OMISSÃO DE CITAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E DE PROVA
NULIDADES DE SENTENÇA
ERRO DE JULGAMENTO
Sumário

I - Para se concluir pela verificação da omissão de citação, nos termos da alínea e) do nº 1 do art. 188º do CPC, é insuficiente a simples invocação do desconhecimento do acto e de que tal desconhecimento lhe não é imputável, pois considerando a presunção de efectivo conhecimento da existência da citação (arts. 225º, nº 4 e 230º, nº 1 do CPC) deve o réu (é seu ónus) alegar e provar os pressupostos estabelecidos naquele preceito.
II - O erro de julgamento (erro de qualificação jurídica, de enquadramento dos factos no instituto jurídico pertinente) não é causa de nulidade da sentença.
III - A impugnação das decisões judiciais não se destina a obter a correcção de erros de qualificação ou enquadramento jurídico, a melhorá-las tecnicamente enquanto peças jurídicas; os recursos destinam-se a possibilitar à parte vencida obter decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido, estando a impugnação funcionalmente ordenada a permitir que a parte recorrente possa obter a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido em sentido a si favorável – e por isso que tal propósito só ocorre quando ao fundamento do recurso se reconheçam efeitos práticos, com possibilidade de se repercutir na decisão, levando à sua modificação/alteração.

Texto Integral

Apelação nº 1530/23.1T8PVZ.P1


Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Maria da Luz Teles Meneses de Seabra


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO


Apelante: AA.
Apelado: Estado Português.

Juízo central cível da Póvoa de Varzim (lugar de provimento de Juiz 1) - T. J. da Comarca do Porto.


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O Estado Português, representado pelo Ministério Público, instaurou a presente ação comum contra AA pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 67.981,12€, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, alegando que a PSP suportou o pagamento de vencimentos no período em que o agente BB, vítima da atuação culposa do réu (já condenado criminalmente por tais factos ), esteve ausente do serviço e não pode assim prestar o seu trabalho (no valor de 66.235,78€), além de ter suportado também despesas de saúde relacionadas com as lesões sofridas pelo agente, no valor total de 1.745,34€, exigindo do réu o respectivo reembolso.

Junto aos autos o aviso de recepção que acompanhara a carta para citação do réu (enviada em Outubro de 2023 para morada indicada no intróito da petição como sendo a morada do réu, em ...), constatando-se que o mesmo se mostrava assinado por terceira pessoa, foi pela secção cumprido o disposto no art. 233º do CPC.

Proferido despacho que, nos termos do art. 567º do CPC, julgou confessados os factos alegados na petição e apresentadas alegações pelo autor (art. 567º, nº 2 do CPC), ordenada a notificação do réu de documentos entretanto juntos aos, veio o réu arguir a nulidade da sua citação (rectius, a falta de citação), impetrando a repetição da mesma, alegando que desde meados de Outubro se encontrava a residir em casa de amigos, no Algarve, tendo estado embarcado desde 7/11 a 6/12/2013, tendo regressado a casa dos seus pais em Dezembro de 2023, altura em que tomou conhecimento da acção, mais sustentando que o seu pai, motorista de longo curso, saiu de casa para trabalhar no dia em que recebeu a carta de citação, regressando na semana do Natal, pelo que não pôde entregar a correspondência recebida.

O autor pronunciou-se pelo indeferimento da invocada nulidade.

Apreciando, foi proferido despacho que concluiu ter sido a citação efectuada em respeito dos preceitos legais, não padecendo de qualquer vício e, por isso, julgou improcedente a arguida nulidade da citação e, conhecendo da pretensão, julgou a acção procedente e condenou o réu a pagar ao autor a quantia de 67.981,12€ (sessenta e sete mil, novecentos e oitenta e um euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Inconformado, pretendendo a revogação de tal decisão, apela o réu, terminando as alegações pela formulação das seguintes conclusões:

1. O Ministério Público, em representação do Estado Português instaurou a presente ação comum contra AA, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de €67.981,12 (sessenta e sete mil, novecentos e oitenta e um euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora contabilizados desde a citação e até integral pagamento.

2. Alega, para fundamentar a sua pretensão que, por virtude da atuação culposa do R., tal como foi já reconhecido em ação judicial crime, que correu os seus termos sob o n.º 621/20.5PAVCD, Juízo Local Criminal de Vila do Conde – Juiz 3, na qual foi o R. condenado pela prática dos respetivos crimes, a PSP suportou o pagamento de vencimentos no período em que o agente BB, vítima da conduta do R., esteve ausente do serviço e não pode assim prestar o seu trabalho, no valor de €66.235,78 (sessenta seis mil, duzentos e trinta e cinco euros e setenta e oito cêntimos).

3. Alega ainda que, o Estado suportou despesas de saúde relacionadas com as lesões sofridas pelo referido agente, no valor total de €1.745,34 (mil, setecentos e quarenta e cinco euros e trinta e quatro cêntimos) reclamando do R. o seu reembolso.

4. O Ministério Público fundamentou-se na figura jurídica da sub-rogação, pretendendo-se substituir os agentes da PSP lesados no processo-crime.

5. Entendeu o Tribunal “a quo” que o R. foi devidamente citado na 3.ª pessoa, considerou ainda que, o mesmo não contestou a ação e os documentos e, por via disso, considerou confessados os factos.

6. O Ministério Público concluiu ainda que, se encontravam todas as formalidades do artigo 228.º e 233.º do CPC observadas e cumpridas, não considerando desta forma a citação nula, e o R. foi regularmente citado.

Sucede que,

7. O R. alegou por documentos juntos aos autos que não recebeu ou teve conhecimento da citação em tempo oportuno para apresentar a sua contestação e/ou constituir mandatário.

Isto porque,

8. O aqui R. (arguido no processo-crime cuja certidão se encontra nos autos) é marítimo, passa grande parte do seu tempo embarcado num navio de pavilhão holandês e em alto mar (onde raramente tem acesso às comunicações com exterior), sendo que passa poucos dias em terra e em particular, em Portugal.

9. O R. desembarcou nos Países Baixos, no dia 11/10/2023, ficando alojado nesse dia no hotel e regressou a Portugal, no dia seguinte, a 12/10/2023, para o Algarve, mais concretamente, para Albufeira, onde tem vindo a residir desde meados do verão do ano de 2023.

10. O aqui R. não esteve no mês de outubro na casa dos pais, em ..., pois já se encontrava a residir no Algarve, como consta da informação da equipa dos serviços de reinserção.

11. Na sequência da pena que lhe foi aplicada, o R. está a ser acompanhado pela Direção Geral de Reinserção dos Serviços Prisionais, à data da citação pela Equipa ..., tendo o Ministério Público conhecimento desta mudança de residência e da própria equipa de acompanhamento.

12. No dia 07/11/2023, o R. deu entrada no barco nos Países Baixos onde ficou embarcado até dia 06/12/2023, tendo regressado a Portugal, ao Algarve, no dia 07/12/2023.

13. Tendo apenas regressado a casa dos pais, na semana das festividades do Natal e do Ano Novo, e só, nesse momento é que teve conhecimento da presente ação.

14. O pai do aqui R. – Sr. CC, é camionista/motorista de longo curso, e recebeu a citação a 11/10/2023, sendo que, nesse mesmo dia e, após o recebimento da carta, saiu de casa para o estrangeiro, em trabalho, e só regressou na altura do Natal, pelo que, não entregou ao R., a citação e documentos.

15. Ademais, quem recebeu a notificação do artigo 233.º do CPC, foi a mãe do R., Sra. DD e, não o pai, nem o próprio R.

Em suma,

16. Alegou o R. que:

- Não foi citado pessoalmente;

- Na data em que foi endereçada a citação, não se encontrava em Portugal e, imediatamente a seguir, dirigiu-se para o Algarve, onde residia;

- Os terceiros que receberam a da citação pelo réu, bem como, a comunicação do artigo 233.º do CPC, não procederam à entrega, sem culpa destes, em tempo oportuno das missivas recebidas, de forma ao R. poder gizar a sua defesa, contestação ou contratar advogado, outorgando a respetiva procuração forense.;

- O R. não constituiu mandatário nos autos;

- Nem interveio no processo sob qualquer forma.

17. Os documentos juntos pelo R. visavam fazer prova de que o R., não recebeu a citação ou a notificação do artigo 233.º CPC, em tempo útil para contestar, e, por via disso, não reuniu ou constituí mandatário por desconhecimento da ação.

18. Acresce que, o R. desconhecia a presente ação e, ainda que, não existe qualquer obrigação do R. nestes autos semelhante ao efeito do TIR no processo-crime. Aliás, não se pode olvidar, que o Ministério Público, antes de propor a ação 06/10/2023, teve pelo acesso às informações atualizadas do processo-crime, cuja certidão obteve um mês antes em 06/09/2023.

19. Face ao supra exposto, entende o R., que ilidiu a presunção consagrada no artigo 225.º, n.º 4 e 230.º, n.º 1 do CPC e fez prova do seu desconhecimento da ação em tempo útil e oportuno para apresentação da contestação – o que continua a pugnar!!

In casu,

20. Entende o R. que mal andou o Tribunal “a quo”, uma vez que e para que dúvidas não restem, importa realçar:

A morada do R. à data da propositura da ação (é do conhecimento do Ministério Público através do processo-crime): ..., ..., ... freguesia ..., concelho ..., Algarve

Morada dos pais: Rua ..., fração G, freguesia e concelho ..., Porto

Local de Trabalho: Amesterdão, Países Baixos (barcos de pavilhão Holandês)

Ademais,

21. A citação do aqui R., recebida pelo pai desta, consta a seguinte redação:

“Se quiser defender-se, responda a esta carta. Se não responder dentro do prazo, o Tribunal pode achar que concorda e que foi por isso que não respondeu. A lei chama a isso a confissão dos factos.”

É obrigatório ter um/uma advogado para se defender

Para contestar o que é dito no pedido contra si, vai precisar de um/uma advogado.

(…)”

22. A notificação do artigo 233.º do CPC recebida pela mãe do R., consta o seguinte:

“A falta de contestação importa a confissão dos factos articulados pelo (s) Autor(es)”.

“Fica advertido de que sim é obrigatória a constituição de mandatário”

23. Do teor da citação, como supra melhor se alcança, não resulta expressamente a advertência do artigo 228.º do CPC.

Ademais,

24. Do teor da citação, como supra melhor se alcança, não resulta expressamente a advertência e cominação consagrada no artigo 227.º, n.º 1 do CPC, que determina os elementos a transmitir obrigatoriamente ao citando.

Ora,

25. Não resulta do teor amistoso da citação recebida pelo pai do R., a necessidade e a obrigação legal com a força que lhe é exigível ser transmitida, nem a admonição nem a cominação.

26. Assim, do teor da citação efetuada falta evidentemente as palavras-chave – “Advertência de que a falta de contestação...” – Importa a confissão dos factos, bem como, a advertência de que é obrigatório a constituição de mandatário judicial.

27. Nitidamente, na esfera de quem recebe a citação é criada uma perceção de obrigatoriedade ou importância diferente do teor da que realmente foi entregue ao pai do R.

28. Reitera-se que da citação efetuada ao pai do R., este efeito e importância de cumprimento não foi transmitido pelo ofício de citação. Diferente teor tem a notificação do artigo 233.º do CPC, que, porém, é entregue a pessoa diversa do R. e do terceiro que recebeu o ofício de citação de 09/10/2023 (referência n.º 452514437).

29. Assim, não cumpridas as formalidades quanto ao teor da citação que supra se expuseram, não deve ser retirada as consequências legais para a não contestação, até porque esse terceiro para além de não ter podido fisicamente entregar o documento, também, não perceciona a obrigatoriedade com a dimensão que lhe deveria ter sido transmitida.

Por isso,

30. Não se encontram respeitados os requisitos da elaboração que a citação deve ter e, deve a mesma ser considerada nula, ou não se considerar confessados os factos.

31. Assim, violou o Tribunal “a quo” o disposto no artigo 567.º, n.º 1 do CPC.

Importa ainda referir que,

32.

O R. enquanto arguido, no processo-crime, procedeu ao pagamento da indemnização por responsabilidade civil, por factos ilícitos, requerida pelos assistentes no âmbito do processo-crime, nos termos do artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil.

33. Assistentes estes, únicos lesados naqueles autos, que são, agentes de autoridade, e que fazem parte da Administração Direta do Estado, periférica e especializada.

34. Os factos ocorreram quando os dois agentes estavam ao serviço da PSP, e por via disso, qualificado o incidente como acidente de trabalho, aplicando-se o Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro.

35. Nesta senda, aplica-se ao caso o disposto no artigo 4.º e 5.º do Decreto-lei nº 503/99, de 20 de novembro, sendo da responsabilidade do Estado, em primeira linha, a reparação da lesão contraída no acidente de trabalho, reparação essa, que abrange todas as despesas e valores constantes das alíneas do n.º 3 e 4 do artigo 4.º do citado diploma.

36. Ora, o primeiro responsável será sempre o Estado, que efetua o pagamento e depois poderá, caso se apure a responsabilidade de terceiros, ser indemnizado ou reembolsado pelas despesas que suportou – vide artigo 5.º do referido diploma.

37. A este direito de ser reembolsado, o legislador qualificou, expressamente, como direito de regresso, no artigo 46.º do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro.

38. Sendo destituído de qualquer fundamento o que vem dito no requerimento denominado “Alegações” apresentado pelo Ministério Público, na sua página 7, considerando que não é pertinente para a causa a definição do regime aplicável.

39. Discorda o R. e entende que a sentença “a quo” viola o preceito artigo 46.º do Decreto-lei 503/99, de 20 de novembro, sendo nula - o que expressamente se argui.

Isto porque,

40. Nos presentes autos estamos perante um direito de regresso do Estado e não numa verdadeira situação de sub-rogação.

41. E, reafirma-se mais uma vez que, é de estrema importância o enquadramento jurídico que fundamenta o direito do Estado e que após a última alteração legislativa prevê-se expressamente o direito de regresso.

42. Em suma, por tudo o quanto supra se expôs, a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” viola os seguintes preceitos:

- O disposto nos artigos 227.º, 228.º e 233.º do CPC, quanto à citação e seu teor;

- O artigo 567.º, n.º 2 do CPC, quanto a considerar-se os confessados factos da petição inicial; e,

- Os artigos 4.º, 5.º e 46.º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de novembro, quanto à figura jurídica aplicável.

Contra-alegou o autor em defesa da decisão apelada e pela improcedência da apelação, concluindo:

1- Como se constata dos termos de citação cuja cópia foi junta aos autos respectivamente em 09/10/2023 e 17/10/2023, as mesmas têm o texto que aí se encontra, e aqui se dá por reproduzido, o qual obedece aos preceitos legais constantes dos art.ºs 227.º, 228.º, n.º1 e 233.º do CPC.

2- O réu foi citado na morada que consta do cartão de cidadão, e da base dados da AT, e não comprovou nos autos que tenha alterado tal morada.

3- Aliás, o réu não indicou qualquer outra morada ao processo, para daqui em diante passar a receber as notificações.

4- A citação foi ainda acompanhada de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objecto – nos termos do art.º 219.º, n.º3, do CPC

5- Os factos alegados pelo réu em nada invalidam a citação, sendo que a mesma efectivamente realizada e regularmente efectuada, não padecendo de nenhum vício.

6- Como refere a douta sentença recorrida: “Assim, se o R não chegou a ter conhecimento do ato da citação, tal facto apenas a si é imputável, porquanto não curou de alterar a sua morada nem teve o cuidado de saber com regularidade que correspondência lhe é dirigida.”

7- Nesta medida, impunha-se ao Tribunal a quo que considerasse confessados, os factos constantes da petição inicial, nos termos do art. 567º, n.º 1 do CPC, uma vez que o réu foi devidamente citado e não apresentou contestação.

8- O direito do Estado está definido no art.º 46.º, n.º e 2, do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, sendo que a indemnização atribuída ao Estado está em conformidade com o referido direito e com os factos dados como provados.

9- Não foram violados quaisquer preceitos legais, incluindo os art.ºs 227.º, 228.º e 233.º do CPC, quanto à citação; o art.º 567.º, n.º 2 do CPC, quanto à confissão dos factos; ou os art.ºs 4.º, 5.º e 46.º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, quanto ao reembolso ao Estado das despesas peticionadas nesta acção.

10- Assim, conclui-se que a sentença recorrida não merece qualquer reparo.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Delimitação do objecto do recurso – questões a apreciar.

As questões suscitadas pelo apelante (atendendo às conclusões formuladas na apelação – por estas se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), podem sintetizar-se nos seguintes termos:

- a falta de citação, por não ter tido, o réu apelante, conhecimento do acto, por facto a si não imputável (conclusões 1ª a 20ª),

- as irregularidades da citação, por preterição de formalidades legalmente prescritas (conclusões 21ª a 29ª),

- a confissão dos factos, por falta de contestação (conclusões 30ª e 31ª),

- a nulidade da sentença – por ter apreciado a questão à luz do instituto da sub-rogação, ao invés de a enquadrar no instituo do direito de regresso, nos termos do art. 46º do DL 503/99, de 20/11 (conclusões 32ª a 41ª), e

- a inexistência de sub-rogação por a situação se enquadrar no direito de regresso (conclusões 34ª a 37ª e 40ª e 41ª).

Esta delimitação do thema decidendum emanada das conclusões das alegações do apelante não se impõe a este tribunal em toda a sua extensão, pois que deve excluir-se do objecto do recurso a segunda questão identificada.

Importante limitação do objecto do recurso resulta da sua própria natureza, devendo de tal mio de impugnação da decisão judicial destrinçar-se a arguição de nulidades processuais, uma vez que o regime das nulidades impõe, em princípio, a sua arguição perante o tribunal onde estas são cometidas.

A nulidade processual (ou nulidade de procedimento, por contraposição à nulidade de julgamento) verifica-se quando existe desvio entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo seguido nos autos, ao qual aquela faça corresponder – embora de modo não expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais[1].

O regime das nulidades secundárias é inteiramente inspirado, nos vários aspectos em que se desdobra, por um são princípio de economia processual[2] – a nulidade de um acto só arrastará consigo a inutilização dos termos subsequentes que dele dependam essencialmente; se um acto for nulo apenas numa das suas partes, as partes restantes que dela não dependam, manterão a sua validade; se o vício do acto apenas impedir a produção de determinados efeitos, não serão afectados os restantes efeitos para que o acto seja apto; para a apreciação das nulidades é competente o tribunal onde o processo se encontre ao tempo da reclamação.

A nulidade (e ressalvadas as nulidades principais previstas nos arts. 186º a 194º do CPC) só se verifica quando a lei expressamente o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa (art. 195º, nº 1 do CPC), dependendo a sua apreciação e julgamento de invocação por parte do interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto (arts. 196º, 2ª parte e 197º, nº 1 do CPC).

Do regime legal estabelecido cabe realçar que a arguição de nulidade secundária é feita perante o tribunal onde a irregularidade for cometida, nos prazos previstos no art. 199º, nº 1 do CPC (cfr. também o art. 149º, nº 1 do CPC), podendo ser arguida perante o tribunal superior no caso de o processo ser expedido em recurso antes de findar o prazo para a parte a invocar (art. 199º, nº 3 do CPC).

Fácil concluir que uma irregularidade processual que possa influir no exame ou decisão da causa ou que a lei expressamente comine com a nulidade tem de seguir o regime próprio para a sua arguição, sob pena de sanação, não podendo ser atacada (arguida) através de recurso – sem embargo dos casos em que são de oficioso conhecimento, as nulidades ‘devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz’ e é a ‘decisão que vier a ser proferida que poderá ser impugnada por via recursória’[3].

Esta ‘solução deve ser aplicada aos casos em que tenha sido praticada uma nulidade processual que se projecte na sentença, mas que não se reporte a qualquer das als. do nº 1 do art. 615º’ do CPC – embora ‘afecte a sentença, deve ser objecto de prévia reclamação que permita ao juiz reparar as consequências’ extraídas, ainda que com prejuízo da decisão proferida[4].

Nos casos de erro de procedimento, que não de erro de julgamento, deve a parte reclamar (arguir a nulidade), possibilitando ao juiz a sua sanação e não já reagir através da interposição de recurso. Solução traduzida pela máxima ‘dos despachos recorre-se, das nulidades reclama-se’.

A reclamação por nulidade e a impugnação por recurso articulam-se de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia de reclamação. O que pode ser impugnado por via de recurso é a decisão que conhece da reclamação por nulidade, e não a nulidade ela mesma, sendo que a perda do direito à impugnação por via de reclamação importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso[5].

Diferente situação ocorre quando se trata de nulidades de oficioso conhecimento (pois que estas ‘constituem sempre objecto implícito do recurso’, podendo ‘ser sempre alegadas no recurso ainda que anteriormente o não tenham sido’[6]), nos casos relativos às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal superior, caso previsto no nº 3 do art. 199º do CPC e ainda nos casos em que o juiz, ao proferir a decisão, omite formalidade de cumprimento obrigatório, designadamente o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa, afigurando-se nestes casos (‘num campo do direito adjetivo em que devem imperar fatores de objetividade e de certeza no que respeita ao manuseamento dos mecanismos processuais’) em que o juiz, ao proferir decisão, ‘se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei’, dever a parte a parte interessada reagir através da interposição de recurso sustentando nulidade da própria decisão, nos termos do art. 615º, nº 1, d) do CPC[7].

Não quadra em qualquer destas situações vindas de referir as arguidas irregularidades da citação (invocada preterição de formalidades no acto de citação – conclusões 20ª a 29ª).

Invoca-se no recurso, inovadoramente, erro (irregularidade) de procedimento não arguido perante o tribunal a quo (onde o mesmo terá ocorrido), pois que tal matéria não integrou o requerimento em que o réu apelante arguiu a nulidade da (rectius, falta de) citação – o réu alegou não ter tido conhecimento do acto de citação, sendo essa a arguição que foi objecto de apreciação e conhecimento na decisão apelada, vindo no recurso invocar ainda que no acto de citação não foram observadas formalidades estabelecidas na lei.

Invocada, pois, irregularidade que não consubstancia nulidade principal, antes uma (a verificar-se) nulidade secundária a ser arguida pela parte no tribunal a quo, sob pena de sanação[8] (sujeita ao regime de arguição previsto nos art. 195º e 199º, nº 1 do CPC) – sendo certo que o prazo para a sua arguição (dez dias) terminou antes do processo ser expedido em recurso (atente-se que o réu arguiu a falta de citação, sem que invocasse simultaneamente a omissão de formalidades que devessem ter sido no acto observadas).

Também não constitui nulidade por omissão de formalidade de cumprimento obrigatório que se impusesse ao juiz na prolação da decisão – a irregularidade invocada não traduz vício da decisão como acto, antes consubstanciaria (a ocorrer) uma irregularidade de procedimento; constituiria (a verificar-se) irregularidade de procedimento, que teria de ser invocada perante o tribunal a quo, onde terá ocorrido.

Face ao exposto, impõe-se concluir que a invocada nulidade (irregularidade de procedimento – art. 191º, nº 1 do CPC) não pode ser arguida mediante recurso, estando assim este tribunal impedido de a apreciar.

Assim, o objecto do recurso, delimitado, por um lado, pelas conclusões das alegações e por outro, pela impossibilidade de ser apreciada a questão elencada em segundo lugar (as irregularidades da citação, por preterição de formalidades legalmente prescritas - conclusões 21ª a 29ª), circunscreve-se às demais elencadas questões.


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:

1– No dia 25.10.2020, pelas 17h15m, na Rua ..., em ..., os agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) BB e EE que ali se dirigiram, a prestar serviço de patrulhamento remunerado, devidamente uniformizados, abordaram AA, aqui réu, por este revelar um comportamento agressivo e provocador em relação a outras pessoas.

2– Durante essa abordagem, o réu dirigiu aos referidos agentes da PSP vários impropérios e expressões como “filhos da puta, mato-vos”, pelo que lhe foi solicitada aidentificação, ao que não acedeu, continuando a ter uma postura exaltada.

3– A determinada altura, visando impedir a atuação dos agentes policiais, o aqui réu desferiu um murro no lado esquerdo da cabeça do agente EE, fazendo com que o mesmo caísse.

4– Logo após, o agente BB tentou segurar o arguido, acabando também por ser agredido por este, com pelo menos um soco na face, empurrado contra um muro e ainda um pontapé no braço direito, pelo menos.

5– Foi então dada voz de detenção ao réu e este foi conduzido à esquadra.

6– Como consequência direta, adequada e necessária da conduta do ora réu, o Agente EE sofreu dores nas áreas atingidas, e sofreu as seguintes lesões físicas:

- edema na face na região zigomática esquerda;

- edema do 1º e 3º dedos com dor à mobilização dos mesmos, o que demandou 8 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho conforme relatório do INML.

7– E também como consequência direta, adequada e necessária da conduta do ora réu, o Agente BB sofreu dores nas áreas atingidas, e sofreu as seguintes lesões físicas: traumatismo no cotovelo direito, com dor e ligeira limitação da amplitude da flexão, da extensão supinação à data do ultimo exame médico-legal, ou seja, a 12.04.2022, tendo tais lesões demandado para a sua consolidação 243 dias, com afetação da capacidade para o trabalho profissional, pelo mesmo período conforme Relatório do INML e consta dos factos provados da sentença condenatória proferida pelo Juízo Criminal de Vila do Conde – Juiz 3.

8– Período durante o qual o agente BB não prestou ao Estado qualquer serviço.

9– Sendo certo que as lesões sofridas, apenas foram passíveis de correção com exames, consultas e fisioterapia cujo pagamento o Estado-PSP também efetuou ao próprio e a entidades:

-Taxas moderadoras, consultas e juntas de saúde

------------------------------------------------------------------- 93,91€

--------------------------------------------------------------------364,00€

--------------------------------------------------------------------108,75€

--------------------------------------------------------------------€108,75

--------------------------------------------------------------------- 73,78€

---------------------------------------------------------------------- 3,99€

----------------------------------------------------------------------550,00€

----------------------------------------------------------------------442,16€

Subtotal---------------------------------------------------------1.745,34€.

10– O Estado - Ministério da Administração Interna - Polícia de Segurança Pública, durante o aludido período de tempo, pagou ao agente BB, sem qualquer contrapartida, a importância total de 66.235,78€:

- Remuneração base -----------------------------------------30.568,43€,

- Suplemento Forças de Segurança--------------------------7.661,22€,

- Fardamento ---------------------------------------------------1.316,15€,

- Subsídio de Refeição ----------------------------------------2.776,14€,

- Suplemento de Turno ----------------------------------------3.916,08€,

- Suplemento de Patrulha--------------------------------------1.494,02€,

- Subsídio de Natal----------------------------------------------3.209,88€,

- Subsídio de Férias---------------------------------------------3.367,34€, e

- Taxas Contributivas - regime social-------------------------11.926,52€.

11– Despesas essas que ficaram a dever-se à atuação ilícita do réu que lhes deu origem ao reagir à prática de atos compreendidos nas funções dos agentes da PSP de manutenção da ordem pública e ao pretender evitar a sua detenção e condução à Esquadra, e que foram directa e necessariamente, causa do prejuízo do Estado.

12 - Tendo assim o réu causado, ilícita e directamente, um prejuízo ao Estado de 67.981,12€ (sessenta e sete mil, novecentos e oitenta e um euros e doze cêntimos).

13–Não foi deduzido pedido cível na ação penal pelo facto de os danos não serem, então, conhecidos em toda a sua extensão.

14– O réu foi condenado pelos respetivos crimes por sentença lavrada no âmbito do processo comum singular nº 621/20.5PAVCD da instância criminal local de ... de 17 de Maio de 2023, devidamente transitada em julgado.


*


Fundamentação jurídica

A. Da falta de citação.

Manifesta a improcedência da apelação quanto à questão.

O réu apelante, no requerimento em que arguiu a sua falta de citação (qualifica o vício como nulidade, mas a alegação enquadra-se na falta de citação), sustentou a invocada falta de conhecimento do acto de citação (art. 188º, nº 1, e) do CPC), na circunstância da carta para citação ter sido recebida pelo seu pai, motorista de longo curso, que nesse mesmo dia saiu de casa para trabalhar (regressando apenas na semana do Natal), sendo certo que ele, réu, ao tempo em que essa correspondência foi expedida/recebida (mês de Outubro de 2023), passara a habitar a casa de amigos, no Algarve, tendo também estado um mês embarcado (é marítimo de profissão), só voltando a casa dos pais por altura do Natal, não sendo imputável aos pais a falta de entrega da correspondência.

Importa preliminarmente esclarecer não poder ter-se por demonstrado que ao tempo em que a carta para citação foi enviada para a morada indicada na petição (em ...) – enviada em 9/10/2023 e entregue a CC em 11/10/2023 (cfr. o aviso de recepção junto aos autos em 16/10/2023) – o réu não tivesse aí residência – atente-se, desde logo, que o relatório elaborado pelos Serviços de Reinserção Social, datado de 8/11/2023 e junto como documento nº 4 pelo réu apelante com o requerimento em que invocou a falta de citação, que tem como assunto a alteração de residência do réu, expressamente refere que o mesmo mantinha como morada para efeitos de correspondência a morada dos pais, em ... (correspondente à indicada na petição e àquela para onde foi dirigida a carta para a sua citação).

Ademais, não demonstrou o réu que os seus pais, que receberam a carta para citação e a carta enviada nos termos do art. 233º do CPC (o pai recebeu a carta para citação e assinou o aviso de recepção; a mãe, que segundo alega, recebeu a carta registada enviada nos termos do art. 233º do CPC), não lhe tenham entregue tal correspondência senão em Dezembro de 2023 ou sequer que lhe não tenham comunicado a existência de tal correspondência – o réu apelante ofereceu tão só prova documental, sendo que nenhum dos documentos é minimamente apto a permitir concluir que os pais do réu lhe não entregaram e/ou não comunicaram o recebimento das referidas cartas (trata-se de documentos aptos a demonstrar que o réu esteve embarcado de princípios de Novembro a princípios de Dezembro de 2013, à ordem de empresa estrangeira e até a concluir que habitou em casa de amigos no Algarve, mas totalmente alheios à questão de apurar se o réu foi ou não informado pelos pais quanto à correspondência para ele dirigida no âmbito dos presentes autos ou se a mesma lhe foi ou não entregue).

Do que acaba de referir-se resulta a improcedência da apelação quanto à questão em apreciação (falta de citação do réu – art. 188º, nº 1, e) do CPC), pois que não logrou o réu apelante sequer demonstrar a falta de conhecimento do acto – não demonstrando que o seu pai, que recebeu a carta de citação e assinou a aviso de recepção, não lhe deu disso conhecimento (senão em Dezembro e 2023) ou que também a sua mãe, que segunda alega recebeu a carta enviada nos termos do art. 233º do CPC, não lhe deu conhecimento de que recebera tal correspondência, tem de concluir-se não ter o réu demonstrado, como lhe competia, não ter chegado a ter conhecimento do acto; para se concluir pela verificação da omissão de citação, nos termos da alínea e) do nº 1 do art. 188º do CPC, é insuficiente a simples invocação do desconhecimento do acto e de que tal desconhecimento lhe não é imputável, pois considerando a presunção de efectivo conhecimento da existência da citação (arts. 225º, nº 4 e 230º, nº 1 do CPC) é sobre o réu que recai o ónus de alegar e provar os pressupostos estabelecidos na alínea e) do nº 1 do art. 188º do CPC[9], o que não logrou.

De corroborar, pois, a decisão apelada no segmento que considerou improcedente a arguida falta de citação do réu.

B. A revelia do réu – a confissão dos factos articulados na petição.

Ponderando que deve considerar-se ter sido o réu citado regularmente na sua própria pessoa (arts. 228º, nºs 2, 3, 4 e 230º, nº 1 do CPC), a falta de contestação leva a que se considerem confessados os factos articulados pelo autor – esse é o efeito legalmente estabelecido (art. 567º nº 1 do CPC) para a revelia do réu que tenha sido ou deva considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa.

Assim que não se constata qualquer violação do art. 567º, nº 1 do CPC.

C. A nulidade da sentença – a violação do disposto no art. 46º do DL 503/99, de 20/11, ao enquadrar a questão no instituto da sub-rogação e não no instituto do direito de regresso (conclusões 32ª a 41ª).

Invoca o apelante a nulidade da sentença por enquadrar o direito do Estado ao reembolso das quantias pagas aos seus servidores (agentes da PSP em serviço aquando do evento lesivo) no âmbito do instituto da sub-rogação e não no instituto do direito e regresso (estabelecido no art. 46º do DL 503/99, de 20/11).

A primeira (e básica) observação que a arguição do apelante merece é a de que o erro de julgamento (erro de qualificação jurídica ou de enquadramento dos factos no instituto jurídico pertinente) não é causa de nulidade da sentença – apesar de não traçar o conceito de nulidade da sentença, a lei (nas alíneas do nº 1 do art. 615º do CC) enumera (taxativamente) as várias hipóteses de desconformidade de tal peça com a ordem jurídica e que, uma vez constatadas, arrastam à sua nulidade[10], não constando o erro de julgamento (de facto e/ou de direito) entre elas.

A nulidade da sentença não se confunde com o erro de julgamento (error in judicando), de facto ou de direito, inerentes ao mérito da decisão, seja mercê de deficiente percepção da realidade fáctica (error facti), seja em razão de erro na aplicação do direito (error juris), que conduzem a decisão desajustada à normatividade pertinente[11].

Constatação que permite concluir não constituir nulidade da sentença o erro eventualmente cometido no enquadramento jurídico da factualidade apurada, na determinação do instituto jurídico aplicável (no caso, sub-rogação ou direito de regresso) – tal vício, a ocorrer, repercute-se tão só no valor doutrinal da sentença, sujeitando-a, se for o caso, a revogação e consequente alteração[12].

Evidente, pois, a improcedência da arguição.

D. A inexistência de sub-rogação por a situação se enquadrar no direito de regresso (conclusões 34ª a 37ª e 40ª e 41ª).

Não questiona o apelante o direito do autor a exigir-lhe, enquanto obrigado com fundamento na responsabilidade civil extracontratual, as quantias que despendeu a título de despesas de tratamento dos agentes de PSP lesados no evento (quando se encontravam em serviço) e bem assim a título de salários pagos a agente da PSP no período temporal em que se viu impossibilitado, em consequência das lesões sofridas no evento, de prestar serviço.

Tão só se insurge contra o enquadramento jurídico de tal direito, que não deixa de reconhecer ao autor – não se trata, alega, de uma situação de sub-rogação, como considerado na sentença recorrida, antes se trata de situação que se enquadra no direito de regresso estabelecido nos art. 46º do DL 503/99, de 20/11.

Questão que se apresenta, ponderando a finalidade do recurso, enquanto meio de impugnação judicial destinado a modificar/alterar a decisão recorrida em sentido favorável ao recorrente, como meramente académica, sem influência ou repercussão no sentido da decisão – a injunção decretada na decisão recorrida (a procedência da acção com consequente condenação do réu a pagar ao autor as quantias peticionadas) manter-se-á inalterada, ainda que se conceda assistir razão ao apelante quanto ao instituto jurídico e normas a aplicar.

A impugnação das decisões judiciais não se destina a obter a correcção de erros de qualificação ou enquadramento jurídico, a melhorá-las tecnicamente enquanto peças jurídicas; os recursos destinam-se a possibilitar à parte vencida obter decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido, estando a impugnação funcionalmente ordenada a permitir que a parte recorrente possa obter a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido em sentido a si favorável – e por isso que tal propósito só ocorre quando ao fundamento do recurso se reconheçam efeitos práticos, com possibilidade de se repercutir na decisão, levando à sua modificação/alteração.

A questão suscitada pelo apelante é destituída de qualquer efeito prático, pois que o enquadramento da questão à luz do direito de regresso do Estado contra o terceiro civilmente responsável pelo evento de que resultem lesões aos seus trabalhadores/servidores, estabelecido nos arts. 4º, 5º e 46º do DL 503/99, de 20/11, quanto a quantias pagas a título de assistência médica, remuneração e prestações de carácter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho sofrido pelo trabalhador/servidor (no caso, agentes da PSP), leva à mesma solução (e decisão) que a encontrada na decisão apelada, que para tanto enquadrou a questão no instituo da sub-rogação (certamente seguindo o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 5/97, de 14/01/97[13], tirado antes da vigência do DL 503/99).

O invocado erro de qualificação mostra-se, pois, irrelevante à sorte da apelação – a questão suscitada pelo apelante é indiferente à decisão, sendo certo que a actividade jurisdicional é finalisticamente orientada para a resolução de um litígio, determinada e orientada por uma feição prática de resolução de concretos litígios, não tendo qualquer vocação de aprimoramento técnico da decisão enquanto peça jurídica, movendo-se o recurso também no estrito propósito de alcançar aquele desiderato (permitir que a parte recorrente possa obter a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido em sentido a si favorável, ou pelo menos mais favorável).

Na situação dos autos, debater e discutir a questão, que não interfere de modo algum na solução da causa, significaria não mais do que satisfazer um mero interesse (académico) de obter um pronunciamento judicial sobre a matéria e não já satisfazer o direito à obtenção de uma decisão diversa da tomada pelo tribunal recorrido.

Decorre do exposto impôr-se a esta Relação abster-se de apreciar a questão, pois que a causa, mesmo à luz do instituto jurídico proposto pelo apelante (direito de regresso), sempre teria de ser julgada inteiramente procedente e o apelante condenado a pagar as quantias peticionadas, tal como decidido na sentença recorrida – sendo ele o responsável civil (o obrigado a indemnizar, com fundamento na responsabilidade civil extracontratual), é o responsável contra quem o Estado tem direito de regresso (nº 1 do art. 46º do DL 503/99), relativamente às quantias pagas a título de assistência médica, remuneração e outras prestações de carácter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho (nº 2 do art. 46º do DL 503/99).

E. Síntese conclusiva

Do exposto resulta a improcedência da apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

…………………………………..

…………………………………..

…………………………………..


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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão apelada.

Custas pelo apelante.


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Porto, 10/09/2024


(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
João Diogo Rodrigues
Maria da Luz Seabra

_____________________
[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 176.
[2] A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, p. 391.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, p. 26.
[4] Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 26.
[5] Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, 2009, p. 52.
[6] Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos (…), p. 52.
[7] Abrantes Geraldes, Recursos (…), pp. 27 e 28. Sobre o desrespeito do contraditório cometido pelo juiz ao proferir decisão – vício que sustenta constituir nulidade da decisão, por excesso de pronúncia –, Miguel Teixeira de Sousa, ‘Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária’, comentário de 22/09/2020 a acórdão do STJ  de 2/06/2020  (processo nº 496/13.0TVLSB.L1.S1) e ‘Por que se teima em qualificar a decisão surpresa como uma nulidade processual?’, comentário de 12/10/2021 e, ainda em comentário de 7/09/2021 a acórdão da Relação de Guimarães de 28/02/2021, no blog do IPPC, no sítio https://blogippc.blogspot.com (consulta on-line efectuada em Julho de 2024).
[8] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral do Processo de Declaração, 2018, p. 550 e Rui Pinto, Código de Processo Civil, Volume I, 2018, pp. 698/699.
[9] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), Vol. I, pp. 226 e 227.
[10] Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª Edição, p. 53.
[11] Neste sentido, v. g., o acórdão do STJ de 7/03/2023 (Ataíde das Neves), no sítio www.dgsi.
[12] Fernando Amâncio Ferreira, Manual (…), p. 55.
[13] Publicado no sítio www.dgsi.pt (relatado por Henriques de Matos).