CONTRADITÓRIO
PRETERIÇÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
DESTITUIÇÃO
JUSTA CAUSA DE DESTITUIÇÃO
Sumário

I - A decisão que julgue pretensão e aprecie ou conheça questão sem cumprimento do contraditório legalmente imposto é nula, por excesso de pronúncia, a invocar no recurso dela interposto.
II - Tal patologia tem de ser invocada pelos interessados privados do contraditório - as nulidades da sentença, salvo o caso da situação prevista na alínea a) do nº 1 do art. 615º do CPC, não são de oficioso conhecimento, necessitando de ser arguidas pela parte prejudicada pelo vício ou irregularidade.
III - O contraditório estabelecido no nº 1 do art. 56º do CIRE em vista da prolação da decisão sobre a destituição do administrador e/ou fiduciário (ex vi art. 240º, nº 2 do CPC) exige a prévia audição do devedor, do administrador ou fiduciário e da comissão de credores, caso exista, não já dos credores – na falta de comissão de credores, ninguém a substituirá na audição, sendo correspondentemente ineficaz a disposição legal.
IV - O conceito de justa causa de destituição do administrador e do fiduciário assenta na ideia de ‘inexigibilidade de continuação da relação, por grave violação de deveres e importante atentado ao princípio da confiança que está subjacente às relações funcionais estabelecidos com o Tribunal, os órgãos de gestão, credores e demais interessados na insolvência, dificultando ou inviabilizando o objectivo ou finalidade do respectivo processo’ – no caso do fiduciário, dificultando ou inviabilizando uma idónea, adequada e justa apreciação e decisão do incidente de exoneração do passivo restante.
V - Interessa a falta importante e grave, quer na sua dimensão individualizada, quer no domínio do resultado consequencial – a justa causa de destituição só ocorrerá quando a falta ou falha do nomeado tenha repercussão ou objectivação no âmbito do processo ou incidente, dificultando ou inviabilizando se alcancem as suas finalidades, pois só então se poderá ter por irremediavelmente ferida a relação de confiança que a manutenção do exercício do cargo pressupõe.

Texto Integral

Apelação nº 2341/20.1T8AVR.P1




Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Alberto Taveira
 Anabela Dias da Silva


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Apelante: AA.

Insolvente: BB.

Juízo de comércio de Aveiro (lugar de provimento de Juiz 2) – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.


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No processo em que foi decretada a insolvência da devedora BB, foi proferido (em 25/02/2021) despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, designando-se como fiduciário o administrador da insolvência, AA, mais se declarando o encerramento do processo, nos termos do art. 230º/1, e), do CIRE, sem prejuízo do prosseguimento das diligências inerentes à cessão do rendimento disponível.

         Foi então observada, no que releva, a seguinte tramitação:

- junta aos autos, em 11/03/2021 factura no valor de 14€ emitida por terceiro relativa ao transporte para afixação de editais, foi em 17/03/2021 solicitado o administrador para proceder ao respectivo pagamento (solicitação renovada em notificação de 5/04/2021);

- em 21/03/2022 apresentou o sr. fiduciário o relatório anual, com o seguinte teor:

         ‘AA, Administrador de insolvência nos autos supra referenciados em que é requerente a pessoa singular BB, vem dignamente no seguimento da notificação rececionada, v/refª 120879204, expor e requerer nos termos definidos no nº 2 do art. 240º do CIRE:

A - EXPOR

Da Lei

I. A insolvente ficou devidamente advertida em despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante das suas obrigações, constantes dos arts. 239º, nº 3 e 4 e 240º, nº 1 do CIRE.

II. De igual modo foi a insolvente notificada por despacho consentâneo para iniciar as entregas do seu rendimento disponível ao fiduciário nomeado e sendo este para dar cumprimento ao disposto nos arts. 241º e seguintes do mesmo diploma legal.

III. Atenta a publicitação do despacho inicial de exoneração do passivo restante e o encerramento do processo, a notificação precedente teve efeitos imediatos e perduráveis pelo período de cessão (5 anos), não sendo a devedora passível de notificação suplementar, uma vez que é ato que lhe é imposto legalmente, cabendo-lhe a si o controlo do prazo para cumprimento, sob pena de cessão antecipada da exoneração do passivo restante (art. 717º, nº 1 do C.P.C.)

IV. A citação à devedora enquadra-se ainda nos termos definidos no nº 1 do art. 238º, 227º e nº 1 do art. 247º do C.P.C.

V. Por força do deferimento do pedido de exoneração do passivo restante a insolvente é que tem que comprovar ao Fiduciário, ao longo do período de cessão, quais os rendimentos que auferiu ou, caso não tenha qualquer rendimento, a ausência dos mesmos e a respetiva inscrição no centro de emprego.

VI. Em complemento às suas obrigações notificou-se a devedora em 07/03/2021 para a obrigação de cumprir de forma proficiente as obrigações que decorrem da lei e por iniciativa própria.

Do cumprimento

VII. Estabelece-se assim o presente relatório ao período correspondente ao 1º ano do período de cessão de fevereiro de 2021 a janeiro de 2022.

VIII. Notificada a mandatária por correio eletrónico em 07/03/2021para estabelecer contato junto da devedora, não foi possível até à presente data obter as informações pretendidas.

IX. Informa-se que não foi possível obter qualquer montante da devedora que pudesse ressarcir, nem que fosse parcialmente, os créditos reconhecidos no âmbito do presente processo de insolvência.

X. Desconhece-se a atual situação profissional da devedora, alegando-se precedentemente que requerente tinha exibido um documento emitido pelo Centro Distrital de Aveiro onde se pôde concluir que durante um determinado período de tempo terá beneficiado do RSI, não sendo, contudo, possível conhecer qual a atividade profissional que exerce, se exerce, e neste caso a sua inscrição no Centro de Emprego local.

XI. Dada a ausência informativa, desconhece-se da existência ou inexistência de património.

XII. Por ausência de informação, ignora-se o nível de rendimentos no período supramencionado.

XIII. Não se teve conhecimento da celebração de contratos que pudessem onerar os rendimentos ou o património da devedora e causar, eventualmente, desta forma prejuízo aos credores.

XIV. Não foi disponibilizado o Certificado Criminal atualizado relativo ao período em curso.

XV. A devedora não estabeleceu qualquer nível de contacto informativo, de colaboração e de

disponibilidade.

XVI. Remete-se ainda comprovativo da recente notificação aos credores, nos termos do nº 2 do art. 240º do CIRE.

XVII. O período de cessão está atribuído de 25 de fevereiro de 2021 a fevereiro de 2026.

Remuneração

XVIII. O cargo de Fiduciário tem uma posição tão nobre quanto a do Administrador de insolvência ou de outros cargos decisórios do nosso panorama judicial.

Os esforços e o acompanhamento que serão concretizados durante o período de cessão que dura cinco anos, têm relevância primordial na obtenção do rendimento disponível e afetação dos montantes recebidos para pagamento aos credores e demais despesas e na verificação se a devedora incorreu em alguma infração do disposto no nº 4 do art. 239º do CIRE,

Este poder atribuído ao fiduciário pelo legislador é consagrado por entender que aquele possuirá capacidade técnica e idoneidade para o exercer, não podendo nem devendo estar presente imponderações interpretativas e arbítrios pessoais que ponham em causa o futuro de uma pessoa e a sua recuperação financeira e social.

No entanto a remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas para o exercício do cargo em questão constitui encargo da devedora, sendo que a sua remuneração está definida como sendo de 10% das quantias objeto de cessão, com o limite máximo de (euro) 5000 por ano, sendo ainda aplicáveis ao fiduciário, com as devidas adaptações, os nºs 2 e 4 do artigo 38.º, os artigos 56.º, 57.º, 58.º, 59.º e 62.º a 64.º; é também aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 60.º e no n.º 1 do artigo 61.º, devendo a informação revestir periodicidade anual e ser enviada a cada credor e ao juiz.

No que se refere ao presente processo de insolvência a cessão de rendimento atribuída à devedora foi nula, não sendo objeto de apreciação as despesas que o Fiduciário incorreria no seu acompanhamento processual, quanto mais não seja na redação de um relatório anual e os encargos no seu envio aos credores.

Ou seja, atualmente ao fiduciário não lhe está atribuída uma remuneração periódica, incorrendo ainda na obrigação de gastar dinheiro a título pessoal para o exercício do cargo em causa a favor de quem contraiu dívida e se propôs ao processo de insolvência.

Entendimento semelhante decorre do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/01/2013 relativo ao processo nº 419/12.4TBOAZ-F.P1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proc. nº 1714/09.5TBVNG-J.P1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proc. nº 347/13.6TJPRT.P1, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/01/2016 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proc. nº 4653/15.7T8VNG-B.P1 de 11/08/2016, em que é admissível o pagamento de remuneração ao fiduciário por adiantamento pelo Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça.

Não tendo fixado o Tribunal a remuneração mínima e se a insolvente nunca vier a entregar qualquer rendimento, não serei reembolsado das despesas que tiver no exercício das mesmas e não será o digno cargo remunerado de acordo com o elevado grau de importância que lhe está atribuído.

B - REQUERER

Atendendo à dignificação do cargo e aos custos a suportar pelo acompanhamento processual, torna-se útil definir nos autos o valor de 350,00 € por cada período de cessão a atribuir ao Fiduciário e a ser liquidado pelo IGFEJ, I.P.’;

- em 30/03/2022 a devedora prestou nos autos informações e juntou documentos concernentes ao primeiro ano de cessão (atestado médico e documentos comprovativos dos rendimentos auferidos),

- notificado de tal requerimento e documentos, apresentou (ainda em 30/03/2022) o sr. fiduciário novo relatório (deixando expresso o seu entendimento de que não lhe assiste ‘qualquer obrigação legal, formal ou informal em notificar a devedora, sendo essa incumbência da responsabilidade da sua mandatária e do Tribunal’, no sentido desta prestar informações, ‘pese embora se tenha concretizado a devida notificação à devedora em 07/03/2021 e eletronicamente a mandatária na mesma data’), dando nota de que a devedora teria de entregar à fidúcia (atentos os rendimentos declarados) o montante de 22,10€;

- em 4/05/2022 o fiduciário veio aos autos informar que a devedora ainda não tinha entregue à fidúcia a quantia devida, sendo que posteriormente, a solicitação da devedora, veio o fiduciário informar o NIB para onde tal valor deveria ser transferido;

- em 16/03/2023 veio a devedora fazer entrega dos elementos relativos ao segundo ano de cessão, sendo o fiduciário notificado do requerimento e dos documentos que o acompanhavam em 17/03/2023;

- em 4/04/2023 entregou o fiduciário relatório anual com o seguinte teor:

AA, Administrador de insolvência nos autos supra referenciados em que é requerente a pessoa singular BB, vem dignamente no seguimento da notificação rececionada, v/refª 126825954, expor e requerer nos termos definidos no nº 2 do art. 240º do CIRE:

A - EXPOR

Do cumprimento

I. Estabelece-se assim o presente relatório ao período correspondente ao 2º ano do período de cessão de fevereiro de 2022 a janeiro de 2023.

II. Notificada a mandatária por correio eletrónico em 07/03/2021 para estabelecer contacto junto da devedora, não foi possível até à presente data obter as informações pretendidas relativas ao período em causa.

III. Informa-se que a devedora entregou à fidúcia até à presente data o montante de 22,10 €.

IV. Por ausência de informação, ignora-se o nível de rendimentos no período supramencionado.

V. Não se teve conhecimento da celebração de contratos que pudessem onerar os rendimentos ou o património da devedora e causar, eventualmente, desta forma prejuízo aos credores.

VI. A devedora não estabeleceu qualquer nível de contacto informativo, de colaboração e de disponibilidade.

VII. Remete-se ainda comprovativo da recente notificação aos credores, nos termos do nº 2 do art. 240º do CIRE.

VIII. O período de cessão está atribuído de 25 de fevereiro de 2021 a fevereiro de 2024.

Remuneração

IX. O cargo de Fiduciário tem e deve ser remunerado, razão pela qual o signatário já providenciou pelo devido requerimento aos autos em 30/03/2022, ou seja, há mais de 1 (um) ano, sem que o Tribunal tivesse promovido ao devido e obrigatório despacho.

A ausência deliberada e injustificado por parte do Tribunal sobre o pagamento da devida remuneração, tem como consequência o desenvolvimento de um controlo remuneratório sobre a devedora totalmente gratuito.

Não tendo fixado o Tribunal a remuneração mínima e se a insolvente nunca vier a entregar qualquer rendimento, não serei reembolsado das despesas que tiver no exercício das mesmas e não será o digno cargo remunerado de acordo com o elevado grau de importância que lhe está atribuído.

B - REQUERER

Atendendo à dignificação do cargo e aos custos a suportar pelo acompanhamento processual, reitera-se que se torna útil definir nos autos o valor de 300,00 € por cada período de cessão a atribuir ao Fiduciário e a ser liquidado pelo IGFEJ, I.P.’;

         - em 4/05/2023 a devedora veio aos autos requerer/expor nos termos seguintes:

BB, Insolvente, já devidamente identificada nos autos acima referenciados, tendo presente a informação do Sr. Administrador de Insolvência, vem dizer o seguinte:

1. Conforme resulta dos presentes autos, a Insolvente, por meio da sua Patrona Oficiosa, remeteu, no dia 16/03/2023 todos os documentos relativos aos rendimentos obtidos pela Insolvente e declaração fiscal.

2. No dia 17/03/2023, o Tribunal remeteu ao Sr. Administrador de Insolvência, conforme referência citius n.º 126523746, todos esses mesmo documentos.

3. A Insolvente fez esta entrega, via citius, para não haver dúvidas que os documentos tinham sido entregues, dado, desde o início, ter havido alguma fricção entre Patrona e Administrador.

4. Sucede que, inexplicavelmente, o Sr. Administrador vem informar que os documentos não foram entregues pela Insolvente, fazendo mesmo, referência a um pedido datado de 07/03/2021, dois anos atrás, pois que, efectivamente, no ano de 2023 não fez qualquer pedido, nem havia necessidade por terem sido entregues.

5. Assim, vem Requerer a V.ª Ex.ª se digne mandar notificar o Sr. Administrador de Insolvência para vir informar porque motivo alega não ter os documentos, quando consta dos autos que os mesmo lhe foram remetidos.

6. Mais se REQUER que seja verificado no sistema Citius se a notificação que lhe foi remetida no dia 17/03/2023, com referência Citius n.º 126523746, foi lida e quando.

7. REQUER ainda a V.ª Ex.ª que seja o mesmo Sr. Administrador de Insolvência notificado para elaborar o seu relatório com base nos documentos que lhe foram entregues’;

- em requerimento de 5/05/2023, expôs o fiduciário:        

AA, Administrador de insolvência nos autos supra referenciados em que é requerente a pessoa singular BB, vem dignamente no seguimento da notificação rececionada, v/refª 127214091, informar que a devedora não procedeu à entrega da documentação solicitada para complemento do relatório.

A ausência de colaboração tem semelhança com este Tribunal que volvidos 2 (dois) anos do período de cessão ainda não definiu de forma deliberada a remuneração do signatário, violando os princípios básicos consagrados na Constituição da República Portuguesa.

Remete-se ainda comprovativo da recente notificação aos credores, nos termos do nº 2 do art. 240º do CIRE.’;

- em requerimento apresentado em 23/05/2023 expôs a devedora:

BB, Insolvente, já devidamente identificada nos autos acima referenciados, notificada da informação prestada pelo Sr. Administrador de Insolvência, vem dizer o seguinte:

1. A Insolvente mantém tudo quanto afirmou no seu requerimento de 04/05/2023, com a referência Citius 14513597.

2. O único contacto que a Patrona Oficiosa teve por parte do Sr. Administrador foi tão só a informar do envio do relatório, nunca tendo recebido qualquer comunicação a solicitar quaisquer documentos acrescidos em relação aqueles que tinha remetido para o processo.

3. Aliás, por contacto com o Tribunal foi possível perceber que o Sr. Administrador está na posse dos documentos que o Tribunal lhe remeteu, pois que este recebeu a notificação e viu a mesma.

4. Pelo que, neste momento continua a Insolvente sem saber porque motivo o Sr. Administrador não elaborou o relatório e, se, só por mera hipótese académica o admite, solicitou documentos acrescidos, quais foram estes e que remeta o email comprovativo de tal pedido, pois que o de 2021 não serve para o efeito pretendido.

5. Mais uma vez REQUER a V.ª Ex.ª que seja o mesmo Sr. Administrador de Insolvência notificado para elaborar o seu relatório tendo por base os documentos que lhe foram entregues.

- em 8/06/2023 o fiduciário apresentou o relatório anual relativo ao segundo ano de cessão (ponderando as informações e documentos trazidos aos autos pela devedora no seu requerimento de 16/03/2023).

      Em 16/06/2023, ponderando concretas circunstâncias que pormenorizou e que poderiam em seu entender sustentar a destituição do fiduciário, determinou o Exmo. Juiz a notificação deste e da devedora para se pronunciarem (arts. 56º e 240º, nº 2 do CIRE).

      Decorrido o prazo concedido sem que o fiduciário se pronunciasse e manifestando a devedora nada ter a opor à destituição, foi proferido o seguinte despacho:

Na sequência do despacho anterior, ponderada a possibilidade de proferir decisão de destituição, o Sr. fiduciário nada disse, ao passo que a devedora emitiu pronúncia no sentido de nada ter a opor.

Como resulta dos autos, é possível considerar assentes os factos e conclusões jurídicas seguintes, relativos ao comportamento do Sr. fiduciário, nessa e na qualidade de administrador da insolvência:

a) Recusou proceder ao pagamento da despesa para a qual foi notificado a 17/3/2021 e a 5/4/2021, apesar de ter recebido a totalidade da provisão legal para o efeito, sem que se evidencie nos autos que ela tenha sido esgotada;

b) Não prestou contas da sua actividade, nem requereu a sua dispensa, assim infringindo o disposto nos arts. 62.º e 240.º/2 do CIRE;

c) Afirmou que “ausência de colaboração tem semelhança com este Tribunal que volvidos 2 (dois) anos do período de cessão ainda não definiu de forma deliberada a remuneração do signatário, violando os princípios básicos consagrados na Constituição da República Portuguesa” (requerimento de 5/5/2023), o que consubstancia manifesto incumprimento do dever de recíproca correcção, nos termos dos arts. 9.º do CPC e 17.º/1 do CIRE;

d) O que fez tendo a obrigação de saber que, desde o despacho de 25/2/2021, que admitiu o pedido de exoneração, o processo não mais foi concluso para despacho judicial (por compreensíveis motivos de elevada pendência da secretaria);

e) O que fez depois de, tendo limitado a sua actividade de administrador da insolvência à elaboração do relatório e da relação de credores – sem qualquer apreensão, sem qualquer diligência de liquidação, sem elaboração de parecer de qualificação ou outra qualquer diligência proveitosa para a massa insolvente – ter recebido, do IGFEJ, na sequência do citado despacho, a totalidade da remuneração fixa e a referida provisão para despesas;

f) O que fez ainda apesar de saber que a fixação da remuneração ao fiduciário depende ainda, não apenas de decisão do juiz, mas também, desde logo, do concreto valor das entregas realizadas a título de rendimento disponível (art. 28.º do EAJ);

g) Não dirigiu qualquer solicitação de informações e elementos à devedora no âmbito do procedimento de exoneração, limitando-se a elaborar e comunicar os relatórios anuais, acrescentando até “não competindo ao Fiduciário promover a qualquer notificação” (requerimento de 8/6/2023), o que traduz manifesta inobservância do dever funcional que está adstrito o Sr. fiduciário mercê do disposto no art. 239.º/4, al. a), do CIRE;

Com efeito, se o devedor fica obrigado, no procedimento de exoneração, a “não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado” (destacado nosso), naturalmente que tal estatuição pressupõe o cumprimento do dever prévio, por parte do Sr. fiduciário, de solicitar as referidas informações, directamente ao devedor (e/ou à il. mandatária), e não através da mera elaboração e comunicação do relatório anual onde apenas refere que nada lhe foi entregue (desde logo, porque nada o Sr. fiduciário solicitou directamente à devedora e/ou à il. patrona);

h) Não dirigiu à devedora e/ou à il. patrona qualquer solicitação de entrega do rendimento disponível, limitando-se a indicar um valor em dívida no relatório anual e a comunicar esse relatório à il. patrona, assim incumprindo o dever funcional que decorre, claramente, do disposto no art. 241.º/1 do CIRE, no segmento em que prevê que “o fiduciário notifica a cessão de rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los”;

Ora, essa estatuição legal pressupõe, a nosso ver, que, se o Sr. fiduciário não interpela a entidade que processa os pagamentos à devedora, tem ao menos de interpelar a devedora a proceder à sua entrega.

i) Em suma, evidenciando uma perspetiva segundo a qual, nada tem de solicitar a propósito dos proventos da devedora e da entrega do rendimento disponível, limitando a sua actuação, tão-somente, à elaboração de relatórios nos quais afirma apenas que nada lhe foi entregue; e

j) Finalmente, considera-se, salvo o devido respeito por outra opinião, que assiste inteira razão à il. patrona da devedora no seu requerimento de 4/5/2023, quando afirma “Conforme resulta dos presentes autos, a Insolvente, por meio da sua Patrona Oficiosa, remeteu, no dia 16/03/2023 todos os documentos relativos aos rendimentos obtidos pela Insolvente e declaração fiscal. 2. No dia 17/03/2023, o Tribunal remeteu ao Sr. Administrador de Insolvência, conforme referência citius n.º 126523746, todos esses mesmo documentos. 3. A Insolvente fez esta entrega, via citius, para não haver dúvidas que os documentos tinham sido entregues, dado, desde o início, ter havido alguma fricção entre Patrona e Administrador. 4. Sucede que, inexplicavelmente, o Sr. Administrador vem informar (cfr. requerimento de 4/4/2023) que os documentos não foram entregues pela Insolvente, fazendo mesmo, referência a um pedido datado de 07/03/2021, dois anos atrás (destacados nossos), pois que, efectivamente, no ano de 2023 não fez qualquer pedido”.

Os referidos factos, para além de resultarem dos próprios autos, não foram contrariados pelo Sr. fiduciário, que sobre os mesmos, aliás, não prestou qualquer explicação ou justificação, em especial, no que respeita à infracção de deveres funcionais, previstos nos arts. 9.º, 17.º/1, 62.º, 239.º/4, al. a), 240.º/2 e 241.º/1 do CIRE.

Segundo pensamos, os referidos factos, para além de ilícitos, porque em divergência das exigências legais, são manifestamente suficientes para abalar de forma irreversível a relação de confiança indispensável à manutenção no exercício de funções, impondo, pois, decisão de destituição, nos termos conjugados dos arts. 56.º/1 e 240.º/2 do CIRE.

Pelo exposto, decido destituir de funções o Sr. fiduciário, nomeando agora para o cargo, tendo em conta os princípios de aleatoriedade e rotatividade (embora sem recurso ao programa informático existente para o efeito, por estar neste momento indisponível), a Sra. Dra. CC, com domicílio profissional na Rua ..., ..., apartado ...10, ... ..., a quem concedo o prazo de trinta dias para reformular as duas primeiras informações anuais sobre o procedimento de exoneração e comprovar a sua notificação aos demais interessados, nos termos dos arts. 240.º e 241.º do CIRE, e a quem o Sr. fiduciário destituído de funções fica obrigado a prestar a colaboração necessária ao exercício de funções, nos termos do art. 16.º/6 do CIRE, nisso incluindo a entrega de todos os elementos relativos aos autos e todas as quantias existentes na conta da massa insolvente e massa fiduciária.

Custas do incidente atípico pelo Sr. fiduciário, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 7.º/4 e 8 do Regulamento das Custas Processuais).

Notifique, registe e publicite (arts. 57.º e 240.º/2 do CIRE).

      Irresignado, apela o destituído fiduciário, pretendendo a revogação do despacho e sua substituição por outro que o mantenha em funções, terminado as alegações pelas seguintes conclusões:

      I- NULIDADE DO DESPACHO DE DESTITUIÇÃO (Art. 615º, n.º 1, alínea d) e e), por remissão ao Art. 613º, n.º 3 CPC).

I. Estabelece o art. 56º n.º do CIRE que "O juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa"

II. Decorrendo desde preceito que a destituição do Administrador de Insolvência nunca poderá ser arbitrária na medida em que é vinculada à violação do bom desempenho das funções que lhe são atribuídas no âmbito do processo de insolvência e à audição dos credores.

III. Sucede que, no âmbito do processo epígrafe os Credores não foram ouvidos, facto que determina a nulidade do despacho de Destituição, o que já foi requerido em 25/09/2023, aguardando o devido despacho.

IV. Não obstante o que vem de referir-se, por mera cautela de patrocínio, reitera-se para efeitos de recurso que a falta de audição dos credores consubstancia uma nulidade do Despacho de Destituição, nos termos do art. 195º do CPC, por inobservância do disposto no art. 56º, n.º 1 do CIRE, o que desde já se requer.

Mais,

V. Face ao exposto resulta forçoso concluir que o despacho de Destituição se encontra ferido de nulidade, nos termos do art. 195º do CPC, devendo o mesmo ser anulado, assim como todo o processado posterior ao mesmo.

SEM PRESCINDIR

II - DO RECURSO

 VI. Ainda que assim não se entenda, o que apenas por mero exercício académico se concebe, vem o presente recurso interposto do Douta Despacho de 13/09/2023, que declarou a destituição do Sr. Fiduciário, nos termos do disposto no artigo 56º do CIRE, porquanto considera que o mesmo violou os “deveres funcionais, previstos nos arts. 9º, 17º/ 1, 62º, 239º/4, al. a), 240º/2 e 241º/1 do CIRE”, elencando dez “factos/comportamentos” do Sr. Fiduciário, suscetíveis (na perspetiva do tribunal a quo) de integrar a justa causa de destituição.

VII. O recurso merece – com o devido respeito – inteiro provimento, como se irá tentar demonstrar através da análise dos factos que o tribunal a quo entende como motivo de destituição:

“a) Recusou proceder ao pagamento da despesa para a qual foi notificado a 17/3/2021 e a 5/4/2021, apesar de ter recebido a totalidade da provisão legal para o efeito, sem que se evidencie nos autos que ela tenha sido esgotada;”

VIII. O Administrador de Insolvência e o Fiduciário, são entidade jurídicas distintas, com funções diferentes, pese embora na maioria dos processos sejam assegurados pela mesma pessoa, o que não é obrigatório, sendo que no caso em concreto o Recorrente foi destituído da função de Fiduciário.

IX. Pelo que, com o devido respeito por entendimento diverso, demos cingir-nos aos factos que possam eventualmente resultar do incumprimento das suas obrigações como Fiduciário.

X. Neste sentido, a provisão mencionada é referente às funções de administrador e não de fiduciário, pelo que não poderá ser valorada para efeitos de destituição.

“b) Não prestou contas da sua atividade, nem requereu a sua dispensa, assim infringindo o disposto nos arts. 62.º e 240.º/2 do CIRE;”

XI. Por despacho de 26/02/2021 foi o Apelante nomeado como fiduciário, desde então não foi o mesmo, nessa qualidade, notificado para a prestação de contas.

XII. Sendo certo de que, como resulta dos relatórios de Fiduciário juntos aos autos, o Apelante sempre foi informando os montantes entregues à fidúcia, bem como as quantias em dívida, em conformidade com a informação que ia recebendo por parte da Insolvente.

XIII. De todo o modo, no seu despacho o douto tribunal não especifica que prestação de contas em específico é que o Recorrente deveria ter prestado e não prestou, o que limita o seu direito de defesa.

XIV. Ainda assim, caso o douto tribunal se esteja a referir às prestações de contas do Apelante enquanto Administrador de Insolvência, como bem sabe (até porque refere no douto despacho de destituição) nenhum valor foi recuperado, pelo que inexistem contas a prestar.

“ c) Afirmou que “ausência de colaboração tem semelhança com este Tribunal que volvidos 2 (dois) anos do período de cessão ainda não definiu de forma deliberada a remuneração do signatário, violando os princípios básicos consagrados na Constituição da República Portuguesa” (requerimento de 5/5/2023), o que consubstancia manifesto incumprimento do dever de recíproca correcção, nos termos dos arts. 9.º do CPC e 17.º/1 do CIRE;

d) O que fez tendo a obrigação de saber que, desde o despacho de 25/2/2021, que admitiu o pedido de exoneração, o processo não mais foi concluso para despacho judicial (por compreensíveis motivos de elevada pendência da secretaria);

e) O que fez depois de, tendo limitado a sua actividade de administrador da insolvência à elaboração do relatório e da relação de credores – sem qualquer apreensão, sem qualquer diligência de liquidação, sem elaboração de parecer de qualificação ou outra qualquer diligência proveitosa para a massa insolvente – ter recebido, do IGFEJ, na sequência do citado despacho, a totalidade da remuneração fixa e a referida provisão para despesas;

f) O que fez ainda apesar de saber que a fixação da remuneração ao fiduciário depende ainda, não apenas de decisão do juiz, mas também, desde logo, do concreto valor das entregas realizadas a título de rendimento disponível (art. 28.º do EAJ);”

XV. Com o devido respeito pelo tribunal a quo, que para além de sincero é superlativo, a verdade é que bastará o entendimento do homem médio comum, para concluir que dois anos sem que um processo urgente seja levado a despacho (independentemente do motivo) é demasiado tempo.

XVI. Ainda para mais quando estamos a falar de levar a despacho a remuneração de trabalhadores, que é isso que o Apelante é.

XVII. Um trabalhador que, como qualquer outro, tem direito à sua remuneração e de ser pago num período razoável, sob pena de pôr em causa a sua própria subsistência.

XVIII. E tal remuneração não se encontra subjacente a qualquer juízo de valor (como nos parece que decorre da alínea e) supra transcrita), mas prevista na lei.

XIX. Não obstante o que vem de referir-se a verdade é que estes “diferendos” de entendimento entre o Apelante e o douto tribunal a quo, em nada consubstanciam uma situação de justa causa de destituição.

XX. Neste sentido, vejamos o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Proc. n.º 305/09.5TBOVR-F.P1, o qual tem na base este mesmo juízo de comércio e o ora Apelante que conclui que nesta questão específica: “Apenas uma palavra quanto á imputação que é feita ao Recorrente no despacho sob recurso relativamente entendemos à informação por aquele prestada sobre a liquidação a 21/7/2020, no apenso D, no sentido de que “não observa o dever de respeito e de especial urbanidade que deve interceder, reciprocamente, no relacionamento entre os auxiliares da justiça e os magistrados.”

“Lida a informação prestada pelo Sr. Administrador de insolvência naquele apenso, é possível detetar alguma “animosidade” latente, nas palavras que usa, mas não cremos que não tenham sido ultrapassados os limites da urbanidade e respeito.”

“g) Não dirigiu qualquer solicitação de informações e elementos à devedora no âmbito do procedimento de exoneração, limitando-se a elaborar e comunicar os relatórios anuais, acrescentando até “não competindo ao Fiduciário promover a qualquer notificação” requerimento de 8/6/2023), o que traduz manifesta inobservância do dever funcional que está adstrito o Sr. fiduciário mercê do disposto no art. 239.º/4, al. a), do CIRE;

Com efeito, se o devedor fica obrigado, no procedimento de exoneração, a “não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado” (destacado nosso), naturalmente que tal estatuição pressupõe o cumprimento do dever prévio, por parte do Sr. fiduciário, de solicitar as referidas informações, directamente ao devedor (e/ou à il. mandatária), e não através da mera elaboração e comunicação do relatório anual onde apenas refere que nada lhe foi entregue (desde logo, porque nada o Sr. fiduciário solicitou directamente à devedora e/ou à il. patrona);

h) Não dirigiu à devedora e/ou à il. patrona qualquer solicitação de entrega do rendimento disponível, limitando-se a indicar um valor em dívida no relatório anual e a comunicar esse relatório à il. patrona, assim incumprindo o dever funcional que decorre, claramente, do disposto no art. 241.º/1 do CIRE, no segmento em que prevê que “o fiduciário notifica a cessão de rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los”; Ora, essa estatuição legal pressupõe, a nosso ver, que, se o Sr. fiduciário não interpela a entidade que processa os pagamentos à devedora, tem ao menos de interpelar a devedora a proceder à sua entrega.

i) Em suma, evidenciando uma perspetiva segundo a qual, nada tem de solicitar a propósito dos proventos da devedora e da entrega do rendimento disponível, limitando a sua actuação, tão-somente, à elaboração de relatórios nos quais afirma apenas que nada lhe foi entregue; e

j) Finalmente, considera-se, salvo o devido respeito por outra opinião, que assiste inteira razão à il. patrona da devedora no seu requerimento de 4/5/2023, quando afirma “Conforme resulta dos presentes autos, a Insolvente, por meio da sua Patrona Oficiosa, remeteu, no dia 16/03/2023 todos os documentos relativos aos rendimentos obtidos pela Insolvente e declaração fiscal. 2. No dia 17/03/2023, o Tribunal remeteu ao Sr. Administrador de Insolvência, conforme referência citius n.º 126523746, todos esses mesmo documentos. 3. A Insolvente fez esta entrega, via citius, para não haver dúvidas que os documentos tinham sido entregues, dado, desde o início, ter havido alguma fricção entre Patrona e Administrador. 4. Sucede que, inexplicavelmente, o Sr. Administrador vem informar (cfr. requerimento de 4/4/2023) que os documentos não foram entregues pela Insolvente, fazendo mesmo, referência a um pedido datado de 07/03/2021, dois anos atrás (destacados nossos), pois que, efectivamente, no ano de 2023 não fez qualquer pedido”.”

XXI. Ora, ao contrário do que parece decorrer da alínea g) do despacho em crise e que supra se transcreveu, a obrigação decorreu do art. 239º, n.º 4, al. a) do CIRE é uma obrigação da Insolvente e não do Fiduciário, como decorre do próprio artigo.

XXII. Tendo sido nesse sentido que o tribunal a quo notificou a mesma, aquando do despacho de exoneração.

XXIII. Ou seja, não é o Fiduciário que tem de interpelar a Insolvente para a apresentação de quaisquer comprovativos, é sim a própria Insolvente que tem de entregar ao Fiduciário os mesmos.

XXIV. Ainda assim, a verdade é que o Apelante interpelou a mesma logo após a concessão da exoneração e posteriormente já no decurso de período de exoneração na pessoa da sua ilustre defensora oficiosa.

XXV. No entanto, reitera-se, não tinha qualquer obrigação legal de o fazer, facto que resulta dos dipositivos legais supra transcritos, mormente o art. 241º e 239º, n.º 4 do CIRE, as quais não pressupõe qualquer interpretação para além do que está previsto na lei, alertando-se para o facto de não lhe terem sido atribuídos os poderes de fiscalização.

XXVI. No que respeita à alínea j), mais precisamente ao ponto 4 do requerimento da ilustre defensora da Insolvente, refira-se que a documentação quando foi junta pela mesma aos autos, foi através de requerimento e não comunicação ao administrador de insolvência/fiduciário, sendo esse o motivo da confusão.

XXVII. Ainda assim, quando alertado para o efeito, o Fiduciário apresenta relatório retificativo, lamentando o Apelante que o douto tribunal a quo não tenha concluído este ponto indicando que o Fiduciário, por requerimento de 08/06/2023 retificou o seu segundo relatório anual em conformidade com a documentação junta aos autos pela Insolvente.

XXVIII. Atento tudo o que vem de referir-se, sempre se dirá que os factos elencados pelo tribunal de 1ª Instância, não colocam em causa nenhuma incompetência funcional do Fiduciário, pelo que teria o tribunal a quo que demonstrar a inaptidão ou incompetência deste para o exercício das funções em moldes de razoável impossibilidade de manutenção de funções, do qual resulte prejuízos para a Massa Insolvente, o que não se verifica.

XXIX. Em face do exposto, e de resto no que respeita às demais conclusões elencadas no douto Despacho, não se vislumbra que se tenha concretizados reais prejuízos para a Massa Insolvente ou para os Credores.

XXX. E ainda que existam entendimentos diferentes, não foi cometida qualquer ilegalidade, nem existiu qualquer prejuízo para a massa insolvente para que se possa concluir pela existência de uma falta grave suscetível de destituição com justa causa do Sr. Fiduciário.

XXXI. De salientar que “Essencial é, – como bem se salienta no voto de vencido proferido no já referido Acórdão de 23/10/2014 – “que estejamos perante uma falta grave, quer considerada em si mesma, quer nas suas consequências. Não faria, de facto, sentido, que o referido administrador pudesse ser destituído por qualquer atitude que simplesmente desagradasse ao insolvente, a algum dos credores ou a outro interveniente processual. A necessidade da justa causa ser preenchida por uma falta grave, no sentido indicado, constitui um elemento essencial para garantir a independência do administrador da insolvência, a qual, por sua vez, “é decisiva para a consecução dos objectivos do processo, no respeito pelo princípio da igualdade dos credores e na defesa genérica dos seus interesses” (citação do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 07-05-2015, à margem do Proc. n.º 1653/12.2TBVRL-E.G1, disponível em http://www.dgsi.pt).

Mais,

XXXII. Crê-se que a melhor linha de interpretação do conceito de “justa causa” da destituição do Administrador de Insolvência, a única que vai de encontro com as finalidades do nosso estado de direito, é aquela que seguindo as linhas mestras deixadas pelo legislador nos artigos 168º e 169º do CIRE, considera “justa causa” a violação de uma obrigação legalmente prevista e avalia-la segundo os “limites da boa fé, dos bons costumes e com violação dos fins económico e social dos direitos que lhe cumpre exercer” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 17-04-2012, à margem do Proc. n.º 664/10.0TYLSB-O.L1-1, cujo Relator é o Dr. Eurico Reis.

XXXIII. Neste seguimento e antes de qualquer consideração, para que se possa determinar um dado acto como “falta grave”, justificadora de “justa causa” de destituição, devemos enquadrar os deveres do Administrador de Insolvência, nomeadamente no art. 12º, n.º 1 e 2 do Estatuto do Administrador Judicial.

XXXIV. Aqui chegados, contrabalançando os factos imputados ao Recorrente e supra analisados, com as Obrigações/Deveres que lhe possam ser exigíveis, devemo-nos questionar: o Administrador de Insolvência violou algum dever/obrigação que consubstancie falta grave no exercício das suas funções? Qual? A sua conduta ultrapassou os limites da boa fé, dos bons costumes e com violação dos fins económico e social dos direitos que lhe cumpre exercer (art.º 334º do Código Civil)? A sua conduta foi de tal modo grave que pôs em crise a liquidação da massa insolvente (art. 12º, n.º 2 EAJ)? Causou prejuízo à massa?

XXXV. Efetivamente, por maior que seja o esforço de raciocínio, não se consegue concordar com a imputação ao Recorrente de justa causa de destituição.

XXXVI. Assim, o Douto Despacho recorrido violou, nomeadamente, o disposto no artigo 9º, 56º n.º 1 e 241º, n.º 1 do CIRE, art. 20º da CRP, art. 3º do CPC, pelo que deverá ser revogado e substituído por outro que mantenha o aqui Apelante como Administrador de Insolvência.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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         Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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         Na decisão em que admitiu o recurso, o Exmo. Juiz do Tribunal a quo entendeu não padecer a decisão da nulidade que lhe é imputada pelo apelante

*

        Da delimitação do objecto do recurso.

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), identificam-se como questões a apreciar:

- a nulidade da decisão, por não audição dos credores,

- a verificação de justa causa para destituição do fiduciário.


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FUNDAMENTAÇÃO

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         Fundamentação de facto.

         A factualidade relevante mostra-se exposta no relatório que precede.

Fundamentação de direito

A. Da nulidade da decisão – a prolação de decisão sem prévia audição dos credores.

Importa esclarecer, preliminarmente, que entendemos que a decisão que julgue pretensão e aprecie ou conheça questão sem cumprimento do contraditório legalmente imposto é nula, por excesso de pronúncia, a invocar no recurso dela interposto[1] – o não cumprimento do contraditório e do direito de defesa, regras genericamente plasmadas nos nº 1, 2 e 3 do art. 3º do CPC (onde se prescreve que o tribunal não pode dirimir a pretensão deduzida sem que a parte seja chamada para deduzir oposição, salvo os casos excepcionais em que a lei prevê possam ser tomadas providências contra determinada pessoa sem que a mesma seja previamente ouvida e, bem assim, não poder o tribunal decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem) apresentam-se  como pressuposto ou condição necessária para que o tribunal possa conhecer e dirimir qualquer pretensão que lhe seja suscitada e decidir qualquer questão que lhe tenha sido colocada (e assim que ao decidir pretensão sem que a parte interessada seja chamada a defender-se e/ou conhecer questão sem prévia pronúncia da parte estará o tribunal a decidir pretensão e a apreciar questão que não podia, nessas condições, decidir/conhecer – excesso de pronúncia).

Na situação trazida em apelação alega o apelante que o tribunal proferiu decisão sem que tivesse facultado prévia pronúncia aos credores, como imposto pelo nº 1 do art. 56º do CIRE.

Manifesta a improcedência da arguição.

Para lá de se tratar, a verificar-se, de patologia que teria de ser invocada pelos interessados credores, privados do contraditório (atente-se que as nulidades da sentença, salvo o caso da situação prevista na alínea a) do nº 1 do art. 615º do CPC, não são de oficioso conhecimento, necessitando de ser arguidas pela parte prejudicada pelo vício ou irregularidade[2]) e não pelo apelante (que viu respeitado o direito de defesa, sendo-lhe concedido o contraditório sobre a questão) – e assim que nunca a nulidade poderia ser declarada, por não vir invocada por quem seria interessado na observância do omitido contraditório –, importa realçar que o contraditório estabelecido no nº 1 do art. 56º do CIRE em vista da prolação da decisão sobre a destituição do administrador e/ou fiduciário (ex vi art. 240º, nº 2 do CPC) exige a prévia audição do devedor, do administrador ou fiduciário e da comissão de credores, caso exista, não já dos credores – ‘na falta de comissão de credores, ninguém a substituirá na audição, sendo correspondentemente ineficaz a disposição legal.’[3]

Não padece, pois, a decisão apelada do vício que lhe é imputado pelo apelante.

B. Da verificação de justa causa para destituição do fiduciário.

O fiduciário, entidade a quem deve ser cedido o rendimento disponível do devedor insolvente, cujas funções se mostram elencadas no art. 241º do CPC – cumpre-lhe, durante o período de cessão, proferido o despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, afectar os montantes recebidos no final de cada ano ao pagamento das custas do processo de insolvência, ao reembolso do organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e das suas próprias, fiduciário, que tenham sido suportadas por aquele, ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas e à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência –, é escolhido de entre os administradores da insolvência inscritos em lista oficial (art. 239º, nº 2 do CIRE), tendo estatuto regulado, maioritariamente, por remissão para o regime do administrador da insolvência (art. 240º, nº 2 do CIRE).

O fiduciário é, pois, uma administrador da insolvência, sujeito aos direitos e deveres que resultam do respectivo estatuto e às causas de destituição previstas no CIRE[4].

O CIRE (aprovado pelo DL 53/2004, de 18/03) adoptou modelo de pendor claramente liberal[5], marcado pela intensificação da desjudicialização do processo[6] (a indispensabilidade da intervenção do juiz foi reduzida ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional), tendo esse estruturante paradigma como contraponto necessário a atribuição da competência para tudo o que não colida com a função jurisdicional aos demais sujeitos processuais[7], mormente o reforço das funções do administrador da insolvência – a desvalorização do papel do juiz no processo de insolvência tem directo reflexo no carácter central e determinante das funções cometidas ao administrador da insolvência, que é o ‘órgão que maior e mais qualificada intervenção tem no processo de insolvência, nas diversas fases e actos em que ele se desdobra’[8], assim também como do fiduciário, no âmbito do instituto da exoneração do passivo.

Desaparecendo o poder directivo do juiz sobre o liquidatário (estabelecido no anterior direito insolvencial – o art.º 141º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência cometia ao liquidatário judicial a administração dos bens integrantes da massa falida, sujeita à direcção do juiz e com a cooperação e fiscalização da comissão de credores), atribui-se agora, em alternativa, ao tribunal competência fiscalizadora da actividade do administrador[9] e também do fiduciário (art. 240º, nº 2 do CIRE), pois estes exercem a sua actividade sob fiscalização do juiz, que pode a todo o tempo exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação (art.º 58º do CIRE).

Competência fiscalizadora do tribunal que tem relevante manifestação no poder de destituição (art. 56º do CIRE) – poder revestido de carácter funcional, vinculado; não se trata de qualquer poder discricionário que possibilite ao juiz, verificada a justa causa, decidir ou não pela substituição; ao administrador judicial cabem importantíssimos poderes que, todavia, lhe são atribuídos para tutela de interesses que não são seus; estando investido de poderes funcionais cujo exercício zeloso é condição imprescindível da consecução da finalidade da insolvência, ocorrendo justa causa, a única consequência é a da destituição do administrador pelo juiz[10] (o que tudo vale, com as necessárias adaptações, para o fiduciário).

Conceito indeterminado de justa causa (condição essencial da destituição, garantia de independência do administrador e do fiduciário, decisiva para a consecução dos objectivos do processo[11]) que cobre ‘todos os casos de violação de deveres por parte do nomeado, aqueles em que se verifica a inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo, traduzidas na administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes da massa e, segundo o entendimento que temos por correcto, aqueles que traduzem uma situação em que, atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção da relação com ele e infundada a possível pretensão do administrador em se manter em funções’[12].

         Conceito indeterminado que tem de ser conformado à teleologia funcional da actividade do administrador e do fiduciário – se no caso do administrador, está em causa a consecução da finalidade da insolvência, centrada na satisfação dos interesses dos credores do insolvente, sendo esta finalidade o ponto de referência para aferir da aptidão, competência, eficiência, zelo e diligência do administrador em cada caso concreto e para aquilatar de qualquer desvio da conduta esperada (criteriosa e proficiente) e adequada a quebrar a relação de confiança entre ele e os credores, tornando inexigível a continuação do exercício de funções (e inconsistente e infundada qualquer pretensão do administrador em manter-se em funções), no caso do fiduciário interessa a diligência e zelo na realização de todos os trâmites idóneos e adequados à obtenção da cessão do rendimento disponível do devedor e sua afectação aos pagamentos e distribuição do remanescente pelos credores, nos termos prescritos no nº 1 do art. 241º do CIRE, impondo-se-lhe também que fiscalize o cumprimento das obrigações por parte do devedor (pois deverá tomar providências caso constate a existência de qualquer circunstâncias que torne o devedor indigno da tutela que a exoneração representa, requerendo quer a cessação antecipada do procedimento, quer a sua recusa – art. 243º e 244º do CIRE).

O conceito de justa causa legitimadora da destituição do administrador e do fiduciário preenche-se e concretiza-se, assim, desde logo, com condutas reveladoras de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo, com condutas traduzidas na ‘inobservância culposa’ dos seus deveres, apreciada tendo por padrão de referência a diligência de administrador e fiduciário criterioso e ordenado (art. 59º, nº 1, parte final do CIRE), quando qualquer de tais condutas assuma suficiente gravidade que justifique a quebra de confiança e inviabilize, razoavelmente, a manutenção de funções[13].

         Justa causa de destituição do administrador (e do fiduciário) verificar-se-á, assim, descurando as situações configuradoras de motivos objectivos de destituição (isto é, das hipóteses respeitantes à incapacidade para o exercício do cargo) quando ocorra a violação culposa de deveres legais ou estatutários que, pela sua gravidade, o tornem desmerecedor de confiança para os restantes órgãos processuais ou comprometam o fim do processo[14].

          O conceito assenta, pois, na ideia de ‘inexigibilidade de continuação da relação, por grave violação de deveres e importante atentado ao princípio da confiança que está subjacente às relações funcionais estabelecidas com o Tribunal, os órgãos de gestão, credores e demais interessados na insolvência, dificultando ou inviabilizando o objectivo ou finalidade do respectivo processo’[15] - no caso do fiduciário, dificultando ou inviabilizando uma idónea, adequada e justa apreciação e decisão do incidente de exoneração do passivo restante.

         Interessa, porém, que se trate de falta importante e grave, quer na sua dimensão individualizada, quer no domínio do resultado consequencial[16] – a justa causa de destituição só ocorrerá quando a falta ou falha do nomeado tenha repercussão ou objectivação no âmbito do processo ou incidente, dificultando ou inviabilizando se alcancem as suas finalidades, pois só então se poderá ter por irremediavelmente ferida a relação de confiança que a manutenção do exercício do cargo pressupõe.

         A decisão apelada considerou existir justa causa de destituição do fiduciário apelante (nomeado para tal cargo em 25/02/2021, sendo que antes já exercia as funções de administrador da insolvência), ponderando (esta a materialidade que elencou em sustento da destituição):

         - não ter procedido ao pagamento de despesa para cujo efeito foi notificado em 17/03/2021 e em 5/04/2021, apesar de já ter recebido a totalidade da previsão para o efeito (foi-lhe solicitado o pagamento da verba de 14€, a ‘fim de se poder liquidar o transporte de afixação de editais’),

         - não ter prestado ‘contas da sua actividade’, nem ter requerido ‘a sua dispensa’, infringindo o disposto nos arts. 62º e 240º, nº 2 do CIRE,

         - ter afirmado, em requerimento apresentado em 5/05/2023 que a ausência de colaboração da devedora tem semelhança com ‘este Tribunal que volvidos 2 (dois) anos do período de cessão ainda não definiu de forma deliberada a remuneração do signatário, violando os princípios básicos consagrados na Constituição da República Portuguesa’, o que consubstancia, no entender do tribunal a quo, manifesto incumprimento do dever de recíproca correcção, nos termos dos arts. 9º do CPC e 17º, nº 1 do CIRE, conduta que observou sabendo que desde a prolação do despacho de 25/02/2021, que admitiu o liminarmente o pedido de exoneração, ‘o processo não mais foi concluso para despacho judicial (por compreensíveis motivos de elevada pendência da secretaria)’ e sendo certo que limitou a sua actividade de ‘administrador de insolvência à elaboração do relatório e da relação de credores’, sem apreensão de bens, sem qualquer diligência de liquidação, sem elaboração de parecer de qualificação ou outra diligência proveitosa para a massa insolvente, tendo recebido do IGFEJ, na sequência do referido despacho, a totalidade da remuneração fixa e provisão para despesas e ainda sabendo que a ‘fixação da remuneração ao fiduciário depende ainda, não apenas de decisão do juiz, mas também, desde logo, do concreto valor das entregas realizadas a título de rendimento disponível (art. 28.º do EAJ)’,

- não ter solicitado à devedora a prestação de informações e elementos relativos ao procedimento de exoneração, ‘limitando-se a elaborar e comunicar os relatórios anuais, acrescentando até “não competindo ao Fiduciário promover a qualquer notificação” (requerimento de 8/6/2023), o que traduz manifesta inobservância do dever funcional que está adstrito o Sr. fiduciário mercê do disposto no art. 239.º/4, al. a), do CIRE’,

- não ter solicitado à devedora a entrega do rendimento disponível, limitando-se a indicar um valor em dívida no relatório anual e a comunicar tal relatório à devedora, ‘assim incumprindo o dever funcional que decorre, claramente, do disposto no art. 241.º/1 do CIRE, no segmento em que prevê que “o fiduciário notifica a cessão de rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los”’ – entende o tribunal a quo que tal disposição legal pressupõe que ‘se o Sr. fiduciário não interpela a entidade que processa os pagamentos à devedora, tem ao menos de interpelar a devedora a proceder à sua entrega’,

- ter inexplicavelmente informado em requerimento de 4/04/2023 não ter a devedora feito a entrega de qualquer documento quando a mesma fizera juntar aos autos, em 16/03/2023, requerimento com as informações pertinentes, acompanhado de documentos, relativos ao segundo ano de cessão, tudo notificado pelo tribunal ao fiduciário em 17/03/2023 (tudo como bem nota a devedora no seu requerimento de 4/05/2023).

Não se nos afigura que tal factualidade integre o conceito de justa causa para destituição do administrador da insolvência e fiduciário, na densificação que se acima se expôs.

Mesmo que se pudessem considerar todas e cada uma das condutas como culposas (negligentes) violações dos seus deveres legais e estatutários e as falhas pudessem ser tidas, apreciadas na sua dimensão individualizada, como importantes e graves (importância e gravidade que se não descortina quanto ao não pagamento de uma despesa de 14€, que apesar de ter sido solicitado por duas vezes, não mais foi assunto desde Abril de 2021, ou até relativamente à não apresentação de contas, admite-se que enquanto administrador, pois que o processo foi declarado encerrado por ausência de qualquer apreensão, tão só prosseguindo para apreciação e decisão do incidente de exoneração do passivo) – sendo certo que não pode deixar de enfatizar-se que o entendimento jurídico manifestado pelo fiduciário quanto ao concreto modo como devem ser exercidos os seus deveres (recusando incumbir-lhe qualquer proactividade na obtenção de informações e elementos, sustentando que é à devedora que incumbe dirigir-se-lhe e prestar as pertinentes informações, entendendo também ser suficiente, quanto à exigência da entrega da quantia devida à fidúcia à devedora, a comunicação do relatório anual onde consta tal obrigação), antes não rebatido pelo tribunal, não pode fundar a sua destituição (atente-se que o fiduciário nos requerimentos e relatórios que apresentou, desde sempre manifestou esse seu entendimento, não tendo o tribunal contestado tal argumentação por ele defendida nem tão pouco solicitado que observasse qualquer acto ou conduta justificada por entendimento jurídico contrário, pois só quando convidou devedora e fiduciário para se pronunciar sobre a possibilidade de destituição criticou tal posição jurídica) –, sempre será de recusar que se tratem de falhas graves e importantes com repercussão no ‘domínio do resultado consequencial’, inviabilizando ou dificultando a prossecução das finalidades do incidente de exoneração do passivo restante (o processo fora já declarado encerrado, tão só prosseguindo este incidente) e, assim, afectando irremediavelmente a relação de confiança que a manutenção do cargo pressupõe.

Na verdade, nem a ‘fricção’ que terá desde sempre marcado o relacionamento entre a devedora (sua patrona) e o fiduciário, informada pela devedora no seu requerimento de 4/05/2023, se pode ter como impeditiva de profícua relação processual, irremediavelmente comprometendo a cooperação que, entre ambos, a tramitação do incidente exige, nem muito menos a censura que o fiduciário dirigiu ao tribunal, no seu requerimento de 5/05/2023, apontando-lhe a falta de movimentação do processo durante os dois anteriores, pode considerar-se como violação do dever de correcção (art. 9º, do CPC, ex vi, art. 17º do CIRE) irremediavelmente comprometedora da relação de confiança que entre o tribunal e fiduciário deve existir – tal censura, mesmo que fosse de aceitar que ultrapassara os limites do direito à crítica quanto ao serviço prestado pelo tribunal (direito à crítica que, diga-se, num estado de direito democrático, deve reconhecer-se com extensos e amplos limites aos intervenientes processuais, não se exigindo delicadeza ou elegância, antes tão só o respeito pela necessidade e proporcionalidade da crítica) e o necessário e proporcionado a fazer valer a sua pretensão de que lhe fosse fixada a remuneração, e, por isso, consubstanciava violação do dever de recíproca cooperação, não assume, objectivamente (e por mais injusta ou desmerecida que seja para funcionários e magistrados), gravidade ou importância que inviabilize ou dificulte irremediavelmente o relacionamento entre o fiduciário e o tribunal (a mútua confiança) e que, assim, a manutenção daquele no cargo impeça a normal tramitação do incidente.

Certo que se observa inexplicável desleixo na elaboração do relatório apresentado em 4/04/2023, pois foram censuravelmente descuradas as informações e documentação apresentadas nos autos pela devedora, relativas ao período temporal do segundo ano de cessão, o que gerou a prestação de relatório desconforme à realidade evidenciada pelos autos. Todavia, tal falha foi colmatada pelo fiduciário, pois que, alertado por requerimento da devedora, apresentou relatório no qual fez repercutir aquelas informações e documentação. Tal falha não teve, pois, consequência ou objectivação no âmbito do incidente, dificultando a prossecução da sua finalidade, não podendo considerar-se que tenha irremediavelmente ferido a relação de confiança que a manutenção do exercício do cargo pressupõe.

De recusar, pois, que a factualidade considerada constitua justa causa de destituição do fiduciário.

C. Síntese conclusiva.

Do exposto resulta a procedência da apelação, com a consequente revogação da decisão que destituiu o apelante das funções que vinha exercendo nos autos, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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DECISÃO


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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, em revogar a decisão apelada.

Custas pela massa.


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Porto, 10/09/2024


(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)

João Ramos Lopes
Alberto Taveira
Anabela Dias da Silva

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[1] Assim, considerando que o desrespeito do contraditório cometido pelo juiz ao proferir decisão, constitui nulidade da decisão, por excesso de pronúncia, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, pp. 27 e 28.

Cfr., também (a propósito do desrespeito do contraditório cometido pelo juiz ao proferir decisão – vício que sustenta constituir nulidade da decisão, por excesso de pronúncia), Miguel Teixeira de Sousa, ‘Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária’, comentário de 22/09/2020 a acórdão do STJ de 2/06/2020 (processo nº 496/13.0TVLSB.L1.S1), ‘Por que se teima em qualificar a decisão surpresa como uma nulidade processual?’, comentário de 12/10/2021, comentário de 7/09/2021 a acórdão da Relação de Guimarães de 28/02/2021 e ainda ‘Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se’, comentário de 30/01/2023, todos no blog do IPPC, no sítio https://blogippc.blogspot.com (consulta on-line em Julho de 2024).

[2] Cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 734, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, pp. 728 e 729 e Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, 2014, 2ª edição, p. 607.
[3] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, 2015, p. 335.
[4] Acórdão da Relação de Évora de 16/01/2020 (Francisco Matos), no sítio www.dgsi.pt
[5] Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 4ª edição, p. 21.
[6] Considerando 10 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03 (parágrafo 1º).
[7] Considerando 10 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03 (2º parágrafo).
[8] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de estudos sobre a insolvência, Quid Juris, Reimpressão, 2011, p. 149.
[9] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), p. 340.
[10] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), pp. 335/336.
[11] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), p. 335.
[12] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), p. 334.
[13] Acórdão da Relação do Porto de 3/02/2014 (Carlos Querido), no sítio www.dgsi.pt.
[14] Citado acórdão da Relação de Évora de 16/01/2020.
[15] Acórdão da Relação do Porto de 12/04/2021 (Miguel Baldaia de Morais), no sítio www.dgsi.pt.
[16] Citado acórdão da Relação do Porto de 12/04/2021.