PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EFEITO DEVOLUTIVO
SUSPENSÃO DA LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
Sumário

1 – Em processo de insolvência os recursos têm efeito devolutivo, apenas podendo ter efeito suspensivo parcial nos casos expressamente previstos no próprio CIRE, não sendo aplicável o disposto no nº 4 do art.º 647º do CPC.
2 – Não é possível a suspensão da liquidação do ativo em processo de insolvência, fora dos casos de suspensão previstos no próprio CIRE.
3 – O art.º 272º do CPC não é aplicável ao processo de insolvência e nos seus apensos típicos, nos termos do art.º 8º nº1 do CIRE.

Texto Integral

Acordam as Juízas da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
SSS, Lda foi declarada insolvente por sentença de 12/01/2016, transitada em julgado.
ISI, Lda veio, por apenso, intentar contra a massa insolvente, ação declarativa comum, correspondente ao apenso F, pedindo:
1) Seja declarado o direito de preferência da Autora, enquanto proprietária do prédio identificado (…), na alienação do prédio identificado (…);
2) Ser em conformidade determinada a venda, a favor da Autora, mediante o prévio pagamento do preço nos termos legais.
Para tanto alegou, em síntese, ser proprietária de prédio confinante com imóvel apreendido, o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo …º e descrito na competente Conservatória do Registo Predial da … sob o número …, da freguesia do …., concelho da …, o qual foi objeto de várias alterações de área, sem que a mesma esteja estabelecida e subsistindo ainda no mesmo parcelas de colonia não remidas. Goza de preferência por ser proprietária de prédio confinante e está interessada na aquisição pelo preço aprovado de €140.000,00.
Naquela ação associou aos autos DUC pago no valor de €140.000,00.
Citada a R., não contestou.
Por sentença de 30/09/2023, a ação foi julgada improcedente e a R. absolvida de todos os pedidos.
A ali A., ISI, Lda, apelou, tendo o recurso sido admitido por despacho de 22/11/2023 como recurso de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. artigo 14.º, n.ºs 5 e 6, do CIRE).
O recurso de apelação encontra-se pendente neste Tribunal da Relação de Lisboa.
No apenso D, liquidação, foi promovida a venda do imóvel apreendido acima identificado (verba nº 3) mediante leilão, no qual foi obtida uma proposta de €762.422,74, tendo o Sr. Administrador da Insolvência, por requerimento de 16/02/2024, informado ser do entendimento que se deve proceder à adjudicação, tendo já comunicado tal posição à Comissão de Credores.
Em 11/03/2024. ISI, Lda. apresentou naquele apenso D o seguinte requerimento:
“ISI, Lda., Autora na acção a que respeita o Apenso F dos presentes Autos, vem expor e requerer o que segue:
1) Um dos pedidos formulados na dita acção respeita ao direito de aquisição do imóvel do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na C.R.P. da … sob o número …, da freguesia do …, pelo preço de €140.000,00, o qual foi oportunamente depositado para o efeito;
2) Essa acção veio a ser julgada improcedente, por Sentença da qual foi interposto Recurso de Apelação, com efeito meramente devolutivo, o qual se encontra ainda pendente;
3) Importa salvaguardar o efeito útil da eventual procedência de tal Recurso – ou seja, em última análise, que seja efectivamente o Tribunal da Relação de Lisboa a dirimir a questão em causa;
Nestes termos,
Requer que o procedimento de adjudicação em curso, conforme informação prestada a 16/02/2024, sob a refª. 5641685, pelo Ilustre Administrador de Insolvência, aguarde a apreciação do referido Recurso de Apelação.”
Ouvido o administrador da insolvência, por ordem do tribunal veio este pronunciar-se nos seguintes termos:
“1 – O recurso apresentado pela ISI, Lda, e como o próprio indica, tem efeito meramente devolutivo e não suspensivo.
2 – Desta forma, crê-se que não deve ser suspenso o ato de adjudicação ao proponente, acautelando, assim, os interesses da massa insolvente e credores.
3 – No entanto, salvaguarda-se para efeito útil, que o rateio final não deve ser realizado antes da decisão referente ao recurso de apelação apresentado.
3 – Ademais, caso a decisão seja favorável ao recorrente, a MI tomará as devidas diligências, pois em causa está um prejuízo de mais de meio milhão de euros para os credores da insolvência.
4 – Pelo exposto, aguarda superior decisão de V.Exa quanto ao prosseguimento da adjudicação ao proponente registado.”
Em 02/04/2024, o tribunal proferiu o seguinte despacho:
“Requerimento datado de 11 de Março de 2024 e requerimento datado de 21 de Março de 2024:
Por requerimento datado de 11 de Março de 2024, veio a sociedade ISI, LDA. requerer que o procedimento de adjudicação do “prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o n.º …” seja declarado suspenso até que seja apreciado o recurso de apelação interposto da sentença, datada de 30 de Setembro de 2023 e proferida no âmbito do processo n.º 4260/15.4T8FNC-F.
Cumpre decidir.
A sociedade ISI, LDA. instaurou uma acção declarativa comum contra a MASSA INSOLVENTE, que correu termos sob o n.º 4260/15.4T8FNC-F, peticionando que fosse declarado o seu direito de preferência, enquanto proprietária do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … e descrito na CRP da … sob o n.º …., na alienação do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o n.º …..
Por sentença datada de 30 de Setembro de 2023, o Tribunal decidiu julgar a referida acção declarativa comum totalmente improcedente.
Por requerimento datado de 26 de Outubro de 2023, veio a sociedade ISI, LDA. interpor recurso da sentença que antecede.
Por despacho datado de 22 de Novembro de 2023, o Tribunal decidiu admitir o mencionado recurso, o qual é de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. artigo 14.º, n.ºs 5 e 6, do CIRE).
A atribuição a um recurso de efeito meramente devolutivo significa que é possível executar a decisão recorrida na pendência do recurso.
Por conseguinte, o Sr. Administrador da Insolvência tem legitimidade para prosseguir com a liquidação do referido imóvel.
Contudo, enquanto a sentença estiver pendente de recurso, não pode qualquer credor ser pago em sede de rateio com base no produto da venda do referido imóvel.
Improcede, assim, o requerido.
Sem custas pela simplicidade do incidente.
Notifique.”
Inconformada apelou a A., pedindo seja o recurso julgado procedente e formulando as seguintes conclusões:
“1º Não obstante a acção que se encontra a correr os respectivos termos sob o Apenso F haver sido julgada integralmente improcedente por douta Sentença de 30/09/2023, e não obstante ainda o Recurso de Apelação desta, que se encontra pendente, haver sido admitido com efeito meramente devolutivo, existe uma objectiva prejudicialidade intrínseca entre o respectivo desfecho final, e os termos em que se há de processar a liquidação do prédio, integrado na Massa Insolvente, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CRP da … sob o número …., da freguesia do …, concelho da ….
2º É que, em função do peticionado em segundo lugar na dita acção, está em causa o saber se tal venda se faz ou não a favor da Recorrente, pelo preço, já depositado nos Autos, de €140.000,00.
3º Significando a atribuição de efeito meramente devolutivo a possibilidade de execução a decisão recorrida na pendência do recurso, não está, in casu, propriamente em causa a execução da douta Sentença de 30/09/2023, posto que foi no sentido da improcedência da acção.
4º Mesmo na consideração de uma decisão que seja propriamente exequível, a atribuição de efeito meramente devolutivo ao respectivo recurso não prejudica a necessidade da salvaguarda da possibilidade da sua efectiva reversão, no caso de procedência do recurso.
5º Ora, a cautela, determinada no douto Despacho de 02/04/2024, ora recorrido, apenas no sentido de nenhum credor poder ser pago em sede de rateio com base no produto da venda do referido imóvel, enquanto o Recurso de Apelação em causa não se mostrar decidido, não impede, objectivamente, que o mesmo seja entretanto vendido a terceiro por valor diverso daquele da venda pelo qual a ora Recorrente peticionou que a venda lhe fosse efectuada.
6º Ou seja, nessa circunstância, a questão, objecto da acção e do recurso pendentes, da efectivação da dita venda a favor da ora Recorrente pelo preço, aprovado e depositado, de €140.000,00, fica na prática arredada de quem neste momento realmente a compete decidir – o Tribunal da Relação de Lisboa.
7º Salvo melhor entendimento, a única forma de salvaguardar que seja, como é de Direito, o Tribunal da Relação de Lisboa a dirimir efectivamente a questão em causa é, tal como requerido a 11/03/2024, se determinar que o procedimento em curso de adjudicação do dito imóvel, aguarde a apreciação definitiva do Recurso de Apelação da douta Sentença de 30/09/2023.
8º Deve, como tal, ser revogado o douto Despacho datado de 02/04/2024, mais se deferindo, ao invés deste, o requerimento da ora Recorrente apresentado a 11/03/2024, sob a refª. CITIUS nº. 5679543.
9º Assim se pugna pela efectiva procedência do presente recurso, de modo a se fazer Justiça.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pedindo a manutenção da decisão recorrida e apresentando as seguintes conclusões:
“1. - Vem o presente recurso interposto da douta decisão que indeferiu o pedido de suspensão de actos de liquidação do imóvel rústico aprendido a favor da massa insolvente.
2. - Na tese da recorrente a decisão é censurada por apesar do recurso tem sido atribuído efeito devolutivo isso não impede que não sejam acautelados os efeitos úteis do mesmo, ou seja, existe uma relação de prejudicialidade entre o recurso e liquidação, porque se não se suspender as diligências de venda, em sede de processo de insolvência, fica impossibilitada, por um lado, a venda a favor da recorrente e, por outro lado, o preço não será de 140,000€, mas sim de valor mais elevado, questões objecto de recurso, que a terem sucesso, a recorrente não as pode executar.
3. - Mais alega que o facto de a decisão recorrida ter, apenas, limitado o rateio pelos credores com o produto da venda do imóvel, não é suficiente para impedir os efeitos que possam advir da procedência do recurso.
4. - Pugna pela suspensão do procedimento de adjudicação até que o recurso, interposto da sentença que julgou improcedente a acção de preferência, seja decidido pela Tribunal Superior.
Mas sem razão.
5. - Numa primeira abordagem da questão surge como assente que o recurso de apelação interposto pela recorrente no apenso F, foi atribuído efeito devolutivo, e a recorrente não requereu a atribuição do efeito suspensivo, designadamente para acautelar o hipotético efeito útil que agora diz estar em perigo face à venda do imóvel.
6. - Pelo que os argumentos que a recorrente, agora, vem invocar deveriam ter sidos alegados, em sede de alegações de recurso para fundamentar o pedido de atribuição do efeito suspensivo, com vista a acautelar os hipotéticos efeitos que alega estarem em risco, caso os actos de liquidação do imóvel não sejam suspensos.
7. - Não tendo lançado mão dos meios jurídicos - atribuição do efeito suspensivo -, não poderá, agora, vir defender que existe uma relação de prejudicialidade entre o recurso e os presentes autos e, em face disso, pedir a suspensão dos actos de venda do imóvel.
8. - É certo que a liquidação do activo pode ser suspensa, mas tal só é permitido nos casos previstos na lei, como decorre do artigo 8º, nº 1 do CIRE.
9. - Diga-se desde já, que o facto de ter sido pedida apenas a suspensão da venda de um imóvel integrante da massa insolvente, não exclui, evidentemente, a aplicabilidade do artigo 8º do CIRE.
10. - Como decorre do nº 1 do citado preceito, a suspensão da liquidação apenas é possível nos casos expressamente previstos no CIRE, a saber, os previstos nos artigos 156º, n.º 3, 206º, n.º 1,255º e 40º, n.º 3 do CIRE.
11. - Manifestamente, o caso aqui em apreço não se enquadra em qualquer das referidas hipóteses legais.
12. - A questão que de imediato se coloca é saber se existe, efectivamente, um nexo de prejudicialidade entre o desfecho da acção de preferência e os actos de liquidação do bem. Segundo a Recorrente, se não for suspensa a liquidação/venda do imóvel, fica subtraído de qualquer efeito útil, designadamente, o reconhecimento do direito de adjudicação pelo preço depositado, porquanto o bem será, entretanto, vendido a terceiro e por um valor superior ao depositado.
13. - Como se deixou dito no corpo da resposta, onde se caracterizou o direito de preferência e os efeitos da acção de preferência para concluir que, in casu, não existe a alegada prejudicialidade, destacamos as razões de tal afirmação:
14. - o facto de o imóvel ser, entretanto, vendido/adjudicado a terceiro, não contende com o recurso, pois a recorrente poderá ocupar o lugar do adquirente se o recurso proceder;
15. - a venda do imóvel por preço superior (ao valor depositado) não é um direito da preferente. Nesse caso, e querendo exercer o direito de preferência, a recorrente terá de pagar a diferença entre o valor que depositou e aquele que vier a ser o preço efectivamente pago por terceiro, sob pena de perder o direito, por idênticas razões e, por mero exercício de raciocínio, caso a venda se concretize por valor inferior ao depositado a recorrente tem direito a receber a diferença.
16. - Jamais a recorrente se poderá arrogar do direito de pagar um preço que não fosse o real, sob pena de enriquecimento injustificado e com prejuízo para todos os credores da massa insolvente, o Direito e a Ordem Jurídica não toleram essas pretensões e, muito menos, situações de desigualdade.
17. - De onde se conclui que o desfecho da acção do apenso" F” não tem qualquer influencia sobre a liquidação do imóvel. Dito de outra forma, não existe, portanto, qualquer relação de prejudicialidade entre o recurso e os presentes autos.”
O despacho de admissão do recurso foi proferido em 28/05/2024 (ref.ª 55402669).
Foi cumprido o contraditório quanto aos documentos juntos com as contra-alegações de recurso.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº 3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas, a única questão a decidir é a de se deve ser suspensa a liquidação do bem imóvel relativamente ao qual a recorrente intentou ação de preferência, que foi julgada improcedente e cujo recurso se encontra pendente.
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3. Fundamentação de facto:
Os factos com relevo para a decisão do presente recurso constam do relatório.
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4. Fundamentos do recurso
A decisão recorrida indeferiu o pedido da recorrente de que a liquidação de determinado imóvel, apreendido para a massa insolvente, seja suspensa, mediante a suspensão da adjudicação do mesmo, até decisão do recurso por si interposto, de sentença que julgou improcedente ação de preferência em que era peticionada a preferência na venda, por outro preço, do imóvel em causa.
A decisão recorrida indeferiu a requerida suspensão invocando o efeito devolutivo do recurso interposto, o qual implica que o Sr. Administrador da Insolvência tem legitimidade para prosseguir com a liquidação do imóvel.
Consignou-se, porém, que, enquanto a sentença estiver pendente de recurso, não pode qualquer credor ser pago em sede de rateio com base no produto da venda do referido imóvel.
A recorrente pretende a revogação deste despacho invocando não estar em causa a execução da sentença recorrida, que foi de improcedência. Defende que existe uma objetiva prejudicialidade intrínseca entre o desfecho final da ação, e os termos em que a dita liquidação do imóvel se há de processar, a saber, se a respetiva venda se faz ou não a favor da Recorrente, pelo preço de €140.000,00. Argumenta ainda que a precaução tomada – de que não haverá pagamentos aos credores com base no produto da venda deste imóvel enquanto o recurso estiver pendente – não acautela devidamente a eventualidade da procedência do recurso, dado que não impede, objetivamente, que o imóvel seja, entretanto, vendido a terceiro por valor diverso daquele da venda relativamente à qual a recorrente peticionou ser reconhecido o seu direito de preferência. Não pediu apenas o reconhecimento do direito de preferência, mas também que a venda já aprovada, pelo valor de €140.000,00 lhe fosse efetuada a si.
O Ministério Público respondeu que tendo o recurso interposto efeito devolutivo, a autora não requereu a atribuição, de efeito suspensivo ao mesmo, nos termos do disposto n.º 4 do art.º 647.º do CPC, o que não fez. A suspensão da liquidação do ativo, em processo de insolvência, só é permitida nos casos previstos por lei, nenhum dos quais ocorre.
Não fica prejudicado o efeito útil do recurso dado que, a proceder, a recorrente poderá sempre substituir o adquirente. A verdadeira preocupação da recorrente não é a ocorrência da transação, mas sim o preço que o imóvel poderá ser transacionado, pretendendo garantir que o imóvel lhe será adjudicado pelo preço que decidiu depositar, e que não corresponde ao preço de venda, dado que essa venda ficou sem efeito, mas tal pretensão não tem acolhimento legal.
Apreciando:
A recorrente pretende a suspensão da atividade de liquidação da insolvente – sendo para o efeito indiferente que peça apenas a suspensão de uma concreta operação, quer em abstrato, quer em concreto[1] - invocando para o efeito que esta operação, a venda de um imóvel, prejudica o efeito útil da decisão final de ação de preferência que intentou, tendo por objeto esse mesmo imóvel e cujo recurso pende neste Tribunal da Relação.
O primeiro argumento da recorrente é o de que tendo a ação sido julgada improcedente, o facto de o recurso ter efeito devolutivo não é relevante, dado que a venda em causa não consubstancia execução daquela sentença.
O Ministério Público entende que a recorrente deveria ter requerido a atribuição de efeito suspensivo àquele outro recurso, nos termos do nº 4 do art.º 647º do CPC.
O primeiro exercício necessário é o da determinação da regras aplicáveis e respetivo âmbito.
«O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.» – art.º 1º nº 1 do CIRE[2].
É um processo especial que, quanto à sua natureza, pode ser considerado misto, com uma fase marcadamente declarativa (até à declaração de insolvência) e outra claramente executiva (após a declaração de insolvência com liquidação de todo o património do devedor que integra a massa insolvente para satisfação dos credores ou através da aprovação de um plano de insolvência)[3].
Nos termos do nº1 do art.º 17º do CIRE, o processo de insolvência é regido pelas regras deste código e, subsidiariamente pelo Código de Processo Civil, «em tudo o que não contrarie as disposições do presente código.».
Trata-se de uma regra de função similar à prevista no art.º 549º nº 1 do CPC (onde estabelece que os processos especiais se regem pelas regras próprias e, subsidiariamente pelas gerais e comuns e que se segue o processo executivo quando haja lugar a venda de bens), sublinhando-se, porém expressamente, no nº1 do art.º 17º do CIRE a primazia das regras do CIRE.
Ao longo do CIRE, o legislador remeteu especificamente para algumas regras do CPC, em especial para as normas que regulam o processo executivo na parte relativa à tramitação de feição “executiva”, ou seja, a apreensão e liquidação, mas não só[4]. A regra geral do art.º 17º, no entanto, vale também para as remissões expressas, ou seja, a aplicação dos preceitos do CPC dá-se enquanto os mesmos não contrariem disposições do CIRE.
O CIRE regula os recursos no art.º 14º do CIRE, norma que prescreve no seu nº5 que «os recursos sobem imediatamente, em separado, e com efeito devolutivo.».
A única exceção geral a esta regra está prevista no nº 6 que enumera os casos em que os recursos sobem nos próprios autos.
Encontramos ao longo do diploma as únicas exceções à regra do efeito devolutivo, sempre concretas e circunstanciadas e prevendo o âmbito do efeito suspensivo – arts. 17º-F, nº 10, 40º nº 3, 42º nº 3, 217º nº 5, 222º-F nº 7 e 239º nº 6 do CIRE. Tal implica, à luz do art.º 17º nº 1 do CIRE, já citado, que não podem ser aplicadas regras que contrariem esta regra geral – de que os recursos têm efeito devolutivo, apenas podendo ter efeito suspensivo parcial nos casos previstos expressamente – não sendo assim aplicável, em processo de insolvência, o nº 4 do art.º 647º do CPC[5].
Esta regra surge ordenada à promoção da celeridade do processo e à primazia dada à satisfação do coletivo dos credores, consagrada desde logo no art.º 1º, o que permite compreender a posição do Ministério Público: não se tratando, exatamente, da execução de uma sentença, o efeito devolutivo do recurso interposto numa ação de preferência improcedente significa, à luz da regra geral e dos princípios que corporiza, que o facto de estar pendente um recurso não impede o prosseguimento pleno da liquidação do ativo, mesmo compreendendo o bem ou bens objeto da referida ação.
Mas na verdade não necessitamos de recorrer apenas aos princípios gerais porque o CIRE contém uma regra expressa que proíbe, em absoluto, a suspensão da liquidação do ativo fora dos casos nele previstos.
Nos termos do nº1 do art.º 8º do CIRE, «A instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, excepto nos casos expressamente previstos neste Código.»
O artigo 8º é exatamente um daqueles preceitos que se aplica, na letra da lei, ao processo de insolvência, sem tradição no direito anterior e unanimemente apontado pela doutrina como visando afastar o regime previsto nos arts. 269º e ss. do CPC[6].
O processo de insolvência, porque se desenvolve numa estrutura mista, com fases marcadamente declarativas, fases claramente executivas e algumas de natureza híbrida, está legalmente desenhado em processo principal, incidentes processados neste (como a exoneração do passivo restante, para pessoas singulares, a prestação de alimentos ao insolvente, trabalhadores ou outros credores ou o rateio, entre outros), incidentes processados por apenso e apensos que incluem processos cuja apensação aos autos foi determinada, por lei, pelo juiz ou pelo Administrador da Insolvência (nos termos dos arts. 85º e ss. do CIRE) e processos diretamente intentados por apenso ao processo de insolvência.
Nas palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 248/2012, de 22/05/2012[7] “O processo de insolvência, apesar de ser considerado uma execução, apresenta-se como um processo de elevada complexidade, envolvendo múltiplas atividades repartidas pela sua fase declarativa (a inicial, em que é permitida a oposição) e a executiva (Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2009, p. 19). O legislador previu a reserva de decisão jurisdicional dos pontos litigiosos que se apresentem no decurso do processo, pelo que o Tribunal está vinculado a solucionar os múltiplos pleitos secundários que podem surgir no decurso do processo, com respeito pelo contraditório e pela produção da prova que considere necessária.”
Para esse efeito podem distinguir-se apensos “naturais”, previstos no próprio CIRE como resultado da tramitação regra, como os embargos (41º nº 1 do CIRE), os recursos (14º CIRE), a qualificação da insolvência (185º e ss.), a verificação e graduação de créditos (132º e ss.), a liquidação do ativo (158º e ss.), a apreensão de bens (149º e ss.), a prestação de contas (art.º 64º) e nestes alguns necessários e outros eventuais. São exemplo de apensos eventuais conaturais ao processo de insolvência, além dos já apontados, embargos, recursos e qualificação da insolvência, as ações de responsabilidade previstas no art.º 82º nºs 3 a 6, a resolução em benefício da massa insolvente (120º e ss.) e impugnação da mesma, a restituição e separação de bens (141º, 144º e 145º), a verificação ulterior de créditos e outros direitos (148º) e o plano de pagamentos (251º e ss.), quando aplicável.
São ainda apensos possíveis, e cuja apensação é regulada, as ações intentadas contra o devedor, nos casos previstos no art.º 85º, as ações executivas que quadrem no disposto no art.º 88º e as ações relativas a dívidas da massa insolvente, previstas no art.º 89º.
Voltando ao nº 1 do artigo 8º, e focando-nos na expressão “processo de insolvência”, ali usada, não há qualquer dúvida de que, relativamente ao próprio processo principal de insolvência e todos os incidentes nele processados não é possível a suspensão da instância por qualquer dos motivos previstos nos arts. 269º e ss. do CPC. Veja-se que uma das possíveis causas de suspensão (o falecimento do devedor, subjetivamente uma das partes) tem regulação diversa e específica no art.º 10º do CIRE.
É aliás nessa linha que encontramos jurisprudência sobre o tema:
- o Ac. 248/2012 de 22/05/2012 do Tribunal Constitucional, já citado, foi tirado num caso em que a questão da suspensão da instância se colocava no processo principal, previamente à declaração da insolvência, sendo a causa prejudicial relativa ao crédito invocado. O Tribunal centrou, precisamente, a sua análise no acesso ao direito e possibilidade de exercício do contraditório relativos à fase declarativa (ver pontos 11 e 12 da fundamentação);
- o Ac. TRL de 22/10/09 (Neto Neves - 456/09)[8] decidiu que não se aplicava o nº 4 do então art.º 279º do CPC (suspensão por acordo das partes) em processo de insolvência, na fase declarativa prévia à declaração de insolvência;
- o Ac. TRL de 08/11/2018 (Pedro Martins – 131/15)[9] decidiu pela impossibilidade de suspensão da instância antes da prolação da decisão liminar de exoneração do passivo restante (que tinha sido decidida apenas relativamente ao incidente) até ser decidida ação de impugnação de resolução apensa, invocando também (entre outra fundamentação específica relativamente à exoneração do passivo restante), o art.º 8º nº 1 do CIRE;
- os Acs. TRG de 28/05/20 (Margarida Almeida Fernandes - 6686/17), TRL de 07/02/2023 (Nuno Teixeira – 862/11), TRE de 30/03/2023 (Anabela Luna de Carvalho - 1819/21) e TRG de 27/06/2024 (Lígia Venade – 332/20) – nos quais se concluiu pela impossibilidade de suspensão da liquidação do ativo em processo de insolvência, fora dos casos de suspensão previstos por lei, pelo comando do art.º 8º nº1 do CIRE.
Ao invocar que a concretização das operações de liquidação prejudica o efeito útil do recurso (e da ação que interpôs), o que o recorrente está a alegar é que existe uma relação de prejudicialidade entre esta tramitação e aquele recurso, ou seja, a invocar a aplicabilidade do art.º 272º do CPC, norma cuja aplicação, no caso concreto, está absolutamente arredada pelos arts. 17º nº 1 e 8º nº 1 do CIRE.
Ainda que se discuta, de alguma forma, o âmbito da aplicabilidade do art.º 8º do CIRE a todos apensos do processo de insolvência[10], a sua aplicação ao processo principal de insolvência e aos apensos “naturais” ou típicos de insolvência, como é o caso da liquidação do ativo, surgem indiscutíveis, como aliás resulta da jurisprudência acima citada[11], que se segue integralmente.
O que surpreendemos no caso concreto é um pedido de que seja suspensa a liquidação do ativo com a invocação de um fundamento (prejudicialidade), que a lei veda expressamente possa originar suspensão em processo de insolvência em geral e na liquidação do ativo, em especial.
Aqui chegados verificamos a total desnecessidade de aferição de se a invocada relação de prejudicialidade existe efetivamente – e que nos levaria a matéria objeto de discussão no outro recurso pendente) para a decisão do presente recurso.
Diremos, ainda assim, que, abstratamente, as precauções tomadas – não distribuição pelos credores do produto da venda ordenada – acautelam suficientemente a possibilidade de procedência do recurso interposto. Como alegado pelo Ministério Público, declarado o direito de preferência, a recorrente pode preferir na venda ora a efetuar. No caso de proceder o segundo pedido formulado[12] como o entende a recorrente[13], ou seja, de venda pelo preço de €140.000,00, a quantia paga pelo novo comprador está disponível para devolução ao mesmo se for eventualmente decidido “desfazer” o negócio.
A presente apelação improcede, assim, integralmente.
*
A apelante, porque vencida, suportará integralmente as custas do presente recurso que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso e este não envolveu diligências geradoras de despesas – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[14].
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5. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar integralmente improcedente a apelação, decidindo-se manter a decisão recorrida.
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Custas de parte na presente instância recursiva pela recorrente.
Notifique.

Lisboa, 13 de setembro de 2024
Fátima Reis Silva
Renata Linhares de Castro
Paula Cardoso
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[1] Em concreto o imóvel em causa é o único que ainda não foi liquidado e, em abstrato, a liquidação do ativo não pode ser encerrada sem que estejam vendidos todos os bens compreendidos na massa insolvente cuja liquidação não haja sido dispensada.
[2] Diploma a que se referirão todas as indicações sem identificação de proveniência ao longo do texto.
[3] Cfr. Lebre de Freitas em Apreensão, separação, restituição e venda, em I Congresso de Direito da Insolvência, coord. Catarina Serra, Almedina, 2013, pg. 229, Maria do Rosário, Epifânio em Manual de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2012, pg. 13, Catarina Serra em A falência no quadro jurisdicional dos direitos de crédito – o problema da natureza jurídica do processo de liquidação aplicável à insolvência no direito português, Coimbra Editora, 2009, pg. 72, Gisela César em Os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa em curso, Almedina, 205, pg. 38, entre outros.
[4] Por exemplo, a remissão relativa ao limite de testemunhas constante do nº2 do art.º 25º do CIRE, a remissão do nº5 do art.º 35º do CIRE para o art.º 596º do CPC ou a remissão para os termos do processo comum constantes do art.º 148º, também do CIRE.
[5] Assim Ac. TRC de 27/07/2010 (255/10 – Carlos Gil), disponível, como os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt. Ver também o Ac. do Tribunal Constitucional nº 339/2011 de 17/07/2011, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/content/reserved/ebook_html5/tc_acordaos_0081/302/.
[6] Ver João Labareda e Carvalho Fernandes em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2015, 3ª edição, pg. 109 e Menezes Leitão em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2015, 3ª edição, págs. 69 e 70.
[7] Disponível em
https://dre.pt/home/-/dre/3451950/details/maximized
[8] Disponível em www.dgsi.pt como todos os demais citados sem referência.
[9] Disponível em
https://outrosacordaostrp.com/2018/11/10/ac-do-trl-de-08-11-2018-proc-131-15-2t8vls-l1-incidente-de-exoneracao-do-passivo-restante-impossibilidade-de-suspensao-ao-menos-no-caso-do-art-238-1-e-do-cire-poderes-inquisitorios-e-arts-8/
[10] Ver, por exemplo os três Acs. TRL de 22/06/2021 (Amélia Sofia Rebelo, Adelaide Domingos e Fátima Reis Silva todos tirados em apensos do processo 484/12) e os Acs. TRG de 07/12/2023 (Alexandra Viana Lopes – 1315/21) e TRC de 11/12/2012 (Inês Moura – 1119/10).
[11] Acs. TRG de 28/05/20, TRL de 07/02/2023, TRE de 30/03/2023 e TRG de 27/06/2024.
[12] Ponto sobre o qual também não nos iremos debruçar, por desnecessidade, e por se encontrar abrangido pelo objeto do outro recurso pendente.
[13] Na verdade, o segundo pedido formulado na ação é textualmente: “2) Ser em conformidade determinada a venda, a favor da Autora, mediante o prévio pagamento do preço nos termos legais.”, sem qualquer referência ao preço de €140.000,00.
[14] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.