APERFEIÇOAMENTO DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ACÇÃO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
ACOMPANHANTE
DESIGNAÇÃO
CRITÉRIOS A VALORAR
Sumário

I – As eventuais deficiências existentes no recurso da matéria de facto não são sanáveis pela via do aperfeiçoamento, o qual está apenas reservado aos recursos da matéria de direito e no que se refere às conclusões (como decorre dos artigos 639.º e 640.º do Código de Processo Civil).
II – Uma acção especial de acompanhamento de maior, cujo regime começa por decorrer dos artigos 546.º, n.ºs 1 e 2 e 891.º a 904.º do Código de Processo Civil, é complementado pelas disposições gerais e comuns que, com as necessárias adaptações, lhe sejam aplicáveis, uma vez que se não se tratando de um processo de jurisdição voluntária (artigos 891.º, n.º 1 e 986.º e seguintes), estas podem ser-lhe aplicadas.
III – Dos artigos 139.º do Código Civil, 897.º e 898.º do Código de Processo Civil resulta a concretização dos princípios ordenadores que decorrem da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
IV – Conjugando os artigos 140.º e 143.º do Código Civil, o critério a observar na designação do/a Acompanhante é o do “imperioso interesse do beneficiário” (que se reporta aos direitos humanos e liberdades fundamentais da pessoa, nomeadamente aos seus direitos à solidariedade, ao apoio e à ampliação da sua autonomia), relevando – em primeira linha - a escolha do Acompanhado (nos termos do n.º 1 do artigo 143.º), a qual pode incidir sobre pessoa maior e no pleno exercício dos seus direitos.
V – Uma pessoa declarada insolvente não estando “no pleno exercício dos seus direitos” (por estar privada do exercício dos poderes de administração sobre os seus bens - artigo 81.º do CIRE) está legalmente está impedida de ser Acompanhante, no que concerne aos aspectos patrimoniais do/a Acompanhado/a (o que decorre, desde logo, dos artigos 145.º, n.º 4 e 1933.º, n.º 2, do Código Civil) .
VI – É lúcida e equilibrada a nomeação como Acompanhantes da Beneficiária, dos seus dois filhos, ficando a parte respeitante aos aspectos patrimoniais (administração dos seus bens e rendimentos) a cargo do não insolvente e os aspectos pessoais a cargo da filha mais próxima afectivamente daquela e com quem reside (obrigando a um necessário exercício de compromisso entre ambos os Acompanhantes, em benefício do bem estar da mãe).

Texto Integral

Decide-se na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa[1]

Relatório
SF intentou acção especial para acompanhamento de maior de D, peticionando que seja decretado o seu acompanhamento, instituindo-se a medida de representação ao abrigo do artigo 145.º do Código Civil, alegando - em síntese – que padece de afasia global que compromete a relação e comunicação com terceiros; que se desorienta no espaço e no tempo, não tendo, por vezes, a noção das horas do dia, dos dias da semana ou do mês, nem tão pouco das estações do ano; que não tem noção do dinheiro, nem do valor relativo das coisas; que é incapaz de executar as tarefas mais elementares para prover à sua subsistência ou à gestão do seu dia-a-dia síndroma demencial, razão pela qual se encontra dependente de terceiros para as actividades da vida diária; que se encontra desorientada no tempo e no espaço, não conseguindo ler nem escrever, não reconhecendo o dinheiro, nem memorizar factos novos ou evocar factos do passado recente.
O Requerente mostrou disponibilidade para assumir o cargo de acompanhante, juntamente com a sua irmã S.

Foi citado o MINISTÉRIO PÚBLICO, em cumprimento do artigo 21.º, n.º 1, ex vi do artigo 895.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
O Ministério Público apresentou Contestação, na qual sustentou nada ter a opor a que, caso haja fundamento, venha a ser decretado o acompanhamento da Requerida.
Foi nomeada Defensora Oficiosa à Requerida.
Por despacho de 28 de Setembro de 2023, foi suprido o consentimento da Requerida para a propositura da presente ação.
Procedeu-se à elaboração de Relatório Social, Habitacional e Familiar, bem como à elaboração de Relatório Pericial e Audição Pessoal e Directa da Requerida e dos seus filhos, indicados para o cargo de acompanhante.
Foi prolatada Sentença, que concluiu pelo seguinte Dispositivo:
“Face ao exposto, decide-se:
1) Determinar o acompanhamento a favor da Beneficiária D…, sob o regime de representação especial.
2) Excluir do livre exercício da Maior Acompanhada:
A. fixar domicílio e residência;
B. deslocar-se no país ou no estrangeiro;
C. gerir a sua medicação e saúde;
D. realizar testamento ou doações;
E. realizar negócios da vida corrente;
3) Nomear como acompanhantes da Beneficiária:
a. a sua filha S, melhor identificada nos autos, com as funções de representação pessoal da Beneficiária, nomeadamente:
✓ para contactos com entidades públicas, tais como, Hospitais, Unidades de Saúde, Segurança Social, Centro Nacional de Pensões, Caixa Geral de Aposentações, Autoridade Tributária e entidades privadas, tais como unidades hospitalares ou de saúde, bancos, CTT, outras entidades financeiras ou de seguros, desde que tais atos não tenham implicações patrimoniais;
✓ para supervisão, aceitação ou rejeição de marcação de consultas, de tratamentos, de terapêuticas, internamentos necessários, desde que tais atos não tenham implicações patrimoniais;
b. o seu filho SF, melhor identificado nos autos, com as funções de representação patrimonial da Beneficiária, nomeadamente:
✓ Movimentar a conta bancária titulada pela Beneficiária, tendo em vista, exclusivamente, custear as despesas da Beneficiária essenciais para a sua subsistência, relacionadas com renda, alimentação, vestuário, consumos de água, eletricidade, gás, telecomunicações, médicas e medicamentosas;
✓ Proceder ao recebimento de prestações sociais a que a Beneficiária tenha direito, bem como requerer em seu nome e representação quaisquer subsídios, prestações e apoios sociais junto das entidades competentes, que possam vir a melhorar a sua qualidade de vida e contribuir para uma melhor satisfação das suas necessidades;
✓ Representar a Beneficiária junto da Segurança Social, junto de assistentes sociais, junto da Santa Casa da Misericórdia e junto de Companhias de Seguro, requerendo e assinando tudo o que se mostre necessário à defesa dos seus direitos e interesses, e nomeadamente, os relativos à assistência e defesa da sua saúde, da sua integridade física, à sua proteção social e qualidade de vida, sempre que tais atos tenham implicações patrimoniais;
4) Declaro que o acompanhamento se tornou conveniente desde 18.04.2015.
5) Estabeleço o prazo de 3 anos para a revisão oficiosa das medidas de acompanhamento.
6) Declaro que não existe testamento vital, nem procuração para cuidados de saúde, relativamente à Beneficiária.
Fixa-se à causa o valor de €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), nos termos do art.303.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Sem custas – cf. art.4.º, n.º 2, alínea h) do Regulamento das Custas Processuais.
Registe e notifique.
Publicite-se a presente decisão nos termos do art.893.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, através da afixação de edital no Tribunal e na sede da Junta de Freguesia da residência da Beneficiária.
Após trânsito:
i. Comunique a presente decisão ao serviço competente da segurança social (cf. art21.º da Lei n.º 49/2018, de 14/08);
ii. Comunique a presente sentença à competente repartição do Registo Civil para efeitos de registo (cf. art.º 1920.º-B do Código Civil, aplicável ex vi art.º 902.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 1.º, n.º 1, al. h) e 69.º, n.º 1, al. g) do Código Registo Civil.

Abra conclusão dos autos 2 meses antes do fim do prazo previsto no ponto 5) do dispositivo da sentença, para efeitos de início da instrução do incidente de revisão”.
S, (co)Acompanhante nomeada e filha da Beneficiária veio apresentar Recurso, juntando Alegações, que culminou com as seguintes Conclusões:
“1.ª) A Recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal a quo em nomear dois acompanhantes, in casu, a Recorrente (filha da beneficiária) e o seu irmão (filho da beneficiária), pelo que, a Apelante pretende ver substituída essa decisão por uma outra em que seja ela a única acompanhante.
2.ª) A introdução do filho da Beneficiária como acompanhante não salvaguarda os interesses da Beneficiária, uma vez que o mesmo não tem qualquer ligação próxima e afectiva com a acompanhante/recorrente do plano pessoal nem com a Beneficiária.
3.ª) O Ministério Público viu e interpretou o mesmo que a Recorrente e entendeu, na sua Douta promoção que
a Recorrente deve ser nomeada a acompanhante principal S e o seu irmão o substituto (por eventuais impedimentos da irmã por razões de saúde ou outras).
4.ª) Na Sentença em crise (em sede de motivação da matéria de facto) reconhece-se existir contenda entre irmãos, considerando a existência de desentendimentos (até processo de violência doméstica em que a Recorrente foi vitima do seu irmão), sabendo que os mesmos se encontram desavindos e que existe, afinal, corte de relações entre ambos, e, bem assim, entre o filho da Beneficiária e esta, como a própria evidenciou aquando da sua audição: “como se afirma durante a audição da Beneficiária a mesma evidenciou uma relação de afeto, proximidade, confiança e de cumplicidade com a filha.
Para além disso, manifestou reações críticas, de sentido negativo, de discordância ou de desaprovação, em relação a algumas posições apresentadas pelo Requerente/filho (cf. facto provado n.º 10), Demonstrou querer ficar com a filha, que a mesma seja sua Acompanhante.” pelo que, não se compreende e até é completamente inaceitável e antagónico que o Tribunal a quo configure, in casu, um regime de acompanhamento repartido.
5.ª) O regime decidido pelo Tribunal a quo é inexequível, porquanto:
i) por impor que a Beneficiária e a Recorrente sejam obrigadas a relacionar-se pessoalmente com o filho daquela e irmão desta, sabendo-se da total incompatibilidade entre aquelas e este;
ii) por se entender que irmãos de relações cortadas poderão acordar e harmonizar entre si a gestão corrente e patrimonial da Beneficiária;
iii) por se considerar ser possível, naquele contexto de total corte de relações (com processo de violência doméstica pelo meio), que as decisões quanto a tratamentos médicos ou outros encargos de que a beneficiária careça, possam ser tomadas por um dos filhos enquanto espera o consentimento e a autorização do outro para a despesa seja efectuada;
6.ª) A Recorrente, filha, habituada a assegurar dos deveres de cuidado para com a Beneficiária, sua mãe, providenciando pelas suas necessidades económicas como alimentos, vestuário, habitação, higiene, educação e até alguma diversão, pela toma da medicação adequada, agendamento e acompanhamento médico, bem como adesão às terapêuticas que lhe forem prescritas, toma de vacinas, submissão a actos e tratamentos médicos, estando a beneficiária habituada à sua presença (e não à presença do filho), considera ser mais benéfico para os interesses da beneficiária mantê-la no estado em que está, sem necessidade de qualquer intervenção do seu irmão e filho da Beneficiária, mantendo as suas rotinas diárias, devendo ter capacidade económica para o efeito sem ter que pedir autorização a ninguém, devendo por isso ser nomeada, em exclusivo, sua acompanhante.
7.ª) Desde que a Recorrente e a Beneficiária vivem na mesma casa, isto desde 2019, que tem sido aquela a cuidar de todos os aspectos da vida da mãe, mormente, no que diz respeito a todos os aspectos burocráticos como a actualização do cartão de cidadão, mas também com marcação e ida a consultas médicas, realização de exames médicos e toma da medicação necessária.
8.ª) A Beneficiária é portadora de Perturbação Neurocognitiva Major, no contexto de Demência Vascular, mas consegue fazer a toda a sua higiene pessoal, escolher e vestir a sua roupa, consegue efectuar todas as tarefas domésticas, excepto cozinhar e passar a roupa a ferro.
9.ª) A Beneficiária consegue ser autónoma em muitas circunstâncias da sua vida, como se disse, na sua higiene pessoal e nas idas à casa-de-banho.
10.ª) A Beneficiária consegue perceber o que lhe é dito se não sentir pressionada e consegue expressar a sua vontade.
11.ª) A Beneficiária consegue reconhecer os nomes das pessoas que lhe são mais próximas, como os filhos e os netos, e consegue situar-se temporalmente e tem noção da realidade que a rodeia
12.ª) A maior dificuldade da Beneficiária é a fala, mas com calma e paciência, consegue exprimir-se.
13.ª) A Beneficiária, quando lhe é perguntado, como a própria exprimiu em audiência, não quer que o seu filho SF seja responsável por si seja quais forem as medidas de acompanhamento decretadas.
14.ª) A Beneficiária pretende ser a filha S que tenha essa incumbência, como aliás, a tem tido até agora.
15.ª) A Recorrente impugna expressamente a decisão de nomear dois acompanhantes, e é essa a decisão
que a Recorrente pretende ver substituída por outra em que seja ela a única acompanhante.
16.ª) A fixação de um acompanhamento bicéfalo, efectivamente não salvaguarda os interesses da Beneficiária.
17.ª) A solução preconizada na Douta Sentença recorrida afigura-se potenciadora de conflitos sendo a Recorrente e o seu irmão, tornado a Beneficiária a principal lesada com tal situação.
18.ª) A Douta Sentença em crise permite uma intromissão intolerável na vida privada da Recorrente e na da Beneficiária, por parte do filho.
19.ª) Não é razoável que a Recorrente fique sujeita ao controlo do seu irmão, em relação às despesas da gestão quotidiana da casa e dos cuidados de alimentação, saúde e higiene da mãe, num contexto em que vivem ambas na mesma casa.
20.ª) O Tribunal a quo não dá qualquer motivo para pôr em causa a idoneidade da Recorrente, para utilizar
criteriosamente os recursos patrimoniais disponíveis, necessários para cuidar do Beneficiária. Antes pelo contrário.
21.ª) Em sede de fundamentação da matéria de Direito o Tribunal a quo justifica a sua decisão de Acompanhamento Bicéfalo com o facto de a Recorrente ter sido declarada insolvente em 2019, mas o critério apresentado é apenas supletivo no âmbito do regime de maior acompanhado, porquanto, o acompanhante, em regra, deve corresponder ao escolhido pelo próprio acompanhado ou pelo seu representante legal [Cfr. Ana Luísa Pinto, in “O regime processual do acompanhamento do maior” (Revista “Julgar”, nº 41), pág. 166 “O tribunal deve atender à escolha do beneficiário manifestada na diligência de audição directa e pessoal (escolha essa que deve constar expressamente da acta da diligência, por escrito ou em gravação) ou, previamente, em testamento vital ou procuração para cuidados de saúde … deve ser dada primazia à escolha do beneficiário, sempre que a mesma se não revele desadequada aos seus interesses (no sentido de que ao tribunal compete assegurar a idoneidade do acompanhante para desempenhar as competências que lhe vão ser atribuídas)”. V. ainda, o e-book CEJ sobre o regime jurídico do maior acompanhado, em particular, a conferência de Nuno Ribeiro, in “O maior acompanhado – lei nº 49/2018, de 14 de Agosto”, pág. 96.].
22.ª) “Na procura do respeito pela autonomia da pessoa, o acompanhante, sendo designado judicialmente, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, e, só na falta de escolha, é que passa a ser deferido à pessoa que melhor salvaguarde o interesse do beneficiário, designadamente uma das previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art.º 143.º do CC” [Cfr. Mafalda Miranda Barbosa, in “Maiores acompanhados - primeiras notas…”, pág. 50. No mesmo sentido, v. Pedro Callapez, in “Processos especiais” (Coord. Rui Pinto/Ana Alves Leal), Vol. I, pág. 115.].
23.ª) Está provado nos presentes autos que a beneficiária da medida de acompanhamento escolheu exclusivamente a sua filha, ora Recorrente, para Acompanhante, mostrando-se esta idónea para salvaguardar os interesses imperiosos da Acompanhada, o que faz, pelo menos, desde 2019.
24.ª) O critério supletivo observado pelo Tribunal a quo não pode imperar, porque, in casu, conflitua com os interesses da própria Beneficiária.
25.ª) A finalidade do acompanhamento do maior é o seu bem-estar e a sua recuperação, razão pela qual a escolha do Acompanhante e o exercício da função do Acompanhante deve nortear-se sempre pela salvaguarda do interesse imperioso do Acompanhado e do seu bem-estar e recuperação [Como refere Mafalda Miranda Barbosa, in “Maiores acompanhados – primeiras notas…”, pág. 61 “No exercício das suas funções, e de acordo com o art.º 146º, nº 1 do CC, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bonus pater familiae, tendo em conta as circunstâncias da situação concreta. O instituto orienta-se, como não poderia deixar de ser, pelo supremo interesse do acompanhado”].
26.ª) A vontade da Beneficiária não pode ser desvirtuada nem suprimida pelo Tribunal a quo e, em consonância com o suprarreferido, considera a Recorrente que a Douta Sentença em crise violou, assim, o disposto nos artigos 143.º e seguintes do Código Civil, devendo ser revogada a Douta Sentença proferida, substituindo-se por outra que acautele os interesses da Beneficiária.
Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso da Acompanhante S…, filha da Beneficiária, obter Provimento e, em consequência, ser revogada a decisão que determina o Acompanhamento bipartido da Beneficiária;
Consequentemente, deve ser decretada a necessidade de protecção da beneficiária através do acompanhamento da Recorrente S, quer no plano pessoal quer no plano patrimonial.
ASSIM SE CUMPRIRÁ O DIREITO E SERÁ FEITA JUSTIÇA!”.
O Ministério Público veio apresentar Contra-Alegações, as quais culminou com as seguintes Conclusões:
“1ª - Analisada a douta sentença recorrida verifica-se que na mesma foram ponderados criticamente os fundamentos de facto e de direito que o caso suscita.
2ª - Assim, se por um lado, se atendeu à vontade da beneficiária e à sua inclinação para que a recorrente S fosse nomeada como sua acompanhante, tal como se estabelece no art.º 143º, nº1 do CC, também não deixou de se dar o devido relevo à necessidade de se salvaguardar o que se considera ser o cerne do regime de maior acompanhado: o interesse imperioso do beneficiário, essencialidade esta reconhecida no nº 2 do mencionado preceito legal.
3ª - Nessa medida, foi evidenciada a especial ligação da beneficiária à recorrente (afeto, proximidade, confiança, cumplicidade com a filha) condição que foi determinante da sua nomeação como acompanhante no plano da representação pessoal.
4ª – Atenta a natureza do instituto do acompanhamento de maior impõe-se que o acompanhante tenha um determinado perfil para efeitos da representação no plano pessoal e patrimonial, valendo nesta última parte, para além do mais as restrições estabelecidas no art.º 1933º, nº2 do CC, aplicável ex vi art.º 145º, nº4 do mesmo diploma.
5ª - Na realidade, o art.º 1933º, nº2 do CC é claro e imperativo: o declarado insolvente só pode ser acompanhante no plano da representação pessoal que não da administração de bens e rendimentos, pelo menos ao nível das decisões essenciais, admitindo-se que possa existir uma margem para o acompanhante pessoal, ao nível da execução e da sua funcionalidade.
6ª - Atendendo a que a recorrente foi declarada insolvente e que em face do estabelecido no art.º 1933º, nº 2 do CC, aplicável ex vi art.º 145º, nº 4 do mesmo diploma legal, a mesma ficou nomeada como representante da beneficiária no plano pessoal e que o filho da beneficiária SF foi nomeado representante no plano patrimonial afigura-se estar assegurado o interesse imperioso da beneficiária.
7º - Por não ter violado qualquer disposição legal inexiste fundamento para revogação da sentença recorrida, devendo manter-se a mesma.
No entanto, Vossas Excelências melhor decidirão conforme for de JUSTIÇA!”.
Admitido o Recurso, foi proferido a 19 de Julho de 2024 o seguinte Despacho:
“A apelante alegou que a beneficiária manifestou o desejo de que a recorrente seja nomeada a sua única acompanhante. Em concreto, alegou mesmo que “está provado que a beneficiária da medida de acompanhamento escolheu exclusivamente a sua filha, ora recorrente, para acompanhante, mostrando-se esta idónea para salvaguardar os interesses imperiosos da Acompanhada, o que faz, pelo menos, desde 2019”.
Alegou também a apelante que os dois acompanhantes nomeados se encontram desavindos, recusando-se a manter contactos.
Estamos perante dois factos que não constam do leque dos factos julgados provados.
Em face do exposto, ao abrigo dos arts. 652.º, n.º 1, e 655.º, n.º 1, convida-se a apelante a, no prazo de 10 dias, esclarecer se impugna a decisão respeitante à matéria de facto proferida e, em caso afirmativo, pronunciar-se sobre a admissibilidade do conhecimento do recurso, nesta parte, tendo presente a necessidade de satisfação dos ónus previstos no art.º 640.º do Cód. Proc. Civil.
Depois de recebida a resposta da apelante, ou decorrido o prazo assinalado (na falta de resposta), notifique os restantes partes intervenientes, para, querendo, se pronunciarem sobre a segunda questão referida no parágrafo anterior, no prazo de 10 dias.
Ouvidas as partes intervenientes, abra vista ao Ministério Público para os mesmos efeitos”.
A Recorrente veio, de seguida, referir que:
 - os referidos factos “se encontram provados pela matéria probatória considerada nos autos, desde logo pela Douta Procuradora que acompanhou o Julgamento”;
 - a Beneficiária expressamente e por gestos demonstrou que quer ficar com a filha, que a mesma seja sua acompanhante;
 - a Beneficiária é portadora de Perturbação Neurocognitiva Major, no contexto de Demência Vascular, pelo que, apesar de ter ainda a capacidade de entender o que lhe é perguntado pela Meritíssima Juiz, a verdade é que teve grandes dificuldades em comunicar e exprimir-se e, além disso, o raciocínio era perceptivelmente lento;
- para quem estava na Sala de Audiências, era perceptível a vontade e o querer da Beneficiária;
 - “em ordem a dar cumprimento ao vertido no artigo 640.º do Código do Processo Civil, cumpre referir que a Beneficiária, a requerida S e o requerente SF prestaram os seus depoimentos presencialmente (Consignado em acta no dia 15 de Fevereiro de 2024 no período compreendido entre as 10:15 e as 10:47)” (transcrevendo, de seguida, partes dos seus depoimentos);
 - a beneficiária manifestou o desejo de que a recorrente seja nomeada a sua única acompanhante em regime de exclusividade, mostrando-se esta idónea para salvaguardar os interesses imperiosos da acompanhada, o que faz, pelo menos, desde 2019;
 - os dois acompanhantes nomeados encontram-se desavindos, recusando-se a manter contactos um com o outro:
 - a Sentença admite a existência de contenda entre irmãos, “considerando a existência de desentendimentos (até processo de violência doméstica em que a Recorrente foi vitima do seu irmão), sabendo que os mesmos se encontram desavindos e que existe, afinal, corte de relações entre ambos, e, bem assim, entre o filho da Beneficiária e esta, como a própria evidenciou aquando da sua audição”, pelo que “deve constar no leque dos factos julgados provados que :
 i) A beneficiária manifestou o desejo de que a recorrente seja nomeada a sua única acompanhante em regime de exclusividade, mostrando-se esta idónea para salvaguardar os interesses imperiosos da acompanhada, o que faz, pelo menos, desde 2019;
ii) Os dois acompanhantes nomeados encontram-se desavindos, recusando-se a manter contactos um com o outro”.

O Ministério Público veio ainda dizer que “relativamente a matéria de facto que não consta do leque de factos provados, vem o MP aos autos dizer que lhe parece não ter a Apelante observados os ónus consignados no art.º 640.º CPC, donde, nesta parte, a inadmissibilidade do recurso”.
Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes[2]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, depois da verificação da existência de alguma impugnação da matéria de facto, importará verificar da correcção da decisão que nomeou como acompanhantes o filho e a filha da Beneficiária.
Cumpre decidir.
Os Factos
O Tribunal considerou provada a seguinte factualidade:
1) D nasceu a 19 de Agosto de 1958, na freguesia de Ajuda, concelho de Lisboa e é filha de C e A.
2) O Requerente nasceu a 23 de Julho de 1986, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa e é filho da Requerida e de A .
3) S nasceu a 4 de Setembro de 1978, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa e é filha da Requerida de A .
4) S foi declarada insolvente por sentença datada de 1 de Fevereiro de 2019, transitada em julgado em 25 de Fevereiro de 2019, tendo sido decretada a exoneração do passivo restante por despacho transitado em julgado em 14 de Abril de 2023.
5) A 18 de Abril de 2015, a Requerida teve uma hemorragia subaracnoideia, tendo sido, em consequência, colocada em coma induzido.
6) A Requerida é portadora de Perturbação Neurocognitiva Major, no contexto de Demência Vascular.
7) Reside com a filha e dois netos, em habitação municipal.
8) Face à condição de que padece, a Requerida:
a. não consegue exprimir o local onde reside.
b. não consegue manter uma conversa simples e com sentido, uma vez que tem dificuldades muito marcadas na comunicação.
 c. é parcialmente dependente nas actividades instrumentais da vida diária, na medida em que não faz compras sozinha; não utiliza transportes públicos; não sai sozinha de casa.
d. não identifica o dinheiro.
e. não sabe fazer cálculos.
f. tem dificuldade em compreender ordens complexas.
g. é incapaz de testar.
h. não é capaz de sozinha aceitar ou recusar tratamentos medicamente propostos.
i. é incapaz de proceder aos pagamentos das contas da água ou da luz, ir levantar cartas ou encomendas aos correios, ou cumprir as suas obrigações fiscais.
9) Não obstante essas limitações, a Requerida:
a. é autónoma nas atividades básicas da vida diária, nomeadamente alimenta-se com a própria mão e é autónoma na sua higiene e locomoção.
b. consegue executar tarefas básicas em casa, tais como apanhar a roupa, limpar o pó, ou fazer as camas.
c. sabe dar uso a objetos da vida corrente, nomeadamente ao telemóvel.
d. é capaz, em situações mais simples, de participar no processo de decisão, relativamente aos tratamentos médicos que lhe forem propostos.
e. toma a medicação sozinha.
10) A Beneficiária revelou uma maior proximidade e afeição com a filha.
11) A Requerida aufere uma pensão de invalidez, no valor de 567,37€.
12) Reside em habitação municipal, pagando 250€ de renda mensal.
13) Não possui registado testamento vital nem procuração de cuidados de saúde.
***
O Tribunal considerou Não Provados os seguintes factos com relevância para a decisão proferida (mais considerando não ter levado ao elenco da matéria de facto os factos alegados considerados absolutamente inócuos à boa decisão da causa, nem tão pouco os juízos meramente conclusivos):
A - A Requerida padece de afasia global.
B - A Requerida desorienta-se no espaço e no tempo, não tendo, por vezes, a noção das horas do dia, dos dias da semana ou do mês, nem tão pouco das estações do ano.
C - Precisa de ser orientada para proceder à sua higiene e para se vestir, sendo incapaz de seleccionar a roupa que vai vestir.
**
Apreciação da Matéria de Facto
O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Neste momento processual releva ainda o artigo 662.º do Código de Processo Civil, que começa por afirmar que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”[3].
Como, aliás, assinala o Conselheiro Tomé Gomes no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Setembro de 2017 (Processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1) é “hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.
Quando uma parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto[4], nos termos do artigo 640.º, n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:
1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);
2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).
Está aqui em causa, como sublinha com pertinência Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[5], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade[6], sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)”[7].
Como pano de fundo da apreciação a fazer dos factos que estejam em causa, também a circunstância de não se proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação “não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)” (Acórdãos da Relação de Guimarães de 15 de Dezembro de 2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos[8] e da Relação de Lisboa de 26 de Setembro de 2019, Processo n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2-Carlos Castelo Branco).
Assim, caberá ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto de cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne (fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria percepção perante a totalidade da prova produzida), continuando a ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e que “o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta”, pelo que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância[9] (sublinhado e carregado nossos).
Ana Luísa Geraldes sublinha mesmo que, em “caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte»[10].
O Tribunal da Relação deve usar aquilo a que Miguel Teixeira de Sousa chama de “um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação”[11].

Verificadas as Alegações e Conclusões da Recorrente importa começar por verificar se a impugnação dos factos se mostra correctamente efectuada.
E a resposta é clara: Não!
Repare-se, aliás, que a Recorrente não parece ter sequer percebido o alcance do Despacho proferido a 19 de Julho de 2024, tomando-o como um despacho de aperfeiçoamento, ao invés de um despacho acautelador de putativas decisões surpresa.
É que eventuais deficiências existentes no recurso da matéria de facto não são sanáveis pela via do aperfeiçoamento, o qual está apenas reservado aos recursos da matéria de direito e no que se refere às conclusões (como decorre dos artigos 639.º e 640.º do Código de Processo Civil): como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 2020 (Processo n.º 1008/08.3TBSI.E1.S1-António Magalhães), a “cominação para a falta de especificações constantes das als. a), b) e c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC é a rejeição da impugnação da decisão de facto, não havendo lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento nos termos do n.º 3 do art.º 639.º do CPC” (e é isso também que diz Abrantes Geraldes, quando assinala a ausência de “paliativos”, nestes casos)[12].
Assim, as novas e aperfeiçoadas alegações apresentadas pela Recorrente, são irrelevantes (constituindo mesmo, só por si, a confissão e assumpção da total irregularidade das inicialmente apresentadas).
O que constata à saciedade é que a Recorrente - em momento algum - cumpre os ónus que se lhe impunham para impugnar de forma adequada e processualmente relevante qualquer dos factos considerados provados e não provados na Sentença proferida pelo Tribunal a quo, limitando-se a discordar, fazer comentários, tecer considerações, apresentar narrativas, misturar apreciação de factos, com a apreciação de Direito, fundar a sua pretensão numa Promoção do Ministério Público, e tudo sem ter o cuidado - que se lhe exigia - de identificar expressamente os pontos de factos que impugna, de explicar porquê e baseada em quê (que factos e que material probatório os imporiam), e de propor, quanto a esses mesmos pontos uma qualquer redacção alternativa ou expressa indicação de como haveriam de ser julgados.
E era o mínimo que se lhe exigiria: o legislador pretende a já assinalada responsabilização das partes e faz exigências processuais sérias, para evitar que os recursos se tornem comentários, desabafos ou “achismos” sobre a prova produzida: como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Março de 2018 (Processo n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1-Tomé Gomes), a “natureza e estrutura da decisão de facto, bem como a economia da sua sindicância pelo tribunal ad quem, justificam o ónus, por banda do impugnante, de delimitar com precisão o objeto do recurso e o sentido da pretensão recursória nesse particular”, sendo que, “os requisitos formais de admissibilidade da impugnação da decisão de facto, mormente os constantes do artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada inteligibilidade do objeto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso”.
Não é feita uma individualização por facto concreto, não é feita a análise crítica perante essa individualização.
Convém, aliás, lembrar, que em face do n.º 2 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, quando “os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”. O que, não sendo feito, implica a imediata rejeição do recurso.
O normativo é claro e é assim que tem vindo a ser interpretado também pelo Supremo Tribunal de Justiça, como por exemplo:
- no Acórdão de 10 de Dezembro de 2020 (Processo n.º 3782/18.0T8VCT.G1-Manuel Capelo): “Não cumpre o ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto previsto no art.º 640 nº2 .al. a) do CPC o recorrente que, para lá de indicar os concretos pontos daquela decisão que considera incorretamente julgados e apontar que resposta deveria ter sido dada se limita a alegar que a sua discordância decorre, para lá dos documentos que enumera, também dos depoimentos e testemunhos que indica apenas nos seus nomes remetendo para a totalidade dos mesmos sem qualquer indicação das partes ou das expressões que nesses depoimentos considera decisivas para se proceder à alteração da decisão da matéria de facto”;
- no Acórdão de 05 de Setembro de 2018 (Processo n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2-Gonçalves Rocha), onde expressamente se afirmou que a “alínea b), do nº 1, do art.º 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos” e se concluiu que não “cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em vários blocos de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna”;
- nos Acórdãos de 06 de Novembro de 2019 (Processo n.º 1092/08.0TTBRG.G1.S1) e 20 de Fevereiro de 2019 (Processo n.º 1338/15.8T8.PNF.P1.S1) - ambos relatados pelo Juiz Conselheiro Chambel Mourisco - onde se voltou a assumir que não “cumprem o ónus imposto pelo art.º 640.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil os recorrentes que não concretizaram, por referência a cada um dos mencionados factos que impugnaram, quais os meios probatórios que, no seu entender, imporiam decisão diversa daquela que foi dada pelo Tribunal de 1.ª Instância, não indicando também a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre a matéria de facto, relativamente a determinados factos impugnados”.

O mesmo entendimento tem sido assumido nos Tribunais da Relação, como sucede, por exemplo:
- no Acórdão da Relação do Porto de 04 de Novembro de 2011 (Processo n.º 3319/17.8T8PRT.P1 - Jerónimo Freitas): o “recorrente não cumpre o ónus de especificação imposto no art.º 640º, nº 1, al b), do CPC, quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspetiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas”;
- no Acórdão da Relação de Guimarães de 22 de Outubro de 2020 (Processo n.º 5397/18.3T8BRG.G1 - Maria João Matos): o “ónus de impugnação previsto no art.º 640º, nº 1, al. b) do C.P.C. exige que o recorrente: especifique os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em primeira Instância para cada um dos factos que pretende impugnar, não sendo suficiente a genérica indicação dos ditos meios de prova (isto é, desacompanhada do reporte a cada um dos facto sindicados, e antes oferecida para a totalidade da matéria de facto sob recurso); a decisão que deve ser proferida sobre cada um dos factos impugnados, esclarecendo sobre o seu exacto teor (isto é, a exacta redacção que pretende para cada um deles); e a indicação das passagens da gravação em que funda a sua sindicância, de novo para cada um dos depoimentos em causa” e a “falta de cumprimento do ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, n.º 1 do CPC implica a rejeição imediata do recurso na parte afectada, uma vez que a lei não prevê a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento dirigido à parte incumpridora”;
- no Acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Setembro de 2023 (Processo N.º 18829/21.4T8SNT.L1 - Edgar Taborda Lopes[13]): ao “Recorrente cabe o ónus de concretizar qual(ais) a(s) concreta(s) passagem(ens) dos depoimentos gravados, que – em seu entender – imporiam decisão diversa relativamente a cada facto provado e não provado que pretende colocar em causa”, sendo que, o “incumprimento desse ónus impõe a rejeição da impugnação, uma vez que a lei não prevê a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento dirigido à parte incumpridora” e que não “se cumpre tal ónus quando um/a Recorrente indica os factos que considera incorrectamente julgados, mas remete para a transcrição de um depoimento sem indicar as partes ou as expressões que nesses depoimentos considera decisivas para se proceder à alteração desses concretos factos, nem fazendo essa indicação individualizadamente para cada um deles”.
A lei impõe a quem recorre específicos ónus de impugnação da decisão de facto, que tem de ser individualizada, para permitir que não tenha a parte contrária e, posteriormente o Tribunal superior, de andar a tentar adivinhar que concretos factos são impugnados, com base em quê e em que é que a concreta fundamentação do Tribunal para esses mesmos factos falha[14].
Como se diz de forma linear no Acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Setembro de 2017 (Processo n.º 3310/11.8TBALM.L1-7-Luís Filipe Pires de Sousa), cabe “ao apelante actuar numa dupla vertente: 
(i) rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo,
(ii) tentando demonstrar que a prova produzida inculca outra versão dos factos.
Assim, não chega sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, cabendo ao apelante aduzir argumentos no sentido de infirmar directamente os termos do raciocínio probatório adoptado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente. Em suma, não observa o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida o apelante que se abstém de desconstruir a apreciação crítica da prova feita pelo tribunal a quo, limitando-se a assinalar que existem meios de prova em sentido diverso do aceite como prevalecente pelo tribunal a quo; ou o apelante que sustenta apenas que o tribunal a quo faz uma incorreta valoração da prova produzida”.
Repare-se, por outro lado, que não só existe prova gravada e o Tribunal a quo produziu uma fundamentação clara, congruente e assertiva:
“O facto n.º 1 resulta da certidão do assento de nascimento da Requerida, junta com requerimento de 20.03.2023.
O facto n.º 2 tem por base a certidão do assento de nascimento do Requerente, conforme documento 2, junto com o requerimento inicial.
Os factos n.ºs 3 e 4 deram-se como provado com base na certidão do assento de nascimento da filha da Requerida, junta a 15.03.2024.
Relativamente à situação de insolvência da filha, tal também foi corroborado pela inquirição do Requerente, que, de forma clara e credível, revelou preocupação relativamente à gestão do património da mãe, por parte da irmã, uma vez que essa faz uma má gestão da conta bancária da Beneficiária
Os factos n.ºs 5, 6, 8.g., 8.h. e 9.d. resultam do teor do relatório pericial, junto a 06.12.2023.
Os factos n.ºs 8, 9.a, 9.c., 9.i. resultam do teor do relatório pericial e do relatório social, tendo ainda sido confirmados pela filha da Requerida.
Os factos 8.a. e 8.b. resultam do teor do relatório pericial e do relatório social, tendo ainda sido possível confirmá-los através da audição da Requerida.
O facto 8.c. resulta do relatório pericial e foi confirmado pela filha da Requerida.
O facto 9.b. resulta do relatório social e foi confirmado pela filha da Requerida.
Os factos 8.d., 8.e. e 11 têm por base de ambos os relatórios.
O facto n.º 10 tem por base a audição da beneficiária. A diligência de audição da beneficiária permitiu atestar as suas grandes dificuldades de expressão oral, mas também evidenciou uma relação de afeto, proximidade, confiança e de cumplicidade com a filha. Também manifestou reações críticas, de sentido negativo, de discordância ou de desaprovação, em relação a algumas posições apresentadas pelo Requerente. Demonstrou querer ficar com a filha, que a mesma seja sua Acompanhante.
Quanto aos factos provados 9.e. e 12 e facto não provado C, tais resultaram do depoimento da filha, que se teve sempre por credível, uma vez que é a mesma que reside com a Requerida e a acompanha diariamente.
Os ofícios de 08.11.2023 e 28.12.2023 permitem fazer prova do facto 13.
Deu-se como não provado o facto A, tendo em conta o relatório pericial e o depoimento da filha da Requerida, que o contradizem.
Quanto ao facto B não foi produzida qualquer prova”.
É para permitir verificar se o Tribunal a quo errou que a  lei processual civil faz todas as aludidas exigências quanto à impugnação da decisão de facto, com vista a permitir a sua reapreciação séria, porque, como se assinala no Acórdão da Relação de Lisboa de 06 de Julho de 2023 (Processo n.º 489/21.4T8TVD.L1-2-Carlos Castelo Branco) “a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: “Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017, Processo 1426/15.0T8BGC-A.G1, relator ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA)”.
A Recorrente, de uma forma displicente e fazendo tábua rasa das exigências legais faz umas Alegações e produz umas Conclusões como se o artigo 640.º não existisse.
Assim sendo e quanto a esta matéria, só podemos concluir inexiste uma verdadeira impugnação de qualquer facto, por não terem sido minimamente respeitadas as exigências do artigo 640.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) (o que se impõe decidir, uma vez que a lei - repete-se – nem prevê a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento dirigido à parte incumpridora).
O Tribunal julgará com os factos apurados e não colocados em causa.
*
O Direito
Iniciando o enquadramento do presente recurso, importa dizer que ele surge no âmbito de uma acção especial de acompanhamento de maior, cujo regime começa por decorrer dos artigos 546.º, n.ºs 1 e 2 e 891.º a 904.º do Código de Processo Civil, sendo ainda complementado e pelas disposições gerais e comuns que, com as necessárias adaptações, lhe sejam aplicáveis, uma vez que se não se tratando de um processo de jurisdição voluntária (artigos 891.º, n.º 1 e 986.º e seguintes), estas podem ser-lhe aplicadas.
Trata-se de um processo novo que traz consigo um passado ligado aos processos de interdição e de inabilitação, mas que traduz uma nova abordagem, que importa considerar.
O enquadramento que deste regime faz Maria Inês Costa - num estudo exaustivo e essencial sobre a temática - ajuda a compreender o porquê da relevância dos interesses em jogo:
“Numa altura em que, em virtude da evolução social e demográfica, a população tem vindo a envelhecer e a esperança média de vida a aumentar, a sociedade moderna enfrenta a complexa problemática da “desarmonia entre gerações[15].
Neste desequilíbrio geracional surgem, com particular relevo, os cidadãos adultos especialmente vulneráveis, seja em razão da idade ou de outra situação de maior vulnerabilidade (diagnóstico psiquiátrico, deficiência…).
É precisamente em virtude destas condições que se torna problemática a manutenção da autonomia em relação a estes adultos especialmente vulneráveis, uma vez que a certa altura das suas vidas se vêem “desapossados” das suas decisões, conduzidos a uma espécie de alienação social (sem retorno), em resultado da construção de cruéis papéis sociais que caracterizam a sociedade – nas palavras de BAUMAN[16] –, “líquida” em que vivemos e que leva ao gradual e silencioso afastamento do indivíduo da vida em sociedade
Essa tomada de consciência da necessidade de cuidado acrescido com as pessoas carecidas de maior protecção deu lugar a um movimento jurídico internacional de peso – onde se destaca a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[17] – e o Direito Civil, como não podia deixar de ser, não foi excepção, não obstante tradicionalmente virado para a actividade do cidadão na plena posse de todas as faculdades[18].
Seguindo as exigências dos tempos, Portugal[19] implementou o novo regime jurídico do maior acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto – e abandonou o sistema dualista e rígido dos institutos da interdição/inabilitação que provinha do Código Civil de 1966[20] – introduzindo um regime monista, flexível, norteado pelos princípios da “primazia da autonomia da pessoa”, construindo assim um modelo de acompanhamento – e não já de substituição – da pessoa carecida de protecção[21].
As alterações incidiram sobretudo nos artigos 138.º a 156.º do Código Civil (interdição e inabilitação), sobre as regras do processo correspondente (artigos 891.º a 905.º do Código de Processo Civil – transformado em processo urgente e ao qual se aplicam as regras da jurisdição voluntária) e em disposições dispersas do Código Civil que estabelecem restrições à capacidade, mas sempre na perspectiva da menor limitação possível à capacidade do maior que necessita de acompanhamento.
Tal como também já sucedia anteriormente com a interdição e a inabilitação[22] é ao tribunal que compete a decisão de aferir se há ou não lugar ao regime do acompanhamento; mas agora manda a lei que o tribunal deva ouvir primeiro, pessoal e directamente, o beneficiário, só assim ficando em condições de adoptar as “soluções à medida” das necessidades de cada caso, que deverão ser sempre orientadas à socialização do maior numa perspectiva de cidadania inclusiva.
 Uma das principais novidades do novo regime do maior acompanhado respeita, precisamente, à audição do beneficiário (artigos 139.º do Código Civil e 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), onde se prevê a reintrodução da audição pessoal e directa do beneficiário, apelidada de “interrogatório” na redacção do Código de Processo Civil de 2013, com longa tradição jurídico-processual no nosso ordenamento jurídico.
Desaparece a regra introduzida pela redacção do Código de Processo Civil 2013 e que permitia o decretamento da interdição/inabilitação sem o interrogatório do requerido, na ausência de contestação, prevendo-se agora a audição do beneficiário por parte do juiz enquanto meio de prova obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (cf. n.º 2 e 3 do artigo 897.º do Código de Processo Civil).
A pessoa carecida de protecção é assim chamada ao palco da vida judiciária, sendo não só convidada a participar como também a “conversar” no processo decisório que lhe respeita.
Esta novidade corresponde, conforme se discutirá infra, à inflexão da opção que o legislador tomou por altura da reforma do Código Processo Civil em 2013, colocando, contudo, problemas ao nível da sua efectivação, aqui se destacando as situações de mudança de domicílio por parte do beneficiário na pendência da acção, bem como, em última análise, da eventual (des)conformidade com os princípios ordenadores da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de uma audição feita por deprecada ou realizada através de meios de comunicação à distância”[23].
Partindo daqui, e anotando-se a total conformidade do processado nos presentes autos com estes princípios e exigências processuais (nomeadamente decorrentes dos artigos 139.º do Código Civil - Decisão judicial -, 897.º - Poderes instrutórios e 898.º - Audição pessoal - do Código de Processo Civil[24], os quais dão – por seu turno – corpo às imposições ordenatórias decorrentes da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[25]), vejamos como se explana o raciocínio exposto na Sentença sob apreciação recursiva:
I – SF requereu que fossem decretadas medidas de acompanhamento a favor de D.
II - Estão preenchidos os pressupostos para aplicação de medida(s) de acompanhamento.
III - A Constituição da República Portuguesa estabelece no seu artigo 26.º, n.º 1 que «A todos são reconhecidos os direitos (…) ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil (…) e à proteção contra quaisquer formas de discriminação», acrescentando o n.º 4 que «a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos previstos na lei».
IV – Está em causa a aptidão para se ser sujeito de direitos e deveres de modo a estabelecer relações jurídicas, podendo essa capacidade sofrer restrições, desde que previstas na lei (como a dignidade da pessoa humana – artigo 1.º -, a igualdade - artigo 13.º - e o respeito pela intervenção mínima e proporcional, respeitando-se o núcleo essencial do direito à capacidade – artigo 18.º, n.ºs 2 e 3).
IV - Estamos no âmbito da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto (vigente desde Fevereiro de 2019), que alterou o Código Civil, o Código de Processo Civil e outros diplomas que se reportavam à situação de pessoas interditas ou inabilitadas (regimes que correspondiam a uma solução rígida, estigmatizadora e contrária à perspectiva de recuperação do/a incapaz, tendo como principal preocupação a segurança no comércio), por forma a respeitar instrumentos de direito internacional, vinculativos, como a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (em cujo artigo 1.º de contém um conceito amplo de deficiência e no 3.º se consagra como princípios de intervenção, o respeito pela dignidade inerente; autonomia individual e independência; participação e inclusão plena e efetiva na sociedade; igualdade de oportunidades, salientando em todo o caso o n.º 4 do artigo 12.º, que o apoio não constitui uma substituição na tomada de decisão).
V - O processo de acompanhamento de maiores é um processo especial ao qual se aplicam, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária (artigo 891.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o que permite ao Tribunal investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes que considere necessárias para a boa decisão da causa (artigo 986.º, n.º 2).
VI - Nas providências a tomar, o Tribunal deverá adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (artigo 987.º), não estando o juiz vinculado à medida de acompanhamento requerida por quem instaurou o processo (artigo 145.º, n.º 2, do Código Civil).
VII - De acordo com o artigo 140.º, n.º 1, do Código Civil, as medidas de acompanhamento – decididas pelo Tribunal (artigos 139.º, n.º 1, do Código Civil e 900.º do Código de Processo Civil) – visam assegurar o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício de direitos e o cumprimento de deveres do acompanhado, sendo que, o/a acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do/a acompanhado/a, com a diligência requerida a um “bom pai de família” (artigo 146.º, n.º 1, do Código Civil).
VIII - Em primeiro lugar temos de estar perante um maior (artigos 122.º e 130.º do Código Civil), salvo nos casos do artigo 142.º do Código Civil.
IX - Em segundo lugar, é necessário o preenchimento dos requisitos do artigo 138.º do Código Civil, quanto à causa (elemento objectivo - razões de saúde, deficiência ou ligados ao comportamento) e quanto à consequência (elemento subjectivo - impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e cumprir os seus deveres).
X – O decretamento de uma medida de acompanhamento tem de decorrer de uma impossibilidade suficientemente forte e não meramente indiciária de uma pessoa maior se encontrar de modo pleno, pessoal e consciente impedida de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais (só se justificando, portanto, quando o/a acompanhado/a revelar uma inaptidão básica para autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal como patrimonial.
XI – D é maior (Facto n.º 1) e padece de Perturbação Neurocognitiva Major no contexto de Demência Vascular (Facto n.º 6).
XII - Do ponto de vista patrimonial, não identifica o valor do dinheiro, não sabe fazer e é incapaz de proceder aos pagamentos das contas da água ou da luz, ir levantar cartas ou encomendas aos correios, ou cumprir as suas obrigações fiscais e cálculos (Facto n.º 8, alíneas d., e., i.), o que revela um défice de autonomia relativamente à realização de actividades instrumentais da vida diária de natureza avançada, as quais englobam a capacidade de gestão financeira.
XIII - Do ponto de vista pessoal:
- não apresenta afectações graves relativamente à sua autonomia em realizar actividades básicas de vida diária, que remetem para tarefas como alimentar-se, vestir-se, cuidar da aparência e higiene pessoal e actividades instrumentais de vida diária de carácter familiar que envolvem tarefas de manutenção/organização do ambiente familiar (Facto n.º 9);
 - tem graves dificuldades de comunicação; é parcialmente dependente nas actividades instrumentais da vida diária e tem dificuldades em compreender ordens complexas (Facto n.º 8, alíneas a., b., c., f.).
- quanto à sua saúde, não é capaz de, sozinha, aceitar ou recusar tratamentos medicamente propostos (Facto n.º 8, h.), apesar de tomar (sozinha) a sua medicação (Facto n.º 9, e.).
XIV – Neste contexto é seguro afirmar que a Beneficiária está - efectivamente - impossibilitada de exercer de forma totalmente plena, pessoal e consciente os seus direitos e cumprir os seus deveres no que tange a actos de gestão do património e cuidados de saúde, e mesmo alguns direitos pessoais, verificando-se os pressupostos do acompanhamento.
XV - A medida de acompanhamento só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
- uma positiva, orientada pelo princípio da necessidade, impondo uma justificação para decretar o acompanhamento do/a maior (artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil) devendo limitar-se ao necessário tendo em conta as particularidades do caso concreto (pelo que o acompanhamento deve cessar quando cessarem as causas que o justificaram – artigo 149.º - e está sujeito a revisão – artigo 155.º).
- uma negativa, por ser subsidiária (artigo 140.º, n.º 2) face aos deveres de cooperação (artigos 1672.º e 1674.º) e assistência (artigos 1672.º, 1675.º, 1795.º-A, n.º 1 e 1874.º, n.ºs 1 e 2).
XVI – No que respeita ao património e saúde da Beneficiária D, verifica-se não serem supríveis pelos deveres gerais de assistência e cooperação, pelo que se justifica o acompanhamento, importando proceder à escolha da medida adequada de acordo com o artigo 145.º, n.ºs 2, 3 e 4.
XVII - O fito do acompanhamento não é o de incapacitar, mas o de auxiliar o/a beneficiário/a, prestando-lhe o apoio de que necessite para que possa exercer na plenitude a sua capacidade jurídica, não se encontrando o/a julgador/a espartilhado/a pelas medidas de acompanhamento requeridas, nem tais medidas são taxativas.
XVIII - Face aos factos provados e ao anteriormente já referido, apesar de algum nível de autonomia da Requerida, forçoso é concluir que as carências, sobretudo ao nível da gestão patrimonial e dos cuidados de saúde, reclamam uma resposta que não pode ser colmatadas através de outro instituto que não o do maior acompanhado.
XIX - Assim, tendo em conta as evidentes dificuldades da Requerida ao nível da gestão do seu património, consideramos que as medidas a aplicar, neste caso, se devem relacionar mais ao nível patrimonial e na representação especial em situações específicas, relacionadas primordialmente com os seus cuidados de saúde.
XX - Reputa-se adequado e proporcional à concreta situação em análise, sob a óptica do princípio da proporcionalidade, que D beneficie das seguintes medidas de acompanhamento:
1) Representação especial
i. para contactos com entidades públicas, tais como, Hospitais, Unidades de Saúde, Segurança Social, Centro Nacional de Pensões, Caixa Geral de Aposentações, Autoridade Tributária e entidades privadas, tais como unidades hospitalares ou de saúde, bancos, CTT, outras entidades financeiras ou de seguros;
ii. para supervisão, aceitação ou rejeição de marcação de consultas, de tratamentos, de terapêuticas, internamentos necessários;
2) Administração total do património, incluindo a movimentação da conta bancária titulada pela Beneficiária, tendo em vista, exclusivamente, custear as despesas desta essenciais para a sua subsistência, relacionadas com renda, alimentação, vestuário, consumos de água, eletricidade, gás, telecomunicações, médicas e medicamentosas.
XXI - Nos termos do artigo 150.º, n.º 1, o acompanhante deve abster-se de agir em conflito de interesses com o acompanhado, sob pena de incorrer nas consequências a que alude o artigo 261.º (cfr. artigo 150.º, n.º 2) e deve requerer autorização ao tribunal sempre que entender necessário e bem assim para a aplicação das medidas que entender convenientes (cfr. artigo 150.º, n.º 3).
XXII - Em regra, o exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres (artigo 147.º, n.º 1), sendo a restrição destes direitos excecional, assim refletindo a mudança que afasta a regra de que os acompanhados não podem decidir da sua vida (não esquecendo que o caminho para a valorização da dignidade e autonomia do/a Beneficiário/a, não colide com as restrições desses direitos de acordo com o caso concreto, ou seja, por vezes, é necessário restringir para adaptar e cuidar).
XXIII - Entende o Tribunal que, face às limitações cognitivas significativas apresentadas, a Requerida não apresenta capacidade para o exercício pleno de todos os direitos, pelo que o exercício dos direitos pessoais deve ser mantido, com exceção dos seguintes:
− fixar domicílio e residência;
− deslocar-se no país ou no estrangeiro;
− gerir a sua medicação e saúde;
 − realizar testamento ou doações.
XXIV - No que respeita aos negócios da vida corrente, atendendo a que a Requerida não revela ter conhecimento do valor facial do dinheiro, não se considera adequado permitir que a mesma mantenha a capacidade para a realização de negócios da vida corrente, pelo que também deverá ser acompanhada na realização dessas tarefas.
XXV - Todas as restrições que ora se determinam são-no a favor e em protecção da Beneficiária.
XXVI - Tendo em conta o Facto n.º 5, o acompanhamento tornou-se conveniente, desde 18.04.2015 (artigo 900.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
XXVII - O acompanhante é escolhido pelo acompanhado, devendo o mesmo ser maior e no pleno exercício dos seus direitos (artigo 143.º, n.º 1, do Código Civil).
XXVIII - Não houve, no presente caso, escolha por parte de D, que não tem testamento vital, nem procuração para cuidados de saúde (Facto n.º 11 – artigos 900.º, n.º 3, do Código de Processo Civil e 4.º, alínea b), 14.º, n.º 3 e 16.º, da Lei n.º 25/2012, de 16 de Julho[26]).
XXIX - Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário (artigo 143.º, n.º 2, do Código Civil), o qual se reporta aos direitos humanos e liberdades fundamentais da pessoa, nomeadamente aos seus direitos à solidariedade, ao apoio e à ampliação da sua autonomia
XXX - A noção de família deve conter elementos de proximidade afectiva, auxílio, responsabilidade e, pelo menos, interesse pela definição do projecto de vida da pessoa acompanhada, pelo seu bem-estar e recuperação, bem como disponibilidade para o visitar.
XXXI – No caso dos autos, durante a audição da Beneficiária, esta evidenciou uma relação de afecto, proximidade, confiança e de cumplicidade com a filha, manifestando reações críticas, de sentido negativo, discordância e desaprovação, em relação a algumas posições apresentadas pelo Requerente/filho (Facto n.º 10).
XXXII - Porém, importa considerar que, seguindo a representação legal, o regime da tutela, nos termos do artigo 145.º, n.º 4, do Código Civil, as restrições à nomeação de tutor prescritas no artigo 1933.º, são aplicáveis ao acompanhante, pelo que “Os maiores acompanhados, os insolventes e os inibidos ou suspensos das responsabilidades parentais ou removidos da tutela quanto à administração de bens podem ser nomeados tutores, desde que sejam apenas encarregados da guarda e regência da pessoa do menor ou desde que as medidas de acompanhamento o permitam” (n.º 2).
XXXIII - Extrai-se desta norma que os insolventes não podem ser encarregues, como acompanhantes, da administração de bens/rendimentos do maior acompanhado.
XXXIV - Pires de Lima-Antunes Varela referem, a propósito do regime da tutela, que se pretende, como objetivo, “aproveitar o capital precioso da relação afectiva que pode ligar o tutor ao seu pupilo, sem deixar cair sobre os bens do menor a sombra da inaptidão natural daquele, que só prejuízos poderia acarretar para o incapaz” (Código Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1995, página 453).
XXXV - Nos termos do disposto no artigo 143.º, n.º 3, do Código Civil “Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um”.
XXXVI - Transpondo as precedentes considerações para o caso vertente, considerando que S  foi declarada insolvente e sendo certo que a concessão da exoneração do passivo restante, se bem que permita ao insolvente um “fresh start” em termos patrimoniais, sem o peso das dívidas anteriores, não apaga a insolvência anterior, que se mantém averbada no seu registo, afigura-se não poder ser à mesma atribuída a administração de bens e rendimentos da Beneficiária, ainda que lhe possa ser atribuída a função de representação para as questões estritamente pessoais, em consonância com a preferência manifestada pela Requerida.
XXXVII - Quanto às questões patrimoniais, ponderando que a Beneficiária tem outro filho, que também demonstrou preocupação com o seu bem-estar, entende-se atribuir ao Requerente a representação da Beneficiária neste âmbito.
XXXVIII -Na decorrência do expendido, serão nomeados acompanhantes da Beneficiária:
− S, com funções de representação pessoal da Beneficiária, designadamente
- para contactos com entidades públicas, tais como, Hospitais, Unidades de Saúde, Segurança Social, Centro Nacional de Pensões, Caixa Geral de Aposentações, Autoridade Tributária e entidades privadas, tais como unidades hospitalares ou de saúde, bancos, CTT, outras entidades financeiras ou de seguros, desde que tais atos não tenham implicações patrimoniais;
- para supervisão, aceitação ou rejeição de marcação de consultas, de tratamentos, de terapêuticas, internamentos necessários, desde que tais atos não tenham implicações patrimoniais;
− SF, com funções de representação patrimonial da Beneficiária, nomeadamente:
 - movimentação da conta bancária titulada pela Beneficiária, tendo em vista, exclusivamente, custear as despesas da Beneficiária essenciais para a sua subsistência, relacionadas com renda, alimentação, vestuário, consumos de água, eletricidade, gás, telecomunicações, médicas e medicamentosas;
- proceder ao recebimento de prestações sociais a que a Beneficiária tenha direito, bem como requerer em seu nome e representação quaisquer subsídios, prestações e apoios sociais junto das entidades competentes, que possam vir a melhorar a sua qualidade de vida e contribuir para uma melhor satisfação das suas necessidades;
- representar a Beneficiária junto da Segurança Social, junto de assistentes sociais, junto da Santa Casa da Misericórdia e junto de Companhias de Seguro, requerendo e assinando tudo o que se mostre necessário à defesa dos seus direitos e interesses, e nomeadamente, os relativos à assistência e defesa da sua saúde, da sua integridade física, à sua protecção social e qualidade de vida, sempre que tais actos tenham implicações patrimoniais.
XXXIX - Quanto à constituição do Conselho de Família, nos termos do artigo 145.º, n.º 4, do Código Civil, “a representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.”
XL - Determina, por sua vez, o artigo 900.º, n.º 2 do Código de Processo Civil que o juiz, na sentença, pode proceder à designação, sendo o caso, do conselho de família (dois vogais, escolhidos entre os parentes ou afins” do/a Beneficiário/a, considerando proximidade do grau, relações de amizade, aptidões, idade, lugar de residência e interesse manifestado pelo/a Beneficiário/a e a quem cabe vigiar o modo por que são desempenhadas as funções de Acompanhante e exercer as demais atribuições que a lei especialmente lhe confere” - artigos 1951.º, 1952.º e 1954.º do Código Civil, ex vi do 145.º, n.º 4).
XLI – Sendo a Beneficiária viúva, tendo os dois filhos sido nomeados como Acompanhantes e não sendo conhecidas outras pessoas próximas daquela e que com ela se preocupem, dispensa-se a constituição do Conselho de Família (artigo 145.º, n.º 4).
XLII - Nos termos do artigo 155.º do Código Civil, oficiosamente, o “tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos” (podendo fazê-lo, nos termos dos artigos 904.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 149.º do Código Civil, a requerimento do acompanhante ou de qualquer das pessoas referidas no artigo 141.º, n.º 1).
XLIII - Ponderando a previsível evolução do quadro clínico, familiar, social ou institucional da Beneficiária (e de modo a assegurar que a medida aplicada será aquela que, a cada momento, melhor se adeque às suas necessidades e acautele os fins visados com a sua aplicação), em face da afetação padecida e do grau de dependência de terceiros para algumas actividades da sua vida diária e não se antevendo que se venham a registar melhorias que permitam aligeirar a medida de acompanhamento decretada (podendo mesmo ocorrer um agravamento das suas dificuldades de comunicação e do seu estado de saúde), fixa-se em três anos o prazo para revisão da medida (sem prejuízo de revisão em data anterior caso sobrevenha alguma alteração do quadro clínico da Beneficiária que o justifique).
XLIV - Relativamente à publicidade, nos termos do artigo 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, «O juiz decide, em face do caso, que tipo de publicidade deve ser dada ao início, ao decurso e à decisão final do processo», acrescentando o n.º 1 do artigo 153.º do Código Civil que «A publicidade a dar ao início, ao decurso e à decisão final do processo de acompanhamento é limitada ao estritamente necessário para defender os interesses do beneficiário ou de terceiros, sendo decidida, em cada caso, pelo tribunal», e o n.º 2 que «Às decisões judiciais de acompanhamento é aplicável o disposto nos artigos 1920.º-B e 1920.º-C».
XLV - Entende o Tribunal que a presente decisão deverá ser publicitada mediante a afixação de edital à porta do tribunal, para além da comunicação ao registo civil competente (artigos 1920.ºB do Código Civil e 1.º, n.º 1, alínea h) e 69.º, n.º 1, alínea g), do Código de Registo Civil).

O raciocínio é claro, linear, compreensível e a análise jurídica feita está solidamente fundamentada e estruturada de forma exemplar, restando apenas apurar se lhe assiste razão nos pontos de discordância apresentados pela Recorrente.
No essencial, que se reporta ao regime jurídico aplicável e princípios orientadores da decisão, bem assim como à leitura da situação em que a Beneficiária se encontra e à conclusão óbvia pela necessidade de aplicação do regime do maior acompanhado, bem assim como às medidas de representação tomadas, nada há a dizer, nem a alterar, pois em nada a Recorrente as coloca em causa, tornando despiciendo a sua reapreciação.
O foco da divergência, assenta apenas na nomeação de um duplo acompanhamento (os dois filhos, cada um com a sua função), ao invés de apenas um/a (na perspectiva da Recorrente, ela própria).

Apreciando a questão, efectivamente, o primeiro critério para essa nomeação é o da escolha do Acompanhado: o artigo 143.º, n.º 1, do Código Civil é claro quando diz que o “acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente”.
Como refere Paula Távora Vítor, as “exigências relativamente à figura do acompanhante prendem-se com a sua capacidade. Deve, desde logo, ser pessoa “maior” de dezoito anos (v. art.º 130.º). A referência ao “pleno exercício dos seus direitos” seria mais facilmente descortinável no âmbito do sistema anterior, uma vez que se identificaria com a ausência de interdição ou inabilitação. Ora, face ao novo regime, podemos ter alguém que não assistiu à limitação judicial da sua capacidade, mas que, ainda assim, está sujeito a medida de acompanhamento. Não poderá, portanto, identificar-se o maior acompanhado como alguém que não está no “pleno exercício dos seus direitos” e, ainda que haja uma limitação da capacidade no âmbito de tal processo, pode ter um âmbito muito restrito, que não afete o exercício da função de acompanhante. Face a este recorte impreciso será preferível remeter para uma avaliação da sua capacidade em concreto para assumir tal cargo”[27].
Como se expressa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Março de 2022 (Processo n.º 2076/16.0T8CSC.L2.S1-Rosa Tching):
- resulta “da conjugação dos artigos 140º e 143º, ambos do Código Civil que o critério a observar na designação do acompanhante é o do “imperioso interesse do beneficiário” que se reporta aos direitos humanos e liberdades fundamentais da pessoa, nomeadamente aos seus direitos à solidariedade, ao apoio e à ampliação da sua autonomia”;
- na “designação do acompanhante, a lei atribui preferência à escolha feita pelo próprio acompanhado/beneficiário, pois não só a dignidade da pessoa humana implica que se respeite a sua vontade como uma pessoa da confiança do acompanhado é, por regra, aquela que está em melhores condições para promover o seu bem-estar emocional e assegurar-lhe, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente”;
- só “não será de respeitar a escolha do acompanhado se as suas faculdades mentais não lhe permitirem fazer uma tal avaliação, isto é, se não tiver capacidade para compreender e avaliar a realidade que o cerca, ou se a pessoa por ele escolhida não se revelar idónea para o exercício do cargo”;
- cabe ao Tribunal, “de acordo com o critério do “ imperioso interesse do beneficiário ”, confirmar, ou não, a escolha do próprio acompanhado ou do seu representante legal ou, na falta de escolha por parte destes, designar o acompanhante ou acompanhantes, que devem estar em condições de exercer um conjunto de poderes-deveres de cuidado e diligência, dirigidos a promover, nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do Código Civil, o bem-estar e a recuperação do acompanhado, na concreta situação considerada”.
Ora, no caso dos autos, não havendo propriamente uma escolha do/a Acompanhante por parte da Beneficiária, tem-se como evidente que, para esta seria muito mais confortável ter a exercer essas funções a sua filha, com quem reside e tem bom relacionamento.
E essa até talvez fosse a decisão do Tribunal a quo, não fora a circunstância de a filha, ora Recorrente, ter sido declarada insolvente e, como tal, mais do que uma questão idoneidade[28],  não está “no pleno exercício dos seus direitos” e legalmente está impedida de ser Acompanhante, no que concerne aos aspectos patrimoniais.
Ou seja, a ora Recorrente, enquanto insolvente, está privada do exercício dos poderes de administração sobre os seus bens (artigo 81.º do CIRE) – não deixa de ser proprietária, mas só pode exercer esses poderes através do administrador de insolvência.
Aliás, o n.º 4 do artigo 145.º do Código Civil expressamente dispõe (a propósito do acompanhamento), que a “representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias”, sendo certo que o artigo 1933.º, n.º 2, é claro quando diz que os “maiores acompanhados, os insolventes[29] e os inibidos ou suspensos das responsabilidades parentais ou removidos da tutela quanto à administração de bens podem ser nomeados tutores, desde que sejam apenas encarregados da guarda e regência da pessoa do menor ou desde que as medidas de acompanhamento o permitam”.
Neste normativo, constata Luís Silveira que existem “causas impeditivas de assumir a tutela, [e que] umas assentam em caraterísticas jurídicas ou pessoais/sociais dos possíveis candidatos, outras em relações existentes entre eles e os menores ou seus familiares”[30], sendo que, a “relevância do acompanhamento para a designação como tutor vem explicitada no n.º 2”, onde se “distingue, na tutela, o aspeto pessoal e o patrimonial. E dá maior relevo à tutela pessoal, admitindo que esta possa ser instituída autonomamente. Nesse caso, terá de ser designado administrador (ou administradores) para gerir os bens do menor. Note-se que a inversa não é verdadeira, ou seja, não é possível nomear tutor apenas para gerir os bens do menor”[31].
Neste contexto, é evidente que a ora Recorrente, enquanto insolvente, estava impedida de ser nomeada como Acompanhante única da sua mãe, embora pudesse sê-lo excluindo a administração dos seus bens e rendimentos.
E foi por isso que, de uma forma lúcida, equilibrada e revelando enorme sensatez, o Tribunal a quo afastou a ora Recorrente do que respeita aos aspectos patrimoniais no que se reporta à administração dos bens da Beneficiária (se o não pode fazer sobre os seus bens, inevitavelmente, não o pode sobre os de outrem), atribuindo-lhe todos os restantes, assim logrando encontrar uma solução adequada fazer face às necessidades da Beneficiária.
Estabeleceu-se, assim, uma situação de duplo acompanhamento, perfeitamente adequada e que não corresponde sequer a qualquer originalidade, como se pode constatar no Acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Setembro de 2023 (Processo n.º 11405/22.6T8SNT.L1-6-Gabriela Marques), onde se escreveu que no “âmbito de uma acção de maior acompanhado nomeadas duas acompanhantes, uma para as questões pessoais e outra para as questões patrimoniais, e fixadas na sentença as funções a exercer por cada uma das acompanhantes, estas devem, a todo o passo, articular-se no sentido do cabal exercício das mesmas, da forma que melhor entenderem, mas sempre do prisma da salvaguarda daquilo que é o interesse imperioso do beneficiário”.
Não fica configurada uma situação ideal, mas fica estabelecida uma solução legal e que pouco altera o entorno mais próximo da Beneficiária, sendo que, nos aspectos patrimoniais, obriga apenas a Acompanhante filha, ora Recorrente, a algum esforço de articulação com o irmão: assim se logra concatenar a situação legal, com a situação familiar concreta dos intervenientes, sempre salvaguardando os interesses da beneficiária (artigo 143.º, n.º 2, do Código Civil) e levando em consideração a proximidade afectiva, possibilidades de auxílio, responsabilidade individual dos filhos e o seu interesse no bem-estar e recuperação desta (até porque a alternativa passaria por encontrar alguém externo para reger os aspectos patrimoniais da vida da Beneficiária).
Admite-se que possa ser um esforço exigente, mas não é um esforço inexigível e, como filhos preocupados com a mãe e o seu bem-estar, se não optarem por entrar em situações de individualismo e egoísmo extremos, certamente conseguirão gerir o quotidiano[32].
A solução encontrada vai exigir compromisso[33] a ambos os Acompanhantes – filhos da Beneficiária (que, sublinhe-se, é aqui o elemento determinante) e, crê-se, tal acabará por ser, naturalmente, possível: não se pede aos Acompanhantes que gostem um do outro, mas apenas que para bem a sua Mãe se articulem civilizadamente (sendo que, a existirem problemas, sempre o Tribunal poderá intervir, até porque a Decisão está sempre sujeita a revisão).
A Sentença sob recurso é, deste modo, uma peça jurídica completa, sólida, fundamentada, nada havendo a alterar-lhe ou a acrescentar-lhe, por desnecessário ou redundante, em consequência do que o Recurso interposto improcede na totalidade.
*
Nas palavras de Eric Voegelin as “sociedades dependem para a sua génese, a sua existência harmoniosa continuada e a sobrevivência, das acções dos seres humanos componentes. A natureza do homem e a liberdade da sua acção para o bem e para o mal, são factores essenciais na estrutura da sociedade"[34].
Recorrente e Recorridos escolheram o seu caminho de actuação.
Ao Tribunal resta, no "acto de julgar", não dar razão à Recorrente e fazer improceder o seu recurso (tendo, na linha de Paul Ricoeur, como "horizonte um equilíbrio frágil entre os dois componentes da partilha" - "demasiado próximos no conflito e demasiado afastados um do outro na ignorância, no ódio, ou no desprezo" - mas impondo-se, "por um lado, pôr fim à incerteza, separar as partes; por outro, fazer reconhecer a cada um a parte que o outro ocupa na mesma sociedade, em virtude do que o ganhador e o perdedor do processo seriam reputados ter cada qual a justa parte no esquema de cooperação que é a sociedade"[35]).
**
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a Sentença sob recurso.
*
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique e, oportunamente, remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 10 de Setembro de 2024
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
Ana Mónica Mendonça Pavão[36]
_______________________________________________________
[1] Por opção do Relator, o Acórdão utilizará a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1945 (respeitando nas citações a grafia utilizada pelos/as citados/as).
A jurisprudência citada no presente Acórdão, salvo indicação expressa noutro sentido, está acessível em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/.
[2] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[3] “O atual art.º 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” - Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 332.
[4] Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, páginas 193 a 210.
[5] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., página 200.
[6] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 201-205.
[7] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 206-207.
[8] Que acrescenta, relevantemente, que “este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10…).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12…).
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10…. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10)”.
[9] Acórdão da Relação de Guimarães de 15 de Dezembro de 2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1 - Maria João Matos.
[10] Assinalando ainda que “nessa reapreciação da prova feita pela 2ª instância, não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido” (Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, publicado nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, Coimbra Editora, 2013, páginas 589 e seguintes(609), com o texto disponível on line em http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf, páginas 17-18 [consultado a 31/08/2024]
[11] Blog do IPPC, 19/05/2017, Jurisprudência (623), em anotação ao Acórdão da Relação de Coimbra de 07/02/2017, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2017/05/jurisprudencia-623.html  [consultado a 14/03/2024]
Vd. também, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 14 de Dezembro de 2022 (Processo n.º 1720/20.9T8GDM.P1-Fernanda Pinheiro.
[12] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., páginas 198 e 199.
[13] Com uma formação diferente da dos presentes autos (Juízas-Desembargadoras Cristina Coelho e Micaela Sousa).
[14] Só assim é possível verificar - e eventualmente alterar - o processo de convencimento a que se refere o, profusamente citado em inúmera jurisprudência posterior - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Maio de 2016 (Processo n.º 1393/08.7YXLSB.L1-7-Amélia Ribeiro): “É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum”.
[15]  NEVES, Alexandra Chícharo das, O estatuto jurídico dos “Cidadãos Invisíveis”, O longo caminho para a plena cidadania das pessoas com deficiência, Tese para obtenção do grau de Doutor em Direito, UAL, Lisboa, Setembro de 2011, disponível em https://repositorio.ual.pt.
[16] BAUMAN, Zygmunt, Amor Líquido, Relógio d’água, 2003.
[17] Portugal ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) no ano de 2009 (em simultâneo com o Protocolo Facultativo), pelas Resoluções da Assembleia da República n.º 56/2009 e 57/2009, ambas de 30 de Julho. E ratificou-os pelas Decisões do Presidente da República n.º 71/2009 e 72/2009, ambas de 30 de Julho.
[18] MONTEIRO, Menezes Cordeiro e António Pinto, Da situação jurídica do maior acompanhado, Estudo de política legislativa relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maiores, Revista de Direito Civil, n.º 3, Almedina, 2018, pág. 473.
[19] Quanto à evolução económico-social e demográfica, vd. ALVAREZ M., SOUSA. T., SÁ R. E TEIXEIRA Z., A longevidade e o Envelhecimento: Escritos de Direito da Saúde – Envelhecimento, edição FAF, Fevereiro de 2018 e ainda COSTA, Marta, A desejável flexibilidade da incapacidade das pessoas maiores de idade, Lusíada, Direito, Lisboa, n.º 7 (2010).
[20] COSTA, Américo de Campos, Incapacidades e formas do seu suprimento – anteprojecto do Código Civil, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 111, 1961.
[21] O legislador português subscreveu assim as novas tendências mundiais e europeias, perfilhando a “doutrina da alternativa menos restritiva” situando a pessoa carecida de protecção numa posição de igualdade de direitos em relação aos demais. Neste sentido, vd. na doutrina, MOREIRA, Sónia, A reforma do regime das incapacidades: o maior acompanhado, Temas de Direito e Bioética – Vol. I, Novas questões do Direito da Saúde, dezembro de 2018.
[22] Cf. nomeadamente, CORDEIRO, Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, Coimbra, Almedina, 2004, págs. 409-427; VASCONCELOS, Pais de Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª Ed., Coimbra, Almedina, 2015, págs. 110-116.
[23] Maria Inês Costa, A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas, Julgar-on line, Julho de 2020, disponível em http://julgar.pt/a-audicao-do-beneficiario-no-regime-juridico-do-maior-acompanhado-notas-e-perspectivas/.
[24] Para além do elemento interpretativo em que se traduz o que consta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 110/XIII, que deu origem à Lei n.º 49/2018, de 28 de Agosto: “Os fundamentos finais da alteração das denominadas incapacidades dos maiores (…) são, em síntese, os seguintes: a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; a agilização dos procedimentos, no respeito pelos pontos anteriores; a intervenção do Ministério Público em defesa e, quando necessário, em representação do visado.
Para prosseguir estes objetivos, opta-se, por um lado, por um modelo monista – em claro detrimento de um modelo de dupla via ou múltiplo – por se considerar ser o dotado de maior flexibilidade e de amplitude suficiente, por compreender todas as situações possíveis, e por outro, por um modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade. Por comparação com o regime atual, é radical a mudança de paradigma. Este modelo é o que melhor traduz o respeito pela dignidade da pessoa visada, que é tratada não como mero objeto das decisões de outrem, mas como pessoa inteira, com direito à solidariedade, ao apoio e proteção especial reclamadas pela sua situação de vulnerabilidade”
(acessível, junto com todos os pareceres produzidos no decurso do processo legislativo, no e-book do CEJ, O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Colecção Formação Contínua, Fevereiro de 2019, páginas 139 e seguintes, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=_nsidISl_rE%3D&portalid=30).
[25] O que nos permite concluir, com Margarida Paz, que a “audição pessoal e direta do beneficiário, na concretização dos princípios constantes do artigo 3.º da Convenção, constitui o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, e independência da pessoa com deficiência [alínea a)], bem como a sua participação e inclusão plena e efetiva na sociedade [alínea c)]. Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal. Na verdade, o acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito” (Margarida Paz, O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, in O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, [em linha] Colecção Formação Contínua, Fevereiro de 2019, páginas 130-131, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=_nsidISl_rE%3D&portalid=30 [consultado a 31/08/2024].
[26] A qual regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV).
[27] Paula Távora Vítor, em anotação ao artigo 143.º do Código Civil, in Ana Prata, Código Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2019, páginas 177 e 178
[28] Como no caso decidido no Acórdão da Relação do Porto de 10 de Julho de 2024 (Processo n.º 238/24.5T8VNG.P1- Eugénia Cunha).  
[29] Sublinhado e carregado nossos.
[30] Luís Silveira, em anotação ao artigo 1933.º do Código Civil, in Ana Prata, Código Civil, Volume II, Almedina, 2019, página 859.
[31] Luís Silveira, em anotação ao artigo 1933.º do Código Civil, ob. loc. cit..
Na mesma linha, e a propósito deste n.º 2, Pires de Lima-Antunes Varela referiam que o objectivo deste regime passa “aproveitar o capital precioso da relação afectiva que pode ligar o tutor ao seu pupilo, sem deixar cair sobre os bens do menor a sombra da inaptidão natural daquele, que só prejuízos poderia acarretar para o incapaz” (Código Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1995, página 453).
[32] Escreve Victoria Camps que, numa “perspectiva individualista, a humanidade parece empenhada na sua extinção como tal, tão escassas são as manifestações de autêntica humanidade e dignidade. Existem, sem dúvida, mulheres e homens que cumprem satisfatoriamente o papel que lhes foi dado viver, não são más pessoas, mas poucas vezes – talvez só perante situações limite como a morte – fazem o esforço de se distanciar do seu cenário específico e envolver-se no sei de uma circunstância um pouco mais ampla” (Paradoxos do Individualismo, Relógio D’Água, 1996, páginas 16-17.
[33] É A.C. Grayling que refere que um “facto familiar mas profundo explica o carácter controverso dos debates morais, sociais e políticos: há quase sempre duas formas diametralmente opostas de ver o mesmo problema humano. Deste modo, quando surgem discussões nestes campos, a revelação de uma incapacidade ou contrariedade no estabelecimento de compromissos pode ser vista ou como intransigência ou como tenacidade, dependendo da extremidade do telescópio moral em que nos colocamos. Ao justificarem aquilo que, para quem está de fora, parece inflexibilidade, obstinação e preconceito, as pessoas fazem apelo aos seus princípios, às suas tradições, aos seus direitos, e às ameaças que pairam sobre todos eles. A proficiência moral é a capacidade de discernir o que é o quê.
Os riscos que se correm ao não alcançar um compromisso em qualquer questão, grande ou pequena, não precisam de ser referidos”, mas pode dizer-se que ele “deverá ser satisfatório para ambas as partes, dando a cada uma o prazer de acreditar que conseguiu mais do que devia, ao mesmo tempo que não foi privada da nada que seja justamente seu” (O Significado das Coisas, Gradiva, 2002, páginas 31-32).
[34] Eric Voegelin, A Natureza do Direito e outros textos jurídicos, Vega, 1998, página 95.
[35] Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, páginas 168-169; cfr., também, com interesse, François Ost, A Natureza à Margem da Lei - A Ecologia à Prova do Direito, Instituto Piaget, 1997, páginas 19 a 24.
[36] Assinaturas digitais, cujos certificados estão visíveis no canto superior esquerdo da primeira página (artigos 132.º, n.º 2 e 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 19.º, n.ºs 1 e 2, e 20.º, alínea b), da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto).