REGISTO COMERCIAL
DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
NULIDADES
Sumário

1 - A tramitação da impugnação judicial da decisão final do procedimento administrativo de dissolução e liquidação, sendo uma decisão do Conservador do Registo Comercial, rege-se pelo art.º 12º do RJPADLEC, pelos arts. 101º-A e 104º e ss. do Código do Registo Comercial e, nos termos do arts. 115º do Código de Registo Comercial e 156º do Código do Registo Predial, pelo disposto no Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações.
2 - O procedimento administrativo de dissolução e liquidação regula-se, assim, em primeiro lugar pelas regras do respetivo regime jurídico (RJPADLEC), depois pelas regras do Código de Registo Comercial, no que não se ache previsto, e na medida indispensável, pelo Código do Registo Predial e, finalmente, em tudo o não se ache previsto e não seja contrariado por qualquer destes diplomas, pelas regras do CPC, com as devidas adaptações.
3 - Pese embora a referência a ação judicial constante do nº 2 do art.º 12º do RJPADLEC, estruturalmente estamos ante uma impugnação de uma decisão tomada em procedimento administrativo contraditório, que, em termos processuais civis se identificará muito mais como um recurso, do que como uma ação.
4 -  Faz, assim, mais sentido a aplicação, com as devidas adaptações, do regime dos recursos em processo civil à impugnação judicial de atos de conservador do registo comercial do que do regime do processo comum de declaração: este é um processo judicial onde não se visa declarar o direito, mas sim verificar se o direito foi bem declarado.
5 - Não há lugar à realização de audiência prévia em processo de impugnação judicial de decisão do conservador em procedimento administrativo de dissolução e liquidação, pelo que a respetiva omissão não consubstancia qualquer irregularidade ou falta que seja suscetível de gerar nulidade.
6 - A notificação prevista no art.º 8º do RJPADLEC cumpre uma função de garantia do contraditório. Mas o próprio legislador lhe deu essa função e não consignou a aplicação do regime da citação em processo civil, optando por regular, de modo bastante exaustivo a forma e conteúdo da notificação no próprio Regime (assim excluindo o recurso ao direito subsidiário).
7 - A notificação da instauração do procedimento, tal como, por via da remissão do nº5 do art.º 11º do RJPADLEC, a notificação da decisão, é realizada mediante a publicação do aviso nos termos do nº1 do art.º 167º do CSC. A comunicação da realização da publicação aos membros da entidade que constem do registo cumpre uma função de garantia adicional.
8 - Se a notificação da abertura do procedimento administrativo de dissolução e liquidação e da decisão final foram ambos devidamente notificados, nos termos do art.º 8º, nºs 4 e 5 do RJPADLEC e se a informação aos sócios e administradores da publicação desse aviso o foi também, tendo a correspondência registada sido enviada para as moradas constantes do registo, não ocorre nulidade do procedimento, sendo a impugnação da respetiva decisão final cerca de 6 anos depois do decurso do prazo previsto no art.º 12º nº 1 do RJPADLEC, claramente extemporânea.

Texto Integral

Acordam os Juízes da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
AAF, apresentou, em junho de 2022, impugnação judicial, que denominou ação de anulação do respetivo registo de dissolução e liquidação, do ato de dissolução e liquidação da sociedade C. …, Lda, nos termos do art.º 12º do RJPADLEC, pedindo seja declarada a nulidade do procedimento de dissolução e liquidação da empresa C. …, Lda, por preterição de formalidades essenciais de notificação e chamamento da empresa, gerente e sócios à lide, sendo cancelado o registo de dissolução e liquidação autuado sob o número …/…..
Remetidos os autos a tribunal, o Ministério Público teve vista nos autos e emitiu parecer, nos termos previstos no art.º 105º nº 1 do Código do Registo Comercial, no sentido da intempestividade e improcedência da impugnação judicial apresentada.
Em 07/09/2023 foi proferida a seguinte sentença:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, dada a manifesta extemporaneidade, não admito o recurso interposto por C. …, Lda., pessoa coletiva n.º NIPC xxxx, com sede no Largo …, da decisão que decretou a sua dissolução e encerramento da liquidação.
Custas pela Impugnante – artigo 527.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Valor para efeitos de custas – nos termos do artigo 12.º n.º 1, al. d) do Regulamento das Custas Processuais.
Registe e notifique, nos termos do disposto no artigo 106.º, n.º 1 e 2 do Código de Registo Comercial, à impugnante, ao conservador que sustentou o despacho final, ao Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. e ao Ministério Público.
Após trânsito em julgado, dê cumprimento ao disposto no artigo 12.º, n.º 3 do RJPADLEC.”
Inconformada, AAF interpôs o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
A) A sentença recorrida deu razão ao motivo da defesa por extemporaneidade judiciária.
B) Para tanto, considerou que a Recorrente tinha já sido notificada, há muito, da abertura do procedimento de dissolução oficiosa de C. …, Lda por via eletrónica a que se seguiu o envio de carta registada com AR e que, todavia – afirma-o a matéria provada – não foi recebida pela destinatária.
C) A Recorrente, tendo em vista a escolha da modalidade de notificação confirmatória, escolhida no curso do processo (e por isso transitada) argui aqui, a nulidade de lhe não terem sido comunicados os motivos pelos quais não recebeu a carta com AR, confirmatória, e que acima aludiu.
D) Mas antes de mais recusa o motivo da sentença quanto a ter ocorrido uma notificação eletrónica valida neste caso, logo porque a publicação eletrónica não está acessível para consulta pública, tal como argumentou no requerimento inicial, e mesmo que estivesse (que não estava) a Recorrente não teria nas datas respectivas, disponibilidade de internet adequada (até nem sequer teve ou tem computador, visto ser uma senhora de 77 anos de idade).
E) Acontece é que a sentença recorrida foi dada sem antes ter sido convocada audiência prévia, diligencia onde seria defendida, pela recorrente, a necessidade de produção de prova, admissível, porque a presunção informática não é jure ed de júris.
F) De qualquer forma, o próprio sistema de uma notificação informática nos termos em que parece estar consagrada no Art.º 8º, nº4 do RJPADLEC, (aliás em contradição com uma boa hermenêutica dos números 1 e 2 do mesmo preceito) é na interpretação que lhe foi dada na sentença recorrida infratora do princípio constitucional do contraditório na modalidade integral do due process of law ou processo equitativo, segundo a letra do Art.20º, nº4 da CRP.
G) Nestes termos, a sentença recorrida não respeitou o acordo com a lei fundamental sentido que deveria ter dado ao Art.8º, nº8 do RJPADLEC para poder ser considerado constitucional por força dos artigos 18º, nº1 e Art.20º, nº4 da CRP e que se não for assim implicam para a sentença recorrida uma aplicação proibida de norma inconstitucional visto o Art.204º da CRP.
H) Por fim, - não foi a matéria de facto dada como assente que a decisão da dissolução de C. …, Lda tenha sido sequer notificada à recorrente segundo a retórica critica da sentença recorrida.
I) Tanto que determina erro sentencial quando aceitou o cumprimento integral da lei, sem cometimento desta nulidade.
J) Nulidade, que elide a problemática da intempestividade da impugnação dos despachos do Exmo. Sr. Conservador apresentada aqui pela Recorrente.
K) Ainda no campo das nulidades sendo certo que ter sido obliterada a audiência previa donde omissão de passo processual com efeito na justa decisão da causa se constitui numa infração ao disposto no Artº195º, nº1 do CPC, a mesma infração ocorreu perante a sentença recorrida, por não terem sido determinados procedimentos de averiguação oficiosa sob o património da sociedade dissolvida, contra a lei expressa e claro efeito e prejuízo da justiça do caso.
L) Prejuízo da justiça do caso que tem saliência aqui e agora, no vazio legal e processual para que a Recorrente é remetida em face da extinção da personalidade jurídica e judiciaria de C. …, Lda quando, como sócia de investimento desta sociedade tem legitima pretensão de obter provimento na reclamação de divida da multinacional Fiat SA no montante de 9 milhões de euros e outra de menor montante contra a também italiana Generalli SA, provenientes do giro comercial da concessionaria da marca automóvel , dita.
M) Ao mesmo tempo para o mesmo vazio legal irão ser remetidos todos os clientes de C. …, Lda, que adquiriram automóveis FIAT a crédito dando como garantia a reserva de propriedade à concessionaria em questão.
N) Por conseguinte, nula a sentença recorrida por uma serie de motivos apresentados nestas conclusões, nomeadamente a violação do Art.8º do RJPADLEC, Art.º 195º, nº 1, Art.º 591º, nº 1, alínea b) do NCPC, Art.º 18º, nº 1, Art.º 20º, nº 4, Art.º 204º da CRP, artigos da Lei que violou, por não ter aplicado e interpretado corretamente, mas cuja correta interpretação deverá sim levar à reforma no sentido contrário, ou seja, no sentido da procedência da impugnação do despacho do Excelentíssimo Sr. Conservador e do levantamento dos registos comerciais consonantes.”
O Ministério Público contra-alegou, pedindo a manutenção da decisão recorrida formulando as seguintes conclusões:
“1. Analisado o recurso interposto pela recorrente, na qualidade de sócia da sociedade “C. …, Lda.”, tanto na sua motivação como nas conclusões apresentadas, constata-se desde logo que não ocorreu qualquer nulidade ou violação de preceito ou princípio legal na sentença judicial proferida pelo tribunal a quo;
2. O Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (RJPADLEC), foi publicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, do qual faz parte integrante – cfr. nº 3 do artigo 1.º do mencionado diploma;
3. Decorre do artigo 12.º do RJPADLEC que qualquer interessado pode, no prazo de 10 dias contados da notificação, impugnar judicialmente a decisão;
4. No caso, o procedimento teve início oficioso e a notificação do artigo 8.º, nº 1, alínea a) do RJPADLEC foi efectuada por aviso publicado online e por carta registada enviada para a sociedade, que foi devolvida por não ter sido levantada nos serviços postais;
5. A notificação prevista no artigo 11.º, n.º 5 foi também efectuada mediante a publicação online do aviso e envio de carta registada à recorrente;
6. Do n.º 4 do artigo 8.º resulta com clareza que a notificação é efectuada através da publicação do aviso, nos termos do n.º 1 do artigo 167.º do Código das Sociedades, o que foi cumprido;
7. A decisão proferida pelo Sr. Conservador da CR Comercial de Lisboa, a qual determinou a dissolução e o encerramento de liquidação e o consequente cancelamento da matrícula, foi proferida em 07.12.2015 e publicada no portal da Justiça em 18.12.2015;
8. A impugnação judicial deu entrada em Junho de 2022 alegando a nulidade do procedimento de dissolução e liquidação da “C. …, Lda.” por preterição das formalidades essenciais de notificação dos gerentes e sócios;
9. Ora, a impugnação judicial é intempestiva por ter sido recepcionada em Junho de 2022 após a decisão se ter tornado definitiva após 10 dias da publicação no portal da Justiça em 18.12.2015;
10. Assim, o recurso interposto pela recorrente deve improceder na sua totalidade, mantendo-se a douta sentença proferida - claramente legal, douta e justa - nos seus precisos termos;
11. Assim decidindo se fará a habitual justiça.”
O recurso foi admitido por despacho de 29/05/2024 (refª 435672839).
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Considerados o relatório e conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- nulidade da sentença recorrida por não ter sido convocada audiência prévia não dispensável, nos termos do disposto no art.º 591º nº1, al. d) do CPC;
- tempestividade da impugnação judicial da decisão de dissolução e encerramento da liquidação da sociedade C. …, Lda.
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Dispõe o art.º 617º nº 1 do CPC que se a nulidade da sentença for suscitada no âmbito do recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la, no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso. Consigna-se que, não obstante tal apreciação ter sido omitida pelo tribunal recorrido, por dispensável para a apreciação do objeto do recurso, não foi ordenada a baixa do processo para apreciação da nulidade da sentença arguida pela recorrente, que em seguida se aprecia (cfr. art.º 617º, nº 5 do CPC).
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3. Fundamentos de facto:
Foi proferida, na sentença recorrida, a seguinte decisão relativa à matéria de facto:
“Com relevância para a boa decisão da causa e atendendo à prova documental junta aos autos mostram-se provados os seguintes factos:
1. A sociedade comercial C. …, Lda., pessoa coletiva n.º NIPC XXX, tem sede no Largo ….
2. Tem por objeto social comércio de vendas de automóveis, tractores e materiais agrícolas, acessórios e sobresselentes para veículos, indústria de reparação, estação de serviço, galvanoplastia, importação e recuperação de fábricas estrangeiras.
3. Tem o capital social de 698 317,06 euros.
4. O procedimento administrativo de dissolução da sociedade foi determinado por despacho do Senhor Conservador do Registo Comercial de Lisboa de 06.07.2015, sendo exarado Auto de Notícia nessa data.
5. Foi averbada na matrícula da sociedade a pendência da dissolução administrativa.
6. Em 27 de Julho de 2015[1] foi publicado um Aviso na página das publicações do Ministério da Justiça.
7. A Conservatória do Registo Comercial de Lisboa enviou carta registada à sociedade e aos sócios informando da instauração do procedimento.
8. Expediente devolvido com a menção de «objecto não reclamado»
9. A 07.12.2015 foi proferida decisão final com declaração da dissolução e encerramento da liquidação, com a consequente extinção da entidade comercial.
10. Em 18.12.2015 foi publicado Aviso na página das publicações do Ministério da Justiça da decisão final.
11. O requerimento deu entrada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa em Junho de 2022.
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Com relevância para a boa decisão da causa não ficaram por provar quaisquer factos.”
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Com interesse para a decisão do recurso, nos termos do disposto no art.º 662º do CPC, consideram-se ainda os seguintes factos, resultantes da tramitação dos autos:
12 – A carta registada com aviso de receção referida em “7” foi enviada à recorrente AAF para a morada desta constante da matrícula da sociedade: Largo … (Ap. 5/19940107).
13 – A carta registada com aviso de receção referida em “7” foi enviada à sociedade C. …, Lda para a morada da sede constante da matrícula da mesma; Largo ….
14 - A carta registada com aviso de receção referida em “7” foi enviada à sócia da sociedade, WMI, Lda, para a morada da sede desta constante da matrícula da sociedade: Largo … (Ap. 3/20060227).
15 - A carta registada com aviso de receção referida em “7” foi enviada ao sócio da sociedade, CAF para a morada deste constante da matrícula da sociedade: Largo … (Ap. 5/19940107).
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4. Fundamentos de direito:
O presente recurso mostra-se interposto da sentença que, em 1ª instância, não admitiu, por extemporânea, a impugnação judicial de decisão proferida pelo Sr. Conservador do Registo Comercial no âmbito de procedimento administrativo de dissolução e liquidação administrativa de entidade comercial, nos termos do regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março.
Tratou-se de um dos aspetos da reforma societária de 2006 que visou “tornar, tanto quanto possível, desnecessário o recurso à via judicial sempre que a dissolução e a liquidação não possam ser realizadas pelos próprios sócios.”[2]
A decisão recorrida concluiu pela intempestividade da impugnação judicial apresentada por uma das sócias da sociedade comercial em causa cerca de seis anos e seis meses depois da publicação da decisão final recorrida, conhecendo, no percurso de fundamentação, da arguida nulidade de todo o procedimento por falta de notificação dos interessados.
O presente recurso funda-se em duas tipologias de argumentação: por ordem de conhecimento, nulidade da própria decisão recorrida, por preterição de audiência prévia que a recorrente entende não ser dispensável, e erro de julgamento quanto ao conhecimento da nulidade de todo o procedimento administrativo, matérias a cujo conhecimento passaremos de seguida.
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4.1. Nulidade da decisão recorrida
Argumenta a recorrente que estamos perante um despacho saneador sentença que julgou procedente a intempestividade da impugnação e que, nos termos do art.º 591º, nº 1, al. d) do CPC deveria ter sido convocada audiência prévia, não dispensável. Era necessário, argumenta, o debate de facto e de direito, nomeadamente quanto à necessidade de produzir prova sobre a impossibilidade de conhecimento informático da instauração e decisão desta impugnação judicial.
O Ministério Público, nas suas contra-alegações, não se pronunciou quanto a esta nulidade.
O primeiro exercício necessário é o da determinação das regras processuais aplicáveis à impugnação da decisão final do procedimento administrativo de dissolução e liquidação.
Trata-se um procedimento administrativo, aplicável apenas a entidades sujeitas a registo comercial (cfr. art.º 2º nº1 do RJPADLEC e 1º nºs 1 e 2 do Código do Registo Comercial), ou seja, sociedades comerciais, sociedades civis sob forma comercial, cooperativas e estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, cuja competência pertence, em exclusivo aos serviços de registo comercial, a decidir pelo Conservador do Registo Comercial, dirigindo-se a finalidade sujeita a registo (dissolução/liquidação).
E tratando-se de uma decisão de conservador do registo comercial que defere ou indefere um registo (dissolução e/ou registo do encerramento da liquidação – nos termos do art.º 13º do RJPADLEC), tal tramitação só pode ser a prevista, em sede geral, para a impugnação das decisões de Conservador no Código do Registo Comercial (doravante CRCom), nos arts. 101º-A e 104º e ss., com as especialidades previstas no RJPADLEC.
O RJPADLEC apenas regula a tramitação do próprio procedimento e, no tocante à respetiva impugnação judicial, estabelece o prazo, a legitimidade, a data de propositura e a obrigatoriedade de o tribunal comunicar as decisões definitivas ao serviço de registo – arts. 12º e 25º nº 2 do RJPADLEC.
A não se entender aplicável o Código do Registo Comercial ficaria por regular, por exemplo, a legitimidade para interposição de recurso, os graus de recurso ou o valor da ação – arts. 106º e 108º do CRCom.
Veja-se, aliás, neste sentido, da aplicabilidade das regras do Código de Registo Comercial aos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação o Ac. STJ de 27/10/2019 (Graça Amaral – 5785/19), e, nomeadamente como passo na discussão, mais vasta, da aplicabilidade, como direito subsidiário, do Código de Processo Civil e não do Código de Procedimento Administrativo aos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação, os Acs. TRL de 28/04/2020 (Manuela Espadaneira Lopes - 5787/19), de 18/12/2019 (Vera Antunes - 5785/19), de 29/10/2019 (Isabel Fonseca - 9629/18), TRP de 09/11/2020 (Pedro Damião Cunha) e TRL de 25/05/2021 (Fátima Reis Silva – 5789/19)[3].
Estabelecida a aplicabilidade do Código do Registo Comercial, resulta deste a aplicabilidade do Código de Processo Civil, nos termos doutamente apontados no Ac. TRL de 18/12/2019, já citado: “O regime subsidiário a que se há-de atender no âmbito do Regime Jurídico do Procedimento Administrativo de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (RJPADLEC) resulta do disposto pelo art.º 115º do Código de Registo Comercial, que por sua vez remete para as disposições relativas ao registo predial que não sejam contrárias aos princípios informadores do presente diploma e, nos termos do art.º 156º do Código do Registo Predial este regime é,  subsidiariamente e com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil.”
No mesmo sentido podemos aliás citar, além de mais jurisprudência[4], Paula Costa e Silva, Rui Pinto e Maria Leonor Ruivo[5].
Estabelecida a aplicabilidade do CPC, há que recordar a regra do art.º 549º nº1 do CPC: «Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.»
Assim, temos que o procedimento administrativo de dissolução e liquidação se rege pelas regras do respetivo regime jurídico, pelas regras do Código de Registo Comercial, no que não se ache previsto, e na medida indispensável, pelo Código do Registo Predial e em tudo o que não seja contrariado por qualquer destes diplomas, pelas regras do CPC, com as devidas adaptações.
É este o enquadramento que nos permitirá aferir se a impugnação da decisão do Sr. Conservador proferida em procedimento de dissolução e liquidação tem uma tramitação própria que exclua a aplicação das regras do processo comum de declaração, entre as quais as regras dos arts. 591º a 593º do CPC.
Nem o RJPADLEC, nem o CRCom, nem o Código do Registo Predial contêm qualquer regra sobre nulidades processuais pelo que, com as devidas adaptações, teremos que aplicar as regras do CPC à questão do conhecimento e arguição de nulidades em recurso.
A nulidade arguida – omissão de realização de audiência prévia num caso em que, na tese da recorrente, esta seria obrigatória – não é diretamente uma das nulidades da sentença previstas no art.º 615º do CPC pelo que, a existir, será uma nulidade processual nos termos previstos no art.º 195º do mesmo diploma.
Há assim, antes de mais, que aferir se o processo em causa – impugnação judicial de decisão de conservador em procedimento administrativo de dissolução e liquidação – está sujeito à disciplina dos arts. 590º e ss. do CPC, se estando, era obrigatória a realização de audiência prévia e se a sua omissão consubstancia uma omissão de um ato previsto por lei que possa ser gerador de nulidade da decisão subsequente, e ora recorrida.
Caso a resposta a todas estas questões seja positiva, teremos ainda que aferir se o vício em causa pode ser reconhecido e declarado nesta instância, ou se devia antes ter sido reclamada perante o tribunal onde o vício se consumou.
Prescreve o art.º 12º do RJPADLEC:
«1 - Qualquer interessado pode impugnar judicialmente a decisão do conservador, com efeito suspensivo, no prazo de 10 dias a contar da notificação da decisão.
2 - A acção judicial considera-se proposta com a sua apresentação no serviço de registo competente em que decorreu o procedimento, sendo de seguida o processo remetido ao tribunal judicial competente.
3 - Após o trânsito em julgado da decisão judicial proferida o tribunal comunica-a ao serviço de registo competente e devolve a este os documentos constantes do procedimento administrativo.
4 - Todos os actos e comunicações referidos nos n.ºs 2 e 3 devem ser obrigatoriamente efectuados por via electrónica, sempre que tal meio se encontre disponível, em termos a definir por portaria do Ministro da Justiça.»
Sendo esta toda a regulação prevista no Regime para a impugnação, temos que passar ao CRCom, regendo os arts. 105º e ss. (dado que o RJPADLEC regula o prazo de interposição do recurso, o momento da sua apresentação e a imediata remessa ao tribunal competente).
O art.º 105º do CRCom estabelece, sob a epígrafe “Julgamento”:
«1 - Recebido em juízo e independentemente de despacho, o processo vai com vista ao Ministério Público para emissão de parecer.
2 - O juiz que tenha intervindo no processo donde conste o acto cujo registo está em causa fica impedido de julgar a impugnação judicial.»
Os únicos trâmites previstos são, assim, a vista ao Ministério Público e o julgamento da impugnação.
Como refere Isabel Ferreira Quelhas Geraldes[6] “O direito registal não fixa qualquer prazo (nem tinha que fixar) para ser proferida decisão judicial no processo de impugnação, devendo, naturalmente, ocorrer dentro do prazo de 30 dias, por força do que se encontra previsto no art.º 607º do citado Código (de Processo Civil).” – entre parêntesis nosso.
Pese embora a referência a ação judicial constante do nº2 do art.º 12º do RJPADLEC, estruturalmente estamos ante uma impugnação de uma decisão tomada em procedimento administrativo contraditório[7], que, em termos processuais civis se identificará muito mais como um recurso, do que como uma ação.
Na verdade, já existe uma decisão tomada pela entidade competente e a finalidade da impugnação é apenas a da confirmação ou revogação da decisão proferida. Note-se que o tribunal competente não pratica atos de registo, apenas confirma ou revoga atos da entidade competente para os praticar, o conservador, estando para o efeito prevista a comunicação oficiosa da decisão (sentença ou acórdão) tomada no processo de impugnação judicial pelo tribunal ao serviço de registo (arts. 12º nº 3 do RJPADLEC e 107º nº2 do CRCom), logo que transitada em julgado, bem como a desistência, deserção da instância ou paragem do processo por mais de 30 dias por inércia do autor.
E será por assim se ter configurado esta impugnação, como um recurso – com dois graus de recurso da decisão impugnada, para o tribunal de 1ª instância e para o tribunal da Relação –, que a lei limitou o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do nº4 do art.º 106º do CRCom, a propósito do qual já se decidiu tratar-se de um 3º grau de jurisdição cuja não permissão não colide com qualquer regra da nossa Lei Fundamental – cfr. o Ac. STJ de 27/10/2020, já citado, e onde, após afastar a admissibilidade de recurso de revista do Ac. do Tribunal da Relação em impugnação judicial de  decisão tomada em procedimento administrativo de dissolução e liquidação, se escreveu:
“Este entendimento de modo algum viola o direito ao acesso e à justiça ou com qualquer outro direito constitucional, designadamente à tutela jurisdicional efectiva, ou o direito de associação e/ou de propriedade privada, referenciados pelos Recorrentes.
Na verdade, impendendo sobre o legislador ordinário a conformação jurídica-normativa do regime recursivo e encontrando-se o mesmo dotado de um amplo poder de delimitação do regime dos recursos cíveis, como tem vindo a ser decidido pelo Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão do STJ de 26-11-2019, Processo n.º 1320/17.0T8CBR.C1-A.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ), não se vislumbra em que medida a aplicação (por recurso à analogia) de preceito legal que expressamente limita o direito ao recurso (no caso, ao 3.º grau de jurisdição), colida com o disposto no artigo 20.º ou com outro preceito da nossa Lei Fundamental.
Por outro, no caso, a não admissão do recurso de revista excepcional não constitui um tratamento obstrutivo do direito ao acesso ao direito e à justiça porquanto o mesmo se mostra patentemente exercido pelo Recorrente, desde logo ao ver apreciada a sua pretensão em duas instâncias jurisdicionais.”
Faz, assim, muito mais sentido a aplicação, com as devidas adaptações, do regime dos recursos em processo civil à impugnação judicial de atos de conservador do registo comercial do que do regime do processo comum de declaração: este é um processo judicial onde não se visa declarar o direito, mas sim verificar se o direito foi bem declarado.
O despacho recorrido, como se pode verificar do mesmo, é um despacho de não admissão da impugnação interposta, por extemporânea, que não equivale a um saneador sentença no qual se tenha julgado de mérito (diretamente ou mediante conhecimento de exceção perentória) antes correspondendo ao despacho que verifica os pressupostos processuais da impugnação, um dos quais a tempestividade da mesma (art.º 652º, nº 1, al. b) do CPC).
Corresponde à decisão que não admite em juízo o conhecimento da pretensão impugnatória, sendo que apenas admitido seria possível o conhecimento das questões de mérito nele suscitados (e que que no caso concreto respeitam à questão da existência de passivo e ativo da entidade dissolvida e liquidada) e, nessa sequência, eventualmente, a produção de prova, nos termos previstos, com bastante amplitude, no art.º 662º do CPC, sempre com as devidas adaptações.
Ou seja, e em conclusão, não vemos, face às regras aplicáveis (arts. 12º do RJPADLEC e 104º e ss. do CRCom) possibilidade de aplicação das regras do processo comum de declaração previstas no CPC e, consequentemente, do regime da audiência prévia previsto nos arts. 591º e ss. do CPC.
Ainda que assim se não entendesse, o resultado seria sensivelmente o mesmo.
A recorrente apresentou-se, em 2022, a impugnar uma decisão datada de dezembro de 2015, para cuja impugnação a lei prevê um prazo de 10 dias.
Ciente, arguiu a nulidade total do referido procedimento, mediante a invocação da irregularidade ou falta das notificações previstas no art.º 8º do RJPADLEC, alegando ter sido a falta de conhecimento do procedimento e da respetiva decisão a impedir a intervenção e impugnação atempadas (nº 20 do requerimento de impugnação judicial, entre outros).
O Conservador, no ofício que remeteu a impugnação para tribunal, em cumprimento do art.º 12º do RJPADLEC referiu singelamente “processo que se nos afigura extemporâneo”, sem qualquer justificação ou fundamentação.
O Ministério Público, cuja pronúncia está prevista na lei, arguiu a intempestividade da impugnação pronunciando-se sobre a questão das notificações expedidas no procedimento, ou seja, a exata questão suscitada pela recorrente.
O tribunal conheceu da questão da tempestividade do recurso e teria que o fazer mesmo que a questão lhe não tivesse sido suscitada: trata-se de um pressuposto processual de conhecimento oficioso.
Assim, a situação dos autos é, para quem entenda aplicável o regime do processo comum de declaração, assimilável ao despacho de gestão inicial do processo previsto no nº1 do art.º 590º do CPC, ocorrendo uma exceção dilatória insuprível de conhecimento oficioso, caso em que deve ser proferida decisão, sem necessidade de convite ao aperfeiçoamento e sem necessidade de realização de audiência prévia. Tratava-se de questão suscitada pela própria recorrente, ou seja, já debatida, pelo que, a aplicar-se (com o que discordamos, note-se), sempre seria um caso de dispensa de audiência prévia, nos termos do al. b) do art.º 592º do CPC.
E aqui chegados concluímos que, quer se opte por uma posição, quer por outra (no respeito pelas plausíveis soluções de direito) não havia lugar, nos presentes autos de impugnação judicial de decisão do Conservador tomada em procedimento administrativo de dissolução ou liquidação, à realização de audiência prévia nos termos do art.º 591º do CPC.
E assim sendo, a respetiva omissão não consubstancia qualquer falha de prática de ato previsto por lei ou irregularidade suscetível de recair sobre a decisão recorrida, pelo que não foi cometida qualquer nulidade, processual ou de sentença.
Improcede, a nulidade da decisão recorrida.
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4.2. Mérito da decisão recorrida - tempestividade da impugnação judicial da decisão de dissolução e encerramento da liquidação da sociedade C…, Lda
A recorrente, na sua impugnação havia deixado alegada a nulidade de todo o procedimento administrativo que culminou com a decisão de dissolução e encerramento da liquidação da sociedade C. …, Lda, invocando como argumentos que, sendo sócia da sociedade não foi notificada da abertura do procedimento ou da decisão final do mesmo, nos termos do art.º 8º do RJPADLEC. Defende que a notificação prevista no art.º 8º nº 1, al. a), nº 2 al. c) e nº 5 do RJAPDLEC equivale a citação, não recebeu qualquer carta, verificando-se que as cartas, enviadas para as moradas corretas, foram enviadas com aviso de receção e não apenas registadas, o que implica incumprimento do art.º 8º nº5, dado que foram todas devolvidas, sendo esta citação nula. Igualmente, nem a sociedade nem os sócios foram notificados da decisão final pelo que não puderam exercer o seu direito de impugnar a mesma, tendo sido infringidos os arts. 20º nº4 da CRP, 5º, 8º, 9º, 11º e 12º do RJPADLEC e 191º do CPC.
A decisão recorrida, explicitando estar a conhecer da arguida nulidade do procedimento com fundamento na falta de notificação da sociedade e dos sócios, depois de mencionar o texto dos arts. 8º e 9º, nºs 4 e 5 do RJPADLEC referiu que da regra dos nºs 4 e 5 do art.º 8º do referido regime resulta com clareza que a notificação, seja do início do procedimento, seja da decisão, é efetuada mediante a publicação do aviso nos termos do nº1 do art.º 167º do CSC, procedimento seguido no caso concreto.  
No tocante à sociedade foi notificada por via postal, sem qualquer irregularidade.
Conhecendo do argumento de que o envio das notificações com aviso de receção impediu o seu conhecimento pelos destinatários, recordou que a entrega de correio registado sem AR também é efetuada com recolha de assinatura pelo que não haveria qualquer diferença.
Concluiu, assim, que as notificações foram efetuadas e ficaram perfeitas com a publicação dos avisos, inexistindo qualquer nulidade do procedimento.
Em consequência, porque a impugnação foi interposta muito depois do decurso do prazo de 10 dias contados da publicação da decisão final, julgou a mesma manifestamente extemporânea.
A recorrente opôs a esta fundamentação os seguintes argumentos:
- a sentença identificou erradamente a recorrente como C. …, um operador comercial, enquanto que a recorrente é uma particular simplesmente acionista; a sentença tem foco no chamamento a juízo dos sujeitos mercantis, qualidade que a recorrente não reveste;
- a norma do art.º 8º do RJPADLEC tem que ser interpretada à luz do princípio do contraditório, sendo um chamamento a juízo que implica a efetiva entrega aos requeridos de todos os elementos necessários;
- a sentença não apreciou a circunstância alegada de a recorrente não ter acesso ao sítio da publicação eletrónica, que não é acessível ao público como é do conhecimento comum, e de não ter acesso pessoal ou próximo à internet;
- deveria ter sido informada dos motivos pelos quais a carta registada não lhe foi entregue, não constando da sentença qualquer facto que afaste a relevância da falha do correio;
- não basta fique assente a publicação do aviso por meio eletrónico e tinha que ser levado à matéria de facto que a recorrente havia tomado conhecimento efetivo disso, por disponibilidade informática ou por ter sido avisada do motivo pelo qual não recebeu a carta registada, o que não sucedeu.
O Ministério Público sustentou a sentença recorrida pelos motivos nela constantes e defendendo a inexistência de qualquer irregularidade, dado que a notificação dos arts. 8º e 11º do RJPADLEC é efetuada pela publicação do aviso nos termos do art.º 167º nº 1 do CSC, o que foi cumprido.
Apreciando, começaremos por referir que, efetivamente, por certo lapso de desatenção, a sentença recorrida refere, erradamente, ter a presente impugnação sido interposta por C. …, Lda e, a final, não admite o recurso interposto por C. …, Lda, quando a impugnação foi interposta não por esta entidade, mas sim por uma das sócias quotistas da mesma, AAF.
Trata-se de um lapso que resulta do próprio contexto dos autos – a impugnação, com a correta identificação da recorrente, está nos autos – o que, nos termos do disposto no art.º 249º do CC permite a respetiva retificação.
Defende a recorrente, sem entrar em pormenores, que há um erro porque, precisamente, se julgou a causa na perspetiva da citação de uma sociedade comercial e não de uma particular, entendendo, se bem se alcança, que seria necessária nova notificação da recorrente nos termos do art.º 229º do CPC (ou seja, com prova de depósito).
Pese embora a falta de desenvolvimento deste argumento, o regime da citação – que ainda não analisámos ser o regime aplicável às notificações previstas nos arts. 8º e 11º do RJPADLEC – é diverso para as pessoas coletivas, mercantis ou não, e para as pessoas singulares, atento o disposto no art.º 246º do CPC.
Para as pessoas coletivas, desde que a carta registada com aviso de receção[8] seja enviada para a respetiva sede constante do Registo Nacional de Pessoas Coletivas (RNPC)[9], a citação considera-se efetuada se a carta não for recebida por funcionário ou representante. Nos demais casos (por exemplo, devolução por não reclamação) envia-se nova correspondência para a referida sede com prova de depósito nos termos do art.º 229º nº5 do CPC, considerando-se a citação efetuada.
Para as pessoas singulares a modalidade de citação por aviso registado com prova de depósito apenas se aplica se existir domicílio convencionado em contrato escrito e em ações para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes desses contratos – cfr. art.º 229º do CPC.
Mas, na verdade o regime aplicável às notificações do art.º 8º do RJPADLEC não é o regime da citação.
Concordamos que a função cumprida pela notificação prevista no art.º 8º é de cumprimento do direito ao contraditório. Mas o próprio legislador lhe deu essa função e não consignou a aplicação do regime da citação em processo civil, optando por regular, de modo bastante exaustivo a forma e conteúdo da notificação no próprio Regime (assim excluindo o recurso ao direito subsidiário).
E bem se entende. No que toca às entidades a que este regime é aplicável (cfr. art.º 2º) e seus sócios e representantes, lidamos com entidades sujeitas a registo comercial, em que a sede e os domicílios dos sócios e administradores são elementos obrigatórios e fornecidos pela própria entidade e pelos seus representantes. Têm o dever de manter tal informação atualizada, pelo que não faz sentido aplicar-lhes o regime da citação em processo civil. No fundo trata-se de um corolário do princípio da autorresponsabilização pelos dados fornecidos pelos próprios a um serviço de registos públicos, que serve, entre outras finalidades, precisamente a de permitir a terceiros (tribunais, conservadores, credores, etc.) ter informação institucional sobre uma sociedade comercial.
O que implica que o expediente por correio registado (com ou sem aviso de receção) que seja remetido para a morada certa que conste do registo é a única exigência quanto ao regime do art.º 8º, não cabendo qualquer apelo as regras de citação previstas no CPC.
Neste exato sentido já se decidiu, no Ac. TRL de 24/01/2019 (Pedro Martins - 9631/18) que não se exige ao Conservador que diligencie no sentido de apurar a morada atual e completa dos sócios, mas apenas que proceda à notificação com base nos elementos de que dispõe, ou seja, os dados do registo. E na mesma linha O Ac. TRG de 07/06/2018 (Eva Almeida – 169/17) decidiu pela inaplicabilidade do nº5 do art.º 8º do Regime aos acionistas cuja identificação não consta do registo comercial.
A notificação da instauração do procedimento, tal como, por via da remissão do nº5 do art.º 11º, a notificação da decisão, como apontou o tribunal recorrido, é realizada mediante a publicação do aviso nos termos do nº1 do art.º 167º do CSC, a qual, tendo sido realizada, como consta da matéria de facto provada, ficou perfeita.
Como referem Paula Costa e Silva, Rui Pinto e Maria Leonor Ruivo[10] “Quanto à forma, a notificação realiza-se através da publicação de aviso nos termos do 167.º/1 do CSC, i.e. em sítio da internet de acesso público, dando conta que os documentos estão disponíveis para consulta no serviço de registo competente.
Como garantia adicional, a realização da publicação deve ser comunicada à entidade comercial e aos respetivos membros que constem do registo, por carta registada, salvo quanto a estes, se a causa de dissolução for a sociedade não ter ido objeto de atos de registo comercial obrigatório durante mais de 20 anos (n.º 7).”
No mesmo sentido se decidiu, no Ac. TRG de 10/02/2022 (Espinheira Baltar – 63/21) que “A notificação da decisão do encerramento da liquidação da sociedade, por parte da Conservadora, à apelante/ impugnante foi feita através da publicação no sítio da internet do Ministério da Justiça ao abrigo do disposto no artigo 8º n.º 4 e 25 n.º 2 do anexo III do DL. 76-A/2006 de 29/03.”
Do regime legal resulta, com clareza que, contrariamente ao alegado, basta a publicação corretamente efetuada, sendo facto público e notório, contrariamente ao alegado, que estas publicações são efetuadas em sítio de acesso universal e gratuito[11] nos termos do art.º 167º nº1 do CSC e sendo totalmente irrelevante que a recorrente tivesse ou não computador ou acesso à internet – sempre possível de obter, eventualmente como auxílio de terceiros -, até porque foi corretamente informada da notificação para a sua morada que constava no registo.
Pese embora as normas relativas às citações não sejam aplicáveis, há a esclarecer que consta dos autos e da matéria de facto o motivo da não entrega das cartas à recorrente (e aos demais notificados): resulta do nº8 da matéria de facto provada que as cartas foram devolvidas porque os respetivos destinatários não as levantaram, depois de avisados pelos CTT (não reclamado).
Concluímos assim, tal como o tribunal recorrido, que a notificação da abertura do procedimento administrativo de dissolução e liquidação e da decisão final foram ambos devidamente notificados, nos termos do art.º 8º, nºs 4 e 5 do RJPADLEC, e que a informação aos sócios e administradores da publicação desse aviso o foi também, tendo a correspondência registada sido enviada para as moradas constantes do registo.
Não tendo ocorrido qualquer irregularidade, não sofre o procedimento administrativo de qualquer nulidade global que permitisse a impugnação da respetiva decisão final praticamente 6 anos depois do decurso do prazo de 10 dias subsequente à notificação da mesma mediante a publicação de aviso nos termos do nº 1 do art.º 167º do CSC.
Sendo assim, de confirmar o juízo de não admissão da impugnação judicial por extemporaneidade da mesma, nos termos do nº 1 do art.º 12º do RJPADLEC.
A presente apelação improcede integralmente.
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A apelante, porque vencida, suportará integralmente as custas do presente recurso – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
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5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, julgando a apelação integralmente improcedente, manter a decisão recorrida.
Custas na presente instância recursiva pela apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
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Notifique, nos termos do disposto no artigo 106.º, n.º 1 e 2 do Código de Registo Comercial, a apelada, o Ministério Público e a Presidente do IRN.
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Após trânsito comunique tal facto ao serviço de registo, nos termos do art.º 12º nº 3 do RJPADLEC (cabendo ao tribunal recorrido o cumprimento do demais ali previsto, caso haja lugar).
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Lisboa, 13 de setembro de 2024
Fátima Reis Silva
Manuela Espadaneira Lopes
Nuno Teixeira
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[1] Lapso de escrita corrigido oficiosamente atento o teor do aviso em questão, documentado nos autos e datado de 27-07-2015 e não de 27-07-2017.
[2] Paula Costa e Silva, Rui Pinto e Maria Leonor Ruivo em Dissolução e Liquidação Administrativa, em Código das Sociedades Comerciais Anotado, Códigos Comentados da Clássica de Lisboa, 3ª edição, Almedina, 2020, pg. 1757.
[3] Todos disponíveis, como os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt.
[4] Por exemplo, os Acs. TRL de 18/12/2015 (Luís Espírito Santo – 2425/15) e TRL de 24/01/2019 (Pedro Martins - 9631/18), nos quais se aplicou, sem qualquer hesitação, o CPC.
[5] Em Dissolução e Liquidação Administrativa, em Código das Sociedades Comerciais Anotado, Códigos Comentados da Clássica de Lisboa, 3ª edição, Almedina, 2020, pgs. 1787 e 1788.
[6] Em Código do Registo Comercial Anotado e Comentado, 2ª edição, Almedina, 2016, pg. 391.
[7] Sendo parte do mérito da impugnação dirigido à efetiva existência de contraditório, que terá que ser aferida com vista à apreciação da tempestividade.
[8] Nos termos do disposto no art.º 225º nº 2 al. b) do CPC.
[9] A sede é um dos elementos a fazer constar na inscrição no RNPC (art.º 6º al. d) do Decreto Lei nº 129/98 de 13 de maio), organismo que emite o certificado de admissibilidade necessário à constituição da sociedade, sendo a sede um dos elementos obrigatórios do contrato de qualquer tipo de sociedade (art.º 9º, nº1, al. e) do CSC) e um dos factos sujeitos a registo para as sociedades comerciais (art.º 3º nº1, als. a) e o) do CRCom).
[10] Local citado, pg. 1782.
[11] No sitio https://publicacoes.mj.pt/, (Publicações de Atos Societários e de outras entidades).