RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PERDA DE INSTRUMENTOS
PRODUTOS E VANTAGENS
CUMULAÇÃO
ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


A jurisprudência fixada no acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 5/2024, de 11 de Abril de 2024, do Supremo Tribunal de Justiça publicado no Diário da República nº 90, 1ª Série de 09 de Maio de 2024, no qual fixou jurisprudência «Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.os 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto», deve ser igualmente aplicada às situações do artigo 110º do Código Penal.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Local Criminal de ..., por sentença de ... de ... de 2023, foi, no que a este recurso interessa, o arguido AA, condenado como coautor material e na forma consumada da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, previsto e punido pelo artigos 107.º, n.º 1 e 2, 105, n.ºs1 e 4 do RGIT, em conjugação com os artigos 30.º n.º2 e 79.º do Código Penal, na pena de 320 (trezentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz o montante de € 2.240,00 (dois mil duzentos e quarenta euros) e ainda,

- Deferir o pedido formulado pelo Ministério Público de ser declarado perdido a favor do Estado o valor da vantagem patrimonial no montante global de € 144.243,21 (cento e quarenta e quatro mil duzentos e quarenta e três euros e vinte e um cêntimos), decretando-se a obrigação de entrega ao Estado pela sociedade arguida e arguido AA desse valor correspondente à perda da vantagem patrimonial obtida mediante a prática do crime pelo qual vai ser condenados (…)

- Julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Instituto de Segurança Social IP contra os demandados sociedade arguida G...unipessoal, Lda, AA e BB e, em consequência, condenar a sociedade G...unipessoal, Lda e AA a pagar solidariamente ao Instituto da Segurança Social a quantia de € 144.243,21 (cento e quarenta e quatro mil duzentos e quarenta e três euros e vinte e um cêntimos) (…), tudo acrescidos de juros de mora contados sobre as quantias parcelares em dívida nos termos do disposto no DL 73/99 de 16 de março, com a redação dada pelo DL 32/2012, de 13 de fevereiro, e até integral pagamento.

2. Inconformado com a decisão o arguido AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão de 29 Novembro de 2023 da 4ª Secção, confirmou a decisão da 1ª Instância com um voto de vencido.

3. Inconformado com tal decisão, o arguido AA veio interpor recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto para este Supremo Tribunal de Justiça, o qual apenas foi admitido, em reclamação por determinação do Vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, para “admita a revista para o Supremo Tribunal, mas apenas na parte em que visa o reexame da condenação do demandado recorrente ao pagamento, solidariamente, da indemnização civil fixada na sentença condenatória”.

4. Da respectiva motivação e apenas no que respeita à indemnização em matéria cível, o recorrente retira, as seguintes conclusões: (transcrição parcial)

(…)

GGG. Por fim, no que respeita ao decidido quanto à perda de vantagem patrimonial o Acórdão em crise desconsidera o alegado pelo Recorrente. Em resumo diz a dada altura (pág. 33) “sendo certos que ambos os arguidos obtiveram benefício com a omissão de entrega das quotizações devidas à Segurança Social”.

HHH. Nota breve: apesar do Acórdão usar o termo “ambos” deveria querer referir-se aos 3 arguidos.

III. O Acórdão diz logo a seguir no entanto “ainda que tais importâncias tenham sido utilizadas na satisfação imediata de encargos da arguida G...unipessoal, Lda”.

JJJ. Ora é uma contradição que importa relevar: é incoerente “arguidos obtiveram benefício” e logo a seguir dizer “ainda que …”.

KKK. E termina o Acórdão esse parágrafo a dizer “por decisão conjunta dos infratores”, quando esta conclusão não está em nenhuma declaração, em nenhuma prova!

LLL. E assim concluir o Acórdão em crise que o alegado nesta matéria quanto à perda de vantagem patrimonial por parte do Recorrente não colhe.

MMM.O Acórdão acaba por desconsiderar a Jurisprudência de um Acórdão que o Recorrente tinha referenciado, com uma expressão simples de “não se acompanhando os acórdãos citados pelo recorrente.”

NNN. É matéria de Direito que o Arguido/Recorrente alegou e que também sujeita à apreciação desse Douto Tribunal superior.

OOO. É que foi julgado procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Instituto de Segurança Social, I.P., contra, entre outros, a sociedade arguida e o aqui Recorrente, enquanto demandados,

PPP. Entende-se pois que a declaração de valores perdidos a favor do Estado é inútil e desnecessária, face ao concreto pedido de indemnização civil in casu, igualmente deferido.

QQQ. Seguindo o mesmo entendimento, vide o acórdão da Relação do Porto, processo n.º 4929/17.9T9PRT.P1, de 10-07-2019,

RRR. Com toda a argumentação supra aduzida, não se entende como juridicamente correto visar o Recorrente, na veste de gerente, na obrigação de entregar ao Estado a vantagem patrimonial, uma vez que essa obrigação, considerando os circunstancialismos concretos do caso, apenas deverá ser decretada relativamente à sociedade arguida.

SSS. Como foi declarado provado pelo Tribunal (factos provados 28 e 34) e utilizado pelo Tribunal na sua fundamentação dos factos, inclusive para aferir das circunstâncias atenuantes, o dinheiro das quotizações não entregues à Segurança Social foi canalizado para pagar a trabalhadores e fornecedores.

TTT. Não se justifica, fáctica e juridicamente, o Recorrente AA ser igualmente visado pela perda de vantagem patrimonial, porquanto provado à saciedade, e perfeitamente aceite pela primeira instância, que todos os valores não entregues à Segurança Social serviram para pagar salários e créditos a fornecedores.

UUU. Mais ainda com todas as questões jurídicas de “in dúbio pro reo” seria uma injustiça manter a sua obrigação no pagamento cível desta ação.

Termos em que, requer-se que esse Venerando Tribunal, analisando a argumentação apresentada, mais sustentando na Declaração do Voto de Vencido constante do Acórdão do Tribunal da Relação, analise as seguintes questões:

Interpretação dos deveres do sócio versus gerente (nomeação de gerente pelo sócio, e pedido de informação por este ao gerente sobre a vida da sociedade);

Questão de face à prova concreta e ao princípio constitucional da inocência, relevar neste processo o princípio “In dúbio pro reo” com as consequências legais;

Usando-as na questão crime e, não sendo possível, na questão da indemnização cível;

Analisar as questões da insuficiência da matéria de prova para a condenação crime e cível, a contradição entre prova e sua fundamentação utilizada, e o erro notório na

apreciação da prova;

Tendo em conta que, tal como supra alegado, neste campo e por esta forma o STJ ainda pode ser chamado a sindicalizar as questões de prova;

Analisar se é suficiente o que está no processo para se concluir ou se devem baixar os autos para complemento e melhor fundamentação;

Analisar as questões da “Perda da Vantagem Patrimonial”, bem decidindo se pode o Recorrente ser condenado, tal como foi.

E em consequência, relevando as questões suscitadas possa ser revisto o sentido da decisão judicial e absolver o Réu, desde logo pelo princípio “In dúbio pro reo”, ou se se entender que o STJ não o pode absolver mas apenas se cingir às questões cíveis, então o absolva do pagamento da indemnização a que vem condenado pelo Acórdão em crise. (fim de transcrição parcial)

5. O Ministério Público na 2ª instância não apresentou resposta ao recurso e neste Supremo Tribunal de Justiça o Senhor Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer por “O recurso tem, assim, por objecto apenas a matéria-cível, não devendo o Ministério Público representação ou patrocínio a qualquer das partes ou interesse em disputa”.

Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos, cumpre decidir.

II Fundamentação

6. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3

Da leitura dessas conclusões, o recorrente coloca apenas a este Tribunal, que tendo sido julgado procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Instituto de Segurança Social I.P. contra o aqui recorrente enquanto demandado, é inútil e desnecessária a declaração de perda dos valores a favor do Estado.

6.1. O Tribunal a quo deu como provados, no que respeita à matéria em discussão no recurso, os seguintes factos: (transcrição parcial)

1. A sociedade comercial arguida “G...unipessoal, Lda, em liquidação,” Contribuinte da Segurança Social n.º .........55, é uma sociedade por quotas unipessoal, com o N.I.P.C. .......35, com sede na Avenida ..., Loja J2, ..., tendo como objeto social a importação, comercialização e exportação de produtos cosméticos e similares, bem como de equipamentos para atividades de ... e conexas.

3. A gerência da sociedade comercial arguida esteve, de facto, também entregue ao arguido AA, pelo menos desde 20-12-2011, o qual exerceu de facto todas as funções de gestão e administração da referida sociedade, data em que faleceu o seu anterior gerente, seu pai, (…), sócio gerente fundador da referida sociedade comercial arguida.

4. A gerência da sociedade comercial arguida esteve, ainda, entre 3.11.2011 até 15.1.2014, entregue ao arguido (…) o qual, enquanto gerente da referida sociedade, e na qualidade de seu legal representante, exerceu de facto todas as funções de gestão e administração da mesma, juntamente com o arguido AA, este enquanto gerente de facto da sociedade arguida.

5. A gerência da sociedade comercial arguida esteve, ainda, desde 09/01/2014, entregue ao arguido (…), o qual, enquanto gerente da referida sociedade, e na qualidade de seu legal representante, exerceu de facto todas as funções de gestão e administração da mesma, juntamente com o arguido AA, este enquanto gerente de facto da sociedade arguida.

6. Com efeito, nos respetivos períodos aludidos, os arguidos, dividindo entre si as tarefas, deram as ordens, decidiam o giro económico e de afetação das receitas às despesas, tomaram as decisões que vincularam a sociedade comercial arguida, assinaram contratos, contrataram pessoal, procederam ao pagamento dos salários, deram as orientações aos trabalhadores e receberam pagamentos de clientes.

7. No período de tempo compreendido entre maio de 2012 até Janeiro de 2014, no exercício da sua atividade, a sociedade comercial arguida teve por intermédio dos arguidos AA e (…), sob a sua dependência laboral trabalhadores por conta de outrem, mediante o pagamento de retribuição mensal que estavam sujeitos à retenção na fonte das contribuições que deviam mensalmente ser entregues à Segurança Social.

8. A sociedade comercial arguida, nesse período, através dos arguidos AA e (…), pagava, também, aos respetivos membros dos órgãos estatutários as devidas remunerações, descontando e retendo sobre as mesmas a percentagem relativa às contribuições devidas à Segurança Social.

9. No exercício das suas funções, impendia sobre os arguidos AA e (…), a obrigação de, em nome da sociedade comercial arguida, reter, no ato de pagamento das remunerações mensais aos trabalhadores e aos sócios gerentes, as cotizações legais a entregar à Segurança Social, montantes esses que, bem sabiam, pertenciam à Segurança Social e a esta deveriam ser entregues.

10. No período de tempo compreendido entre maio de 2012 até Janeiro de 2014, em que os salários dos trabalhadores foram pagos regularmente, os arguidos AA e (…), atuando em conjugação de esforços e de comum acordo, em nome e no interesse da sociedade comercial arguida, entregaram as correspondentes folhas de remunerações destinadas a mencioná-los, tendo descontado dos salários pagos aos seus trabalhadores e sócios gerentes as contribuições devidas à Segurança Social, quer relativamente ao regime geral, quer no que respeita ao regime dos membros dos órgãos estatutários, conforme a lei obriga.

11. Apesar de terem descontado tais contribuições, os arguidos não as entregaram à Segurança Social, nos prazos legais, nem posteriormente.

12. Nesta conformidade, os arguidos AA e (…), atuando, em conjugação de esforços e de comum acordo, em nome e no interesse da sociedade comercial arguida, deduziram e retiveram dos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos estatutários, as respetivas cotizações legais e não as entregaram à Segurança Social, nos períodos, taxas e montantes que infra se discriminam: (…)

13. Assim entre Maio de 2012 e Janeiro de 2014 os arguidos (…) e AA integraram no património da sociedade arguida o montante global de €47.899,45 (quarenta e sete mil oitocentos e noventa e nove euros e quarenta e cinco cêntimos) referente ao valor de cotizações retidas e não pagas.

14. No período de tempo compreendido entre janeiro de 2014 até novembro de 2019, no exercício da sua atividade, a sociedade comercial arguida teve por intermédio dos arguidos AA e (…), sob a sua dependência laboral trabalhadores por conta de outrem, mediante o pagamento de retribuição mensal que estavam sujeitos à retenção na fonte das contribuições que deviam mensalmente ser entregues à Segurança Social.

15. A sociedade comercial arguida, através dos arguidos AA e (…), pagava, também, aos respetivos membros dos órgãos estatutários as devidas remunerações, descontando e retendo sobre as mesmas a percentagem relativa às contribuições devidas à Segurança Social.

16. No exercício das suas funções, impendia sobre os arguidos AA e (…), a obrigação de, em nome da sociedade comercial arguida, reter, no ato de pagamento das remunerações mensais aos trabalhadores e aos sócios gerentes, as cotizações legais a entregar à Segurança Social, montantes esses que, bem sabiam, pertenciam à Segurança Social e a esta deveriam ser entregues.

17. No período de tempo compreendido entre janeiro de 2014 até novembro de 2019, em que os salários dos trabalhadores e dos sócios gerentes da referida sociedade foram pagos regularmente, os arguidos AA e (…), atuando em conjugação de esforços e de comum acordo, em nome e no interesse da sociedade comercial arguida, entregaram as correspondentes folhas de remunerações destinadas a mencioná-los, tendo descontado dos salários pagos aos seus trabalhadores e sócios gerentes as contribuições devidas à Segurança Social, quer relativamente ao regime geral, quer no que respeita ao regime dos membros dos órgãos estatutários, conforme a lei obriga.

18. Apesar de terem descontado tais contribuições, os arguidos não as entregaram à Segurança Social, nos prazos legais, nem posteriormente.

19. Nesta conformidade, os arguidos AA e (…), atuando em conjugação de esforços e de comum acordo, em nome e no interesse da sociedade comercial arguida, deduziram e retiveram dos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos estatutários, as respetivas cotizações legais e não as entregaram à Segurança Social, nos períodos, taxas e montantes que infra se discriminam: (…)

20. As quantias suprarreferidas deveriam ter dado entrada nos serviços da Segurança Social até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que diziam respeito ou nos 90 (noventa) dias seguintes ao termo legal de pagamento.

21. Porém, apesar de saberem que estavam legalmente obrigados a fazê-lo, os arguidos não entregaram as mesmas à Segurança Social, nem naquela data, nem nos 90 (noventa) dias subsequentes.

22. Assim, nesse período compreendido entre Janeiro de 2014 a Novembro de 2019, os arguidos (…) e AA integraram no património da sociedade comercial arguida, o montante de €98.145,92 (noventa e oito mil cento e quarenta e cinco euros e noventa e dois cêntimos), respeitante às contribuições dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários da sociedade, relativas aos meses supra indicados.

23. No que se refere ao arguido AA no período compreendido entre Maio de 2012 e Novembro de 2019 o mesmo (até Janeiro de 2014 em conjugação de esforços e comum acordo com o arguido (…) e desde Janeiro de 2014 até Novembro de 2011 em conjugação de esforços e comum acordo com o arguido (…)), integrou no património da sociedade arguida a quantia global de €144.243,21.

24. No dia 13-11-2020 a sociedade comercial arguida e o arguido (…) foram notificados pessoalmente para proceder ao pagamento das quantias em dívida, no prazo de 30 dias, com a advertência de que o referido pagamento determinaria a não punibilidade da sua conduta e a extinção do procedimento criminal.

25. No dia 26-03-2021 o arguido AA foi notificado pessoalmente para proceder ao pagamento das quantias em dívida, no prazo de 30 dias, com a advertência de que o referido pagamento determinaria a não punibilidade da sua conduta e a extinção do procedimento criminal.

26. No dia 17-11-2021 o arguido (…) foi notificado pessoalmente para proceder ao pagamento das quantias em dívida, no prazo de 30 dias, com a advertência de que o referido pagamento determinaria a não punibilidade da sua conduta e a extinção do procedimento criminal.

27. Não obstante, os arguidos não pagaram as prestações em dívida, naquele prazo, estando o Estado lesado na mencionada quantia.

28. Os arguidos agiram da forma descrita nos respetivos períodos aludidos, em conjugação de esforços e de comum acordo, de forma livre, voluntária e consciente, em nome da sociedade comercial arguida, com o propósito concretizado de, sempre que não possuíssem meios de satisfazer todas as suas obrigações comerciais e financeiras, não entregarem os montantes referentes às cotizações devidas à Segurança Social acima discriminados, os quais deduziram às remunerações pagas aos seus trabalhadores e membros de órgãos estatutários, integrando tais montantes no património da sociedade comercial arguida, fazendo uso deles no giro comercial desta, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que agiam contra a vontade e em prejuízo da Segurança Social, sua legítima proprietária, propósito que foram sucessivamente renovando ao longo do tempo, pelos períodos supra indicados.

29. Os arguidos atuaram da forma supra descrita, movidos pela facilidade com que sucessivamente lograram concretizar os seus intentos, pois que após não terem entregado os primeiros montantes referentes às contribuições sociais, não entregaram as prestações subsequentes acima referidas, em virtude da Segurança Social não os ter entretanto inspecionado, criando ao longo desse período de tempo a convicção de que a sua conduta criminosa tinha sido bem sucedida e permaneciam impunes, convencimento que só veio a ser interrompido com a ação de fiscalização que lhes foi efetuada pelos serviços competentes do Instituto da Segurança Social.

30. Os arguidos atuaram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

33. Com o comportamento dos arguidos, (reportados aos respetivos períodos) e da sociedade arguida, o assistente Instituto da Segurança Social sofreu prejuízos que se traduzem, no lado mais imediato, na não possibilidade de a Segurança Social dispor e utilizar essas verbas para ocorrer às necessidades sociais a que tem de fazer face, como pagamentos de subsídios de desemprego, subsidio de doença, fundo de garantia salarial, reformas e pensões de velhice, comparticipações em lares e instituições de apoio social e muitos outros pagamentos correspondente ao valor de €144.243,21, cujo montante resulta dos valores deduzidos pelos arguidos nas remunerações dos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários referentes ao período de Maio de 2012 a Novembro de 2019 em que foram deduzidas mas não efetuaram a entrega das cotizações à Segurança Social nos respetivos períodos.

34. As quantias referentes às cotizações em dívida à Segurança Social foram canalizadas pelos arguidos para pagamento a fornecedores e a trabalhadores da sociedade. (fim de transcrição parcial)

6.2. Como ficou referido nas questões a decidir, o arguido não veio colocar em crise os pressupostos da perda a favor do Estado dos valores de que o arguido se apropriou ou da condenação do no pedido de indemnização civil formulado pelo Instituto de Segurança Social I.P., mas, apenas, a cumulação da perda e do pedido de indemnização civil por desnecessidade e inutilidade.

Apesar de o arguido não colocar em causa os pressupostos da perda a favor do Estado dos valores apropriados e do pedido de indemnização civil, sempre diremos que, atentos os factos provados anteriormente descritos e o disposto nos artigos 110.º e 129.º do Código Penal e artigos 483º, n.º 1, 562º, 563º, 805º, n.º 2 al. b) e 806º, todos do Código Civil, os mesmos mostram-se preenchidos.

Dito isto, impõe-se apreciar a questão suscitada pelo recorrente.

A cumulação entre a perda a favor do Estado e o pedido de indemnização civil foi, durante muito tempo, matéria controversa ao nível doutrinal e jurisprudencial.

A este propósito, escreveu-se na douta decisão recorrida: “O recorrente questiona o decidido quanto à perda de vantagem patrimonial, invocando que a declaração de perda a favor do Estado é inútil e desnecessária, face ao concreto pedido de indemnização civil também deferido, além do que a obrigação de entrega ao Estado do valor da vantagem patrimonial apenas deverá ser decretada relativamente à sociedade arguida, dado que o dinheiro das quotizações não entregues à Segurança Social foi canalizado para pagar a trabalhadores e fornecedores. Cita em abono da sua pretensão jurisprudência deste Tribunal da Relação do Porto (acórdãos de 10-07-2019, proc. 4929/17.9T9PRT.P1, e de 18-01-2023, proc. 7930/19.4T9PRT.P1).

Vejamos.

Em face da natureza e finalidade distintas dos institutos em causa e das normas legais aplicáveis, considera-se que a dedução do pedido de indemnização civil e o seu eventual deferimento não interferem com o decretamento da perda da vantagem patrimonial decorrente da prática do crime.

Na realidade, o carácter sancionatório e a finalidade preventiva do confisco de bens decorrente da condenação pela prática de um crime4 não se confunde, nem interfere, com a natureza essencialmente reparadora da indemnização devida pelos danos emergentes do cometimento do crime.

A perda de vantagem patrimonial decorrente do crime insere-se ainda na reação jurídico-penal à prática de ilícito criminal enquanto a indemnização integra enxerto civil do processo penal e constitui reparação ou compensação, de natureza civil, dos prejuízos causados ao lesado mediante o cometimento do crime. Depois, sem prejuízo de ambos os institutos dependerem da existência de facto ilícito típico, estão sujeitos à verificação de outros pressupostos legais distintos, nos termos dos artigos 110.º e 129.º do Código Penal.

Outrossim, o decretamento da perda de vantagem patrimonial não exige a verificação de qualquer pressuposto positivo ou negativo relativo à dedução do pedido de indemnização civil por parte do lesado, assim como não depende da iniciativa e êxito da cobrança coerciva tributária5.

Ademais, a ressalva constante da lei relativamente aos direitos do ofendido (cf. artigo 110.º, n.º 6, do Código Penal, na versão vigente; equivalente ao artigo 111.º, n.º 2, do mesmo código na redação anterior), está conexionada com a possibilidade, também consagrada na lei, de a vantagem patrimonial declarada perdida a favor do Estado ser atribuída ao lesado por decisão do tribunal (cf. artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal).

Por conseguinte, tratando-se de realidades conceptuais e jurídicas distintas, que visam dar satisfação a finalidades diversas, a procedência do pedido de indemnização civil não acarreta a inutilidade da declaração de perda de vantagem patrimonial. Sucede antes que verificados os respetivos requisitos impõe-se sempre determinar a perda de vantagens decorrentes do crime independentemente de ter sido formulado ou não pedido civil, e em caso afirmativo, do teor da decisão final que sobre o mesmo recaia6, sem prejuízo de o ressarcimento que venha a ser obtido quer por via coerciva quer em sede de enxerto civil ser deduzido em valor correspondente na vantagem patrimonial a entregar, sob pena de enriquecimento indevido, como expressamente ressalvado na sentença.

Noutra vertente, também se considera que, dada a finalidade e cariz sancionatório da medida, nenhuma razão subsiste para distinguir o arguido AA relativamente à sociedade arguida no concernente à responsabilidade de entrega ao Estado do valor da vantagem patrimonial resultante do crime pelo que foram condenados, sendo certo que ambos os arguidos obtiveram benefício com a omissão de entrega das quotizações devidas à Segurança Social, ainda que tais importâncias tenham sido utilizadas na satisfação imediata de encargos da arguida G...unipessoal, Lda, por decisão conjunta dos infratores7.

Assim, carece de fundamento a pretensão recursiva também sob este aspeto, não se acompanhando os acórdãos citados pelo recorrente.”

Este douto entendimento, já após a interposição do presente recurso, veio a ser sufragado por este Supremo Tribunal de Justiça, o qual prolatou o acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 5/2024, de 11 de Abril de 2024, publicado no Diário da República nº 90, 1ª Série de 09 de Maio de 2024, no qual fixou jurisprudência «Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.os 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.».

A jurisprudência fixada responde e resolve a questão suscitada pelo recorrente.

Na verdade, ainda que o mesmo se reporte ao artigo 111º, do Código Penal, os pressupostos subjacentes à jurisprudência fixada aplicam-se, por maioria de razão, igualmente, às situações do artigo 110º do mesmo código.

Assim, inexistindo fundamento bastante para divergir da jurisprudência fixada, nos termos do artigo 445.º, nº 3 do Código de Processo Penal deve a mesma ser seguida e ser aplicada nos presentes autos.

Em resumo, improcede o recurso confirmando-se o acórdão recorrido.

III. Decisão

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, decide julgar improcedente o recurso do arguido AA e confirmar a decisão recorrida.

Custa pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 19 de Junho de 2024.

Antero Luís (Relator)

M. Carmo Silva Dias (1ª Adjunta)

Pedro Manuel Branquinho Dias (2º Adjunto)

__________


1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.

2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.

3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.

4. Cfr. Anotação ao Acórdão desta Relação de 23-11-2016, João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, Julgar Online, Janeiro de 2017, O confisco dos proventos do crime tem uma finalidade preventiva pelo que a omissão da sua declaração (a sua execução posterior já será outra coisa) frusta este propósito político-criminal e emite um sinal errado para a comunidade. É imprescindível que a sentença torne claro que o «crime não compensa». Se não for assim, se condenar o arguido mas permitir que ele mantenha incólumes as vantagens da prática do crime, estará a transmitir à comunidade um sinal contraditório e incompreensível. O veredictum deverá, pelo menos, ter este valor declarativo insofismável, fazendo ver a toda a comunidade quais as consequências da prática de crimes. Apesar da eventual inutilidade prática, o mero valor pedagógico da decisão não é despiciendo, não podendo ser esquecido.↩︎

5. Vd. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 22-02-2017, proc. 2373/14.9IDPRT.P1 (Relatora Maria Deolinda Dionísio; 1.ª Adjunta neste processo); de 31-05-2017, proc. 259/15.9IDPRT.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.

6. Cfr., entre outros, Acórdãos Tribunal da Relação de Évora de 12-09-2023, proc. 55/20.1GAFZZ.E1; de 07-09-2021, proc. 95/18.0T9LLE.E1; Acórdão Tribunal da Relação do Guimarães de 03-10-2023, proc. 21/20.7T9BRG.G1; de 21-02-2022, proc. 127/19.5IDBRG.G1; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 29-06-2022, proc. 127/19.5IDBRG.G1; de 10-12-2019, proc. 282/18.1T9PRD.P1; de 11-04-2019, proc. 360/17.4IDPRT.P1; de 12-08-2018, proc. 260/16.5IDPRT.P1 (Relatora Maria Dolores da Silva e Sousa, 2.ª Adjunta neste processo); de 22-02-2017, proc. 2373/14.9IDPRT.P1 (Relatora Maria Deolinda Dionísio; 1.ª Adjunta neste processo);↩︎

7. Vd. Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 25-09-2019, proc. 964/15.0IDPRT.P1 (em que os arguidos se encontravam condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1 da Lei nº 15/2001, de 5/6, sendo provido o recurso e proferida condenação solidária das arguidas no pagamento ao Estado do valor correspondente à importância ilicitamente apropriada com a prática do crime pelo qual foram condenadas (€…,)[que corresponde ao valor da vantagem por obtida pela sociedade “C…, Lda.”, com a prática do facto ilícito típico] nos termos do disposto no artigo 111º, nº 4, do Código Penal.; Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 28-10-2021, proc. 321/19.9IDPRT.P1 (em que estando provado que as quantias devidas ao Estado a título de IVA ingressaram no acervo patrimonial da sociedade arguida, foi declarada perdida a favor do Estado (Administração Tributária) a vantagem patrimonial (de €…) e condenados os arguidos no seu pagamento; também Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 19-04-2023, proc. 276/17.4IDPRT.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. .Cf. ainda voto de vencido exarado no Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 30-04-2019, proc. 1325/17.1T9PRD.P1; declaração de voto, subscrito pela ora Relatora, exarado no Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 17-05-2023, proc. 234/18.1IDAVR.P1 (disponível em www.dgsipt), em que se expressou concordância com o entendimento do já citado Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 19-04-2023, proferido no processo n.º 2460/20.4T8VFR.P1 e se convocou o sentido decisório de diversos acórdãos em que, embora a questão suscitada no presente recurso não se mostre debatida expressamente, os arguidos foram condenados no pagamento do valor correspondente à vantagem resultante do crime sem que tenha sido feita distinção quanto ao beneficiário direto da vantagem (vd. entre outros, Acórdãos TRP de 15-03-2023, proc. 786/20.6T9VLG.P1, de 28-10-2021, proc. 321/19.9IDPRT.P1, de 25-09-2019, proc. 964/15.0IDPRT.P1; TRL 07-04-2022, proc. 610/19.2T9FNC.L1-9, de 18-06-2019, proc. 2706/16.3T9FNC.L1-5, de 04-04-2019, proc. 1487/17.8T9FNC.L1-9; TRG de 06-06-2022, proc. 14/18.4 IDCCT.G1, de 21-02-2022, proc. 127/19.5IDBRG.G1, de 08-11-2021, proc. 4/19.0T9VNC.G1, todos disponíveis em que, de outro modo, não será possível alcançar a finalidade preventiva do instituto em causa. Vd. ainda posteriores Acórdãos de Tribunal da Relação do Porto de 13-09-2023, proc. 2111/21.0T9VFR.P1 (processo em que intervém como Adjunta Maria Dolores da Silva e Sousa, 2.ª Adjunta no presente processo); de 18-10-2023, proc. 732/20.7T9PVZ.P1, disponíveis em www.dgsi.pt..↩︎