beneficiar do direito de retenção dos mesmos sobre as fracções negociadas e que lhes haviam sido entregues pelos insolventes. Desde a irrealidade do negócio à inexistência da entrega das fracções (tradição das fracções prometidas vender) até à inconstitucionalidade da precedência do direito de retenção sobre a garantia hipotecária do seu próprio crédito, tudo foi invocado por este credor, e tudo foi rejeitado, numa sentença que prima pelo rigor e qualidade de fundamentação que apresenta, quer quanto ao segmento respeitante à fixação da matéria de facto provada e não provada, quer quanto à discussão jurídica das questões identificadas na causa.
Sobrevive, todavia, uma questão relativamente à qual o credor continua a não se mostrar convencido pela solução decretada, que por isso impugna, constituindo o objecto deste recurso: admitindo a existência do contrato promessa e deixando já de impugnar a efectiva entrega das fracções aos reclamantes CC e DD, afirma que os factos provados – que não discute – revelam que tal contrato promessa não ingressou em incumprimento definitivo, apenas se tendo verificado mora no seu cumprimento, até que, apreendidas as fracções para a massa insolvente e vendidas elas pelo administrador de insolvência, se tornou impossível o cumprimento. Por isso, conclui, o crédito dos reclamantes não pode corresponder ao valor do dobro do sinal, por aplicação do disposto no nº 2 do art. 442º do C. Civil.
Sustentando essa tese, invoca os seguintes argumentos, logicamente relacionados:
1º - a declaração resolutiva emitida pelos recorridos, em 16.05.2019; foi ilegítima e infundada, pois não poderá identificar-se uma perda de interesse na prestação, nem ocorreu uma interpelação admonitória tendente à conversão da mora em incumprimento definitivo;
2º - o prazo fixado no contrato não era “absolutamente fixo”, mas apenas “relativamente fixo”;
3º - a tentativa de CC, durante os meses de Março e Abril de 2019, tentar ainda celebrar o negócio prometido revela que o termo do prazo em 28/2/2019 não era para si essencial;
4ª – o negócio não dependia de financiamento bancário para CC, pelo que daí não advinha a essencialidade do prazo;
5 º - CC sempre teve a disponibilidade das fracções, após 11/1/2019, pelo que daí não advinha a essencialidade do prazo.
A este respeito, o tribunal sustentou a sua decisão nos seguintes termos:
“(…)
Contudo, os Insolventes não compareceram para a realização da escritura prometida.
Em face do exposto, é óbvia conclusão de que os insolventes faltaram, culposamente, ao cumprimento do acordado.
Entrariam em mora, nos termos do art. 804º, nº 2 do Código Civil, mas estipularam no contrato a essencialidade da data de celebração da escritura definitiva: expressamente declararam que, era condição essencial do referido contrato promessa que o contrato definitivo de compra e venda se realizasse até no dia 28 de fevereiro de 2019, mais declarando Reclamantes e Insolventes que “no caso, não esperado, de tal não acontecer, por culpa de qualquer dos outorgantes, declara-se, desde já, que o outro outorgante deixa de ter interesse na realização deste negócio”, cfr. cláusula 5ª, n.º 1 do referido acordo.
Declararam ainda as partes “que, no caso, não esperado, de existir incumprimento na outorga do contrato definitivo de compra e venda no dia 28 de fevereiro de 2019, por culpa de qualquer dos outorgantes, considerar-se-á como havendo incumprimento definitivo do contrato promessa aqui estabelecido por parte do outorgante incumpridor” cláusula 5ª, n.º 2 do referido contrato promessa.
Desta forma, converteu-se automaticamente a mora dos insolventes em incumprimento definitivo.
Na verdade, perante tal clausulado, inútil se tornaria o envio de uma interpelação admonitória do promitente comprador aos promitentes vendedores, pois mais não diria do que aquilo que já tinham antes acordado: de que perderia interesse na celebração do contrato definitivo se este não ocorresse até 28 de fevereiro de 2019 e que consideraria como havendo incumprimento definitivo do contrato promessa por parte dos insolventes.”
É esta, então a essência do problema.
A tese do apelante assenta, como já se referiu, na interpretação de que o prazo fixado pelos insolventes e pelos recorridos no contrato-promessa deve ter-se por “relativamente fixo”, por oposição a um prazo “absolutamente fixo”, daí retirando que a não celebração do contrato prometido até ao fim do prazo não pode equivaler a um incumprimento definitivo do mesmo.
São conhecidas as referências doutrinais invocadas pelo apelante e claramente desenvolvidas, entre outros, no Ac. do TRL de 1/2/2011, (proc. nº 606/09.2TVLSB.L1-7, relatora Maria João Areias), onde se escreveu “O prazo da prestação não é, em regra, um elemento essencial na economia do contrato e daí que a simples mora ou atraso no cumprimento não seja, por si só, fundamento de resolução.
Contudo, por vezes, a essencialidade do termo decorre da própria natureza da prestação, pelo imediato desaparecimento da utilidade para o credor da prestação fora do prazo – ex., artista contratado para actuar num espectáculo com hora marcada, contrato de fornecimento de um copo de água para uma festa –, o que configura um essencialidade objectiva.
Outras vezes, as partes determinam, expressa ou tacitamente, como essencial o termo fixado, o que configura uma essencialidade subjectiva, sendo que esta pode ser absoluta ou relativa: encontrar-nos-emos perante um termo subjectivo absoluto quando a não observância do prazo implica um incumprimento definitivo; e perante um termo subjectivo relativo, quando a não observância do prazo confere ao credor o direito à resolução, o qual poderá recusar a prestação, mas também poderá optar por exigir ainda o cumprimento retardado.
O acórdão prossegue, citando Vaz Serra, Antunes Varela, Brandão Proença, acabando por afirmar, com Brandão Proença (“Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, A dualidade da execução específica”, 1987, de resto igualmente citado pelo apelante) que “Encontrando-se fixado um prazo final, determinar se se trata ou não de um prazo essencial dependerá essencialmente da interpretação da vontade negocial, a deduzir “do material interpretativo fornecido pelas partes, da natureza da promessa, do comportamento posterior dos promitentes (existência ou não de prorrogações) ou de outras circunstâncias coadjuvantes.”
Perante um texto contratual reduzido a escrito, como aquele que se encontra nos autos, constituído pelo contrato-promessa celebrado entre os insolventes e os ora recorridos, a identificação da natureza do prazo ali fixado para a celebração do contrato de compra e venda prometido depende, pois de uma tarefa de interpretação.
Uma tal operação deve desenvolver-se em observância dos princípios estabelecidos no art. 236º e 238º do C. Civil, de onde se retira, na essência, que se deve buscar o sentido da declaração que um declaratário normal, na posição do real declaratário, dela haveria de retirar, mas que, perante um negócio formal – como é o caso – não pode deixar de ter um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento.
Significa isto, no caso em apreço, que o comportamento ulterior dos promitentes ou outras circunstâncias coadjuvantes, que no caso se traduzem nas iniciativas tendentes ao cumprimento do contrato, desenvolvidas por CC, nos meses de Março e Abril de 2019 (al. CC dos factos provados), e nas circunstâncias de este já ocupar a casa e não estar dependente de um processo de crédito para a concretização da compra dos imóveis, apenas serão úteis para se apurar a vontade das partes quanto à natureza do prazo fixado, se do texto do seu acordo resultarem dúvidas a esse propósito.
Porém, perante o contrato-promessa em causa, tais dúvidas não chegam a instalar-se, como concluiu o tribunal recorrido.
As cláusulas contratuais fixadas a esse respeito são assertivas e não deixam qualquer dúvida quanto ao significado estabelecido pelas partes para a não celebração do contrato prometido, até 28-2-2019, como consta das als Y a BB dos factos provados:
Y. Na cláusula 5ª, n.º 1 do referido acordo, os Reclamantes e os Insolventes expressamente declararam que, era condição essencial do referido contrato promessa que o contrato definitivo de compra e venda se realizasse até no dia 28 de fevereiro de 2019.
Z. Mais declarando Reclamantes e Insolventes que “no caso, não esperado, de tal não acontecer, por culpa de qualquer dos outorgantes, declara-se, desde já, que o outro outorgante deixa de ter interesse na realização deste negócio”, cfr. cláusula 5ª, n.º 1 do referido acordo.
AA. Declararam ainda as partes “que, no caso, não esperado, de existir incumprimento na outorga do contrato definitivo de compra e venda no dia 28 de fevereiro de 2019, por culpa de qualquer dos outorgantes, considerar-se-á como havendo incumprimento definitivo do contrato promessa aqui estabelecido por parte do outorgante incumpridor” cláusula 5ª, n.º 2 do referido contrato promessa.
BB. Estabelecendo, ainda, que “em caso de incumprimento definitivo e culposo, total ou parcial do presente contrato promessa de compra e venda, imputável aos primeiros outorgantes, confere-se ao Segundo Outorgante, o direito de resolver o presente contrato e receber o sinal prestado em dobro” cláusula 5ª, n.º 4 do referido contrato promessa.
Recorrendo às alternativas do critério anteriormente exposto, temos de concluir que a forma pela qual as partes fixaram no contrato a equivalência da não celebração do contrato prometido até 28/2/2019 a um incumprimento definitivo da promessa consubstanciou a aposição, no contrato, de um termo subjectivo absoluto; não na aposição de um termo subjectivo relativo ou seja, segundo o conceito do apelante, de um prazo apenas relativamente fixo.
Pelo contrário, retirar do clausulado referido que, ultrapassada a data de 28/2/2019 sem a celebração do contrato prometido teria ainda de ser interpelado o faltoso para o cumprimento, como pressuposto da resolução por incumprimento, ou que a resolução do contrato ficaria dependente da demonstração de uma perda objectiva de interesse seria enveredar por uma interpretação completamente adversa ao texto contratual, que o contrariaria frontalmente. E isso, como se referiu, é vedado pelo nº 1 do art. 238º do C. Civil.
Não havendo qualquer dúvida, por via da interpretação do texto do contrato-promessa, sobre as consequências do seu não cumprimento até ao fim do prazo fixado, irrelevante se torna, para a aferição de um incumprimento definitivo, a disponibilidade do contraente não faltoso para vir a ainda a obter o cumprimento do contrato. As correspondentes iniciativas não podem assumir o significado de que, com isso, ele reconhecia não ter ou abdicava do direito de resolver o contrato com fundamento em tal incumprimento. Direito esse que tão claramente fora expressamente previsto no contrato-promessa. Tais como irrelevantes se tornam outras circunstâncias externas ao contrato que pudessem contribuir para a sua interpretação, se o seu texto deixasse margem para qualquer dúvida sobre a intenção das partes ao celebrarem o contrato em causa. Na ausência de dúvida sobre a vontade das partes transposta para o texto do contrato, nada mais cumpre indagar.
Neste contexto, só pode ter-se por legítima e eficaz a declaração de resolução do contrato notificada aos promitentes vendedores, faltosos no cumprimento da promessa, em 16/5/2019, assente no respectivo incumprimento definitivo do contrato-promessa. E apta, por isso, a determinar a actuação do nº 2 do art. 442º do C.Civil, como bem entendeu a sentença recorrida.
Subsequentemente, por mais nada constituir objecto deste recurso, cumpre confirmar a decisão recorrida, incluindo quanto à verificação e graduação do crédito dos recorridos e do recorrente.
Resta, em conclusão, negar provimento ao presente recurso, na confirmação da decisão recorrida.
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Sumário:
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação do Porto em não conceder provimento à apelação sob apreciação, com o que confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
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Porto, 10 de Setembro de 2024
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda