PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
RECONVENÇÃO
VALOR DA CAUSA
DEFESA POR EXCEÇÃO
INSPECÇÃO JUDICIAL
Sumário

I - Apesar de a reconvenção não poder deixar de ter um valor próprio (art. 583º, nº 2 do CPC), o seu valor não se soma, necessariamente, ao valor do pedido do autor em vista de se determinar o valor da causa – o que releva para a aplicação do nº 2 do art. 299º do CPC é a distinção da utilidade económica do pedido reconvencional em relação ao pedido do autor.
II - O critério a aplicar para apreciar se os pedidos (em via de acção e de reconvenção) são distintos, é da nova utilidade ou valor económico
III - Não ocorre nenhuma diferença de pedidos quando o novo pedido implica uma redução relativamente ao pedido inicial – como acontece quando na acção é pedido o pagamento de preço de contrato e a pretensão formulada a título reconvencional se consubstancia na condenação da reconvinda a rectificar os defeitos que a obra apresente ou a reduzir o respectivo preço.
IV - Estando-se perante transacção comercial entre empresas (art. 2º nº 1 e 3º, a) do DL 62/2013, de 10/05), a dedução de oposição ao procedimento de injunção determina a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se os termos da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, tratando-se de valores não superiores a metade da alçada da Relação (art. 10º, nº nº 4 do DL 62/2013, de 10/05).
V - O regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, aprovado pelo art. 1º do DL 269/98, de 1/09, admitindo a dedução de apenas dois articulados (art. 3º e 4º do referido regime processual), afasta a possibilidade de dedução de reconvenção (a tramitação especial a observar, prevendo tão só dois articulados, é incompatível com a reconvenção, pois esta prevê que a tramitação da causa permita a réplica, para que o reconvindo possa deduzir a defesa que lhe aprouver).
VI - A aplicação da ressalva prevista no nº 3 do art. 266º do CPC exige a verificação de interesses relevantes ou demanda que a apreciação da pretensão suscitada pelo contra-ataque do demandado seja indispensável à justa composição do litígio (art. 37º, nº 2 do CPC).
VII - Podendo a demandada ver reconhecidos, independentemente da reconvenção, o direito à redução do preço e, bem assim, a excepção do não cumprimento (trata-se de matéria que funciona por via de excepção – art. 342º, nº 2 do CC e arts. 571º, nº 2, 572º, c) e 576º, nº 3 do CPC), não se vislumbra interesse relevante na dedução da reconvenção (aqui quanto ao pedido de correcão dos defeitos) que não seja obtido em acção declarativa autónoma, nem a apreciação da pretensão suscitada pelo contra-ataque da demandada se mostra indispensável à justa composição do litígio – a demandada não verá perigar a tutela de qualquer direito, pois que a lei não põe qualquer obstáculo à dedução da defesa que apresentou, além de que nenhum risco o recurso a acção autónoma aporta à demandada na efectivação do seu direito à correcção dos defeitos.
VIII - A realização de inspecção judicial através de deprecada por outro juiz desvirtuaria a sua finalidade e natureza – a percepção directa, pelo juiz da causa, da realidade a julgar – e não seria solução compatível com o princípio da plenitude da assistência do juiz (art. 605º do CPC).

Texto Integral

Apelação nº 80995/23.2YIPRT-A.P1

Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Rui Moreira
                Fernando Vilares Ferreira


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto


Apelante: A..., Unipessoal, Ld.ª.
Apelada: B... Unipessoal, Ld.ª.

Juízo local cível de Amarante – T. J. da Comarca do Porto Este.


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Notificada da injunção que B... Unipessoal, Ld.ª, contra si intentou, pretendendo haver a quantia de 10.024,23€ a título de capital, acrescida de juros, taxa de justiça e outras quantias, somando o total de 10.533,47€, com fundamento em fornecimento de bens e serviços (empreitada), apresentou-se A..., Unipessoal, Ld.ª, a deduzir oposição invocando defeitos da obra e concluindo que enquanto os mesmos não forem corrigidos pela demandante não lhe poderá ser exigido o pagamento do preço, por pode opor a excepção de não cumprimento, pedindo, em reconvenção que, julgando-se improcedente a acção, seja a requerente condenada a rectificar os defeitos que a obra apresente ou na redução do respectivo preço, em montante não inferior a 5.200,00€ ou no valor que se vier a apurar em execução de sentença.

No requerimento de oposição, além de requerer a condenação da demandante como litigante de má fé em multa e indemnização, ofereceu a demanda as provas tidas por pertinentes, além do mais requerendo a prova por inspecção judicial ao prédio (sito no concelho de Cascais) onde foi realizada a obra cujos defeitos invoca.

Remetidos os autos para distribuição, foi proferido despacho que:

- indeferiu o pedido reconvencional, ponderando que a pretensão reconvencional é incompatível com a forma processual das acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (forma processual a observar, considerando o disposto no art. 10º, nº 4, do DL n.º 62/2013 de 10 de Maio e o valor do pedido formulado na injunção, inferior a metade da alçada da Relação),

- indeferiu a inspeção judicial, ‘pela meridiana razão’ de falecer ao tribunal ‘jurisdição/competência, no concelho de Cascais, onde a obra está implantada’.

Inconformada com tal decisão, apela a requerida, pretendendo a sua revogação e substituição por outra que admita a reconvenção deduzida e a realização da prova por inspecção judicial, terminando as suas alegações pela formulação das seguintes (nada concisas) conclusões:

1. O presente recurso advém do douto despacho proferido nos autos, no dia 28/02/2024 (com a referência 94577009), com o qual a Recorrente não pode concordar,

2. Já que a Recorrente entende que não poderia o douto tribunal ter julgado legalmente inadmissível e por isso indeferido a Reconvenção deduzida.

3. Ao ter optado por não usar os poderes de gestão e adequação formal que lhe assistem por força dos artigos 6º e 547.º do CPC, para admitir a reconvenção apresentada e, com isso, evitar a interposição de uma nova acção para apreciação da sua pretensão, com duplicação de custos, com nova apreciação dos fundamentos da acção, quando a mesma pode ser atendida na reconvenção, está, por isso, o sobredito despacho também ferido de nulidade dos termos do artigo 195.º do CPC, já que tal omissão terá, forçosamente, influência no exame/decisão da presente causa.

4. Entende também a Recorrente que decidiu mal o tribunal a quo ao indeferir a realização do meio de prova por inspeção judicial requerida pela Recorrente, o que se consubstancia numa real omissão do dever de apurar a verdade material pelo tribunal a quo, a qual terá forçosamente influência no exame/decisão da presente causa,

5. Nulidades que aqui se deixam expressamente arguidas para os devidos e legais efeitos.

6. De facto, o despacho de que se recorre, para além de estar em contradição com inúmeros acórdãos anteriores sobre a mesma matéria, não fez uma boa aplicação do direito, pelo que deverá ser revogado pelos motivos que aduziremos infra.

7. De facto, o Tribunal a quo em momento algum poderia ter recusado o pedido reconvencional, em resultado de uma dupla ordem de razões: porque os presentes autos deviam ter sido distribuídos sob a forma de processo comum e, ainda que se entendesse aplicável a forma especial, tal não legitimaria, ipso facto, a inadmissibilidade do pedido reconvencional, como infra se demonstrará.

8. Em primeiro lugar, cumpre denotar que os presentes autos nunca deviam ter sido distribuídos sob a forma de processo especial (AECOP), na medida em que o presente requerimento de injunção foi apresentado no âmbito do decreto-lei 62/2013 de 10 de Maio e valor da causa é superior a metade da alçada da Relação, nos termos do conjugadamente disposto nos artigos 266.º, 299.º nº2 e 530.º n2 e 3 todos do CPC e artigo 10º nº2 e 4 do DL 62/2013.

9. De facto, com a dedução da reconvenção por parte da Recorrente, o valor do pedido não se pode reconduzir unicamente ao pedido primitivo constante do Requerimento Injuntivo (€10.533,47), sendo esse valor determinado pela soma do valor constante do pedido originário com o pedido reconvencional deduzido pela Recorrente (€ 5.800,00), o que perfaz o valor global de 16.333,47€ (dezasseis mil trezentos e trinta e três euros e quarenta e sete cêntimos), e portanto superior a metade da alçada da relação.

10. Pelo que, a adição de tais valores impõem, nos termos do nº 2 e 4 do artigo 10º do DL 62/2013, a distribuição do presente processo sob a forma comum e, por conseguinte, a possibilidade incontrovertida de dedução do pedido reconvencional nessa forma de processo.

11. Sendo denotar que, in casu, apesar de não ter sido indicado o seu valor, o tribunal a quo não teve dúvidas de que estamos perante a dedução de uma reconvenção, como não poderia deixar de ser – cfr. despacho recorrido onde consta: “Nesta deduziu reconvenção”.

12. Efectivamente, a maior parte da jurisprudência, com particular destaque para o Supremo Tribunal de Justiça, tem sufragado o entendimento segundo o qual a norma do artigo 299.º, n.º 2 do Código do Processo Civil é inteiramente aplicável ao circunstancialismo dos autos.

13. Cumpre denotar que, in casu, o pedido formulado pela Recorrente em sede reconvencional, apesar de emergir do facto jurídico que serve de fundamento à acção, é distinto e autónomo do pedido formulado no Requerimento Injuntivo, extravasando-o.

14. E dúvidas não podem existir de que os pedidos da recorrente/reconvinte face ao pedido da recorrida são distintos, pois que enquanto aquela pretende a condenação da Recorrente pelo pagamento de uma fatura, esta pretende que sejam retificados os defeitos existentes na obra onde foram prestados os bens e serviços que deram origem à fatura em causa nos presentes autos ou fosse reduzido ao valor alegadamente em dívida o montante respeitante aos defeitos elencados e danos provocados, os quais à data da oposição eram impossíveis de contabilizar e quantificar, mas que seriam no mínimo no valor de 5.800,00€,

15. O que significa que a final poderá estar em causa a obtenção de uma compensação pela parte da Recorrente,

16. Para além de ter sido peticionado a condenação da Recorrida como litigante de má-fé.

17. Por conseguinte, na esteira da maioria da jurisprudência e da doutrina, o valor do pedido formulado pela Recorrida devia ter sido somado ao valor do pedido reconvencional, e daí resulta, claramente, um valor superior a metade da alçada da Relação.

18. Acresce que não se descortinam razões que sustentem o afastamento das regras processuais decorrentes da alteração do valor da causa por força da dedução de reconvenção, nem aquelas podem ser encontradas na norma do n.º 2 do artigo 10.º do DL 62/2013 de 10/05.

19. Nesse conspecto, os autos deviam ter sido distribuídos sob a forma de processo comum, admitindo-se pacificamente a dedução do pedido reconvencional, porquanto o valor do pedido (integrando o pedido originário e o pedido reconvencional), excede a metade da alçada da Relação.

20. Trata-se, aliás, da solução mais consentânea com os princípios fundamentais do processo civil, garantindo a celeridade e economia processual resultante da discussão simultânea dos dois pedidos em contraponto com a necessidade de interposição de acção autónoma para formular o pedido reconvencional,

21. Até porque, se a reconvenção for admitida nos presentes autos, não se expõe também a Recorrente ao risco de insolvência da contraparte, evitando-se, assim, um desperdício de recursos, em violação da imprescindível economia de custos, determinando-se a apreciação simultânea de toda a problemática derivada do mesmo negócio jurídico.

22. Em segundo lugar, e ainda que se considerasse como especial a forma de processo aplicável aos autos – o que não se concede –, nem por isso lograria acolhimento a solução alcançada pelo despacho de que se recorre.

23. Isto porque o facto de os autos serem distribuídos sob a forma especial não preclude a possibilidade de dedução de pedido reconvencional, impondo-se, se necessário, a adequação formal tal como impõe o artigo 547º do CPC.

24. Nesse sentido, vejam-se por exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4-06-2019 (relatora Maria Cecília Agante, processo n.º 58534/18.0YIPRT.P1), Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-06-2018 (relator Rodrigues Pires, processo n.º 26380/17.0YIPRT.P1.), Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 4-12-2012 (processo nº 276/12.0TJLSB-A.L1) e, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-11-2021 (Processo nº 2408/20.6T8PRD-A.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

25. Esse tem sido o entendimento generalizado da jurisprudência e da doutrina mais recentes, respaldadas no entendimento de que inexiste qualquer razão material para se estabelecer diferenciações entre as modalidades de processo no que atina à dedução do pedido reconvencional e, outrossim, desvelando que a solução acolhida pela decisão a quo compromete, a final, a celeridade e economia processual.

26. Aliás, esta solução surge compaginada com os princípios processuais que dimanam do actual regime processual civil, que impõe ao juiz fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal (6º e 547º do CPC) com vista a atingir a justiça material e, por isso, sempre lhe caberia ajustar a tramitação da AECOPEC à dedução do pedido reconvencional.

27. Acresce que se entende que o pedido de compensação ultrapassa o mero pedido de defesa, pois que o Réu não se limita a invocar um facto extintivo do direito do autor, mas submete à apreciação do tribunal o reconhecimento do crédito da Recorrente derivado dos defeitos existentes e consequente danos provocados pelos mesmos na obra que deu origem à emissão da fatura cujo pagamento se encontra em questão nos presentes autos, bem como o reconhecimento da Recorrida como litigante de má-fé, e portanto diferente da que foi configurada por esta na acção.

28. E, como tal, considera-se, em consonância com o entendimento doutrinariamente maioritário, que a compensação terá sempre de ser operada por via da reconvenção – 266 nº2 c), independentemente do valor dos créditos compensáveis, quando o direito do Réu ainda não esteja reconhecido, entendimento que deverá ser adoptado tanto no âmbito da acção declarativa comum como na acção especial.

29. Recorde-se ainda que, tendo presente os poderes de gestão processual e de adequação formal que são concedidos ao juiz (cf. art. 6.º, n.º 1, e 547.º CPC), dificilmente se pode aceitar, hoje em dia, qualquer argumento baseado na inadequação da tramitação das AECOPs para justificar a inadmissibilidade da reconvenção nessas acções.

30. Aliás, não é justificável recusar a alegação da compensação nas AECOPs e (ter de) admitir a sua invocação na oposição à execução nos termos estabelecidos no art. 729.º, al. h), CPC.

31. Não tendo, de facto, qualquer tipo de sentido coartar as possibilidades de defesa do demandado na AECOPEC e possibilitar, com isso, a instauração de uma execução que, de outra forma, poderia não ser admissível.

32. Assim sendo, estando excluída qualquer interpretação correctiva do disposto no CPC quanto à forma de invocar a compensação judicial nas acções declarativas, a alegação da compensação nas AECOPs só pode ser realizada ope reconventionis,

33. Qualquer outra forma de alegação da compensação seria contra o disposto no CPC e, portanto, contra legem.

34. Ora, na vigência de um Código de Processo Civil que erigiu como postulado essencial o dever de gestão processual que recai sobre o juiz e o princípio da adequação formal (art.ºs 6º e 547º do CPC) – princípios que não podem deixar de abranger os processos especiais -, é a tramitação das AECOPs que tem de se adaptar ao exercício dos direitos das partes em juízo, e não este exercício que pode ser coarctado por aquela tramitação.

35. Deste modo, entende-se que, devendo ser dada a possibilidade ao demandado de, no âmbito de uma acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, invocar a compensação de créditos por via de reconvenção - caso em que o juiz deve fazer uso dos seus poderes de adequação formal e de gestão processual -, de igual modo deverá este fazer uso de tais poderes para ponderar da admissibilidade ou não da reconvenção deduzida pelo réu (ainda que não para efeitos do exercício da compensação), de tal modo que lhe incumbe, não só avaliar do preenchimento dos requisitos vertidos no n.º 2 do art. 266º do CPC, como, mais do que isso, ponderar, precisamente, se deve autorizar a sua dedução, nos termos do art. 266º, n.º 3 do CPC, o que nunca se sucedeu nos presentes autos.

36. Por outro lado, dúvidas não podem persistir quanto ao preenchimento dos requisitos que permitem a dedução da reconvenção aqui em questão, sendo certo que o tribunal a quo nem sequer procedeu à análise dos mesmos, conforme lhe era legalmente imposto.

37. Acresce denotar que se deseja celeridade em todos os tipos de processo, mas tal não inviabiliza que, com recurso ao princípio da adequação processual, se evite que razões de natureza adjectiva obstem à realização do direito substantivo.

38. O despacho de que se recorre, ao não admitir o pedido reconvencional, violou os mais elementares direitos da Recorrente e princípios estruturantes do nosso sistema judiciário, pondo em causa os princípios da igualdade, justiça em tempo útil, contraditório, dispositivo, verdade material, adequação formal e economia processual, dever de gestão processual, tendo inclusive, tal decisão, influência no exame / decisão da causa.

39. Ponto assente é que a adequação formal tem sempre como limite as normas imperativas e os princípios fundamentais do processo civil – cf. art. 630º, n.º 2, segunda parte do CPC.

40. Por outro lado, certo é também que deve ser utilizado como modo de assegurar um processo equitativo e como “válvula de escape”, quando o modelo legal se revele inadequado às especificidades da causa.

41. De facto, com o novo código processo civil foi alargado o âmbito do poder-dever de adequação do juiz, conferindo-lhe a possibilidade de adaptar a tramitação do processo quando haja outra que melhor se adeque ao caso concreto, para além dessa adaptação se estender agora ao conteúdo e à forma dos actos processuais com vista ao fim a atingir, o que pode e deverá conduzir à simplificação da sequência processual legal ou à inclusão de actos que nela não estão previstos, no entanto tal nunca se sucedeu nos presentes autos.

42. Além do mais, acresce que a Recorrente não pode ser prejudicada por um tipo de procedimento que foi escolhido unicamente pela Autora, pois que se nos encontramos perante uma forma de processo em que, aparentemente, é vedada a dedução de reconvenção, tal ficou a dever-se à autora que unilateralmente escolheu essa via processual, sendo ainda de registar que o contra-crédito invocado pela Recorrente se situa no âmbito da mesma relação jurídica que foi alegada pela Recorrida.

43. Pelo que o juiz devia ter feito uso dos seus poderes de adequação formal e também da gestão processual (6º CPC) de forma a ajustar a tramitação da AECOP à dedução do pedido reconvencional,

44. Devendo, inclusive, achando necessário, ter solicitado que a Recorrente aperfeiçoasse a reconvenção apresentada bem como convidar a indicar o valor nos termos do artigo 583º CPC, o que nunca se verificou,

45. Nulidades que deverão ser atendidas para os devidos e legais efeitos.

46. Com efeito, decidiu mal o douto tribunal ao ter considerado pela inadmissibilidade de dedução de pedido reconvencional, - afigura-se, por isso, o Despacho recorrido uma decisão inteiramente deslocada e ilegal.

47. Por tudo o exposto, o Tribunal a quo fez uma errada aplicação, ou interpretação ou violou, nomeadamente, as normas dos artigos 18.º do D.L. n.º 269/98, de 01 de Setembro, artigo 10.º, n.º 2 e 4 do D.L. n.º62/2013, artigo 6º, 266.º, 299.º, 530.º do C.P.C, e artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.

48. Já no que diz respeito ao indeferimento da prova por inspecção judicial requerida pela Recorrente cumpre denotar que o único fundamento carreado pelo tribunal a quo prende-se com a alegada falta de jurisdição/competência no concelho de Cascais, onde a obra está implantada, com o qual não pode a Recorrente minimamente concordar.

49. Atenta a especificidade do meio probatório da inspeção judicial, designadamente quando o mesmo for requerido pelas partes, como foi neste caso, o tribunal só deve afastar a sua realização quando, todo em todo, se lhe afigure que o mesmo em nada ou em muito pouco contribuíra para um pleno esclarecimento da factualidade a averiguar e, consequentemente, quando se afigure que o mesmo careça de relevância para a descoberta da verdade material – nesse sentido veja- se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/05/2025, processo JTRP00038093.DGSI.NET).

50. De facto, cumpre denotar que o indeferimento da prova por inspecção não é um acto discricionário do julgador, devendo antes ser devidamente fundamentado e está sujeito a recurso.

51. Com efeito, embora se utilize a expressão “sempre que o julgue conveniente” no artigo 490º do CPC, o poder de efectuar a inspeção ao local não é um poder discricionário ou arbitrário, trata-se antes de um poder-dever, que só poderá deixar de ser exercido no caso da inspeção requerida se mostrar de todo desnecessária ou inútil para a descoberta da verdade material – nesse sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/11/2013, Processo 309/07.2TBLMG.P1.dgsi.net, Acórdão Relação do Porto de 11/05/2009 (Processo 0857899.dgsi.net) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2023 (Processo 1193/21.9T8CVL.C1).

52. Além do mais, sempre se dirá que sem a realização da prova por inspecção judicial será praticamente impossível à aqui Recorrente demonstrar e comprovar os defeitos existentes na referida empreitada e os danos por aqueles provocados, o que consubstanciaria na negação do acesso à justiça pela Recorrente, o que não se pode conceder.

53. Com efeito, ao ter indeferido infundamentadamente a realização do meio de prova por inspecção judicial o tribunal a quo omitiu o dever de apurar a verdade material, omissão que terá forçosamente influência no exame/decisão da presente causa, devendo para todos os efeitos legais, mormente os previstos no artigo 195.º do CPC, ser declarado nulo o despacho recorrido.

54. Com efeito, requer a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que determine a alteração da forma de processo para processo comum, admitindo-se, em consequência, o pedido reconvencional deduzido, bem como a realização da prova por inspecção judicial.

55. Sem prescindir, caso se entenda que os autos deverão prosseguir a forma especial de processo, requer que seja admitido o pedido reconvencional deduzido pela recorrente bem como a realização da prova por inspecção judicial, respeitando assim os princípios da celeridade e economia processual, segurança jurídica, gestão e adequação formal, da igualdade, justiça em tempo útil, contraditório, dispositivo, tudo com o objectivo da descoberta da verdade material.

A requerente apelada não contra-alegou.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Da delimitação do objecto do recurso

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), importa apreciar:

- das nulidades da decisão (conclusões 1ª a 5ª),

- da admissibilidade da reconvenção, i) seja porque a causa deve seguir a forma de processo de comum à luz do nº 2 do art. 10º do DL 62/2013, de 10/05, em razão do valor da causa exceder metade do valor da alçada da Relação (por o valor do pedido reconvencional se dever somar ao do pedido formulado por via de acção), ou, assim se não entendendo, ii) por se impor autorizar a reconvenção, à luz da parte final do nº 3 do art. 266º do CPC, para tanto se recorrendo aos poderes de adequação e adaptação do processado,

- da admissibilidade da inspecção judicial proposta pela apelante e indeferida pelo tribunal (com fundamento na falta de jurisdição no local onde se situa o imóvel a inspecionar).


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

A matéria factual a ponderar é a que resulta exposta no relatório que precede.


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Fundamentação de direito

A. Das nulidades da decisão.

Invoca a apelante (vejam-se as primeiras cinco conclusões das alegações) estar a decisão apelada ferida por nulidade por não ter usado usar os poderes de gestão e adequação formal que lhe assistem por força dos artigos 6º e 547.º do CPC, para admitir a reconvenção e, bem assim, ao decidir (mal) indeferir a realização do meio de prova por inspeção judicial requerida, com a omissão do dever de apurar a verdade material.

Arguição de evidente e manifesta improcedência, que não resiste ao confronto com as regras mais básicas do instituto jurídico-processual da nulidade da decisão (art. 615º do CPC).

A primeira (e básica) observação que a arguição da apelante merece é a de que o erro de julgamento não é causa de nulidade da sentença – apesar de não traçar o conceito de nulidade da sentença, a lei (nas alíneas do nº 1 do art. 615º do CC) enumera (taxativamente) as várias hipóteses de desconformidade de tal peça com a ordem jurídica e que, uma vez constatadas, arrastam à sua nulidade[1], não constando o erro de julgamento entre elas.

A nulidade da decisão não se confunde com o erro de julgamento (error in judicando), de facto ou de direito, inerentes ao respectivo mérito, em razão de erro na aplicação do direito (error juris), conducente a decisão desajustada à norma aplicável e ao ordenamento jurídico[2].

Constatação que permite concluir não constituir nulidade da decisão a eventual verificação de qualquer dos invocados erros, seja quanto à concluída e afirmada inadmissibilidade da reconvenção, seja quanto ao indeferimento da prova por inspecção judicial – a ocorrerem, tais invocados erros repercutir-se-ão tão só no valor doutrinal da sentença, sujeitando-a a revogação e consequente alteração[3].

Evidente, pois, a improcedência da arguição.

B. Da admissibilidade da reconvenção.

Fundou a decisão recorrida a decidida inadmissibilidade do pedido reconvencional na falta de pressuposto processual ou adjectivo, qual seja o de a forma de processo a observar, deduzida que foi a oposição à injunção, ser incompatível com a reconvenção.

Atento o princípio da estabilidade da instância consagrado no art. 260º do CPC, as modificações da instância (sejam elas subjectivas ou objectivas), só são admitidas – atente-se no seu carácter excepcional – em termos restritos e nos limites da lei.

A reconvenção constitui uma modificação objectiva da instância.

O cruzamento de acções em que ela se traduz está dependente da verificação de vários requisitos, quer de ordem substancial (art. 266º, nº 2 do CPC, que estabelece as modalidades legais de conexão substancial permitidas), quer de ordem processual (art. 93º e 266º, nº 3 do CPC) – deve ‘verificar-se a admissibilidade procedimental da reconvenção.’[4]

Como decorre do art. 266º, nº 3 do CPC, a reconvenção não é admissível quando ao pedido do réu corresponda forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos nº 2 e 3 do artigo 37º do CPC, com as necessárias adaptações – em princípio, é ‘necessário que ao pedido reconvencional corresponda a forma de processo que se observa na ação ou então que as formas de processo, embora diversas, não sejam manifestamente incompatíveis, nos termos prescritos para a coligação no art. 37º, nº 2, ponto que o juiz apreciará.’[5]

Na decisão apelada considerou-se existir tal entrave processual à admissibilidade da reconvenção, porquanto a forma do processo a observar é incompatível com a sua dedução.

Tem de concordar-se com a decisão apelada quando considera que a forma de processo a observar é, no caso, a da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos – regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, aprovado pelo art. 1º do DL 269/98, de 1/09, que admitindo a dedução de apenas dois articulados (art. 3º e 4º do referido regime processual), afasta a possibilidade de dedução de reconvenção (a tramitação especial a observar – art. 549º do CPC – prevendo tão só dois articulados, é incompatível com a reconvenção, pois esta prevê que a tramitação da causa permita a réplica, para que o reconvindo possa deduzir a defesa que lhe aprouver).

Porque estamos (considerando a causa de pedir invocada pela requerente) perante transacção comercial entre empresas (art. 2º nº 1 e 3º, a) do DL 62/2013, de 10/05), a dedução de oposição ao procedimento de injunção determina a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se (art. 10º, nº 2 e nº 4 do DL 62/2013, de 10/05) i) a forma do processo comum, tratando-se de valores superiores a metade à alçada da Relação ou ii), os termos da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, tratando-se de valores não superiores a metade da alçada da Relação.

Na situação dos autos, o valor da causa (correspondente ao valor indicado no pedido do autor – de 10.533,47€) é inferior a metade da alçada da Relação (a alçada da relação ascende a 30.000,0€ - art. 44º, nº 1 da Lei 62/2013, de 26/08), pois que, mesmo que se não siga o entendimento de que o valor da acção subsequente a um procedimento de injunção se determina ‘de acordo com o art. 18º do DL nº 269/98, de 1/09, segundo o qual o valor processual da injunção e da acção declarativa que lhe seguir é o do pedido’ formulado pelo autor[6] e antes se defenda (como nos parece correcto) a posição que sustenta (quando ao momento e regras para a fixação do valor em situações como a dos autos) que o valor a atender deve ser fixado de acordo com as regras do artigo 299º do CPC [entendimento adoptado pelo STJ em revista admitida nos termos do art. 672º, nº 3 do CPC[7], com argumentação cuja validade se nos afigura inatacável – aí se aduz não haver razão para concluir da leitura do nº 2 do art. 10º do DL 62/2013 que o ‘mesmo quis afastar as regras processuais gerais sobre o cálculo do valor de uma acção’ e assim, se primeiramente se deve ter em conta o valor do pedido formulado na injunção, certo é que com a dedução da oposição, convertendo-se então a injunção em ‘procedimento jurisdicional, haverá que aplicar as regras contidas nos artigos 299º e seguintes do CPC’, atendendo-se ao momento em que o procedimento se converte em jurisdicional (porque na injunção não se começa por propor uma acção) «excepto quando haja reconvenção» (nº 1 do artigo 299º do CPC), sendo que, então, o valor do pedido formulado pelo Réu é somado ao valor do pedido formulado pelo Autor, quando os pedidos sejam distintos (nº 2 do artigo 299º)’], sempre será de concluir, no caso, que o valor será inferior a metade da alçada da Relação, pois que, ao contrário do que sustenta a apelante, os pedidos (em via de acção e em via de reconvenção) não são distintos e, por isso, não se somam (e, assim, o valor da acção corresponderá ao do pedido formulado em via de acção).

Apesar de a reconvenção não poder deixar de ter um valor próprio (art. 583º, nº 2 do CPC), o ‘seu valor pode não se somar ao valor do pedido do autor’ em vista de se determinar o valor da causa, pois não pode confundir-se a ‘atribuição de um valor à reconvenção’ com a ‘necessária relevância desse valor para efeitos de determinação do valor da causa’ - o que releva para a aplicação do nº 2 do art. 299º do CPC ‘não é tanto a distinção dos efeitos jurídicos a que respeitam esses pedidos’, mas ‘antes a distinção da utilidade económica do pedido reconvencional’ em relação ao pedido do autor[8].

O critério a aplicar – para que se considerem distintos os pedidos e, assim, o valor do pedido do reconvinte acresça ao do autor para se apurar o valor da causa – é o da ‘nova utilidade ou valor económico’[9] do pedido reconvencional.

Assim, porque o que releva ‘é a utilidade económica do pedido deduzido pelo reconvinte’, conclui-se não ocorrer ‘nenhuma diferença de pedidos quando o novo pedido implica uma redução do pedido inicial’ – v. g., ‘numa acção para pagamento do preço da coisa vendida, o comprador alega que a coisa tem defeitos e pretende obter a redução do preço’; ‘este pedido não é, para afeitos de valor da causa, distinto do pedido do autor’[10].

Nenhuma diferença ou ‘nova utilidade económica’ pode reconhecer-se ao pedido reconvencional deduzido pela apelante, relativamente ao pedido formulado pela autora apelada – não integrando o requerimento de condenação da autora em multa e indemnização como litigante de má fé o conceito de pedido (aludido nos arts. 552º, nº 1, e) e 553º, nº 1 do CPC – atente-se que a condenação das partes à luz do instituto pode resultar de iniciativa oficiosa do tribunal), a pretensão de tutela jurisdicional formulada pela apelante, fundando-se no cumprimento defeituoso do contrato que imputa à demandante na execução da obra cujo preço é peticionado em via de acção (invocando, também, por isso, a excepção do não cumprimento do contrato, nos termos dos arts. 428º e ss. do CC – mais propriamente, por estar em causa prestação executada deficientemente, a exceptio non rite adimpleti contractus), traduz-se na pretensão de condenação da autora reconvinda a rectificar os defeitos que a obra apresente ou a reduzir o respectivo preço, em montante não inferior a 5.200,00€ ou no valor que se vier a apurar em execução de sentença.

Pretensão que não aporta ‘nova utilidade ou valor económico’ ao pedido do autor – o pedido reconvencional tem o pedido da demandante por referência e contém-se na utilidade e valor económico deste, não o aumentando; quantitativa e qualitativamente, o interesse económico da causa mantém-se intocado com a dedução da reconvenção, contendo-se no valor económico do montante exigido pela demandante a título de preço, pois a reconvinte pretende tão só que a autora corrija os defeitos da obra cujo preço exige judicialmente ou a redução do mesmo, para o tornar o correspectivo devido pela obra (que alega) defeituosamente prestada.

De concluir, pois – porque, operado o critério da ‘nova utilidade ou valor económico’, se apura que os pedidos (formulados em via de acção e em via de reconvenção) não são distintos –, que o valor da causa (aferido pelo valor formulado em via de acção) não excede metade da alçada da Relação, donde resulta que a causa segue os termos da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (art. 10º, nº 4 do DL 62/2013, de 10/05).

Forma processual cujos termos não comportam, como referido, a possibilidade de dedução de reconvenção – uma ‘acção ou procedimento a que a lei apenas atribua dois articulados, não admite reconvenção, seja porque não comporta réplica, seja porque tal simplificação processual corresponde a um específico objecto processual a que o legislador quis atribuir um tratamento célere’.[11]

Assim, na situação dos autos, só à luz da parte final do nº 3 do art. 266º do CPC a reconvenção poderia admitir-se – o juiz pode ‘autorizar a reconvenção quando, correspondendo-lhe embora uma forma de processo diversa da da acção (processo comum/processo especial ou processos especiais diversos), as tramitações de ambas as formas não sejam manifestamente incompatíveis e seja indispensável ou conveniente a apreciação conjunta’, competindo então ao juiz ‘definir o procedimento a seguir, em concretização do princípio da adequação formal’[12]; o juiz só deverá autorizar a reconvenção (nos termos dos nº 2 e 3 do art. 37º, ex vi parte final do nº 3 do art. 266º do CPC) quando haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio, incumbindo-lhe então adequar o processado à modificação objectiva da instância.

A aplicação da ressalva prevista no nº 3 do art. 266º do CPC exige, pois, a verificação de interesses relevantes ou demanda que a apreciação da pretensão suscitada pelo contra-ataque do demandado seja indispensável à justa composição do litígio (art. 37º, nº 2 do CPC).

Assim que a solução de admitir o demandado a formular reconvenção em acção destinada a exigir o cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato só seja de admitir caso os seus interesses e direitos não possam doutro modo ser tutelados ou se conclua ficar comprometida a justa composição do litígio.

Na verdade, as acções ou procedimentos especiais, estão ‘sujeitos à sua própria regulação e, não, às regras do processo comum sobre o número de articulados’ – os ‘processos especiais não são processos incompletos ou lacunares’, a que o art. 549º do CPC ‘acrescenta articulados, mas processos que veriam diminuída a sua eficácia específica se fossem «engordados» por normas do processo comum’; determinando o legislador que ‘um processo especial apenas tem dois articulados, quis mesmo limitar esse número’, não existindo lacunas – se ‘assim não fosse, todos os processos seguiriam, em maior ou menor grau, o procedimento do processo comum’[13].

A ressalva prevista na parte final do nº 3 do art. 266º do CPC consubstancia a excepção, não a regra, ou melhor, a válvula de escape do sistema para dar resposta a legítimos interesses e direitos que doutro modo poderiam ver-se em perigo.

As opções do legislador, ao delinear, por um lado, a tramitação da acção especial e, por outro, ao estabelecer a ressalva prevista no nº 3 do art. 266º do CPC, têm, pois, de ser harmoniosamente conciliadas (trata-se de aplicar o ordenamento processual civil) em atenção aos interesses em presença – na aplicação do Direito está sempre em causa a conciliação de direitos e interesses legítimos e dignos de tutela –, não podendo a aplicação menos criteriosa da ressalva levar à subversão do regime processual especial.

Na situação dos autos, o interesse da demandada em ver realizado o seu invocado direito assente no cumprimento defeituoso do contrato que imputa à demandante tem de conciliar-se com o interesse do demandante revelado pelo recurso à injunção.

Enfatizando não poderem esgrimir-se (por não valerem) no caso os argumentos que justificam a solução de admitir, no âmbito das acções especiais destinadas a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, a reconvenção que o demandado deduza para fazer valer a compensação[14] [argumenta-se não ser indiferente aos legítimos interesses da parte a impossibilidade de invocar a compensação – ainda que não fique precludida a possibilidade de invocar o contracrédito noutra acção[15] (ou até em embargos de executado à execução interposta com base na sentença proferida na causa em que não foi invocada a compensação) e, assim, não se verificar o efeito do caso julgado[16], tem de reconhecer-se ser evidente o prejuízo que pode advir da impossibilidade de invocar a compensação, pois ‘embora a compensação seja fundamentalmente uma causa de extinção das obrigações, a verdade é que ela permite a quem a invoca com sucesso não suportar (total ou parcialmente consoante o seu âmbito) o risco de insolvência da contraparte’, pelo que não sendo a compensação admitida, terá a parte que pagar a quantia que porventura deva para depois exigir noutra acção o pagamento do seu crédito, se a contraparte então o puder pagar, sendo que se a ‘compensação for admitida não se expõe (ou não se expõe na mesma medida) a esse risco de insolvência, ficando satisfeita imediatamente na parte em que houver compensação[17]], tem de ponderar-se que se busca interpretação das regras processuais ‘de molde a favorecer a tutela de direitos e interesses’ em presença; ambas as partes têm direitos e interesses dignos de tutela e se deve reconhecer-se ao demandado o interesse em invocar todos os meios de defesa (mormente o direito à redução do preço em razão do cumprimento defeituoso e a excepção do não cumprimento), não pode deixar de ponderar-se o interesse (cuja relevância não pode ser desprezada) do demandante em ver o seu direito apreciado em acção especial, simplificada e célere.

Nenhum interesse relevante (sendo certo que no âmbito da acção especial, e independentemente da reconvenção, pode ver reconhecidos o direito à redução do preço e, bem assim, a excepção do não cumprimento, pois que se trata de matéria que funciona por via de excepção – art. 342º, nº 2 do CC e arts. 571º, nº 2, 572º, c) e 576º, nº 3 do CPC) se pode reconhecer à aqui demandada na dedução da reconvenção (a correcão dos defeitos) que não seja obtido em acção declarativa autónoma, nem a apreciação da pretensão suscitada pelo contra-ataque da demandada se mostra indispensável à justa composição do litígio – demonstrando os defeitos da obra cujo preço a demandante lhe vem judicialmente exigir, a demandada não verá perigar a tutela de qualquer direito, pois que a lei não põe qualquer obstáculo à dedução da defesa que apresentou (a arguição dos defeitos e a invocação da exceptio – não se verá compelida quer a cumprir a sua obrigação sem que a aqui demandante elimine os defeitos, quer a cumprir em medida que se não mostre equilibrada e proporcional à prestação recebida sem defeito), além de que nenhum risco o recurso a acção autónoma aporta à demandada na efectivação do seu direito à correcção dos defeitos, donde se conclui não ser indispensável à justa composição do litígio a apreciação do pedido reconvencional (mormente no segmento em que a demandada pretende a condenação da demandante na correcção dos defeitos).

Admitir a reconvenção significaria, na situação dos autos, privilegiar exclusivamente interesses da demandada que se situam para lá do seu direito à defesa (e que poderá sempre obter, sem qualquer prejuízo ou risco digno de tutela, em acção autónoma) e do que interessa à justa composição do litígio, em detrimento (ou com sacrifício) do interesse da demandante em ver o seu direito apreciado em acção especial cujos trâmites primam pela simplicidade e celeridade.

De concluir, pois, pela inadmissibilidade da reconvenção.

C. Da admissibilidade da inspecção judicial.

Sendo certo que a lei (art. 490º do CPC) faz depender a sua realização de um juízo de oportunidade (no âmbito de um poder legal discricionário), a sindicabilidade da decisão que rejeite a inspecção judicial é de afirmar quando estiver em questão apurar da verificação dos pressupostos definidos pela lei para a prolação duma tal decisão (isto é, quando estiver em questão apurar se o juiz extravasou o quadro das possibilidades legais de actuação)[18] – como acontece no caso em apreciação, em que o requerimento para a sua produção foi indeferido por em razão de o imóvel a inspecionar se situar fora da sua área de jurisdição.

Justificação juridicamente inatacável – e que, diga-se, a apelante não contraria minimamente.

A prova por inspecção, como estabelece o art. 390º do CC, tem por fim a percepção directa dos factos pelo tribunal – trata-se de meio de prova que tem por objecto o exame, realizado pelo juiz, de coisa, móvel ou imóvel, com o fim de permitir, de forma directa e imediata, a percepção do facto sujeito a prova, podendo o juiz fazer uso dos vários sentidos; prova directa porquanto pressupõe o contacto directo e imediato entre o tribunal e o facto sob prova, não existindo uma interposição de pessoa ou de coisa entre aqueles[19].

A realização de tal meio de prova através de deprecada por outro juiz desvirtuaria a sua finalidade – a percepção directa, pelo juiz da causa, da realidade a julgar – e não seria solução compatível com o princípio da plenitude da assistência do juiz (art. 605º do CPC).

Assim, é de afirmar que a natureza de observação directa da prova por inspecção não permite que esta tenha lugar por deprecada[20] – e por isso que não se situando o imóvel a inspecionar na área geográfica de jurisdição do tribunal, tem a inspecção requerida de ser indeferida.

D. Síntese.

Improcede, pois a apelação, sendo de manter o despacho apelado, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (em cumprimento do nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


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Porto, 10/09/2024
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
Rui Moreira
Fernando Vilares Ferreira
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[1] Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª Edição, p. 53.
[2] V. g., por mais recente, o acórdão do STJ de 7/03/2023 (Ataíde das Neves), no sítio www.dgsi.
[3] Fernando Amâncio Ferreira, Manual (…), p. 55.
[4] Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, p. 399.
[5] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, p. 305.
[6] P. ex., o acórdão do STJ de 24/09/2015 (Oliveira Vasconcelos), no sítio www.dgsi.pt. A argumentação expendida em tal acórdão pode ser transporta para o art. 10º do DL 62/2013, que actualmente disciplina a matéria.
[7] Acórdão de 6/06/2017 (Júlio Gomes) no sítio www.dgsi.pt.
[8] Miguel Teixeira de Sousa, CPC online, Versão de 2024/02 (disponibilizada em entrada de 20/02/2024 no Blog do IPPC – blogippc.blogspot.com), CPC art. 292º a 310º, nota 8 ao art. 299º, p. 13.
[9] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 4ª Edição, p. 606.
[10] Miguel Teixeira de Sousa, CPC online, (…), CPC art. 292º a 310º, nota 10 ao art. 299º, p. 14.
[11] Rui Pinto, Código (…), Volume I, 2018, pp. 399 e 400.
[12] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), Volume 1º, 4ª Edição, p. 536.
[13] Rui Pinto, Código (…), Volume I, 2018, p. 400.
[14] Vem sendo constante a jurisprudência que entende dever o juiz fazer uso dos seus poderes de gestão processual e adequação formal, possibilitando, nas acções especiais destinadas ao cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, a dedução de reconvenção em vista de tornar efectiva a compensação – assim, p. ex., e apenas na Relação do Porto, os acórdãos de 13-06-2018 (Rodrigues Pires), de 24/01/2018 (Carlos Querido), de 4/06/2019 (Maria Cecília Agante),de 13/07/2022 (Fernando Vilares Ferreira), de 13/07/2022 (Francisca Mota Vieira) de 14/12/2022 (Carlos Portela), todos no sítio www.dgsi.pt; sustentando a posição contrária (afastando a admissibilidade da reconvenção mesmo para fazer a compensação), o acórdão de 13/03/2023 (Fátima Andrade), com voto de vencido, também no sítio www.dgsi.pt.
[15] Não invocando o réu a extinção do crédito do autor por compensação (e sendo, por isso, condenado a satisfazê-lo), o seu contracrédito também não foi apreciado na acção, pelo que nada impede que possa ser invocado numa outra acção – Miguel Teixeira de Sousa, in ‘A compensação em processo civil: uma proposta legislativa’, p. 11, artigo publicado em 17/03/2019 no blog do IPPC (https://blogippc.blogspot.com).
[16] Citado Acórdão do STJ de 6/06/2017 (Júlio Gomes) – a impossibilidade de deduzir tal matéria não prejudicará o réu em termos de caso julgado ou de efeito de caso julgado já que a apreciação material do Tribunal não incidirá sobre ela, não se produzindo, tampouco, qualquer efeito preclusivo.
[17] Mais uma vez, o citado Acórdão do STJ de 6/06/2017 (Júlio Gomes).
[18] Cfr., p. ex., Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 548 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), pp. 347 e 348.
[19] Rita Gouveia, in Comentário ao Código Civil - Parte Geral, coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 804 e 805.
[20] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), p. 347, citando acórdão da Relação de Coimbra de 10/04/1984, na CJ 1984, Tomo II, p. 52.