RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
DESCENDENTE
GRAVIDEZ
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Sumário


I. A especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do homicídio, por forma a que este seja considerado como qualificado, impõe, num primeiro momento, saber se existe alguma das circunstâncias das enunciadas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal, enquanto indício daquela censurabilidade e perversidade e, num segundo momento, averiguar se, perante as circunstâncias concretas do caso, estamos perante um aumento de culpa em grau tão elevado que justifica a agravação;
II. Materializa uma especial perversidade e censurabilidade exigidas no nº 1 do artigo 132º do Código Penal, a circunstância de uma arguida, esconder uma gravidez indesejada e tomar, desde logo, a decisão de matar a sua filha no momento do nascimento e, ao ser confrontada com o imprevisto nascimento de outra criança, manter a mesma atitude e decidir igualmente tirar-lhe a vida, com asfixia das recém-nascidas, fechando-as, embrulhadas em toalhas, dentro de sacos plásticos, que depois transportou para um veículo automóvel;
III. O sufoco económico, a ruptura conjugal e distanciamento do companheiro que não tinha desejado uma anterior segunda filha, a reprovação dos progenitores da relação com o companheiro e a sobrecarga de responsabilidades que sobre os mesmos recaiam, não “faz emergir a inexistência de ligação emocional” com as vítimas e, nessa medida, não afasta a especial perversidade ou censurabilidade;
IV. Na elaboração do cúmulo jurídico, a pena única deve ser encontrada a partir da pena parcelar mais grave, a qual será mais ou menos agravada em função da perspectiva global do facto e da personalidade do agente, tendo sempre como limite a sua culpa e a preservação do princípio da proporcionalidade.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. Por acórdão de 17.01.2024 do Tribunal da Relação do Porto, 4ª Secção, proferido no Processo 64/20.0PAESP.P2 – em recurso do Acórdão de 07.07.2023 do Tribunal Colectivo, proferido, já em sede de reenvio para novo julgamento, no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Central Criminal de ..., Juiz-3, veio a julgar parcialmente procedente o recurso daquele acórdão e, em consequência a condenar a arguida, AA, nos seguintes termos:

Pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. nas disposições dos artigos 131° e 132°/1 e 2-a), c) e j) do Código Penal, na pena de 14 anos de prisão;

Pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. nas disposições dos artigos 131° e 132°/1 e 2-a) e c) do Código Penal, na pena de 13 anos de prisão;

Manter a condenação pela prática, em autoria material, de dois crimes de profanação de cadáver, p. e p. na disposição do artigo 254°/1-a) e b) do Código Penal, nas penas parcelares de 06 meses de prisão por cada um deles.

Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, foi a arguida condenada na pena única de 17 (dezassete) anos de prisão.

2. Inconformada com tal decisão, a arguida interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, retirando da respectiva motivação, as seguintes conclusões: (transcrição)

1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que julgando parcialmente procedente o recurso da ora recorrente, decidiu: A) Condenar a mesma arguida na pena de 14 (catorze) anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas a), c) e j) do Código Penal; B) Condenar a mesma arguida na pena de 13 (treze) anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e c), do Código Penal; C) Condenar a mesma arguida, em cúmulo jurídico, na pena única de 17 (dezassete) anos de prisão pela prática, em concurso efetivo, dos crimes identificados nas al. a) e b) deste dispositivo e al. c) do dispositivo do acórdão recorrido.

2. O presente recurso tem por motivação a errada qualificação jurídica dos factos e a iniquidade das penas parcelares e da pena única.

3. O Tribunal da Relação perante a factualidade dada como provada entende que estamos perante dois crimes de homicídio qualificado convocando as alíneas a) c) e j) do artigo 132 nº 2 do CP quanto ao primeiro e as alíneas a) e c) do mesmo normativo quanto ao segundo.

4. O homicídio qualificado constitui um caso especial de homicídio doloso que o legislador decidiu punir com uma moldura penal agravada.

5. Assim, no nº1 do artigo 132º, encontramos uma cláusula geral, e no nº 2 estão previstos os denominados “exemplos-padrão”, servindo de exemplo para aquilo que pode qualificar o homicídio.

6. Conforme referem Figueiredo Dias e Nuno Brandão “o legislador português seguiu

em matéria de qualificação do homicídio, um método muito particular e, até certo ponto, neste domínio, original (…): a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos padrão.

7. O elenco no nº 2 do 132 constitui mera exemplificação e não é sua simples verificação que permite automaticamente afirmar que estamos perante um homicídio qualificado. Estamos perante circunstâncias “ cuja verificação não implica forçosamente a qualificação do homicídio. Esta ocorrerá se tais circunstâncias exprimirem um grau especialmente elevado de culpa.

8. O artigo 132º utiliza então dois conceitos nucleares sendo ambos indeterminados: a especial censurabilidade e a especial perversidade sendo que para Figueiredo Dias e Nuno Brandão os exemplos-padrão são “elementos constitutivos do tipo de culpa” e não circunstâncias que atendem ao tipo de ilícito. Assim, as circunstâncias aí elencadas estão ligadas a um desvalor da ação e da conduta do agente. A especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido.

9. A especial censurabilidade está intimamente ligada ao facto em si e a perversidade

relacionada com o agente em si. Assim a especial censurabilidade está conexionada ao modo de ser da ação e especial perversidade à implicação pessoal do agente na ação.

10. Não é suficiente dar por verificada que a conduta do agente é censurável ou

perversa, sendo ainda vital que esse juízo de culpa convoque circunstâncias e características especialmente desvaliosas.

11. O nº 1 do artigo 132º faz emergir um critério de qualificação, a especial

censurabilidade ou a especial perversidade, onde se assiste a um grau de culpa mais elevado. No nº 2 temos os exemplos-padrão que consistem em “‘linhas orientadoras’ que têm como função delimitar as situações em que se verifica a especial censurabilidade ou perversidade.

12. Tendo com consideração o acima exposto teremos então de analisar se a verificação das referidas circunstâncias revela a especial censurabilidade ou perversidade exigida n.º 1 do art. 132.º para a qualificação do homicídio tendo em consideração a globalidade da factualidade dada como provada. A resposta parece-nos negativa.

13. A arguida agiu num contexto de sufoco económico, rutura conjugal, distanciamento emocional face ao companheiro sendo que a relação entre o casal estava deteriorada, o seu companheiro já não tinha desejado a segunda filha do casal e apresentava resistências na assunção das responsabilidades parentais; os pais da recorrente não aprovavam a sua relação com o companheiro e manifestaram uma sobrecarga de responsabilidades por já terem de tomar conta diariamente das duas primeiras filhas do casal; o casal vivia em dificuldades não conseguindo assumir plenamente os seus compromissos financeiros, tendo sido alvo, de uma ação de despejo, etc. - cf factos provados 3, 38, 39, 40, 41, 42, 43 e 47) que não justificando a conduta permitem compreender a situação de apreensão/aflição em que se terá visto quando soube que estava novamente grávida,

14. A análise global da factualidade provada faz emergir a inexistência de ligação emocional, aceitação, afeto e necessidade de proteção e como bem havia referido o Tribunal a quo em acórdão anterior a arguida não chegou sequer, a interiorizar na sua plenitude a relação de maternidade com as infelizes filhas (não criou quaisquer laços afetivos com elas), fruto de uma gravidez totalmente indesejada, que iria agravar a de si complicada situação familiar e financeira em que vivia, encetando, assim, uma espécie de um processo de dissociação psicológica relativamente valor daquelas duas vidas que não é incomum neste tipo de situações tendo tal descaracterizado a proximidade e relação umbilical e afetiva que deverá existir entre mãe/filha(s)

15. Não se vislumbra que a atuação da arguida, ainda que preenchendo em abstrato, as circunstâncias previstas nas als. a), c) j) do n.º 2, do art. 132.º do CP, convoque ao nível da sua culpa, um juízo de censurabilidade ou perversidade especialmente acrescido que não esteja já abrangido pelo crime de homicídio simples, situação mais acentuada por referência à segunda filha uma vez que a arguida nem sequer sabia que estava gravida de gémeos.

16. É de afastar a qualificação da sua conduta no âmbito do crime de homicídio qualificado p.p. no art. 132.º do CP.

17. O Tribunal a quo violou ou fez errada interpretação do artigo 131 nº 1 e 2 do CP

18. A recorrente foi condenada na pena de 14 (catorze) anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas a), c) e j) do Código Penal; na pena de 13 (treze) anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e c), do Código Penal;, em cúmulo jurídico, na pena única de 17(dezassete) anos de prisão pela prática, em concurso efetivo, dos crimes identificados nas al. a) e b) deste dispositivo e al. c) do dispositivo do acórdão proferido pelos JCC de ....

19. Nos termos do art. 40° do C.P., a aplicação da pena visa a proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), não podendo a pena em caso algum ultrapassar a medida da culpa.

20. A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do art. 71° do C. Penal, em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.

21. A culpa do arguido determina pois o liminar inultrapassável da pena, das

exigências de prevenção geral, com vista a obter uma pena que tutele os bens jurídicos em causa dentro do que é possibilitado pela culpa, de modo a restabelecer o sentimento de segurança e alcançar a socialização e reintegração do agente.

22. Dentro do limite máximo permitido pela culpa, a pena deve ser determinada no interior de uma moldura de prevenção geral positiva, cujo limite máximo é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite mínimo é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral positiva a medida da pena será encontrada em função das exigências de prevenção especial.

23. No caso em apreço tendo os factos dados como provados sido qualificados como homicídio qualificado é aplicável o artigo 132º do Código Penal que prevê uma pena de 12 a 25 anos de prisão.

24. No caso concreto, na medida concreta das penas, como decorre do acórdão

proferido, o Tribunal “a quo” entendeu que (art. 71°, n° 2 do C.P.):

Relembramos que as exigências de prevenção geral são as mais elevadas, considerando que está em causa o bem jurídico mais precioso que é a vida, cuja violação tem de ser fortemente sancionada, causando forte e máximo alarme social, obrigando a que a pena ,tendo sempre como limite a culpa da arguida, seja aplicada e fixada de forma a não defraudar as expectativas da sociedade, fazendo-a continuar a acreditar na eficácia do ordenamento jurídico.

As exigências de prevenção especial também revestem particular acuidade, considerada a personalidade evidenciada pela arguida, manifestada não no momento da prática dos factos, mas após a sua prática,

A atentar no grau de ilicitude, manifestado na forma como a arguida atuou e na tenacidade que manifestou na sua prática; o dolo assume a forma mais intensa, é direto

25. No entanto são igualmente de suma importância, e o Tribunal “a quo” devida ter

tido em consideração os seguintes pontos que são favoráveis ao arguido e que entendemos ter sido negligenciados, a saber:

• No meio residencial a arguida projetava uma imagem social favorável, com um quotidiano ajustado, dedicado à vida profissional e familiar, sendo descrita como uma mãe afetuosa e dedicada

• Em contexto profissional, AA é considerada uma colaboradora responsável, polivalente e com um elevado nível de conhecimentos, que ajuda a integrar os colegas novos, sendo, por isso, considerada uma das funcionárias mais valiosas da empresa.

• A arguida verbalizou reconhecer a censurabilidade da natureza dos crimes de que vem acusada, aguardando com ansiedade a audiência de julgamento e consequente desfecho da presente situação jurídico-processual, receando poder vir a ser alvo de uma sanção penal

• A arguida não tem antecedentes criminais.

26. De todos os factos relatados que se encontram provados no presente processo resulta que, presentemente, não existe qualquer tendência para a arguida praticar factos criminosos como aqueles que estão em causa nos autos pelo que tal deveria ser valorado a favor da arguida na determinação da medida das penas.

27. Assim, não esquecendo os factos supra referidos e tendo em mente o disposto no artigo 71 nº 1 e 2 entendemos que as penas concretas quanto aos crimes de homicídio qualificado deverão ser diminuídas no seu quantum nos seguintes termos: a) pela prática como autora material de um crime de homicídio qualificado, p.p. nos artigos 131º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas a), c) e j) do Código Penal, na pena de 13 anos de prisão; b) pela prática como autora material de um crime de homicídio qualificado, p.p. nos artigos 131º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e c), do Código Penal, na pena 12 anos de prisão

28. Nos termos do artigo 77º do CP “Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. (…)”A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão (…); e como limite mínimo a mais elevadas das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

29. A aplicação de uma qualquer pena visa a proteção e bens jurídicos e a reintegração do agente em sociedade sendo que essa mesma pena é determinada em função da culpa do agente a das necessidades de prevenção sendo estas (prevenção e culpa) os piares essenciais para determinar a medida da pena que há de emergir em casa caso, do que resultar como necessário para acautelar as expectativas a comunidade na manutenção a validade da norma posta em causa.

30. Assim a pena poderá e deverá ser desenhada como forma do Estado mandar e reforçar a confiança da comunidade na validade e vigência das suas normas tutelares de bens jurídicos falando-se a este propósito de prevenção geral positiva

31. Se é na prevenção geral positiva que se fornece uma moldura de prevenção é dentro desta que se encontra também um efeito de prevenção geral negativa que não constituindo uma finalidade autónoma de pena poderá surgir como efeito lateral de proteção de bens jurídicos sendo dentro desta moldura de prevenção que devem atuar os pontos de vista de prevenção especial.

32. Consagrando o artigo 77 nº 1 do CP que Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente teremos de analisar a imagem global do facto que dê a medida da sua dimensão no plano da ilicitude e da culpa mas também uma imagem da personalidade do agente.

33. Levando em linha de consideração os factos praticados devemos analisar a gravidade global dos ilícitos praticados e bem assim a personalidade do agente ponderando-se se se daqui pode emergir a conclusão de que o mesmo tem alguma tendência para o crime ou se tudo decorreu de circunstâncias concretas que hajam potenciado a situação com vista a dotar a pena única ou sentido agravante ou atenuante.

34. Da factualidade provada no presente processo não resulta que exista tendência para a arguida praticar factos criminosos como aqueles que estão em causa nos autos pelo que tal deveria ser valorado a favor da arguida na determinação da pena única.

35. Face ao exposto julgamos justa, adequada e proporcional a aplicação duma pena única de 13 anos de prisão.

36. O Tribunal a quo violou ou fez incorreta interpretação e aplicação dos artigos, 131 do CP, 136 do CP, 40º, 71º e 77º do CP

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVERÁO ACÓRDÃO RECORRIDO SER REVOGADO ESUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE CONTEMPLE AS CONCLUSÕES SUPRA ELENCADAS.

ASSIM SE DECIDINDO FAR-SE-Á JUSTIÇA! (fim de transcrição parcial)

3. O Ministério Público na 2ª instância apresentou resposta ao recurso, concluindo, nos seguintes termos: (transcrição)

1- Da matéria provada resulta que a arguida ocultou o seu estado de

gravidez a todos, inclusive do seu companheiro, não procurou quaisquer

cuidados médicos nem durante a gravidez, nem aquando do parto e que resolver matar as vítimas antes do nascimento, ao invés de procurar soluções para as dificuldades que adviriam por ter outro filho, denotando reflexão, firmeza na vontade e indiferença e insensibilidade perante as vítimas e consequências dos seus atos, numa atuação que reflete uma enorme perversidade e que merece uma censurabilidade especial nos termos e para efeitos do disposto no art.º 132º n.º 2 do C. P.

2 -A argumentação da motivação da recorrente não apresenta qualquer virtualidade de permitir afastar as razões de direito em que tribunal recorrido assentou a sua fundamentação para a qualificação jurídico-penal de subsumir os factos às circunstâncias das als. a), c) e j), do n.º 2 do art.º 132º do C. P., antes pelo contrário, reforça-as.

3 - Não se encontra nenhum fundamento para que a recorrente impugne as medidas das penas, aliás já muito próximas dos seus limites legais mínimos.

4 - Feita a devida ponderação na decisão recorrida, nos termos do art.º

71º, bem assim do art.º 77º ambos do C. P., não merecem censura as penas

fixadas.

Nestes termos, deverá ser julgado improcedente na sua totalidade o recurso impugnatório, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

Vossas Excelências, porém, como sempre, não deixarão de fazer a

acostumada JUSTIÇA. (fim de transcrição)

3. Neste Supremo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer e após refutar os argumentos da recorrente concluiu “-Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.

4. Notificado a recorrente não houve resposta.

Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

5. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3

Da leitura dessas conclusões, a recorrente coloca a este Tribunal, as seguintes questões:

Tipicidade em relação aos crimes de homicídio qualificado;

Medida das penas parcelares e única.

Vejamos, antes de mais, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados.

5.1. O Tribunal deu como provados, os seguintes factos: (transcrição)

1.º No ano de 2019 a arguida mantinha um relacionamento amoroso com BB, vivendo com o mesmo como se marido e mulher se tratassem, numa casa situada na Rua ..., em ..., juntamente com as suas duas filhas.

2.º No decurso desse ano, em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre 1 e 19 de maio de 2019 a arguida engravidou.

3.º Algum tempo depois, a arguida tomou conhecimento de que estava grávida, após o que decidiu que iria ocultar o seu estado, por não querer enfrentar a oposição e desaprovação por parte do companheiro e dos pais, propósito potenciado também pelo desagrado do companheiro quanto ao nascimento da filha mais nova, no contexto das modestas condições económicas do seu agregado.

4.º Nessa sequência, decidiu ainda que iria matar a criança que nascesse e fazer o seu corpo desaparecer de modo a que ninguém soubesse que tinha estado grávida.

5.º Para tanto, durante o período de gravidez a arguida passou a usar roupas largas, imputando o volume da sua barriga a uma situação de obesidade crescente.

6.º Para além disso, durante a gravidez nunca consultou qualquer médico da especialidade de obstetrícia, ginecologia ou outra para acompanhamento do desenrolar da gestação.

7.º No cumprimento da referida decisão, a arguida deixou a gravidez correr os seus termos sem ter sido medicamente acompanhada e sem dizer a ninguém do seu estado, até que no dia 18 de janeiro de 2020, no termo do período de gestação, à noite, a arguida, quando se encontrava em casa, entrou em trabalho de parto.

8.º Nesse local, a arguida dirigiu-se à casa de banho onde depois da dilatação do seu colo do útero e em virtude das contrações fruto do trabalho de parto, acabou por ser expulsa do seu corpo através da vagina uma criança do sexo feminino com vida, tendo a arguida com o auxílio de uma tesoura, cortado o cordão umbilical que a unia à criança.

9.º Minutos mais tarde, acabou por ser expulso do corpo da arguida, através da vagina, uma segunda criança do sexo feminino também com vida, tendo do mesmo modo a arguida cortado o cordão umbilical que a unia a esta.

10.º Nessa sequência e não obstante saber que tinha acabado de dar à luz duas crianças que se encontravam com vida, a arguida, em execução da decisão que já havia tomado, não lhes prestou, nem solicitou que lhes fossem prestados quaisquer cuidados médicos, não tendo estimulado o choro das mesmas ou de qualquer modo tentado desimpedir as suas vias aéreas, antes as tendo embrulhado em toalhas, que apertou contra si e, após, fechou-as, embrulhadas nessas toalhas, dentro de sacos plásticos, assim impedindo as recém-nascidas de respirarem, e provocando as suas mortes, desejando e sabendo que da sua conduta resultaria necessariamente esse fim.

11.º Depois a arguida esperou que o seu corpo expelisse a placenta, que também colocou dentro de um saco plástico.

12.º As crianças que a arguida deu à luz encontravam-se em fase de termo de gestação, com idade gestacional estimada de 35 a 36 semanas e não possuíam quaisquer malformações congénitas ou outra patologia que pudesse causar a sua morte no período neonatal ou perinatal.

13.º Ambas as crianças nasceram com vida, tendo tido respiração extrauterina.

14.º Como consequência direta, adequada e necessária da conduta da arguida, as filhas, recém-nascidas, que havia dado à luz perderam a vida.

15.º Depois, a arguida procedeu à limpeza dos vestígios do parto que ficaram na casa de banho onde tudo aconteceu e colocou os sacos plásticos contendo as duas crianças embrulhadas em toalhas, a placenta e as roupas que a vestia aquando do parto dentro de um saco de compras do “Continente” e colocou-o no interior da mala do automóvel com a matrícula ..-..-NJ, propriedade do seu pai CC, mas por si habitualmente usado, com a intenção de, posteriormente, o levar para outro local a fim dela se desfazer dos corpos, placenta e demais roupas que ali havia guardado.

16.º Porém, a arguida sentiu fortes dores após o parto tendo de ser medicamente socorrida, pelo que, cerca das 20h00 do dia 19 de janeiro de 2020, deslocou-se ao Centro Hospitalar ... alegando ter fortes dores nos rins, mas ocultando que tinha acabado de ter dado à luz duas crianças, local onde ficou internada.

17.º No dia seguinte, cerca das 12h45m, CC, pai da arguida, desconhecendo o que tinha sucedido, foi limpar aquela viatura, altura em que deparou com aquele saco que abriu, momento em que viu que no seu interior se encontravam várias toalhas ensanguentadas e o cadáver de uma das recém-nascidas.

18.º CC acabou por contactar as autoridades dando-lhes conta do sucedido, sendo que mais tarde, já no gabinete do INML se veio a verificar que dentro do referido saco estava ainda o corpo da outra recém-nascida.

19.º Na altura do parto, a arguida estava, como está, em perfeito estado mental, sem qualquer alteração do seu estado de consciência, revelando-se orientada no tempo, espaço e situação sem dificuldades de memória antiga ou recente, sem dificuldades de atenção e concentração, sem lapsos de memória que possam relacionar-se com episódios de alteração do estado de consciência; denota labilidade emocional e alguma ativa psicofisiológica quando se fala das suas filhas; não manifesta qualquer alteração do curso ou do conteúdo do pensamento e apresenta um aparelho cognitivo sem deterioração significativa, tendo em conta o seu nível de dotação intelectual.

20.º A arguida atuou de forma livre, voluntária e consciente, querendo e conseguindo, ao agir do modo supra descrito, a morte das filhas, a qual representou como consequência direta e necessária da sua conduta.

21.º A arguida atuou de forma livre, voluntária e consciente, em execução da decisão que tomou depois de ter sabido que estava grávida, não obstante saber que se tratavam das suas filhas, que dependiam inteiramente dos cuidados que a mesma, na qualidade da sua mãe e única pessoa que conhecia das suas existências lhes prestasse e que não tinham qualquer possibilidade de se defenderem da sua conduta.

22.º A arguida agiu nos termos descritos porque não desejava ter mais filhos e pretendia ocultar a sua gravidez da sua família e das demais pessoas das suas relações.

23.º A arguida atuou ainda de forma livre, voluntária e consciente ao colocar os cadáveres das filhas recém-nascidas no saco plástico, que posteriormente colocou na mala da sua viatura automóvel, desse modo os ocultando dos familiares e das autoridades, com intenção de, posteriormente, os levar para local onde se iria desfazer deles.

24.º Mais sabia a arguida que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

25.º O processo de socialização da arguida decorreu em ..., ..., num contexto familiar referenciado como estruturado, de estrato socioeconómico médio, com uma dinâmica coesa e transmissora de valores adequados a uma inserção normativa na sociedade.

26.º Há cerca de 20 anos a família mudou-se para a cidade de ... por razões profissionais da progenitora da arguida.

27.º A arguida desenvolveu um percurso escolar regular, sendo descrita como uma aluna média e tendo concluindo o 12.º ano de escolaridade sem registo de retenções.

28.º De seguida ingressou no ensino superior, na Licenciatura em ... da Escola Superior ...

29.º No 1.º da licenciatura ano enfrentou dificuldades e desmotivação, sobretudo nas disciplinas da área da ... e ..., registando baixa assiduidade às aulas, situação que ocultou inicialmente da família.

30.º Posteriormente, confrontada pelos pais com o seu insucesso escolar, veio a desistir do curso durante o 2.º ano.

31.º Nessa sequência integrou o mercado de trabalho na área da restauração, tendo trabalhado no M......... ........, sito na ..., no ..., entre 2014 e 2017.

32.º Insatisfeita com a falta de progressão na carreira, saiu e foi trabalhar para uma papelaria, onde permaneceu pouco tempo, por não se ter adaptado àquelas funções, tendo optado por regressar ao M........., passando pelos restaurantes de ... e, posteriormente de ..., onde ainda se mantém.

33.º Ainda durante a adolescência, nos períodos de férias escolares, a arguida trabalhou num café/bar de praia, onde conheceu o pai das suas filhas, BB, operário fabril, que era cliente daquele estabelecimento.

34.º O casal tinha em comum o facto de ambos serem árbitros de futebol e futsal, tendo chegado a formar equipa juntos.

35.º Após cerca de um ano de namoro, a arguida engravidou da primeira filha, atualmente com 6 anos de idade.

36.º O casal decidiu então encetar uma união de facto, tendo residido em diferentes habitações arrendadas na cidade de ....

37.º Há cerca de 3 anos nasceu a segunda filha do casal.

38.º Tanto a primeira como a segunda filha resultaram de gravidezes não planeadas, tendo a notícia da segunda gravidez sido mal recebida pelo companheiro, que passou por uma fase de rejeição da situação, tendo-se afastado da arguida sem, contudo, a abandonar a casa de morada de família, por considerar que o casal não possuía condições económicas para suportar as despesas e as responsabilidades acrescidas.

39.º A relação conjugal da arguida com BB não era do agrado da sua família de origem, que associava a desistência do curso superior com o facto de ter conhecido o companheiro, considerando-o uma influência negativa, uma pessoa imatura e limitada, com valores que não se coadunavam com os da família.

40.º À data dos factos relatados na acusação, a arguida residia com o companheiro e com as duas filhas do casal na Rua ..., ... ..., num apartamento arrendado, de tipologia 2, inserido em meio urbano, onde seus os pais haviam residido anteriormente e que lhes foi cedido por estes por força do contexto de dificuldades económicas e habitacionais em que o casal se encontrava.

41.º A situação económica do casal era complicada, ocorrendo dificuldades para fazerem face ao pagamento da renda, o que chegou a implicar que tivesse sido alvo de uma ação de despejo.

42.º O companheiro da arguida apresentava hábitos de consumo pouco responsáveis, com encargos resultantes de prestações de crédito ao consumo que foi contraindo, no valor mensal de pelo menos €400.

43.º Consequentemente o casal não conseguia fazer face ao pagamento da renda, de €325, que era assegurado pelos pais da arguida, os quais se mantinham como titulares do contrato de arrendamento.

44.º A arguida trabalhava como ‘operadora com mais de 5 anos’ na ‘M..., Lda’, com sede em ..., ..., empresa dedicada à exploração do restaurante M......... de ..., auferindo um vencimento mensal líquido de cerca de €750.

45.º Fazia parte da equipa de gestão do restaurante, desempenhando as funções de gerente de turno e dando formação aos novos funcionários.

46.º O companheiro era motorista numa empresa de distribuição de bebidas, auferindo uma remuneração de cerca de €850.

47.º A dinâmica relacional do casal vinha sendo marcada pelo stress financeiro e pelo distanciamento afetivo e físico, situação associada à falta de comunicação e agravada pelo facto de ambos trabalharem em regime de turnos rotativos, tendo a arguida começado a trabalhar em horário noturno.

48.º Enquanto trabalhavam, as filhas do casal ficavam entregues aos cuidados dos avós maternos, sendo sentido por parte daqueles, sobretudo após o nascimento da segunda filha, uma sobrecarga de responsabilidades e uma baixa participação do pai das menores nas tarefas relacionadas com a vida quotidiana das mesmas.

49.º Neste contexto, foi solicitado ao casal que diligenciasse a integração da filha mais velha no ensino pré-escolar, o que foi sendo adiado sucessivamente.

50.º No meio residencial a arguida projetava uma imagem social favorável, com um quotidiano ajustado, dedicado à vida profissional e familiar, sendo descrita como uma mãe afetuosa e dedicada.

51.º O conhecimento dos factos que deram origem ao presente processo teve um impacto significativo, acentuado pela divulgação das notícias pelos órgãos de comunicação social, gerando surpresa e choque, tanto em contexto familiar como junto de amigos e conhecidos.

52.º Após os factos, a arguida ficou internada no Centro Hospitalar de ... durante cerca de um mês e beneficiado de apoio psicológico, em duas consultas presenciais e posteriormente em duas consultas telefónicas (em virtude da situação pandémica), não tendo prosseguido com o acompanhamento por não lhe agradar aquele formato.

53.º A arguida contou sempre com o apoio dos pais e da irmã que verbalizaram disponibilidade para continuar a prestar-lhe suporte qualquer que seja o desfecho do presente processo.

54.º Após a alta hospitalar e na sequência da rutura da relação conjugal, então ocorrida, AA reintegrou o agregado familiar de origem, composto pelo pai, ..., e pela mãe, ..., ambos de 65 anos e reformados.

55.º As filhas foram sinalizadas à CPCJ de ..., tendo ficado à guarda dos avós maternos.

56.º Posteriormente foi regulado o exercício das responsabilidades parentais, com a fixação de uma pensão de alimentos de €200 a cada progenitor e o regime de visitas ao pai das menores, de sexta-feira para sábado e de sábado para domingo, em fins-de-semanas alternados.

57.º O agregado familiar da arguida reside na Rua ..., ..., correspondente a uma moradia de construção antiga, com quintal, constituída por cave, rés do-chão e 1º andar.

58.º O imóvel, adquirido pela irmã da arguida, residente em ..., foi alvo de obras de restauro, proporcionando condições satisfatórias de habitabilidade.

59.º O agregado ocupa sobretudo a área da cave, sendo o rés-do-chão e o 1º andar ocupado pela irmã e respetivo agregado familiar quando se encontram em ....

60.º O agregado familiar apresenta uma situação económica percecionada como estável, assente nas pensões de reforma dos pais de arguida, que totalizam cerca de €1120, e na remuneração da arguida, de €811, quantias que são consideradas suficientes para fazer face aos encargos e necessidades dos seus elementos.

61.º Após um período de baixa médica de sensivelmente 3 meses, a arguida retomou a sua atividade profissional, tendo sido acordado previamente com a gerência que deixaria de exercer funções de gestão, de forma a precaver eventuais reações de rejeição/retaliação por parte dos colaboradores.

62.º A arguida encontra-se a efetuar o horário das 9:00 às 17:30 horas, por ser mais compatível com as suas responsabilidades familiares.

63.º Em contexto profissional, AA é considerada uma colaboradora responsável, polivalente e com um elevado nível de conhecimentos, que ajuda a integrar os colegas novos, sendo, por isso, considerada uma das funcionárias mais valiosas da empresa.

64.º A constituição de AA como arguida no presente processo gerou mudanças significativas ao nível da sua vida familiar e pessoal, com a rutura do relacionamento conjugal e o seu regresso ao agregado familiar de origem.

65.º A arguida verbalizou reconhecer a censurabilidade da natureza dos crimes de que vem acusada, aguardando com ansiedade a audiência de julgamento e consequente desfecho da presente situação jurídico-processual, receando poder vir a ser alvo de uma sanção penal.

66.º A arguida não tem antecedentes criminais. (fim de transcrição)

5.2. Apreciando

5.2.1 Tipicidade

A recorrente defende que os factos dados como provados, apesar de integrarem as alíneas referidas na douta decisão recorrida, não revelam especial censurabilidade ou perversidade exigida pelo legislador no nº 1 do artigo 132º do Código Penal.

Vejamos.

O legislador, na tipificação do crime de homicídio qualificado, exige a verificação de um tipo de culpa agravado, densificada em conceitos relativamente indeterminados de “especial censurabilidade ou perversidade”, a qual se mostra indiciada nos exemplos padrão do nº 2 do artigo 132º, do Código Penal.4

Como refere Figueiredo Dias, no artigo 132º “(…) o pensamento da lei (…) é o de pretender imputar à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à «especial perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas”.5

A verificação de um ou mais exemplo padrão não significa, automaticamente,6 o preenchimento da culpa agravada prevista no nº1 do preceito, como o contrário também é verdadeiro, isto é, podem existir outras circunstâncias não incluídas no nº 2, que preencham essa culpa agravada, desde que sejam substanciais ou teleologicamente análogas às aí previstas.7

Como se escreveu no acórdão de 12 de Julho de 2018, deste Supremo Tribunal de Justiça, estamos perante situações em que “(…) o agente tenha agido com culpa agravada, ou seja, que as concretas circunstâncias da sua conduta permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo susceptível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio.”89

O que é fundamental, conforme salienta Teresa Serra10é que se trate de um homicídio qualificado em circunstâncias que possam desencadear o efeito de indício de uma maior culpa.” De igual modo Figueiredo Dias, salienta que “a não verificação [das circunstâncias ou elementos, uns relativos aos factos, outros ao autor, elencados no nº2, indiciadores da especial censurabilidade ou perversidade] não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra ‘análogos’) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador (...) que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º-2.1112

Assim, para aquilatar da especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do homicídio, por forma a que este seja considerado como qualificado e, por via disso, punido com pena agravada, impõem-se, num primeiro momento, saber se existe alguma das circunstância das enunciadas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal, enquanto indício daquela censurabilidade e perversidade e, num segundo momento, averiguar se perante as circunstâncias concretas do caso dos autos, e vista a estrutura valorativa em tal grau de gravidade dos factos em julgamento, que nos leve a crer que o aumento da culpa é em grau tão elevado que justifica a agravação subjacente ao homicídio qualificado.13

Analisados os factos provados é manifesto, como a recorrente reconhece no seu recurso, estarem preenchidas as circunstâncias das alíneas a), c) e j), em relação a um dos crimes de homicídio e as alíneas a) e c), do nº 2 do Código Penal,em relação a outro.

Atentos esses mesmos factos e todas as circunstâncias concretas do caso, é manifesto ter a arguida actuado com um elevado grau de culpa, ao esconder a gravidez indesejada e ter tomado, desde logo, a decisão de matar a sua filha no momento do nascimento e, ao ser confrontada com o imprevisto nascimento de outra criança, manter a mesma atitude e decidir igualmente tirar-lhe a vida, com asfixia das recém-nascidas, fechando-as, embrulhadas em toalhas, dentro de sacos plásticos, que depois transportou para um veículo automóvel.

A morte das crianças nestas circunstâncias, reflecte uma atitude por parte da arguida especialmente desvaliosa e revela sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade.

Como se refere na douta decisão recorrida, “mesmo admitindo que a arguida possa nem sequer ter interiorizado na sua plenitude a maternidade (assim como a gravidez), nem que a vítima/criança possa ter sido suficientemente apercebida pela arguida como uma filha, não podemos escamotear que, não podendo o amor filial impor-se legalmente, sempre à arguida, enquanto mãe, se impunha cumprir os deveres de proteção, assistência e guarda, porquanto atráves do comportamento adotado, através do encobrimento da gravidez, nenhum outro familiar os podia observar, inexistindo qualquer atuação por parte das vítimas que justificasse tal comportamento. A decisão unilateral da arguida de não querer exercer a parentalidade, nos moldes em que o fez, ainda que conjugada com os motivos por ela invocados e apurados, não consentem o afastamento de uma conduta reveladora de especial censurabilidade. Ao invés, denunciam a forma especialmente desvaliosa como o ato criminoso foi cometido, a censurabilidade capaz de preencher o tipo qualificado.

Argumenta a recorrente que o sufoco económico, a ruptura conjugal e distanciamento do companheiro que não tinha desejado uma anterior segunda filha, a reprovação dos progenitores da relação com o companheiro e a sobrecarga de responsabilidades que sobre os mesmos recaiam, “faz emergir a inexistência de ligação emocional” com as vítimas e, nessa medida, não se verifica a especial censurabilidade ou perversidade qualificativas, ainda que as circunstâncias tipo estejam verificadas.

Não nos parece que assim seja.

Como refere o Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto “a arguida ocultou o seu estado de gravidez a todos, inclusive do seu companheiro, não procurou quaisquer cuidados médicos nem durante a gravidez, nem aquando do parto e que resolver matar as vítimas antes do nascimento, ao invés de procurar soluções para as dificuldades que adviriam por ter outro filho, denotando reflexão, firmeza na vontade e indiferença e insensibilidade perante as vítimas e consequências dos seus atos, numa atuação que reflete uma enorme perversidade e que merece uma censurabilidade especial”.

Na verdade, a superação das dificuldades para a arguida e o seu agregado familiar, decorrentes de uma outra gravidez indesejada, não pode passar pela morte da criança que está para nascer e menos ainda justificar essa mesma morte. A lei, a ética e o conjunto de valores que regem a comunidade, não podem permitir ou sequer admitir tal justificação.

O que se impunha à arguida, no referido quadro de valores, perante um quadro fáctico de dificuldades, era procurar a ajuda ao nível familiar, do seu circulo próximo ou junto das autoridades públicas. Ao invés, a arguida, com total insensibilidade, decide tirar a vida a sua filha e perante o imprevisto de uma segunda criança, persiste no seu propósito.

Todo este comportamento da arguida materializa uma forma especialmente desvaliosa no cometimento do facto e revela uma especial perversidade, as quais permitem concluir por um especial juízo de censura.

Estão, assim, ponderadas na sua globalidade as circunstâncias do facto e da atitude da arguida, preenchidos os pressupostos do crime de homicídio qualificado, nos exactos termos que consta da decisão recorrida, improcedendo esta conclusão da recorrente.

5.2.2 Medida das penas

Como ficou referido a arguida veio colocar em crise a medida concreta das penas aplicadas em relação aos crimes de homicídio qualificado, pugnando pela sua redução, bem como da pena única.

Analisemos, então, as penas aplicadas à arguida e a sua adequação e proporcionalidade, em função dos factos anteriormente elencados e o seu grau de culpa.

O Tribunal recorrido considerou, no que respeita à medida da concreta das penas parcelares e pena única, o seguinte: (transcrição)

c) Determinação concreta das penas parcelares quanto ao crime de homicídio qualificado e da pena única de prisão

Defende a arguida recorrente que o Tribunal “a quo” devia ter tido em consideração os seguintes pontos que são lhe favoráveis e que entende terem sido negligenciados, a saber:

 No meio residencial a arguida projetava uma imagem social favorável, com um quotidiano ajustado, dedicado à vida profissional e familiar, sendo descrita como uma mãe afetuosa e dedicada

 Em contexto profissional, a arguida é considerada uma colaboradora responsável, polivalente e com um elevado nível de conhecimentos, que ajuda a integrar os colegas novos, sendo, por isso, considerada uma das funcionárias mais valiosas da empresa.

 A arguida verbalizou reconhecer a censurabilidade da natureza dos crimes de que vem acusada, aguardando com ansiedade a audiência de julgamento e consequente desfecho da presente situação jurídico-processual, receando poder vir a ser alvo de uma sanção penal

A arguida não tem antecedentes criminais.

E conclui que “as penas concretas quanto aos crimes de homicídio qualificado deverão ser diminuídas no seu quantum nos seguintes termos: a) pela prática como autora material de um crime de homicídio qualificado, p.p. nos artigos 131º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas a), c) e j) do Código Penal, na pena de 13 anos de prisão; b) pela prática como autora material de um crime de homicídio qualificado, p.p. nos artigos 131º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e c), do Código Penal, na pena 12 anos de prisão”.

E no concerne à pena única sustenta a arguida que se tem por “justa, adequada e proporcional a aplicação duma pena única de 14 anos de prisão”.

Como fundamento determinante das concretas penas de prisão aplicadas, refere o acórdão recorrido:

“Ademais, importa ainda considerar que o grau da ilicitude é muito elevado, atento o circunstancialismo em que ocorreram as mortes e o modo como se desenvolveu (as vítimas acabavam de nascer, quando a arguida as asfixiou com um saco plástico, isto sem contar com a relação de parentesco pelo facto das vítimas serem filhas da arguida, pois esta foi a circunstância eleita para qualificar os homicídios.

Noutra perspetiva, resulta dos factos que a arguida agiu com dolo direto e intenso, demonstrando um claro desapego pela vida das filhas que tinha transportado no seu ventre durante os 9 meses de gestão.

Ademais, a morte foi pensada pela arguida meses antes do nascimento, sem que se queda-se dos seus intentos no momento do parto, o que denota a frieza com que atuou, bem como o desrespeito pelo bem mais precioso que é a Vida.

Por outro lado, a ilicitude da sua conduta traduz-se na gravidade inerente à perda das vidas de duas crianças recém-nascidas, às quais foi infligido um sofrimento consistente com a sua morte por asfixia.

Por outro lado, as exigências de prevenção especial situam-se num grau médio-baixo, na medida em que a arguida não tem antecedentes criminais e encontra-se integrada familiar e profissionalmente, apesar de revelar não ter interiorizado, completamente o desvalor da sua conduta.

Importa ainda ponderar, em desfavor da arguida, que estamos perante uma arguida com 29 anos de idade, provinda de uma família estruturada que lhe conferiu uma educação estável e consonante com os valores fundamentais do nosso ordenamento jurídico, que terminou o 12.º ano de escolaridade, que chegou a frequentar uma licenciatura e que, nessa medida, dispunha de instrumentos cognitivos e de uma rede familiar de apoio que a deveriam ter impelido a abster-se da prática dos crimes em causa.

Tudo ponderado, julgam-se adequadas e proporcionais as penas parcelares de:

- 16 anos de prisão, pela prática de um dos crimes de homicídio qualificado;

- 15 anos de prisão, pela prática de um dos crimes de homicídio qualificado;

- 6 meses de prisão, pela prática de cada um dos dois crimes de profanação de cadáver.

As diferentes penas aplicadas aos crimes de homicídio qualificado prendem-se com a inexistência da qualificativa do art.º 132.º, n.º 2, al. j) relativamente a um dos crimes.”

Vejamos.

Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 40º do Código Penal, “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”

O Código Penal traça um sistema punitivo que arranca do princípio basilar de que as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador.

Na determinação da medida concreta da pena, haverá que ter em conta, nos termos do artigo 71º do Código Penal, para além das exigências de reprovação e de prevenção do crime, o grau de ilicitude, a intensidade do dolo, e os antecedentes criminais.

A culpa e a prevenção são assim as referências norteadoras da determinação da medida da pena (cfr. artigo 71º, nº. 1 do Código Penal).

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos –, podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo aqueles que vão determinar, em última instância, a medida da pena.

A medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa. A função desta consiste numa incondicional proibição do excesso, ou seja, “a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas”, pelo que o limite máximo de pena adequado à culpa não pode ser ultrapassado, sob pena de pôr em causa a dignitas humana do delinquente (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal), (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pág. 230).

Assim, e atendendo ao preceituado no artigo 71.º do Código Penal diremos que a determinação da medida da pena deverá fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de legal de crime, deponham a favor ou contra o agente.

Na prossecução desta tarefa, o juiz é auxiliado pelo artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, o qual estabelece que, na determinação concreta da pena, devem ser tidas em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele; enumerando, de forma exemplificativa, alguns fatores de medida da pena de carácter geral, isto é, que podem ser tomados em consideração relativamente a qualquer disposição da Parte Especial do Código Penal.

Assim há que ponderar: a) o conjunto de circunstâncias internas e externas relacionadas com os acontecimentos, b) a ilicitude; c) o dolo; d) os fins do crime; e) a condição pessoal da arguida e a sua situação económica; f) o modo de execução, e a gravidade das consequências do facto.

Analisemos o caso concreto, tendo em conta a moldura penal abstrata do tipo legal do crime de homicídio qualificado (12 a 25 anos de prisão), bem como todos os elementos indicados, relativos à determinação da medida concreta da pena, aliás elencados no acórdão recorrido e supra transcritos.

Relembramos que as exigências de prevenção geral são as mais elevadas, considerando que está em causa o bem jurídico mais precioso que é a vida, cuja violação tem de ser fortemente sancionada, causando forte e máximo alarme social, obrigando a que a pena, tendo sempre como limite a culpa da arguida, seja aplicada e fixada de forma a não defraudar as expectativas da sociedade, fazendo-a continuar a acreditar na eficácia do ordenamento jurídico.

As exigências de prevenção especial também revestem particular acuidade, considerada a personalidade evidenciada pela arguida, manifestada não só no momento da prática dos factos, mas após a sua prática, sem escamotear que a arguida é delinquente primária e está inserida a nível social, profissional e familiar, tendo reintegrado o agregado familiar de origem, composto pelos pais, à guarda de quem se encontram as filhas, contando com a ajuda dos pais e da irmã.

A atentar no grau de ilicitude, manifestado na forma como a arguida atuou e na tenacidade que manifestou na sua prática; o dolo assume a forma mais intensa, é direto.

Por outro lado, para além do já supra exposto quanto às motivações da arguida e respetivo contexto vivencial e económico, há que atender à demais situação pessoal da arguida, elencada na facticidade apurada, com relevância para a sua idade, sendo que no meio residencial a arguida projetava uma imagem social favorável, com um quotidiano ajustado, dedicado à vida profissional e familiar, sendo descrita como uma mãe afetuosa e dedicada; em contexto profissional, a arguida é considerada uma colaboradora responsável, polivalente e com um elevado nível de conhecimentos, que ajuda a integrar os colegas novos, sendo, por isso, considerada uma das funcionárias mais valiosas da empresa; a arguida verbalizou reconhecer a censurabilidade da natureza dos crimes de que vem acusada.

Neste contexto, sopesadas, todas as circunstâncias supra enunciadas, todas valoradas pelo tribunal a quo, a factualidade assente, considerando a moldura penal abstrata a atender para a determinação concreta da pena, ponderando todas as circunstâncias do caso e tendo em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes, entendemos reduzir as penas parcelares de 16 anos de prisão, pela prática de um dos crimes de homicídio qualificado e de 15 anos de prisão, pela prática de um dos crimes de homicídio qualificado, em que a arguida foi condenada, para as penas parcelares de 14 anos de prisão, pela prática de um dos crimes de homicídio qualificado e de 13 anos de prisão, pela prática de um dos crimes de homicídio qualificado, respetivamente, que consideramos adequadas, justas e proporcionais e que satisfazem as exigências de prevenção, respeitando a medida da culpa.

E que dizer quanto à pena única?

O n.º 1 do artigo 77º do Código Penal dispõe que a arguida seja condenada em pena única, pois que praticou vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles. E estipula que na determinação da pena única resultante do concurso de crimes há que atender, em conjunto, aos factos e à personalidade da arguida.

Acrescenta o n.º 2: “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Como refere o Supremo Tribunal de Justiça [Ac do STJ de 28/4/2010, processo 4/06.0GACCH.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt], “Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos, ou seja, a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia; a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a receptividade à pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa”.

No caso dos autos, os factos a considerar integram a prática de dois crimes de homicídio qualificado e de dois crimes de profanação de cadáver, todos cometidos na mesma ocasião (não tendo a arguida impugnado as penas parcelares atinentes ao crime de profanação de cadáver).

Há, pois, que ponderar, talqualmente o fez o tribunal recorrido, em conjunto, os factos e a personalidade da recorrente/arguida, plasmada na gravidade da sua conduta, o grau de ilicitude dos factos, o dolo direto com que atuou, a gravidade das consequências, sendo que a arguida não tem antecedentes criminais e que verbalizou reconhecer a censurabilidade da natureza dos crimes em causa, sem escamotear as suas condições pessoais e as exigências de prevenção geral e especial.

Assim sendo, na consideração conjunta destas circunstâncias relacionadas com os factos e com a personalidade neles manifestada (artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal), sem escamotear que a arguida é proveniente de uma família estruturada e estável, com habilitações literárias ao nível da frequência do ensino superior, praticou os crimes em causa na mesma ocasião, de forma desapegada e sob o mesmo desígnio de se livrar do “fardo” que a maternidade de mais aquelas duas crianças geraria na sua vida, que é mãe de duas filhas menores e, por fim, não tem antecedentes criminais, não representando um perigo evidente para a sociedade e para os bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico-penal e, tendo em conta a moldura penal correspondente aos crimes em concurso, considera-se que a pena única deverá ser fixada em 17 anos de prisão, por, nesta medida, corresponder aos critérios estabelecidos para a sua determinação segundo os critérios de adequação e proporcionalidade cuja observância se impõe. (fim de transcrição)

Em sede de medida da pena, o legislador estatui como parâmetros para a sua determinação “(…) dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” visando a aplicação das penas “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e levando ainda em conta “(…) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (artigos 71º, nº1 e nº2 e 40º, nº1 e nº2, ambos do Código Penal.

A densificação jurisprudencial destes critérios tem sido feita, por este Supremo Tribunal de Justiça, de modo a considerar e ponderar o equilíbrio entre “exigências de prevenção geral”, a “tutela dos respectivos bens jurídicos” e a “socialização do agente”.

Como se refere num acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, ponderando os referidos equilíbrios, “(...) Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente”,14 ou “(...) a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todo exigível”15.

Ao nível doutrinal, Figueiredo Dias considera que a medida da pena "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (...) a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida".16

No mesmo sentido, Fernanda Palma entende que, “(…) A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos – prevenção geral negativa, incentivar a convicção de que as normais penais violadas são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva. A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral”.17

Ainda, no mesmo sentido, Anabela Rodrigues considera também que a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada (…)”. Acrescenta a autora, que a prevenção especial se traduz na “(…) necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto, mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes”, sendo certo que ambas são balizadas pela culpa “ (…) a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (…) Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado”.18

Neste mesmo sentido, Figueiredo Dias considera, “(…) culpa e prevenção são assim dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena ( em sentido estrito ou de determinação concreta da pena”)19, acrescentando, “ (…) comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente».20

Enunciados o pensamento do Tribunal recorrido sobre a medida da pena e os grandes princípios jurisprudenciais e doutrinais sobre a mesma, importa ainda realçar que em matéria de medida da pena, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça se reconduz a um verdadeiro remédio jurídico e não a um julgamento ex novo.

Neste sentido, o Supremo intervém na pena, alterando-a, quando estamos em presença de incorrecções na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a determinação da sanção, por parte das instâncias. Como se refere no acórdão de 17 de Abril de 2024 “(…) no que respeita à medida da pena, o recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de julgamento enquanto componente individual do acto de julgar. E a sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, direccionada para o (des)respeito de princípios gerais, das operações de determinação impostas por lei, da desconsideração dos factores de medida da pena, “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197). É dentro da margem de actuação assim definida que o Supremo exerce os seus poderes fiscalizadores.21

Posto isto, na determinação concreta das penas devem ser consideradas razões de prevenção geral e especial, balizadas pelo grau de culpa do arguido enquanto limite inultrapassável da pena.

Considerando as penas abstractamente estabelecidas para cada um dos crimes de homicídio qualificado praticados pela arguida, (12 a 25 anos de prisão), entendemos que as penas parcelares, aplicadas à mesma, são adequadas e proporcionais ao respectivo grau de culpa, nenhuma censura merecendo.

Na verdade, como resulta da transcrição efectuada, o Tribunal recorrido, em função dos critérios legais materializados judiciosamente no caso concreto, fixou as penas sensivelmente próximas dos limites mínimos das penas abstractamente estabelecidos, ponderando para além de todo o circunstancialismo que rodeou os factos, condições pessoais e grau de culpa da arguida (elevado grau de ilicitude, dolo directo, condições pessoais, incluindo a sua imagem social favorável, ausência de antecedentes criminais).

5.2.3 Pena única

O artigo 77º, nº 1 do Código Penal, sobre as regras da punição do concurso, estatui “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Acrescenta o n.º 2, “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

No cúmulo jurídico, como resulta do nº1 do preceito, deverá ter-se em conta o conjunto dos factos e a gravidade dos mesmos ou, na expressão do legislador, são “considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 05 de Junho de 2012, a “ pena única deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação ente si, mas sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente. (…) Com a pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e da gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda considerar, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.”2223

Importa, pois, saber se estamos em presença de ilícitos pluriocasionais, temporalmente circunscritos ou, pelo contrário em presença da prática de crimes de modo recorrente.

No caso em apreço, é manifesto estarmos em presença da primeira situação atento, o percurso de vida, o núcleo familiar envolvente, as condicionantes económicas e sociais que rodeiam a arguida, os quais apontam para uma boa inserção social e futuras perspectivas positivas de reintegração. É esta perspectiva global (numa lógica de prevenção geral) e de personalidade do agente (numa lógica de prevenção especial) que é, em matéria de cúmulo jurídico, o elemento agregador da pena única a fixar.

A partir da pena parcelar mais grave, a pena única será mais ou menos agravada em função da perspectiva global do facto e da personalidade do agente, tendo sempre como limite a sua culpa e a preservação do princípio da proporcionalidade.

Tendo em conta estes ensinamentos e as circunstâncias globais dos factos, o segundo homicídio praticado pela arguida, aparece como que “por arrastamento”, porquanto o nascimento da segunda criança é algo inesperado, desconhecido da mesma e, nessa medida, apenas agrava a pena conjunta em termos relativos. Trata-se de um crime semelhante, englobado na intenção da arguida e assim tem um peso diminuto em relação ao ilícito global.

Assim, tendo em consideração, que a pena única deve ser encontrada tendo em conta a gravidade global do comportamento delituoso da arguida, pois tem de ser considerado e ponderado um conjunto dos factos e a sua personalidade “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, entendemos que a mesma deve ser reduzida para quinze (15) anos e seis (6) meses de prisão, a qual é conforme, adequada e proporcional à culpa da mesma e satisfaz as demais exigências de prevenção geral e especial.

Em resumo, procede parcialmente o recurso e em consequência altera-se a decisão recorrida no que respeita à pena única, nos moldes suprarreferidos.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam na 3ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça em:

- julgar parcialmente procedente o recurso da arguida AA e em consequência reduzir a pena única para quinze (15) anos e seis (6) meses de prisão;

- no mais confirmar a decisão recorrida.

Sem custas por não serem devidas - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal.

Lisboa, 19 de Junho de 2024.

Antero Luís (Relator)

M. Carmo Silva Dias (1ª Adjunta)

Ana Maria Barata de Brito (2ª Adjunta)

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1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.

2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.

3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.

4. Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense, I, 2.ª edição, pág. 49 e segs.

5. In Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 29.

6. Veja-se, neste sentido e por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Janeiro de 2010, Proc. 238/08.2JAAVR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt

7. Neste sentido, acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Março de 2015, Proc. 405/13.7 JABRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt

8. Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1in www.dgsi.pt

9. Neste mesmo sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de Outubro de 2019, no Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, relatado pelo o Conselheiro Lopes da Mota em cujo sumário se escreveu: No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade.” In www.dgsi.pt

10. In Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Coimbra, 1972, págs. 70 a 75,

11. In Comentário Conimbricense, do Código Penal, Tomo I, pág. 26, §2

12. Neste sentido, veja-se, ainda, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 2019, Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1 e doutrina e jurisprudência citada no mesmo, disponível em www.dgsi.pt

13. Teresa Serra, ob. cit., pág. 71.

14. Sumário do acórdão de 31-01-2012, Proc. Nº 8/11.0PBRGR.L1.S

15. Ac. STJ de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª ambos in www.dgsi.pt

  No mesmo sentido, Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187).

16. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime - Noticias Editorial, pág. 227).

17. As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” in “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, AAFDL, pág. 25-51 e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, 2000, Almedina, pág. 31-51.

18. A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570 e seguintes).

19. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 214.

20. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril-Dezembro de 1993, pág. 186 e 187,

21. Proc. n.º 60/22.3SWLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt

22. Proc. nº 202/05.3GBSXL.L1.S1, disponível em: www.dgsi.pt

23. Neste sentido também, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 421e segs.