HABEAS CORPUS
CUMPRIMENTO DE PENA
PENA DE PRISÃO
PERDÃO
INDEFERIMENTO
Sumário


Tendo o Tribunal de Relação, em recurso, apreciado a questão da aplicabilidade do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto, excluindo a sua aplicação, não é possível, através da providência de Habeas corpus, suscitar de novo a questão perante o Supremo Tribunal de Justiça, por não se enquadrar nos fundamentos da providência taxativamente fixados no nº 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA, arguido no processo n.º º 60/22.3SWLSB-D que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de ... - ... 7, preso em cumprimento de pena à ordem desses autos, desde 22 de Setembro de 2022, vem requerer a providência de habeas corpus com fundamento em prisão ilegal, com as seguintes razões: (transcrição)

A - DOS FACTOS:

I - DO CRIME

MOTIVO DA SUA CONDENAÇÃO

O ora peticionante, foi condenado pela prática em coautoria material de um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas, na pena de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, por acórdão datado de 02.11.2023, transitado em julgado em 03.04.2024.

QUE FACTOS ESTÃO DOCUMENTADOS E QUE MOTIVAM A SUA PRISÃO

VEJAMOS:

Factos assentes: (relevantes para o presente pedido)

O arguido encontra-se preso e em cumprimento da pena acima indicada, ininterruptamente, desde o dia 22 de setembro de 2022.

A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, instituiu um regime de perdão de penas e de amnistia de infrações, celebrando a realização da Jornada Mundial da Juventude em território português.

Reunidos que se mostram os requisitos do artº 2º, nº 1 da referida Lei [nº 38-A/2023, de 02.08], tem o condenado potencial para entrar no quadro de graça concedida na referida Lei referido no artigo 3º nº 1 da mesma.

E estabelece o artº 7º do mesmo diploma: (…)

1 — Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

(…)

f) No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa, os condenados por:

(…)

ix) Crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;

Donde o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art.º 25º da Lei nº 15/93, de 22.01, não se mostra consagrado na exceção constante da subalínea ix) da al. f) do nº 1 do art.º 7º da Lei nº 38º-A2023, de 2 de agosto, pelo que não está excluído do benefício do perdão.

Está assim o condenado ora peticionante preso para além dos prazos previstos na lei, pelo que se impõe a sua imediata libertação.

II - REQUISITOS DA PROVIDÊNCIA

O arguido encontra-se, atualmente, preso, pelo que reveste o requisito da atualidade. (Ac. STJ. de 28 de junho de 1989, proc. 18/89/3ª secção e de 23 de Novembro de 1995, CJ. Tomo III pág. 241)).

O Habeas Corpus constitui um mecanismo expedito, que visa por termo imediato a situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade diretamente verificável a partir dos factos documentados.

O arguido já não dispõe a seu favor prazo para a interposição de recurso ordinário.

RAZÕES DE DIREITO:

Da Ilegalidade da sua prisão.

A presente providencia de Habeas Corpus restringe-se a casos particularmente qualificados (como é seguramente o da presente providencia de Habeas Corpus restringe-se a casos particularmente qualificados (como é seguramente o da ultrapassagem do prazo máximo da prisão, artigo 127° n° 1 e 128° n° 3 do CP.).

Assenta esta perspetiva na recondução do âmbito da garantia constitucional do habeas corpus à tutela daqueles valores que a Constituição destaca na "dimensão processual da prisão preventiva", contida no artigo 28° (JJ Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, 2007, p. 489), valores esses traduzidos, no que apresenta relevância no âmbito desta providência, na afirmação do carácter temporalmente limitado da prisão através da obrigação de Estes prazos são os do artigo 127°, 128° e 215° do CPP, e é a sua ultrapassagem que justifica o recurso a uma providência com as particulares características do habeas corpus.

Assim, o arguido está preso para além dos prazos fixados na lei, na medida em que se mantém preso para além do prazo fixado na decisão, descontado o ano de perdão, ou seja, 22 de fevereiro de 2024, altura em que devia ter sido posto imediatamente em liberdade por extinção da pena aplicada (cf. artigo 127º nº 1 do CP), pelo que a sua prisão se mantem de forma manifestamente ilegal.

CONCLUINDO:

1. O Habeas Corpus “é uma providência de caracter excecional destinada a proteger a liberdade individual nos casos em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade” cf. Ac do TC nº 423/03

2. O Habeas Corpus constitui um mecanismo expedito, que visa por termo imediato a situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade diretamente verificável a partir dos factos provados e documentados.

3. O requerente, - facto irremediavelmente provado e documentado– foi detido e ficou preso preventivamente em 22 de setembro de 2022 tendo sido condenado numa pena de 2 anos e 5 meses de prisão, por tráfico de menor gravidade, tendo menos de 30 anos, e descontando 1 ano de perdão está preso ilegalmente desde 22 de fevereiro de 2024, estando desde essa data preso ilegalmente, porquanto a sua pena se extinguiu, e, consequentemente os motivos de facto e de direto que a determinaram.

4. A sua prisão é motivada por facto que a lei não permite, sendo «grave e evidente a violação da liberdade individual», posto que documentada e assente em factos facilmente verificáveis.

5. Assim, também não é possível manter o peticionante na condição em que se encontra de preso em cumprimento de uma pena, posto que tal pena se extinguiu em 22 de fevereiro de 2024, por ocasião da Lei do Perdão.

6. Entendemos que continua preso por «violação grosseira da Lei».

7. A sua prisão é ilegal, e mantida por violação e grave e interpretação do direito, nomeadamente dos arts. 127º nº 1 e 128º nº 3 do CP, artigos 2º 3º e artigo 7º a contrário da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, 27º nºs. 1 da Lei Fundamental e, artº 3º e 5º e 12ºda DUDH e artº 5º e 7º da CEDH.

Pelo exposto e noutros que vierem a ser doutamente supridos por V.Exa. deve a presente providência excecional de HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL, ser considerada procedente por provada e, por via dela ordenar-se a sua imediata restituição à liberdade, expedindo-se os competentes mandados de soltura. (fim de transcrição)

2. Nos termos do artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, foi prestada a seguinte informação:

«Subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a fim de serem, de imediato, apresentados ao Exmo. Sr. Presidente daquele Egrégio Tribunal com a informação sobre as condições em que foi efetuada e em que se mantém a prisão do arguido AA, nos termos e para os efeitos do artigo 222.º, n.º 1, al. c) do CPP:

1. Por acórdão proferido em 02 de novembro de 2023, foi o arguido condenado na pena de 2 anos e 5 meses de prisão, pela prática, em coautoria material de um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas.

2. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 20 de março de 2024 foi decidido o seguinte “Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não providos os recursos interpostos por AA e BB, mantendo-se em tudo a decisão do Tribunal a quo”. Neste acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação foi apreciada, ainda, a aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

3. O arguido vem arguir, perante o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, que está preso para além dos prazos previstos na lei, peticionando a sua imediata libertação.

Instrua os autos com as certidões dos acórdãos proferidos e respetiva nota de trânsito em julgado, bem como com o requerimento agora apresentado pelo arguido.

DN.»

3. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência pública, nos termos dos artigos 223.º, n.º 3, e 435.º, do Código de Processo Penal.

Há agora que tornar pública a respetiva deliberação.

II Fundamentação

4. A Constituição da República Portuguesa no seu artigo 31º, estatui que haverá providência de habeas corpuscontra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente” (nº1), a qual pode ser “requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos” (nº2) devendo o juiz decidir “no prazo de oito dias” “em audiência contraditória” (nº3).

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira na Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, a providência de habeas corpus exige, como requisitos cumulativos, o exercício de abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e detenção ou prisão ilegal.

Para os mesmos constitucionalistas, na obra citada, a providência de habeas corpus é o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, “testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito.

Neste mesmo sentido, Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, Vol. II, pág.419, 5ª Edição Verbo, considera, seguindo José Carlos Vieira de Andrade, tratar-se de “um direito subjectivo (direito-garantia) reconhecido para a tutela de um outro direito fundamental, dos mais importantes, o direito à liberdade pessoal. Em razão do seu fim, o habeas corpus há-de ser de utilização simples, isto é, sem grandes formalismos, rápido na actuação, pois a violação do direito de liberdade não se compadece com demoras escusadas, abranger todos os casos de privação ilegal de liberdade e sem excepções em atenção ao agente ou à vítima”. Acrescenta que o “pressuposto de facto do habeas corpus é a prisão efectiva e actual; o seu fundamento jurídico é a ilegalidade da prisão ou internamento ilegal”.

O legislador ordinário, na densificação do conceito de prisão ilegal, no artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, considera ilegal a prisão quando a mesma “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

5. O requerente alega, em súmula, que está ultrapassado o prazo máximo da pena de prisão em que foi condenado, porquanto devia ter beneficiado do perdão de um ano por aplicação da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto e, por isso, a pena extinguiu-se em 22 de fevereiro de 2024.

Vejamos.

Como ficou referido anteriormente, o legislador no artigo 222º, nº 2 do Código de Processo Penal, estabeleceu, taxativamente, os fundamentos da providência excepcional de habeas corpus por prisão ilegal.

Por força desse numerus clausus em relação aos fundamentos do habeas corpus, o mesmo “ (…) não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis”, “neste há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP" e “não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários”.1

De igual modo, no habeas corpus “(…),não cabe julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo)” e “não pode decidir sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente disponíveis e admissíveis de impugnação” (...) “A medida não pode ser utilizada para impugnar irregularidades processuais ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o processo ou o recurso como modo e lugar próprios para a sua reapreciação”.2

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Maio de 2019, “Constitui jurisprudência reiterada deste Tribunal a de que a providência de habeas corpus não é o meio próprio para arguir ou conhecer de eventuais nulidades, insanáveis ou não, ou irregularidades, cometidas na condução do processo ou em decisões nele proferidas; para esse fim servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede processual apropriados.”3

Perante esta jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, é manifesto não caber no âmbito da presente providência de habeas corpus, a pretensa aplicação do perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.

A aplicação da referida lei foi apreciada, em sede de recurso ordinário, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 20 de Março de 2024, no qual confirmou a condenação do requerente.

Escreveu-se, a esse propósito, no douto acórdão: (transcrição sem notas de rodapé)

O arguido AA vem aqui condenado na pena de 2 anos e 5 meses de prisão por crime de tráfico de menor gravidade – artº 25º do DL nº 15/93.

Já vimos supra que a pena se mostra fundamentada e fixada de forma criteriosa e adequada, bem como se mostra adequado que o Tribunal a quo se tenha decidido pelo cumprimento efectivo da mesma.

Reunidos que se mostrem os requisitos do artº 2º, nº 1 da referida Lei nº 38-A/2023, de 02.08, tem o condenado potencial para entrar no quadro de graça concedida na referida Lei.

Seguidamente, impõe-se averiguar os requisitos de substância para o efeito.

Analisando.

Estabelece o artº 3º, nº 1 da referida Lei:

(…)

1 — Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

(…)

E estabelece o artº 7º do mesmo diploma:

(…)

1 — Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

(…)

f) No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa, os condenados por:

(…)

ix) Crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;

(…)

Por sua vez, o DL nº 15/93, recentemente refrescado, diz o seguinte:

(…)

Artigo 21º - Tráfico e outras actividades ilícitas

1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

(…)

O artº 22º diz que:

Artigo 22º - Precursores

1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fabricar, importar, exportar, transportar ou distribuir equipamento, materiais ou substâncias inscritas nas tabelas V e VI, sabendo que são ou vão ser utilizados no cultivo, produção ou fabrico ilícitos de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.

E o artº 28º:

Artigo 28 - Associações criminosas

1 - Quem promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, vise praticar algum dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º é punido com pena de prisão de 10 a 25 anos.

2 - Quem prestar colaboração, directa ou indirecta, aderir ou apoiar o grupo, organização ou associação referidos no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.

3 - Incorre na pena de 12 a 25 anos de prisão quem chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação referidos no n.º 1.

4 - Se o grupo, organização ou associação tiver como finalidade ou atividade a prática das condutas previstas nos n.os 3 a 5 do artigo 368.º-A do Código Penal face a vantagens ou a prática de recetação de coisas ou animais provenientes dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, o agente é punido:

a) Nos casos dos n.os 1 e 3, com pena de prisão de 2 a 10 anos;

b) No caso do n.º 2, com pena de prisão de um a oito anos.

Ora, decorre destes normativos que o DL nº 15/93 estabeleceu, agora inequivocamente, um tipo legal de crime de tráfico de produtos estupefacientes no seu artº 21º, aquele a que já chamávamos o tipo-base e que agora condensa, de facto, os modos de actuação susceptíveis de se enquadrarem legalmente como tráfico.

Por outro lado, fica evidente que dedicou o artº 22º ao tratamento da matéria dos precursores, matéria cada vez mais importante, não apenas por via da padronização, no tráfico internacional, de nítidas áreas conotadas com a produção e outras com o comércio e consumo, mas também por via da manipulação [química] a que vêm sendo submetidas as substâncias, dando isto origem, em muitos casos, a que a importância da origem se dilua naquilo que é o domínio da transformação, com o processo de produção de drogas não apenas orgânicas a liderar os fluxos do consumo e do dinheiro.

Finalmente, o artº 28º foi dedicado à criminalidade organizada no âmbito da actividade de tráfico de produtos estupefacientes.

Ou seja, percebe-se que o Legislador compartimentou a actividade por áreas de actuação, elegendo estes três nos quadros de destaque em torno dos quais giram as restantes normas reguladoras do combate a esta actividade.

E estas são as mesmas áreas de intervenção que são destacadas pelo mesmo Legislador na Lei nº 38-A/2023 de 02.08.

Por isso, no artº 7º dedicado às exclusões de aplicação da referida Lei, se determina que ficam excluídos da aplicação do perdão ali concedido [nº 1, al. f) ix] os crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (…)

Ao prever desta forma, o Legislador fê-lo de modo a fazer incidir a interdição precisamente sobre as áreas de actuação das políticas de combate o tráfico de estupefacientes, tal como constam do respectivo diploma.

A questão que se coloca, então, é a de saber se o Legislador da Amnistia quis aqui manter o critério que nos parece resultar já do próprio DL nº 15/93 ou se, pelo contrário, até ao arrepio das presunções resultantes do artº 9º do Cód. Civil, resolveu aqui inovar e, com isso, lançar-nos na incerteza da interpretação sobre normas de excepção.

Pensamos que o Legislador quis a primeira opção e deixou-a evidente.

No caminho para encontrar a solução razoável, atendemos fundamentalmente a três questões:

A primeira, a circunstância de, como vem afirmando a jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça, as leis de amnistia, na medida em que assentam sobretudo em pressupostos não exclusivamente jurídicos e têm natureza excepcional, deverem ser interpretadas de acordo com o que resulta da sua letra.

Temos presente, como disse alguém melhor do que nós, que:

É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes) .

Esta preocupação de não retirar mais do texto do que aquilo que ele diz não importa apenas uma salvaguarda ou segurança, mas sobretudo garante que a delimitação se faça com critério e sem arbitrariedade.

Como também já disse o Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 444/97 de 25.06, a delimitação dos factos amnistiados tem que ser feita segundo critérios suscetíveis de generalização (…) em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito.

A segunda questão a considerar é a que se prende com a necessidade de, mesmo no âmbito de lei excepcional, serem de manter os conceitos e princípios do direito penal, pois que não faria sentido que o não fizéssemos.

Se pensarmos neste quadro, e se daí partirmos para o jurídico, num primeiro momento para a teoria geral e conceitos, podemos também perceber que, tal como hoje se entende genericamente, o artº 21º do DL nº 15/93 de 22.01 define o tipo-base do crime de tráfico de estupefacientes, de onde partem as tipologias de referência, como os tráficos desagravados (arts. 25º e 26º) e agravado (artº 24º).

Temos de ter presente que o reconhecimento do fenómeno e da comoção social que provoca o tráfico de estupefacientes faz salientar a necessidade de acautelar as finalidades de prevenção geral na determinação das penas como garantia da validade das normas e de confiança da comunidade, muito embora garanta ainda as finalidades de reinserção dentro do modelo de prevenção especial.

Nesta perspectiva, as imposições de prevenção geral decorrentes da ilicitude do facto e da dimensão do perigo, que resultam da frequência do fenómeno e das circunstâncias comunitárias em que se manifesta, comandam a determinação da medida da pena, coordenadas, embora, com as exigências de prevenção especial, as quais serão eventualmente satisfeitas com a escolha de uma medida concreta que tempere as mais pesadas imposições de prevenção geral.

Como tem também sido sublinhado pela jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça, o crime de tráfico de estupefacientes (artº 21º) é um crime de perigo abstracto, protector de diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, mas em que o bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública, que se realiza com a colocação em perigo do bem jurídico protegido que consiste na saúde e integridade física dos cidadãos, ou saúde pública.

E, como afirma Lourenço Martins, está também em causa a protecção da economia do Estado, que pode ser completamente desvirtuada nas suas regras (…) com a existência desta economia paralela ou subterrânea erigida pelos traficantes.

Ora, é a previsão legal do artº 21º do Decreto-Lei nº 15/93 de 22.01 que contém a descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes. A raíz tipológica onde todas as outras normas vão buscar a chamada factualidade relevante que integra as condutas proibidas.

Como também refere parte da nossa jurisprudência, o artº 21º citado, ao fazê-lo, fá-lo compreensivelmente a largo espectro.

Trata-se, pois, neste artº 21º, de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extração ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação.

Assim, conquanto este crime base do artº 21º esteja projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico, as circunstâncias devem ser integradas por considerações de gravidade correspondentes.

Fazendo sentido que a norma do artº 21º do DL nº 15/93 de 22.01, defina o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, no qual se punem diversas actividades ilícitas, cada uma delas dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do ilícito, faz sentido também concluir que nos arts. 25º e 26º do mesmo diploma se mostram definidos tipos privilegiados em relação àquele tipo fundamental, e no artº 24º o tipo agravado, relativamente ao mesmo artº 21º.

Terceira: tem-se em atenção que a construção do crime de tráfico de menor gravidade, surgido na sequência da revisão de 1993 da Lei da Droga – e, recorda-se, que levou ao desaparecimento do anterior crime de tráfico de quantidades diminutas [cfr. Proposta de Lei n.º 32/VI, que deu origem à Lei nº 27/92 de 31.08, e que concedeu ao Governo a autorização legislativa necessária à aprovação do Decreto-Lei nº 15/93 de 22.01, na sequência da ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, Viena, 1988] -, assenta na técnica do uso de uma cláusula geral, expressa no conceito de “ilicitude consideravelmente diminuída”, com recurso a circunstâncias exemplificativas relativas aos elementos da ilicitude da acção.

De facto, como também diz o Supremo Tribunal de Justiça, a disposição do artº 25º do Decreto-Lei nº 15/93 é usada pelo legislador “como uma espécie de válvula de segurança do sistema em ordem a evitar que situações efectivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas, no propósito de uma maior maleabilidade na escolha da medida da reacção criminal”, estando a sua aplicação “de certo modo parametrizada mediante a verificação das circunstâncias aí indicadas a título exemplificativo, o que aponta para a necessidade de uma valorização dos factos imputados ao arguido e provados, não podendo deixar de se ter em conta todos os tópicos a que o preceito se refere, aditados de outros, se os houver”, salienta-se no acórdão deste tribunal de 2.6.1999 (proc. n.º 269/99) .

Assim, o artº 25º apresenta um crime privilegiado relativamente ao tipo fundamental, e o privilegiamento deste tipo legal de crime não resulta, pois, de um concreto elemento típico que acresça à descrição do tipo fundamental (artigo 21.º do mesmo diploma), mas sim da verificação de uma diminuição considerável da ilicitude, a partir de uma avaliação da situação de facto, para a qual o legislador não indica todas as circunstâncias a atender, limitando-se a referir exemplificativamente “os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade e a quantidade das substâncias”, abrindo assim a porta à densificação doutrinal e jurisprudencial do conceito de “menor gravidade” .

Enquanto o artº 24º do DL nº 15/93 de 22.01 prevê um tipo agravado de tráfico de estupefacientes, abrangendo situações de especial ilicitude do facto, funcionando como contraponto do artº 25º [que estatui o crime privilegiado de tráfico, em razão da menor gravidade do facto].

Fechando o círculo, podemos dizer que a lei prevê, a par do tipo fundamental de tráfico instituído no artº 21º, um crime privilegiado no artº 25º, e um qualificado no artº 24º, em função da dimensão da ilicitude do facto, que deverá ser consideravelmente menor que a ínsita no tipo fundamental no caso do artº 25º e, por oposição, consideravelmente maior no caso do artº 24º.

Com este quadro que apresentamos de forma muito resumida presente, e que nos parece ser o único resultante da padronização estabelecida pelo DL nº 15/93 de 22.01, podemos completar o silogismo, concluindo que as referências feitas ao crime de tráfico de estupefacientes pela referida Lei nº 38-A/2023 de 02.08 (vulgo: Lei de Amnistia) seguem a mesma padronização : referindo o artº 21º por ser o tipo base do crime de tráfico que descreve a conduta típica do mesmo em cuja referência se enquadram os arts. 25º, 26º e 24º enquanto condutas típicas de ilicitude mais ou menos marcada; referindo o artº 22º que descreve a conduta típica relativamente a precursores; e referindo o artº 28º que contempla a tipicidade quanto à criminalidade em associação, sendo esta também por referência, como aí se diz, aos arts. 21º e 22º do mesmo diploma.

Parece-nos resultar de tudo isto claro que o Legislador da Lei de Amnistia de 2023 quando consagra, no artº 7º das exclusões do perdão, os crimes de tráfico de estupefacientes dos arts. 21º, 22º e 28º do DL nº 15/93, quis fazer exactamente a mesma referência. Disto resultando que a nomeação do artº 21º seja abrangente dos tipos seus derivados dos arts. 25º e 24º daquele mesmo diploma.

Aliás, nem faria sentido que assim não fosse, pois que se disto se fizesse uma interpretação restrictiva, de forma a reduzir a exclusão ao crime do artº 21º, sempre teríamos de concluir que o Legislador excluía a aplicação do perdão aos crimes do mesmo artº 21º enquanto, por nele também não falar, o admitia para o crime agravado do artº 24º. Conclusão esta que passava em muito além dos limites do absurdo.

Prosseguindo no somar de partes:

Já vimos que, no que toca a leis de amnistia devem os Tribunais abster-se de fazer interpretações que se estendam além da sua letra ou se fiquem além dela – para já não falar da interpretação por analogia -, e já vimos que a única interpretação consentida pelo artº 7º referido é a que dele mesmo resulta, e se deve fazer por referência a tipos legais por categorias: tráfico de estupefacientes (arts. 21º, 25º e 26º), precursores (artº 22º) e criminalidade por associação (artº 28).

Mas além destes argumentos, no sentido da referida exclusão, podemos aduzir outros.

Nos termos do artº 1º do Cód. Proc. Penal, prevê-se:

(…)

j) 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos;

l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos;

m) 'Criminalidade altamente organizada' as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência, participação económica em negócio ou branqueamento.

(…)

Muito embora não resulte isso da letra da lei, a jurisprudência vem entendendo que o crime de tráfico de menor gravidade não se inscreve no conceito da al. m) transcrita, muito embora aí, sem reservas, se enquadre a actividade de tráfico de estupefacientes, justificando-se essa dissidência pelo facto de estarmos perante uma forma privilegiada do crime.

Ora, não competindo aqui alargar a base desta nossa discussão a mais outro tema [embora esse ainda fosse de igual interesse], podemos apenas dizer que, mesmo quando assim se entenda, o crime de tráfico de menor gravidade inscreve-se obrigatoriamente na categoria de «criminalidade violenta» (al. j) citada), atento o critério objectivo da pena aplicável – o crime é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos de prisão, o que o inclui imediatamente naquela categoria de crimes puníveis «com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos».

E mesmo que se olvidasse [o que nós não fazemos] que o crime de tráfico, em qualquer das modalidades, deve sempre integrar o lote da criminalidade mais grave, não pode esquecer-se aquela inserção.

Esta natureza não é despicienda, colocando o crime de tráfico, em qualquer das suas formas, no lote da criminalidade grave. E basta passar os olhos pela Lei nº 38-A/2023 de 02.08 para se concluir que o Legislador fez um esforço por abranger nas exclusões da aplicação do perdão de pena precisamente a criminalidade mais grave.

Mas vejamos os trabalhos preparatórios.

O Projecto inicial do Governo para a Amnistia [PPL 97 XV (Gov)] previa a exclusão da aplicação aos v) … condenados por crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual;

A proposta de alteração do Grupo Parlamentar do PSD propunha que ficassem excluídos da aplicação do perdão de pena ix) Os condenados por crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º, 24.º, 25.º, 28.º, 29.º, 30.º e 33.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

E do texto aprovado resulta que não beneficiam da aplicação do perdão de pena ix) Os condenados por crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual.

Ou seja, percebe-se perfeitamente que o Legislador quis reconduzir as actividades relevantes em termos de tráfico de estupefacientes precisamente àquelas categorias supra mencionadas: o tráfico de estupefacientes; os precursores; a criminalidade por associação. Fazendo uma perfeita correspondência entre elas.

Não faz sentido pensar que relativamente a uma criminalidade de maior gravidade, como é o tráfico de estupefacientes, o Legislador tenha querido, até contra os compromissos internacionais que Portugal tem assumido no âmbito do combate a essa actividade, por via de uma graça concedida por motivo que nada tem que ver com o exercício de instrumentos de política criminal, beneficiar os envolvidos em tal actividade [independentemente de serem de muitas ou poucas quantidades, e sendo certo que este não é o único critério] com o referido perdão.

A actividade de tráfico vai muito além da pessoa do traficante. É uma actividade que se enquadra hoje no quadro amplo dos crimes contra a sociedade, diríamos mesmo, contra a humanidade.

A circunstância de podermos, no âmbito da valoração da ilicitude do facto concreto, encontrar os motivos que nos levem a optar por enquadrar um tráfico desagravado, com isso beneficiando já o delinquente, não significa que a actividade que desenvolve seja menos nociva para a sociedade.

Aliás, como decorre da factualidade assente neste mesmo processo, o papel destes arguidos foi fundamental para a actividade de venda, ainda que eles mesmos não tenham sido vistos a fazê-lo. E o tráfico, enquanto actividade nefasta que é, vive disto mesmo: de quem vende, de quem guarda o produto e nem vende, de quem vigia e vende ou não vende, de quem angaria compradores, venda ou não venda; de quem vais buscar e levar…, a actividade em si depende de todos estes factores que a tornam possível, exponencialmente lucrativa e incomensuravelmente nefasta.

Quando se fala em eventuais menores quantidades, eventuais meios não sofisticados, eventuais substâncias menos nocivas [dentro dos quadros de referência das tabelas] por comparação a outras, ou quaisquer outros factores de onde retiremos uma ilicitude menor [por comparação ao artº 21º], estamos a fazê-lo do ponto de vista da actividade que imputamos em concreto àquele agente e não por referência à actividade de tráfico.

E mesmo nesse quadro, toda a actividade é importante. Caso se evidencie, como aqui - e por isso o Tribunal a quo optou pela imputação no âmbito da [co] autoria -, que a actividade de ambos se revelou essencial nessas circunstâncias, mais afirmada se mostra a referida importância.

Ainda que seja por via da transacção de uma única dose individual de estupefaciente, a actividade de tráfico é muito grave, estando no centro das preocupações das políticas de combate à criminalidade nos dias de hoje, a nível nacional e internacional. Não apenas pela sua própria nocividade, mas por causa de toda a criminalidade que se lhe associa.

A aprovação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, assinada por Portugal e ratificada [Resolução da Assembleia da República nº 29/91 e Decreto do Presidente da República nº 45/91, publicados no Diário da República, de 6 de Setembro de 1991] esteve na base da aprovação do DL nº 15/93 de 22.01.

E como é comummente aceite, visou-se ali [na Convenção] prosseguir três objectivos fundamentais: privar os traficantes do produto das suas actividades criminosas, suprimindo o seu incentivo principal e impedindo a utilização de fortunas ilicitamente acumuladas de financiarem organizações criminosas transnacionais cuja actividade passa por controlar e corromper as estruturas do Estado, o comércio e a circulação legítima de capitais; adoptar medidas adequadas ao controlo e fiscalização dos precursores, produtos químicos e solventes, substâncias utilizáveis no fabrico de estupefacientes e de psicotrópicos e que, pela facilidade de obtenção e disponibilidade no mercado corrente, têm conduzido ao aumento do fabrico clandestino de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas; em terceiro lugar, reforçar e complementar as medidas previstas na Convenção sobre Estupefacientes de 1961 [modificada pelo Protocolo de 1972] e na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, colmatando brechas e potenciando os meios jurídicos de cooperação internacional em matéria penal.

Este compromisso internacional decorre do reconhecimento da perigosidade desta actividade e nocividade da mesma no tecido das sociedades actuais.

Não se venha sequer com a argumentação de que, nos dias que correm, até se fala na despenalização parcial da actividade, como se isso engrandecesse a discussão.

Essas teorias, que são, na maioria das vezes, de duvidosa base de raciocínio e inspiração, assentam sobretudo no pressuposto, que ocultam, de que o combate ao tráfico, por falta de investimento sério nos meios, por falta de recursos sociais que são desviados para outras actividades menos nobres, está a perder dinâmica. A par da constatação de que os lucros dessa actividade, depois de filtrados por muitos caminhos, dão também rendimento à actividade aparentemente lícita de outro tanto de gente.

Esta constatação, a par do incremento de sociedades actuais cada vez mais individualistas, em que cada um olha para o seu umbigo e se alheia da miséria que o rodeia, discutindo até os subsídios para a combater como indevidos e injustificados, é um motor que tem estado em marcha e que, não sendo travado, porá em risco as sociedades do futuro.

As preocupações de combate ao tráfico resultantes das Convenções e Acordos internacionais visam contrariar todo esse alheamento e desinteresse egoístas quanto aos outros e empenham os Estados contratantes no combate ao flagelo.

Assim, independentemente dos instrumentos internos de gestão, desde logo da previsão de tipos legais que permitam enquadrar a actividade de tráfico num patamar de importância distinto do que resulta necessariamente do quadro aberto pelo artº 21º - e que, por confronto com o artº 24º, se percebe destinar-se a punir já um tráfico de grande importância -, não faria qualquer sentido, para efeitos de Amnistia, desconsiderar esse relevo e beneficiar o delinquente com um perdão de pena.

O princípio orientador das exclusões previstas no artº 7º da Lei de Amnistia, como resulta da leitura das suas alíneas, é a importância dos bens jurídicos tutelados pelas normas de proibição e não a maior ou menor extensão da pena aplicada.

E a ser assim, como nos parece de meridiana clareza, quando o ponto ix) do nº 1 do artº 7º exclui do perdão o tráfico de estupefacientes dos arts. 21º, 22º e 28º do DL nº 15/93 de 22.01 está a deixar perfeitamente claro que visa excluir-se do perdão toda a actividade de tráfico.

Nem faria o mínimo sentido, no limite ainda que fosse do absurdo, que o Legislador tivesse previsto um perdão de pena para crimes de tráfico de estupefacientes puníveis com pena de 1 a 5 anos de prisão e expressamente o excluísse de crimes como condução perigosa e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos arts 291º e 292º do Cód. Penal, tal como expressamente prevê no artº 7º, nº 1, d. ii) da referida Lei de Amnistia.

Como em tudo na vida, as coisas têm de ter um certo sentido, ter um certo equilíbrio, um prumo. Sem discricionariedade, porque os Tribunais não legislam e quem tem essa competência e elaborou e aprovou a sobredita Lei de Amnistia partiu do critério exposto, que é o razoável, não havendo aqui que decidir de acordo com outro critério porque isso, não podendo ser entendido como critério corrector , sempre teria de ser visto como decisão contra lei expressa.

Tal como nos parece ficar evidenciado por todos os argumentos acima expostos, a conclusão não pode ser outra senão a de que o Legislador excluiu da aplicação do perdão previsto na Lei de Amnistia de 2023 o crime de tráfico de estupefacientes em todas as suas dimensões, no que fica abrangido o tráfico do artº 25º do DL nº 15/93 de 22.01.

Assim, concluindo neste ponto, também improcede quanto a esta questão o recurso na medida em que o Tribunal a quo não tinha de aplicar o perdão de pena previsto na Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto, por dele estar excluído o crime por que foi condenado o arguido [foi apenas o arguido AA que a suscitou].

Por tudo quanto acaba de se expor, conclui-se, assim, pela total improcedência de ambos os recursos. (fim de transcrição)

Como se pode ver desta longa transcrição, a questão da aplicabilidade do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto, foi sindicada por via de recurso e, por isso, a pena de prisão que o requerente se encontra a cumprir, nos exactos moldes que foram determinados naquele acórdão, não é ilegal pois, foi ordenada por entidade competente, motivada por facto que a lei permite e mantém-se dentro dos prazos fixados.

Inexiste, pois, qualquer excesso de duração do prazo da pena de prisão, a que o requerente foi condenado, nem a mesma se encontra extinta.

O que o requerente pretende, com esta providência de Habeas Corpus, é um outro grau de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, o qual nem a lei, nem os pressupostos da providência, permitem.

Como se refere no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 26 de Junho de 2003, “O habeas corpus, tal como o configura a lei (art. 222.º do CPP), é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, que não um recurso, não visando, pois, submeter ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação da decisão da instância à ordem de quem está o preso o requerente, mas sim colocar a questão da ilegalidade dessa prisão”4, logo não pode o Supremo Tribunal substituir-se às instâncias na apreciação do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto.

Esta mesma questão já foi apreciada por este Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 15 de Maio de 2024, em cujo sumário se considerou: “O peticionante está em cumprimento de pena, não sendo ilegal a sua prisão (cujo termo ainda não ocorreu), tanto mais que foi ordenada por autoridade competente, com base em facto que a lei permite, já tendo sido apreciado no processo da condenação a questão da eventual aplicação da Lei 38-A/2023, de 2.08, tendo ali se concluído negativamente (isto é, que não era aplicável o referido perdão, razão pela qual foi indeferido o requerimento que apresentou)(…) O habeas corpus não serve para repetir pedidos que já foram apreciados e decididos, sendo abusivo o seu comportamento quando repete questão que já foi decidida no processo da condenação (onde se concluiu não ser aplicável o perdão da citada Lei n.º 38-A/2023).”5

De igual modo, nos presentes autos, a prisão foi ordenada por entidade competente (Tribunal/magistrado judicial), foi motivada por facto que a lei permite a sua aplicação (artigo 25º do DL nº 15/93 de 22 de Janeiro) e ainda se mantém dentro dos prazos fixados na condenação, contados de acordo com as normas relativas à execução das penas de prisão.

Perante todos estes dados, não se pode concluir de outra forma que não seja o indeferimento do presente pedido de habeas corpus.

Conclui-se, pois, que a petição de habeas corpus é manifestamente infundada, a qual se indefere.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA.

Custas pelo requerente, com taxa de justiça fixada em três UC – n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.

Tendo em conta que a providência é manifestamente infundada, condena-se o requerente no pagamento de 7 UC s, (artigo 223º, nº 6 do Código de Processo Penal)

Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Junho de 2024.

Antero Luís (Relator)

Lopes da Mota (1º Adjunto)

Horácio Correia Pinto (2º Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente)

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1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2015, Proc. 122/13.TELSB-L.S1, disponível em www.dgsi.pt

2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05 de Maio de 2009, Proc. 665/08.5JAPRT-A.S1, citado no acórdão de 04 de Janeiro de 2017, Proc. 109/16.9GBMDR-B.S1, disponível em www.dgsi.pt

3. Proc. 1206/17.9S6LSB-C.S1, disponível em www.dgsi.pt

4. Proc. 03P2629, disponível em www.dgsi.pt

5. Proc. 136/24.2TXCBR-B.S1, desta mesma 3ª Secção, disponível em www.dgsi.pt