DECISÃO DE PROCESSO DISCIPLINAR
REMISSÃO QUANTO AOS FACTOS PARA A NOTA DE CULPA
EXIGÊNCIAS DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
Sumário

I - É de aceitar que a decisão final do procedimento disciplinar faça remissão, aquando da enunciação dos factos provados, para os factos imputados ao trabalhador discriminados na nota de culpa.
II - Se as exigências de fundamentação dessa decisão não podem ser iguais às de uma decisão judicial, não cumpre o dever de fundamentação previsto nos nos 4 e 5 do art.º 357º do Código do Trabalho a mera menção a que o trabalhador apresentou resposta à nota de culpa e juntou documentos, impondo-se que seja fundamentado porque não relevam os documentos e porque não relevam factos alegados que a provarem-se poderiam excluir a existência de infração ou pelo menos atenuar a responsabilidade do trabalhador, violando o princípio do contraditório essa falta de fundamentação.

[Sumário do acórdão elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no art.º 663º, nº 7 do Código de Processo Civil (cfr. art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho)]

Texto Integral

Recurso de apelação n.º 1450/23.0T8AVR.P1
Origem: Comarca de Aveiro, Juízo do Trabalho de Aveiro – J2

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO


AA apresentou formulário para impulsionar ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra “A..., Unipessoal, Lda.” manifestando oposição ao seu despedimento, ocorrido em 10/04/2023, juntando cópia de decisão proferida em procedimento disciplinar que lhe foi instaurado.

Realizada «audiência de partes», frustrando-se a conciliação das mesmas após período de suspensão da instância, foi notificada a Ré[1] para apresentar articulado de motivação do despedimento (AMD), o que fez, juntando o procedimento disciplinar que instaurou ao Autor, então seu trabalhador, e alegando no articulado, em síntese, que as condutas do Autor não poderiam deixar de ter o tratamento que tiveram, devendo ser declarada a regularidade e licitude do despedimento com justa causa e mantida a decisão aplicada.

Notificado, o Autor apresentou contestação, com dedução de reconvenção, pedindo que seja declarado ilícito o despedimento do Autor, com as legais consequências, e em consequência ser a Ré condenada a pagar-lhe:
A.
I. A título de compensação pela ilicitude do despedimento, caso o Autor não opte pela sua reintegração que se reclama em alternativa à compensação cuja opção cabe ao Autor tendo em conta a sua antiguidade e o vencimento mensal de € 1.045,00, uma indemnização a fixar entre 15 e 45 dias de vencimento, no montante de € 9.186,00;
II. As retribuições já vencidas e as que se vencerem desde o despedimento até ao trânsito da decisão final proferida na presente ação, sendo que as retribuições já vencidas à presente data (10/07/2023) ascendem ao montante de € 2.624,69;
Caso não se entenda o despedimento como referido em I., sempre a Ré deverá ser condenada a pagar ao Autor:
B.
I. A título de compensação pela ilicitude do despedimento, caso o Autor não opte pela sua reintegração que se reclama em alternativa à compensação cuja opção cabe ao Autor tendo em conta a sua antiguidade e o vencimento mensal de € 1.045,00, uma indemnização a fixar entre 15 e 45 dias de vencimento, no montante de € 9.186,00;
II. As retribuições já vencidas e as que se vencerem desde o despedimento até ao trânsito da decisão final proferida na presente ação, sendo que as retribuições já vencidas à presente data (10/07/2023) ascendem ao montante de € 2.624,69;
Ainda que assim não venha a entender-se, deverá sempre a Ré ser condenada a pagar ao Autor:
C.
I. As retribuições já vencidas e as que se vencerem desde o despedimento até ao trânsito da decisão final proferida na presente ação, sendo que as retribuições já vencidas à presente data (10/07/2023) ascendem ao montante de € 2.624,69;
II. As férias e subsídio de férias vencidos a 01/01/2023, bem como as proporcionalidades de férias, de subsídio de férias e de subsídio de Natal correspondentes ao trabalho prestado em 2023, pelo montante de € 5.510,45:
Alegou, em resumo, por um lado que se encontra prescrito o direito de exercer o procedimento disciplinar, por outro lado o procedimento disciplinar é como se não se existisse dado ser ilícito, e por outro lado dizendo que a decisão disciplinar não ponderou as circunstâncias do caso, não se revelando o despedimento como adequado, impugnando os factos que lhe foram imputados.

A Ré apresentou resposta concluindo dever ser declaro válido o procedimento disciplinar e a impugnação do despedimento julgada improcedente, e consequentemente ser o despedimento considerado com justa causa.

Foi proferido despacho admitindo o pedido reconvencional, dispensando a realização de «audiência prévia», e proferido despacho saneador, afirmando a validade e regularidade da instância, julgando improcedente a alegação de prescrição do procedimento disciplinar [sendo consignado que não se pode considerar esgotado o prazo plasmado no artigo 329.º, n.º 2 do Código do Trabalho, nem o despedimento ilícito com base nesse fundamento, improcedendo a exceção invocado], com abstenção de ser fixado o objeto do litígio e de serem enunciados os temas da prova.

Depois de realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, que reafirmou o valor da ação fixado, decidindo julgar a ação e a reconvenção parcialmente procedentes e, em consequência:
a) declarar a ilicitude do despedimento do Autor, AA, levado a cabo pela Ré por decisão de 04/04/2023;
b) condenar a Ré a:
a. reintegrar o Autor, com a mesma retribuição e antiguidade;
b. pagar ao Autor os salários vencidos desde a decisão do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, a liquidar posteriormente (e que atualmente se cifram em € 10.450,00), sem prejuízo das deduções plasmadas no artigo 390.º do Código do Trabalho;
c. a pagar ao Autor a quantia de € 2.510,15, a título de férias e subsídios de férias e de natal, vencidos e que ainda não foram pagos (já após dedução dos valores pagos em abril de 2023);
d. a pagar ao Autor a quantia de € 385,85, a título de créditos de formação vencidos e não pagos;
absolvendo a Ré de demais peticionado.

Não se conformando com a sentença proferida, dela veio a Ré interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem[2]:
1. O Tribunal a quo errou, quer de facto, quer de direito, na Sentença que proferiu, nestes autos, notificada, às Partes, em 28 de fevereiro de 2024.
2. A Sentença recorrida, jamais, poderia ter condenado a Ré, ora Recorrente nos pedidos formulados, nestes autos, pelo Autor.
3. O Tribunal a quo a proferir, na Sentença recorrida, fez “tábua rasa” da prova produzida, no âmbito dos presentes autos.
4. São vários os erros – formais e materiais – de que a mesma enferma.
5. A prova produzida, nos autos, não consente o entendimento plasmado na Sentença recorrida.
6. Pelo que se apresenta este Recurso, pugnando-se pela sua revogação e, consequente, modificação/alteração (substituição).
7. O qual incide, pois, sobre a matéria de facto e sobre a matéria de direito da Sentença recorrida, ou seja, sobre ma errada decisão do Tribunal a quo e quanto à materialidade (parte jurídica) constante da mesma.
8. Na sentença final proferida não foi fixado o valor da causa, pelo que se verifica e argui a correspondente nulidade da sentença, por omissão de pronúncia.
- SE HÁ FUNDAMENTO QUE SUSTENTE A PROCEDÊNCIA PARCIAL DA ACÇÃO E DA RECONVENÇÃO PARA SE DECLARAR A ILICITUDE DO DESPEDIMENTO, A REINTEGRAÇÃO DO TRABALHADOR, O PAGAMENTO DOS SALÁRIOS VENCIDOS, AS FÉRIAS E SUBSÍDIO DE FÉRIAS E NATAL BEM COMO OS CRÉDITOS DE FORMAÇÃO VENCIDOS E NÃO PAGOS.
9. Para a Fundamentação de facto e dos Factos provados, dão-se como provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos: 1, 2, 3 4, 5, 6, 7,8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32 e 33, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, bem como se reproduzem as páginas quatro a dez da douta sentença, tudo economia processual.
10. Nesse contexto, deveria, pois, na Sentença recorrida, a ora Recorrente, ter sido, integralmente, absolvida dos pedidos, formulados, pelo Autor, na sua Petição Inicial, nos termos do disposto, do previsto e do estatuído no, Código de Trabalho.
11. Surpreendentemente, o Tribunal a quo, assim, não decidiu, violando toda a prova existente, nos autos, e consequentemente, a lei, a jurisprudência e a doutrina!
12. E tudo isto resultou, não só de toda a prova documental – e, designadamente, do procedimento disciplinar junta a estes autos, como, também, de toda a prova testemunhal e das próprias declarações de parte do Autor, produzidas em Audiência de Discussão e Julgamento (de fls.).
13. Aliás, na senda do que defendeu a própria Juiz a quo em sede de sentença quando a fundamenta.
14. É a M.mª Juiz a quo quem acresce, a essa falta, a recusa em prestar serviço em dois dias consecutivos. Tal conduta é grave em si mesma, correspondente a uma violação do dever de cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho e o dever de contribuir para a sua produtividade – als. e) e h), respetivamente, do argo 128.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
15. É a M.mª juiz que termina com: Tais comportamentos são em si mesmo suscetíveis de ferir irremediavelmente a confiança da Ré no Autor, atenta a sua gravidade intrínseca, e que tudo sopesado, conclui existir justa causa de despedimento.
- SE HÁ FUNDAMENTO QUE SUSTENTE A NULIDADES DO PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
16. Ao dar os factos como provados 17 e 18 da fundamentação de facto, outra não pode ser a conclusão do tribunal a quo de que não há violação o princípio bis in idem, porque os factos a que dizem respeito são outros e ocorreram em momentos diferentes, aliás objeto de processos disciplinares diferentes.
17. Estando em causa um procedimento disciplinar visando o despedimento do trabalhador, não figura entre as causas taxavas de invalidade do procedimento disciplinar a omissão de fundamentação da decisão fáctica constante da nota de culpa, por indicação e exame crítico dos meios de prova que a suportam.
18. É certo que a decisão de despedimento deve ser fundamentada, sendo que a ausência desta implica invalidade do procedimento disciplinar, no entanto, atente-se em que essa exigência de fundamentação é imposta pela necessidade constitucional de se garantir o exercício do direito de defesa e contraditório do trabalhador, o que não aconteceu nestes autos.
19. Nos Pontos 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32 e 33.1, 22, 23, 24 e 25 dos Factos Provados, o Tribunal a quo diz que está provado tudo o que, a Ré, ora Recorrente, alegou e defende, no âmbito dos presentes autos.
20. Atento o que fixou nos Pontos 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, e sobretudo, naquele Ponto 30, não se concebe ou aceita concluir pela nulidade do procedimento disciplinar.
21. Não existe falta de pronúncia.
22. A defesa do trabalhador não foi posta em causa pelo facto da remissão feita para a nota de culpa.
23. É legal a comunicação da decisão do despedimento por remissão aos factos constantes na nota de culpa, onde são mencionados os factos de que foi acusado e as normas que os punem, sem haver violação do prescrito no nº 8, do art.º 10º do DL nº64-A/89, de 27 de fevereiro.
24. O trabalhador apresentou a sua defesa, contestando, tendo entendido bem os factos de que foi acusado e que motivaram o despedimento.
25. Exigir-se a transcrição do relatório final, dos factos imputados ao recorrente e constantes da nota de culpa, bem como a lei que os pune é ir ao arrepio dos desígnios que o legislador teve em vista, nomeadamente, a economia e celeridade processual.
26. Não se verificou falta de defesa do trabalhador, todos os meios ao seu alcance foram facultados, defendeu-se com o que lhe pareceu mais conveniente.
27. Não houve violação de qualquer norma jurídica, nomeadamente o art.º 351 n.º 3 do CT.
28. Como se pode verificar, através do ponto 30 dos factos provados, a decisão final do processo disciplinar, quanto aos factos imputados ao trabalhador, remete para a nota de culpa, com a menção de que “Todas as acusações constantes da nota de culpa, que se dão por integralmente reproduzidas, foram dadas como provadas”.
29. A obrigatoriedade de proferir uma decisão fundamentada tem em vista delimitar de forma concreta e específica os factos comunicados na nota de culpa portadores da mensagem inequívoca de proceder ao despedimento.
30. O importante, é que o trabalhador fique ciente e sem quaisquer dúvidas, acerca dos factos que lhe são imputados e que fundamentam o despedimento.
31. Nas situações, como a dos autos, em que se provaram todos os factos constantes da nota de culpa, e só esses, inexiste movo para não aceitar que a decisão final faça remissão para a factualidade constante da nota de culpa.
32. Na verdade, o trabalhador perante tal remissão fica absolutamente ciente dos factos que lhe são imputados. Por força da remissão, os factos constantes da nota de culpa passam a fazer parte da decisão.
33. A remissão efetuada pela decisão final, para os factos constantes na nota de culpa, que dá como reproduzida, em nada impede a ponderação das circunstâncias do caso e a adequação do despedimento à culpabilidade do trabalhador.
34. Tal prática, em situações em que não haja qualquer margem para dúvidas, não afeta em nada os direitos de defesa do trabalhador.
35. O trabalhador, quando recebeu a nota de culpa, teve completo conhecimento dos factos de que foi acusado, da qualificação jurídica que a entidade patronal lhes deu e da intenção de proceder ao seu despedimento.
36. Assim, a decisão final do processo disciplinar se encontra suficientemente fundamentada, não sendo de declarar nulo o processo disciplinar.
37. Para além de que o despedimento ser motivado em factualidade que não haja sido imputada ao trabalhador na nota de culpa ou referida na defesa escrita do trabalhador, mas essa inatendibilidade apenas inquina a parte da decisão que seja afetada pela omissão, e não já toda a decisão se, nesta, o despedimento for também motivado por factualidade descrita na nota de culpa ou na defesa escrita. Nesta parte, a decisão é perfeitamente válida.
38. A decisão final, do procedimento disciplinar, não fez a imputação de factos novos pelo que não foi violado o direito a defesa/audição prévia do autor nem o seu direito ao contraditório.
39. Tem sido, pacífica e repetidamente, afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a consequência do desrespeito ou preterição desses comandos legais é a de não serem atendidos os factos fundantes da decisão de despedimento não circunstanciadamente descritos.
40. E, portanto, a consequência dessa preterição não se situa no plano da invalidade ou nulidade do procedimento disciplinar, antes o de esses factos não poderem ser considerados na formulação do juízo de " justa causa " de despedimento.
41. A decisão disciplinar em causa nos presentes autos não violou o disposto nos artigos 357º, nos 4 e 5 do CT.
42. A decisão consta de documento escrito, encontra-se fundamentada nela foram ponderadas as circunstâncias do caso concreto e os factos nela referidos e imputados ao trabalhador constam da nota de culpa.
43. O trabalhador apresentou a sua defesa e nela revela ter compreendido todos os fatos que lhe eram imputados na nota de culpa, demonstrando saber a que concretas situações se reporta a entidade patronal.
44. O processo disciplinar, em causa nos presentes autos, é válido, validade que se invoca para todos os efeitos legais.
45. Nos termos, nos modos e com os fundamentos/argumentos factuais e legais, supra, referidos, expostos, mencionados e alegados.
46. A Decisão recorrida tem, assim, que ser revogada/alterada/modificada, em conformidade com o que se predisse.
Termina dizendo dever o recurso ser julgado procedente, com as consequências legais, revogando-se e alterando-se (modificando-se/substituindo-se) a sentença recorrida, nos termos, nos modos e com os fundamentos/argumentos, supra, alegados, expostos, mencionados e referidos.

Não foi apresentada resposta.

Foi proferido despacho a mandar subir o recurso de apelação, imediatamente, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.

Antes, foi proferido despacho com o seguinte teor:

a) Da nulidade por omissão de pronúncia: ausência de fixação do valor da causa

A Ré/Recorrente arguiu a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, quanto à não fixação do valor da causa.

Efetivamente, a sentença é omissa quanto ao valor da causa, que se fixa a final nas ações desta natureza, e que deveria ter sido fixado em € 13.346,00, motivo pelo qual deverá proceder a arguição de nulidade.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer (art.º 87º, nº 3 do Código de Processo do Trabalho), pronunciando-se no sentido de o recurso não obter provimento, escrevendo o seguinte, em essência:

A Mma. Juíza a quo apreciou os factos dados como provados, fez deles correta subsunção ao direito aplicável, por revelador do iter tomado para a decisão que foi proferida a final, sem divergência que haja de ser conhecida e o que afasta qualquer vicio de erro de julgamento. A apontada insuficiência do processo disciplinar, na sentença recorrida, foi causa de sua nulidade, por não ter observado a previsão do art.º 391.º n.º 3 do C.T..

Consequentemente, teve lugar a declaração de ilegalidade do despedimento do recorrido e seus efeitos legais, tal como se observou na decisão recorrida – cfr - Ac. do STJ, de 08 julho 2020.

O Autor apresentou resposta, dando concordância ao parecer.

A Ré apresentou resposta reafirmando que a apelação por si apresentada merece provimento.

O desembargador relator proferiu despacho para que o processo foi à 1ª instância para que fosse fixado o valor da ação.

Em 1ª instância foi proferido despacho a fixar o valor da ação em € 13.346,00.

Regressado o processo a esta Relação, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.


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Questão prévia:

A Recorrente alegou verificar-se a nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, uma vez que na sentença não foi fixado o valor da ação como se impunha.

Sucede que, entretanto, foi fixado o valor da ação em € 13.346,00 [se no despacho de 03/05/2024 foi dito que deveria ser fixado, no despacho de 18/06/2024 foi fixado].

Assim, a questão está ultrapassada, não se verificando nulidade.


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FUNDAMENTAÇÃO

Conforme vem sendo entendimento uniforme, e como se extrai do nº 3 do art.º 635º do Código de Processo Civil (cfr. também os art.ºs 637º, nº 2, 1ª parte, 639º, nºs 1 a 3, e 635º, nº 4 do Código de Processo Civil – todos aplicáveis por força do art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho), o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada[3], sem prejuízo, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso.

Assim, aquilo que importa apreciar e decidir neste caso é saber se o procedimento disciplinar é válido.


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Porque tem interesse para a decisão do recurso, desde já se consignam os factos dados como provados e como não provados na sentença de 1ª instância, objeto de recurso.

Quanto a factos PROVADOS, foram considerados os seguintes, que se reproduzem:

1. Autor e Ré celebraram um acordo, que intitularam de «contrato de trabalho a termo certo», nos termos do qual o autor passaria a, sob a autoridade e direção e fiscalização da Ré, exercer as funções inerentes à categoria profissional qualificado – eletromecânico, em 29 de maio de 2017.

2. Em dezembro de 2022, o Autor desempenhava as funções nas instalações fabris da Ré, sitas em ..., e auferia € 1.045,00 de salário base.

3. Nos dias 9, 27, 28 e 29 de dezembro de 2022 o Autor faltou a todo o período normal de trabalho diário de 8 horas, sendo nos dias 27 e 28 de dezembro de 2022 para compensação de horas de formação profissional contínua não ministrada.

4. Apenas uma das faltas foi considerada como injustificada e descontada na retribuição do mês de dezembro de 2022.

5. No dia 06/02/2023 entre as 8:00 horas e as 12:30 horas e entre as 13:30 horas e as 18:00 horas, nas instalações da arguente na R. da ..., ..., ..., ..., o arguido recusou-se a trabalhar mantendo-se no seu local de trabalho inerte, de pé, parado frente à sua bancada de trabalho, sem exercer qualquer atividade e ou função.

6. O Autor foi chamado à atenção, e alertado nesse mesmo dia pela Ré de que o seu comportamento era inaceitável e intolerável, e de que se encontrava a causar graves incómodos no interior das instalações, e não alterou o seu comportamento.

7. No dia 06/02/2023, em hora não concretamente apurada, [o Autor] usou o telemóvel dentro das instalações para fotografar máquinas, projetos, documentos, instrumentos de trabalho, instalações e colegas de trabalho.

8. No dia 07/02/2023, em hora não concretamente apurada, o Autor efetuou uma chamada para a linha de emergência 112, denunciando a existência de um alegado acidente de trabalho grave no interior das instalações da entidade patronal, o que era falso.

9. As autoridades deslocaram-se ao local.

10. No dia 07/02/2023 em hora não concretamente apurada, foi ordenado ao Autor que regressasse ao seu local de trabalho e este não obedeceu, tendo abandonado as instalações da entidade patronal sem dar justificação.

11. No dia 14/02/2023 pelas 22:30 horas o Autor enviou um email à arguente juntando para um Certificado de Incapacidade Temporária (CIT/baixa) para o trabalho, passado pelo Serviço Nacional de Saúde, dele constando com efeitos e início do período de doença a 04/02/2023.

12. O Autor, para executar os seus trabalhos, por vezes tinha de o fazer de cócoras, joelhos ou na posição de deitado, no chão.

13. As posições que o Autor assumia para realizar os seus trabalhos por vezes eram incómodas e dolorosas e causavam-lhe mal-estar físico, dores nas costas.

14. O Autor foi considerado por médico especialista e pelo médico do trabalho da Ré como apto condicionalmente para o trabalho, tendo sido por estes recomendado «que não devia fazer trabalhos que exijam grandes flexões e posturas inadequadas e prolongadas».

15. Nas «regras internas e comuns» que a Ré entregou ao Autor aquando da sua admissão ao serviço, consta que

«Uso Telemóvel

O uso de telemóvel pessoal, para fins não profissionais, durante o período normal de trabalho nas instalações da A... ou do Cliente, deve ser oportuno e responsável. Caso haja necessidade de tratar de um assunto pessoal que não possa ser adiado, aconselhamos a fazê-lo num espaço reservado.

A utilização abusiva do telemóvel poderá dar lugar a repreensão verbal, e no limite, repreensão

16. O uso de telemóvel pessoal nas instalações da Ré, dentro do período de trabalho não era proibido.

17. O Autor já tinha tido um procedimento disciplinar que teve a sua conclusão a 12 de maio de 2022, onde lhe foi aplicada uma sanção disciplinar de repreensão registada, nos termos do artigo 328.º n.º 1 a) do Código do Trabalho.

18. Nesse procedimento disciplinar, foi provado que:

a. o Autor marcou o chão com fita cola dividindo o seu espaço de trabalho com o do colega e que cortou com uma rebarbadora parte do cavalete e, pese embora repreendido nesse mesmo dia pela entidade patronal, não mostrou arrependimento;

b. o Autor pontapeou caixas de arrumação e não as arrumou;

c. o Autor colocou lixo na mala de ferramentas do colega.

Do procedimento disciplinar e da decisão de despedimento com justa causa

19. No dia 15 de fevereiro de 2023, foi decidido pela Ré, proceder à abertura do processo disciplinar com intenção de aplicação de sanção disciplinar de despedimento sem indeminização ou compensação ao Autor.

20. Na mesma data foi nomeada como instrutora do Processo Disciplinar Célia Tavares, advogada, com domicílio profissional na Avenida ..., na cidade ....

21. No dia 16 de fevereiro, procedeu-se à junção aos autos do relatório preliminar e assim como documento intitulado “Termo De Abertura Do Processo Disciplinar”.

22. No dia 20 de fevereiro 2023 procedeu-se à junção aos autos da seguinte documentação:

a. auto de ocorrência;

b. procuração:

c. recibo de remuneração;

d. Contrato de trabalho;

e. Cópia de decisão final do procedimento disciplinar anteriormente instaurado ao Autor;

f. Conjunto de correio-electrónicos enviados pelo Autor e respostas enviadas ao mesmo;

g. Registo de presença;

h. Certificado de incapacidade temporária para o trabalho;

i. Autos de declarações.

23. Foi elaboradora a respetiva nota de culpa e no dia 28 de fevereiro de 2023, foi enviada carta ao Autor a notificá-lo da instauração do procedimento disciplinar com vista à aplicação de sanção disciplinar de despedimento sem indeminização ou compensação, instruída com a respetiva nota de culpa, com o seguinte teor[4]:

24. O Autor recebeu a nota e culpa em 03 de março de 2023.

25. No dia 15 de março de 2023, foi rececionada pela Ré a resposta à nota de culpa apresentada pelo Autor.

26. O Autor apresentou documentos, concretamente a «comunicação de ausência – faltas e férias», na qual informou que ia faltar nos dias 02/12/2022 e 29/12/2022, por motivo de gozo de férias a cuja marcação afirmou ter procedido, e comprovativos das recomendações médicas com aptidão condicional e não requereu diligências de prova.

27. Em 13 de março de 2023, o autor procedeu à consulta do processo disciplinar.

28. No dia 04 de abril de 2023 foi elaborado o relatório final pela instrutora do processo disciplinar.

29. Em 04 de abril de 2023, foi proferida decisão no processo disciplinar, tendo sido aplicada a medida de despedimento com justa causa, a qual foi enviada ao Autor, em conjunto com o relatório final, por correio registado no mesmo dia, e foi recebida no dia 10 de abril de 2023.

30. A decisão proferida contém o seguinte teor:

«[...] Exmo. Senhor:

AA

Rua ..., ..., ...

... ...

..., 04 de abril de 2023

Assunto: Processo disciplinar - Decisão Final

Somos pela presente, a comunicar a VªExª que, na sequência do processo disciplinar que lhe foi mandado instaurar em 15 de fevereiro de 2023, decidimos proceder sanção disciplinar de despedimento, com efeitos imediatos, prevista no nº 1 alínea f) do artigo 328º do Código do Trabalho.

Em cumprimento do disposto nº 4 do artigo 357º do CT remetemos em anexo cópia da decisão fundamentada no âmbito do referido procedimento disciplinar. (...)”

(...)DECISÃO FINAL

A empresa, A... UNIPESSOAL, Lda. na sequência do processo disciplinar que mandou instaurar ao trabalhador, AA, visto e analisado, verifica-se que dele resultaram provados todos os factos constantes da acusação que constam da nota de culpa entregue ao arguido e que aqui se da como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.

O arguido apresentou defesa, juntou documentos, não arrolou testemunhas, nem requereu qualquer outro meio de prova.

Com o comportamento ora dado como provado, o arguido violou os deveres do trabalhador previstos nas alíneas a), b), c) e e) do nº 1 do artigo 128º da Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou o Código de Trabalho.

Pôs em causa o dever de lealdade e confiança para com a sua entidade patronal, comprometendo de forma irremediável a relação de confiança que deve nortear as relações entre trabalhador e entidade patronal, respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade, comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade, realizar o trabalho com zelo e diligência, cumprir as ordens e instruções de empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias e o dever de realizar o trabalho com zelo e diligência.

Os comportamentos culposos do arguido, atenta a sua gravidade e consequências, quebraram a relação de confiança subjacente ao contrato de trabalho, impossibilitando a subsistência do vínculo laboral constituindo, deste modo, justa causa de despedimento nos termos do Código do Trabalho.

Assim, e no âmbito do poder disciplinar de que somos titulares, ao abrigo do disposto no artigo 328º do CT decido pela aplicação da sanção de despedimento com justa causa sem indemnização ou compensação, com efeitos imediatos, sanção essa prevista na alínea f) do artigo 328 do CT. [...].».

31. No dia 11 de abril de 2023, foi encerrado o processo disciplinar.

32. Em abril de 2023, a Ré pagou ao Autor a quantia de € 2.160,51, composto por:

a. € 1.045,00, de vencimento base;

b. € 1.045,00, de subsídio de férias;

c. € 1.045,00, de férias não gozadas no ano da cessação;

d. € 286,30, de proporcionais de férias do ano da cessação;

e. € 286,30, de proporcionais de subsídio de férias do ano da cessação;

f. € 52,25, de proporcionais do subsídio de natal do ano da cessação,

deduzidos das quantias referentes a faltas por ausências justificadas (€ 113,75), injustificadas (€ 113,75), a falta por fim de contrato (€ 763,24), IRS (€ 304,00) e Segurança Social (€ 304,60).

33. A Ré não ministrou formação, nem a pagou ao autor, nos últimos 3 anos.

E foram considerados como NÃO PROVADOS os seguintes factos, que igualmente se reproduzem:

a) A Ré ministrou formação, ou pagou o número de horas correspondente, ao Autor, referentes aos últimos 3 anos.

b) No dia 17 de novembro de 2022 apresentou à Ré um documento intitulado «comunicação de ausência – faltas e férias» na qual informou que iria faltar nos dias 02/12/2022 e 29/12/2022 por motivo de gozo de férias.

c) O Autor faltou sem avisar ou contactar a empresa para comunicar algum tipo de imprevisto ou outra circunstância.

d) Posteriormente, o Autor não apresentou qualquer justificação para as faltas.

e) O Autor tinha recebido instruções para não utilização do telemóvel particular no interior das instalações da entidade patronal.

f) Mesmo sabendo ter sido o causador da denúncia e emergência falsa, e depois da chegada das autoridades à Ré, o Autor nunca informou ter sido o autor da chamada.

g) O Autor não acusou ser o autor da chamada e manteve-se não identificado, tendo sido identificado como autor da chamada apenas e só quando as autoridades policiais fizeram a consulta do ficheiro de chamadas recebida do INEM.

h) A Ré recusava instalar as máquinas na bancada ou num cavalete, disponibilizando apenas o chão.

i) O desconforto e as dores causavam ao Autor dificuldade em dormir.


*

Da invalidade do procedimento disciplinar:

Como se sabe, não pode ser aplicada sanção disciplinar sem ser observado o procedimento previsto nos artos 329º e 352º ss do Código do Trabalho (procedimento disciplinar), sendo que se o empregador não cumpriu rigorosamente todas as formalidades a que se encontrava obrigado, o despedimento não é necessariamente ilícito; sê-lo-á se o procedimento for inválido (art.º 382º, nº 1 do Código do Trabalho), o que acontece nas situações previstas no art.º 382º, nº 2 do Código do Trabalho).

O tribunal a quo, apreciando nos termos do nº 4 do art.º 387º do Código do Trabalho, considerou existir justa causa para despedimento do Autor, mas (antes) considerou ser ilícito o despedimento por se verificar a nulidade do procedimento disciplinar «por incumprimento das exigências legais de fundamentação da decisão – cf. os termos conjugados dos artigos 382.º, n.º 2, al. a), 351.º, n.º 3 e 357.º, n.º 4 do Código do Trabalho –, e constrição dos direitos de defesa do Autor ao desconsiderar o seu contraditório».

O tribunal a quo concluiu dessa forma escrevendo, antes, o seguinte:

Apreciando a decisão proferida pela Ré, verifica-se que a mesma não contém factos, embora remeta para a nota de culpa, refere-se às alíneas do artigo 128.º, n.º 1 do Código do Trabalho que considera terem sido violadas, e refere-se de forma vaga à violação dos deveres e à gravidade da conduta do Autor.

Não o faz de forma concreta, nem por referência a cada uma das condutas – ou sequer a todas, globalmente consideradas, mas por referência ao caso concreto.

A decisão final do procedimento disciplinar não contém uma ponderação nos termos do artigo 351º, n.º 3 do Código do Trabalho, nada diz acerca das consequências da conduta do Autor, nem do impacto das mesmas no contexto em que se insere. E também nada diz acerca da prova produzida pelo Autor, nem dos argumentos esgrimidos por este, em sede de processo disciplinar.

Por conseguinte, temos forçosamente de concordar com o Autor quando afirma que, de um ponto de vista substancial, inexistiu procedimento disciplinar. Com efeito, embora os passos (nota de culpa, termos de abertura e encerramento, notificações, audição do arguido, relatório e decisão) estejam cumpridos, na verdade, a audição do Autor revelou-se inócua por não apreciada criticamente.

Não se quer com isto dizer que, do ponto de vista material, assistisse razão ao Autor, que os seus argumentos devessem ter sido acolhidos, ou que o mérito estivesse do seu lado. O que se pretende deixar claro é que a Ré fez efetivamente tábua rasa do contraditório exercido pelo arguido, não tendo esclarecido o motivo pelo qual não considerou as faltas como justificadas, perante o documento e enquadramento que o Autor fez; por que razão não descontou as faltas que o Autor alegou ter dado para frequentar formação; nem se pronunciou acerca da baixa médica do Autor – e o respetivo impacto na desobediência nos dias 06 e 07 de fevereiro – ou sobre as condições de trabalho. Não existe um único dizer – sequer no relatório final e muito menos na decisão de despedimento – sobre o porquê de os argumentos do Autor não procederem ou não terem afastado (ou mitigado) a gravidade ou ilicitude da conduta do Autor, ou sobre qualquer dos documentos que juntou.

E não se pode concluir que a remissão para a nota de culpa, feita no primeiro parágrafo da decisão, é suficiente para que se compreenda o motivo da quebra do vínculo e da inexigibilidade da sua manutenção, atendendo a que ali residem factos mais concretizados sobre a questão. É que, se assim pudesse ser, então, de nada serviria toda a marcha do processo disciplinar, e a audição do arguido, significando isso que a lei previa atos inúteis, proibidos por si própria (artigo 130.º do Código de Processo Civil).

Por outro lado, argui o Autor que o procedimento disciplinar de que já havia sido alvo viola o princípio (ne) bis in idem, na medida em que o Autor terá praticado uma conduta disciplinar, e sido punido por duas vezes, uma oralmente, outra por escrito. Alega-o para lograr a desconsideração desse antecedente nestes autos.

De facto, o artigo 328.º, n.º 1 do Código do Trabalho determina, para o que ora interessa que

«1- No exercício do poder disciplinar, o empregador pode aplicar as seguintes sanções:

a) Repreensão;

b) Repreensão registada; […]».

Trata-se, pois, de duas medidas sancionatórias distintas e que, por isso mesmo, não podem ser cumuladas em punição da mesma conduta.

Sucede, contudo, que o Tribunal desconhece se a repreensão registada o foi pela perpetuação da conduta pelo Autor e não pela conduta inicial, não lhe competindo apreciar da regularidade do procedimento disciplinar anterior.

Há que começar por dizer que a decisão recorrida foi desfavorável à Recorrente na medida em que considerou o despedimento ilícito, por ser o procedimento disciplinar inválido, nos termos da alínea d) do nº 2 do art.º 382º do Código do Trabalho, e não nos termos da alínea a) como na mesma está referido, certamente por lapso.

Com efeito, aquilo que o tribunal a quo considerou foi que a decisão final proferida no procedimento disciplinar não obedece ao estabelecido no art.º 357º, nº 4/art.º 358º, nº 2 do Código do Trabalho[5].

Se bem percebemos, o tribunal a quo não extrai consequências do facto de a decisão final proferida no procedimento disciplinar [sendo a ela que nos referimos quando, doravante, nos referiremos a decisão disciplinar, estando em causa a decisão reproduzida no ponto 30. dos factos provados a partir de «decisão final», já que antes está reproduzida a carta que a acompanhou], de a decisão final remeter, repete-se, para a nota de culpa, considerando sim que dessa remissão não resulta satisfeito estabelecido no art.º 357º, nº 4/358º, nº 2 do Código do Trabalho.

Ainda assim, refere-se a esse propósito, que se tem colocado a questão de saber se a decisão disciplinar deverá, ela própria, conter a respetiva fundamentação de facto e de direito ou se, antes, poderá remeter para o vertido na nota de culpa ou para o chamado “relatório final”[6].

No caso em apreço não existe qualquer remissão para o “relatório final”(elaborado pela instrutora do procedimento), apenas havendo remissão para a nota de culpa, mais concretamente para os factos que dela constam [a redação é, recordemos, resultaram provados todos os factos constantes da acusação que constam da nota de culpa entregue ao arguido e que aqui se da como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais], pelo que só está em causa a possibilidade de remissão para a mesma em vez de consignar os factos imputados ao trabalhador.

A jurisprudência tem vindo a admitir essa remissão[7], posição à qual se adere[8], aceitando-se, pois, que no caso em apreço a remissão fosse feita, pois, ainda que, estando a nota de culpa articulada, e não correspondendo todos os artigos a factos, devesse a remissão referir os artigos que estão em causa, o trabalhador não deixou de conhecer os factos que lhe foram imputados.

A nossa análise vai, então, incidir sobre se a decisão disciplinar não foi fundamentada, se não foi elaborada nos termos do art.º 357º, nº 4/art.º 358º, nº 2 do Código do Trabalho, mais propriamente saber se a decisão disciplinar não ponderou: - as circunstâncias do caso (nomeadamente as referidas no nº 3 do art.º 351º, para apreciação da justa causa); - a adequação do despedimento à culpabilidade do trabalhador.

A Recorrente discorda do decidido em 1ª instância, mas cumpre dizer que haverá lapso na referência ao DL nº 64-A/89, de 27 de fevereiro, pois o mesmo encontra-se há muito revogado [pela Lei nº 99/2003, de 27 de agosto, que aprovou o Código do Trabalho], tendo o procedimento disciplinar sido instaurado muito depois da sua revogação, pelo que o regime a considerar é o resultante do Código do Trabalho (redação atual)[9].

Como se disse, o poder disciplinar do empregador para ser exercido pressupõe um determinado procedimento, acrescendo que as sanções não podem ser imotivadas, impondo-se o esclarecimento na decisão das razões que justificam a sua aplicação.

A propósito da fundamentação da decisão de despedimento, tenhamos presente o escrito no acórdão desta Secção Social do TRP de 15/12/2010, já acima referido, a saber:

A decisão de despedimento deve ser fundamentada e constar de documento escrito, conforme resulta do nº 5 do artigo 357º.

Como refere Maria do Rosário Palma Ramalho[10], “nesta fundamentação devem ser ponderadas as circunstâncias pertinentes para o caso, deve ser avaliado o grau de culpa do trabalhador para concluir sobre a adequação da sanção do despedimento ao caso (ou seja, deve ser aplicado o princípio geral da proporcionalidade entre a infração e a sanção disciplinar, enunciado no artigo 330º, nº 1) e devem ser tidos em conta os pareceres a que houver lugar”[11].

E, continua, “O aspeto mais importante da fundamentação da decisão de despedimento é o da circunscrição deste fundamento aos factos alegados na nota de culpa e na resposta do trabalhador”.

A indicação dos fundamentos constitui um da decisão do processo, a qual “tem que ser, como resultaria, aliás, dos princípios gerais, apoiada no enunciado dos factos e circunstâncias que consubstanciam a infração e fornecem a medida da sua gravidade objetiva e subjetiva (quer dizer, neste último aspeto, do grau de culpabilidade do infrator). [12]

Diga-se que na essência estamos de acordo com a decisão recorrida.

É verdade que a decisão que decretou o despedimento da autora não é um modelo a seguir, não primando pela perfeição. Contudo, devemos ter em atenção que, por norma, a entidade patronal não possui conhecimentos suficientes para elaborar uma decisão modelar. Desde que a decisão disciplinar se encontre minimamente fundamentada, mesmo que deficiente, devemos considerá-la válida. É, por isso, que concordamos com a decisão recorrida quando afirma que “só a falta absoluta de motivação, e não a fundamentação deficiente ou incompleta, é que pode afetar a respetiva decisão”. Aliás nem faria sentido que assim não fosse. Na verdade, se a nível de decisão judicial apenas se considera nula por falta de fundamentação quando esta falta for absoluta, não faz sentido, que numa decisão de um processo disciplinar, proferida por uma entidade sem conhecimentos jurídicos, se exigisse a fundamentação absoluta.

Devemos ter em atenção que a obrigatoriedade de proferir uma decisão fundamentada tem em vista delimitar de forma concreta e específica os factos comunicados na nota de culpa portadores da mensagem inequívoca de proceder ao despedimento.

O importante, é que o trabalhador fique ciente e sem quaisquer dúvidas, acerca dos factos que lhe são imputados e que fundamentam o despedimento[13].

Importa também ter presente o escrito no acórdão desta Secção Social do TRP de 10/09/2012[14], que é o seguinte:

Dispõe o art.º 382º, nº 2, al. d), que o procedimento disciplinar é inválido se “a comunicação ao trabalhador da decisão do despedimento e dos seus fundamentos não for feita por escrito e não estiver elaborada nos termos do nº4 do art.º 357º (…)”.

Por sua vez, dispõe esse art.º 357º, nº 4, que “Na decisão são ponderadas as circunstâncias do caso, nomeadamente as referidas no nº 3 do artigo 351º, a adequação do despedimento à culpabilidade do trabalhador e os pareceres dos representantes dos trabalhadores, não podendo (…)”.

Do nº 4 do art.º 357º decorre que pretende o legislador que a decisão do despedimento seja, pelo empregador, ponderada e que ao trabalhador seja dada a conhecer a motivação dessa decisão.

Quanto à ponderação deve ela assentar no circunstancialismo fáctico que o empregador considera como assente, sendo este o elemento fundamental de tal decisão na medida em que é ele que, na perspetiva do empregador, justifica o despedimento e, bem assim, porque é ele que irá balizar a decisão do trabalhador de impugnar, ou não, judicialmente essa decisão. E, na medida em que a decisão não permita ao trabalhador saber por razão é despedido, a decisão de despedimento padeceria do vício apontado na norma. No mais, não se nos afigura que o dever se fundamentação seja extensível às questões, designadamente de direito, que o trabalhador entenda ser de invocar na resposta à nota de culpa.

A decisão do despedimento não reveste as características de uma sentença, não se exigindo nível de fundamentação idêntico ao de tal peça processual, designadamente a obrigação de fundamentação das questões de direito que o trabalhador possa suscitar na resposta à nota de culpa. Por outro lado, o procedimento disciplinar é um “processo de parte”, em que o empregador não se posiciona como uma entidade que tenha a obrigação de equidistância relativamente ao objeto do procedimento. Acresce que, e tendo em conta que sempre o trabalhador tem a faculdade de impugnar judicialmente o despedimento, a consequência de o empregador não ponderar devida ou adequadamente seja a prova que haja sido produzida no procedimento disciplinar, seja a argumentação de direito invocada pelo trabalhador em sede de resposta à nota de culpa, é o risco de poder vir a decair na ação judicial de impugnação do despedimento.
Por fim, tal entendimento não esvazia o procedimento disciplinar de conteúdo ou utilidade, sendo certo que este visa assegurar ao trabalhador o direito de defesa, através da possibilidade de consultar o processo disciplinar, de responder à nota de culpa e de arrolar prova. Se, facultado o exercício de tal direito, o empregador, depois, não atende ao que foi invocado pelo trabalhador ou à prova que por este foi oferecida e produzida, é um risco que corre por conta daquele empregador, de poder ver, em sede judicial, naufragar a validade do despedimento.

O tribunal a quo deu ênfase ao facto de a decisão disciplinar ter sido proferida sem fazer qualquer consideração sobre a resposta apresentada pelo trabalhador e documentos juntos com a mesma.

Na verdade, o trabalhador apresentou resposta à nota de culpa, com 53 artigos, e juntando 6 documentos, alegando factos que no seu entender modificam o quadro factual imputado ou contextualizam os factos que lhe foram imputados pela empregadora, factos que, no seu entender, afastavam a existência de infração disciplinar, e a decisão disciplinar nada refere sobre a mesma.

Daqui não nos parece que se possa falar em equiparação a situação de inexistência do procedimento disciplinar, como afirma a sentença recorrida (de um ponto de vista substancial), porque a situação não assume gravidade tal que se equipare à não existência.

Como é consabido Código do Trabalho não impõe que no procedimento disciplinar tenha que haver produção de prova por iniciativa do empregador (cfr. art.º 356º), não sendo o procedimento disciplinar um meio para que o empregador prove factos que convictamente imputa ao trabalhador, tendo sim o empregador o ónus de demonstrar em juízo os factos que na sua perspetiva integram a infração disciplinar, quando impugnada a aplicação da sanção, ónus que tem que ser cumprido com a produção da prova em juízo.

Todavia, isto não significa que, apresentando o trabalhador uma versão diferente dos factos, mormente alegando factos tendentes a modificar o quadro factual apresentado de modo a afastar a aplicação de sanção disciplinar pelo empregador, e juntando documentos, não significa, repete-se, que ao empregador baste referir em relatório da decisão que [o] arguido apresentou defesa, juntou documentos, não arrolou testemunhas, nem requereu qualquer outro meio de prova, como sucedeu no caso em apreço.

Na verdade, quando o legislador manda ao empregador ponderar as circunstâncias do caso e a adequação do despedimento à culpabilidade do trabalhador, está forçosamente a incluir as circunstâncias alegadas pelo trabalhador, sob pena de se transformar a resposta à nota de culpa prevista no art.º 355º do Código do Trabalho em mero pró-forma, sem qualquer utilidade, que nem precisaria de ser lido.

Note-se que sendo os documentos um meio de prova, não pode o empregador ignorá-los [mesmo que para os desvalorizar], tanto que o art.º 356º, nº 1 do Código do Trabalho refere que quando o empregador não realize diligências de prova requeridas na resposta à nota de culpa por as considerar patentemente dilatórias ou impertinentes deve alegá-lo fundamentadamente por escrito, ou seja, a desconsideração de documentos juntos pelo trabalhador com a resposta à nota de culpa deve ser alegado fundamentadamente por escrito.

Ora, imputando a empregadora ao trabalhador ter faltado injustificadamente ao trabalho [pontos 3º a 5º da nota de culpa] e alegando o trabalhador que apresentou “comunicação de ausência – faltas e férias” e “comunicação de ausência” [pontos 6º a 21º da resposta à nota de culpa], juntando-as (docs. 2 e 3), ao não dizer a empregadora nada sobre tais factos [considerando-os ou não, e neste caso porque não], leva-nos a dizer estar violado o dever de fundamentação, ficando o trabalhador sem saber porque são desconsiderados.

E o mesmo se diga em relação à imputação de o trabalhador se ter recusado a trabalhar [pontos 6º e 7º da nota de culpa], em relação ao que o trabalhador alegou ter sido considerado apto condicionalmente para o trabalho por médico ortopedista e medicina do trabalho, o que a empregadora sabia [pontos 25º a 37º da resposta à nota de culpa], juntando documentos médicos (docs. 5 e 5-A).

Uma referência ao acórdão desta Secção Social do TRP de 22/03/2021, citado pela Recorrente[15], porque subscrito pelo agora relator como 2º adjunto[16], para dizer que tal aresto versa sobretudo sobre as exigências na elaboração da nota de culpa (nulidade da mesma), como se alcança da enunciação das questões a decidir, não sendo questão aqui em causa.

Sintetizando o que se expôs, diz-se que, se é de aceitar que a decisão final do procedimento disciplinar faça remissão, aquando da enunciação dos factos provados, para os factos imputados ao trabalhador discriminados na nota de culpa, e se as exigências de fundamentação dessa decisão não podem ser iguais às de uma decisão judicial, não cumpre o dever de fundamentação previsto no nº 5 do art.º 357º do Código do Trabalho e nº 4 do art.º 357º/nº 2 do art.º 358º do Código do Trabalho a mera menção a que o trabalhador apresentou resposta à nota de culpa e juntou documentos, impondo-se que seja fundamentado porque não relevam os documentos e porque não relevam factos alegados que, a provarem-se, poderiam excluir a existência de infração ou pelo menos atenuar a responsabilidade do trabalhador, violando o princípio do contraditório essa falta de fundamentação.

Em suma, improcede toda a argumentação da Recorrente, não havendo reparo a fazer à decisão de considerar inválido o procedimento disciplinar, mas nos termos da alínea d) do nº 2 do art.º 382º do Código do Trabalho, e como consequência ilícito o despedimento nos termos do nº 1 do mesmo art.º 382º do Código do Trabalho.

Improcede, então, sem necessidade de outras considerações o recurso.


*

Quanto a custas, improcedendo o recurso, as custas do mesmo ficam a cargo da Recorrente (art.º 527º do Código de Processo Civil).


***


DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente, com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao RCP (cfr. art.º 7º, nº 2 do RCP).

Valor do recurso: o fixado à ação (art.º 12º, nº 2 do RCP).

Notifique e registe.


(texto processado e revisto pelo relator, assinado eletronicamente)

Porto, 09 de setembro de 2024

António Luís Carvalhão [Relator]

Eugénia Pedro [1ª Adjunta]

Germana Ferreira Lopes [2ª Adjunta]


________________________________
[1] Designamos o trabalhador por Autor, na medida em que impulsiona o processo apresentando formulário com vista a ver declarada a ilicitude ou irregularidade do seu despedimento, e designamos a sociedade empregadora por Ré, na medida em que, ainda que apresentando o primeiro articulado, contesta esse impulso tendente à declaração da ilicitude ou irregularidade do despedimento que promoveu.
[2] As transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes e realces/sublinhados que no geral não se mantêm (porque interessa o texto em si), consignando-se que quanto à ortografia utilizada se adota o Novo Acordo Ortográfico.
[3] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 156 e págs. 545/546 (estas no apêndice I: “recursos no processo do trabalho”).
[4] Não foi reproduzido o teor, seja da nota de culpa seja da carta enviada.
[5] Não existem elementos para dizer se a Ré se trata de microempresa [cfr. art.º 100º do Código do Trabalho], mas é indiferente porque no caso não está em causa a falta de ponderação de parecer de representantes de trabalhadores.,
[6] Vd. Pedro Ferreira de Sousa, “O Procedimento Disciplinar Laboral – uma construção jurisprudencial”, 4ª edição, Almedina, 2021, págs. 222-225.
[7] Vd. a jurisprudência citada por Pedro Ferreira de Sousa, “O Procedimento Disciplinar Laboral – uma construção jurisprudencial”, 4ª edição, Almedina, 2021, págs. 224/225 (nota de rodapé), podendo ainda ver-se o acórdão desta Secção Social do TRP de 15/12/2010 e o acórdão do TRC de 15/12/2021, consultáveis em www.dgsi.pt, processos nº 456/09.6TTGDM.P1 e 5016/20.8T8CBR.C1 respetivamente.
[8] No mesmo sentido, vd. Paula Quintas e Hélder Quintas, “Código do Trabalho Anotado e Comentado”, Almedina, 7ª edição, 2023, pág. 997.
[9] O que parece esclarecer a Recorrente na resposta ao parecer do MºPº.
[10] Nota de rodapé (4) com o seguinte teor: In Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3ª edição, pág. 934.
[11] De referir que na 9ª edição da obra citada [Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais”, revista e atualizada à Lei nº 13/2023, de 3 de abril], Maria do Rosário Palma Ramalho remata dizendo “em suma, trata-se de uma fundamentação muito detalhada” [pág. 1007].
[12] Nota de rodapé (5) com o seguinte teor: António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 15ª edição, pág. 625.
[13] Nota de rodapé (6) com o seguinte teor: Acórdão da Relação de Évora de 30/03/2004, processo 205/04-2, www.dgsi.pt.
[14] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 448/11.5TTVFR-A.P1.
[15] Havendo manifesto lapso quando refere ser de 2 de março (sendo de 22 de março).
[16] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 46/19.5T8VLG.P1.