PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
LIMITE LEGAL
Sumário

I-O limite e de 100.000€ estabelecido no artigo 23º nº 10 pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro (EAI) aplica-se à remuneração variável no seu todo e não apenas a uma parcela do seu cálculo.

Texto Integral

Proc. n.º 380/12.5TYVNG-N.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 1

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízas Desembargadoras Adjuntos:

Anabela Dias da Silva

Márcia Portela (vota vencida)

SUMÁRIO:

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Acordam as Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

Nos autos de insolvência da “A..., CRL”, a Srª Administradora de Insolvência, veio em 17.10.2023 apresentar proposta de rateio final e remuneração variável, tendo esta sido calculada em €645.667,42.

A Secretaria, conforme foi determinado, em 18.12.2023, procedeu ao cálculo da remuneração variável, nos termos que constam do “Termo” de 18.12.2023, no montante de €505.919,91.

O Ministério Público veio dizer que não concorda com qualquer dos cálculos efetuados - o cálculo efetuado pela Ex.ma Administradora da Insolvência não teve em consideração o disposto nos nº 7 e 10 do art.º 23º do EAJ; o cálculo efetuado pelo Sr. Escrivão seguiu o entendimento do tribunal, designadamente no que respeita ao cálculo da majoração, mas não considerou o disposto no nº 10 da cita norma legal, tal como vem sendo interpretada pelos tribunais superiores, pelo que, a remuneração variável da Ex.ma Administradora deve ser fixada em € 100.000, a que acresce IVA à taxa legal aplicável, valor que não deve ser reduzido em qualquer medida ao abrigo do n.º 8 do art.º 23º do EAJ, tendo em conta, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo Sr. Administrador da Insolvência no exercício das suas funções e, sendo fixado no referido valor a remuneração variável, o rateio proposto deverá ser retificado em conformidade.

Em 09-02-2024, conforme ordenado por despacho de 24.01.2024, o Sr. Contador pronuncia-se quanto ao cálculo da remuneração variável de 18.12.2023, entendendo, no entanto, que a fórmula utilizada está de acordo com o que resulta das alterações ao Estatuto do Administrador Judicial, introduzidas pela Lei 9/2022 de 11 de Janeiro, parecendo que o cálculo da RV do AI deve refletir as operações aritméticas previstas no artº. 23º do EAJ e de acordo com o que resulta dos autos, sendo que o Mmº Juiz pode sempre reduzir o valor apurado, conforme está previsto no nº 8 do mencionado artigo.

Veio a ser proferido despacho que decidiu a questão nos seguintes termos: “Pelo exposto, fixo no montante de 100.000,00euros, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, o valor global da remuneração variável devida à Sra. Administradora da Insolvência.”

Inconformada, a administradora de insolvência, AA, veio interpor o presente recurso de apelação, tendo apresentado as seguintes conclusões.

“I. Recorre-se do despacho proferido em 23-03-2024, nomeadamente da parte onde se decidiu o seguinte: “(….) “Como vimos, do disposto no art. 23º, n.º 10, da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro, resulta um limite máximo, uma vez que a remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100.000,00 euros.

Tal valor, contudo, representa o teto máximo para a remuneração variável no seu todo e não apenas o limite da componente da remuneração sem a majoração. (…) “Pelo exposto, fixo no montante de 100.000,00 euros, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, o valor global da remuneração variável devida à Sr.a Administradora da Insolvência.”;

II. Em tal despacho, quanto a nós, o tribunal recorrido aplicou erradamente a norma expressa no n.º 10 do art. 23.º do EAJ à totalidade da remuneração variável, o que, salvo devido respeito, torna esta decisão nula, porque contrária à lei.

III. A Sr.a AI foi nomeada na sentença que decretou a insolvência, ou seja, em 18 de Abril de 2012.

IV. No cumprimento das suas funções: Elaborou o relatório a que alude o art. 155.º do CIRE; Rececionou, analisou e pronunciou-se sobre as reclamações de créditos, no valor total de 12.658.070,54 €; Elaborou as listas de créditos reconhecidos e não reconhecidos; Resolveu 8 contratos de várias espécies; Respondeu às várias impugnações da lista de créditos; Efetuou a apreensão dos bens da insolvente, saber: 235 Imóveis e 1 lote de mobiliário; Promoveu o registo dos bens imóveis; Elaborou parecer de qualificação da insolvência (art. 188.º do CIRE); Efetuou as necessárias diligências de liquidação, das quais se destacam: Solicitou e acompanhou as perícias e avaliações feitas aos bens; Instrução e realização de várias tentativas de venda dos imóveis apreendidos, com notificações aos intervenientes processuais, anúncios, visitas, diligências de abertura de propostas, etc; Concretização da venda de todos os imóveis, em 54 escrituras distintas e consequente entrega física dos imóveis; Gestão de um contrato de arrendamento durante 9 anos, com uma renda mensal de 8.340,00 € a reverter para a massa insolvente, até à venda da fração; Gestão de um parque de estacionamento com 111 lugares, com um funcionário permanente durante cerca de 8 anos, até à sua venda; Legalização de dezenas de frações e prédios, que só posteriormente puderam ser liquidados; Reuniu centenas de vezes com diversas entidades, a saber: Câmara Municipal ...; Serviços de Finanças; Comissão de credores; Inquilinos vários; Mandatários das partes; Peritos; Grupos de moradores dos edifícios da cooperativa; Empreiteiros que realizaram obras nos imóveis; Administração de condomínio; Potenciais compradores das centenas de frações; Assumiu a gerência da insolvente, que se manteve em atividade com a exploração do parque de estacionamento, com o respetivo proveito, e com o recebimento da renda da fração arrendada, durante cerca de 9 anos; Contratou serviços de contabilidade para efetuarem esse serviço para a insolvente, por ser um imperativo legal possuir contabilidade organizada e um TOC responsável; Realizou centenas de deslocações em serviço para os presentes autos; Representou a massa insolvente em vários apensos processuais, onde existia litigância, entre os quais: A - Apreensão de bens, B - Incidente qualificação insolvência, C - Verificação ulterior créditos/outros direitos, D -Reclamação Créditos, E - Verificação ulterior créditos/outros direitos, F - Verificação ulterior créditos/outros direitos, J - Ação de Processo Comum (ação de despejo), L - Recurso em separado;

V. O resultado da sua dedicação, competência e diligência, foi uma liquidação no valor total de 9.302.215,87 €, num processo que dura há 12 anos, mas que irá permitir uma satisfação dos créditos de aproximadamente 65%, já descontadas as despesas do processo, as custas judiciais e a remuneração da apelante (calculada conforme aqui é defendido).

VI. Nunca tendo recebido, até ao momento, qualquer remuneração (e adiantando, inicialmente, muitas das despesas necessárias).

VII. A Sr.a AI apresentou então a sua proposta de rateio final, aí incluindo os cálculos relativos à sua remuneração, nomeadamente quanto à remuneração variável, requerendo o direito a uma remuneração variável (sem majoração) no valor de 431.205,86 € (art. 23.º, n.º 4, b), do EAJ) –valor este que deve ser deduzido a 100.000,00 €, por aplicação do n.º 10 do mesmo art. 23.º de EAJ.

VIII. Mas também o direito à remuneração variável, vulgarmente designada por “majoração”, prevista do mesmo art. 23.º do EAJ, que se calculou em 424.932,86 €, sem qualquer redução legal.

IX. Ou seja, nos termos da lei, entende-se que a Sr.a AI tem direito a uma remuneração variável total no valor de 524.932,86 €, acrescido de IVA à taxa legal.

X. O Sr. Contador do tribunal, veio emitir parecer (de 09-02-2024) no sentido de considerar válidos os cálculos feitos pela Sr.a AI, confessando estarem de acordo com as normas aplicáveis e com a jurisprudência mais recente (desta Relação) sobre a matéria.

XI. Porém, alinhando com a oposição do Ministério Público, o tribunal recorrido decidiu que a remuneração variável total a atribuir à apelante devia limitar-se a um máximo de 100.000,00 €, aplicando (cegamente, dizemos nós) a toda a remuneração variável o limite constante do n.º 10 do art. 23.º do EAJ. Ora,

XII. A questão a apreciar e decidir consiste em saber qual a interpretação a dar ao n.º 10 do art.º 23.º do EAJ – “A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100.000 euros” - com vista a saber se este limite se aplica apenas ao cálculo proveniente da al. b) do n.º 4 do art.º 23.º do EAI – como o entende a Apelante e o Sr. Contador do tribunal - ou se aplicará a toda a remuneração variável – como o entende o Ministério Público e o Tribunal Recorrido.

XIII. Sabe-se que o AI tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo essa remuneração composta por uma parte fixa e, caso venha a ser aprovado um plano de recuperação ou a liquidação da massa insolvente, por uma parte variável – a parte fixa permite maior certeza na remuneração e a parte variável constitui como que uma motivação para o bom exercício da atividade, pois será tanto mais elevada quanto maior for o resultado da liquidação e a satisfação dos créditos reclamados.

XIV. Com a alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11.1, o legislador pretendeu, de facto, compensar a degradação da remuneração do administrador judicial, optando por aumentar significativamente a componente variável da sua remuneração.

XV. Entende-se que, por aplicação das alterações introduzidas pela Lei 9/2022, a remuneração variável é determinada através de duas operações distintas: - na primeira operação, após se apurar o saldo da liquidação - produto da liquidação deduzido das despesas da massa, com ressalva da remuneração fixa do administrador e custas dos processos pendentes -, aplica-se a este saldo a taxa de 5%, obtendo-se assim o valor da remuneração variável; - na segunda, o valor obtido é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reconhecidos numa nova percentagem de 5% do montante dos créditos satisfeitos.

XVI. Haverá então que determinar se o valor de 100.000,00 € é o valor máximo para a remuneração variável na liquidação “tout court”, ou se constitui apenas o limite da componente da remuneração sem a majoração – como não duvidamos ser o caso.

XVII. Fazendo apelo ao elemento literal da lei, verifica-se que o limite aí referido se reporta ao cálculo efetuado nos termos da alínea b) do n.º 4, ou seja, refere-se à primeira parte do cálculo, antes da aplicação da majoração - por isso se entende que a letra da Lei não permite, nem dá espaço, a qualquer outra interpretação que não seja que esse limite de € 100.000,00 é para o cálculo elaborado para a referida al. b).

XVIII. Nos termos do art. 9.º do CC, do qual decorre que a interpretação da lei tem como base e limite a respetiva letra, afigura-se que a interpretação supra exposta encontra na letra da lei correspondência verbal bastante, uma vez que o artigo 4.º é aquele que, na sua alínea b), se ocupa do cálculo da remuneração variável do administrador em caso de liquidação. Sem prescindir,

XIX. Parece óbvia a intenção do legislador ao dividir a remuneração variável em dois cálculos distintos: por um lado, quis limitar o cálculo automático e cego da remuneração variável, inserindo um duplo cálculo e um travão nos 100.000,00 € em relação ao primeiro desses cálculos; por outro, quis premiar o bom desempenho daqueles que conseguem garantir para o processo o máximo de valor possível (de molde a satisfazerem o máximo possível de créditos), aqui sem qualquer redução legal.

XX. E é assim porque, cremos, se o primeiro cálculo pode ser objetivamente cego, conferindo uma remuneração excessiva e, logo, injusta, no segundo cálculo, o da majoração, estamos perante o momento de premiar quem trabalha mais e melhor, não fazendo qualquer sentido usar novamente uma norma travão, cujo resultado prático seria igualar a remuneração variável entre quem desempenha um bom trabalho e quem não o desempenha tão eficazmente.

XXI. Até porque, se a norma travão se aplicar a toda a remuneração variável, o resultado só pode ser contrário ao ambicionado pelo legislador, porque vai deixar de premiar os que melhor desempenharam o seu trabalho.

XXII. Aliás, a aplicação da norma travão à totalidade da remuneração variável, dá um sinal adverso aos Sr.a AI, que a partir de certo momento deixam de ter incentivo remuneratório no desempenho das suas funções, porque atingindo os 100.000,00 € o seu trabalho passa a ser pro bono.

XXIII. In casu, se aderirmos à interpretação recorrida, a apelante não receberá qualquer montante referente à majoração, ou seja, não será minimamente premiada pelo seu trabalho, já que a norma travão fica logo preenchida pela remuneração variável obtida através da aplicação da alínea b) do n.º 4, logo, é indiferente que tenha tido um excelente desempenho ou que apenas tenha cumprido minimamente as suas funções. Acresce que,

XXIV. A jurisprudência é unânime em considerar que a nova lei pretendeu atualizar o estatuto remuneratório dos Sr.s AI, o qual se encontrava há quase 20 anos sem qualquer atualização, aumentando a remuneração variável em função do desempenho.

XXV. Porém, aqueles que aceitam que a lei nova pretendeu atualizar a remuneração dos Sr.s AI e premiar a sua competência, são os mesmos que interpretam a nova lei no sentido dela diminuir a remuneração a que os Sr.s AI teriam direito pela lei antiga e que limitam (ilegalmente) a remuneração, maxime a sua componente de majoração.

XXVI. Portanto, admite-se que a lei pretendeu aumentar as remunerações dos Sr.s AI e premiar a sua diligência, mas interpreta-se e aplica-se a lei precisamente no sentido contrário, ou seja, por aplicação de uma lei de melhoria das remunerações, diminuem-se as remunerações.

XXVII. No caso vertente é disso exemplo, porque a aplicação da lei nova, no sentido que o tribunal recorrido pretende impor, resulta numa diminuição clara da remuneração variável a auferir pela apelante, pese embora o seu trabalho tenha sido muito diligente e competente. A somar a isto,

XXVIII. Se virmos a redação de todo o art. 23.º do EAJ, verificamos que o poder de reduzir a remuneração variável dos Sr.s AI mantém-se no julgador, por aplicação do n.º 8 do mesmo artigo.

XXIX. É esta via que o legislador escolheu para combater as remunerações injustas e desproporcionais e não outra... e, também por isso, é que restringiu a norma travão à remuneração variável resultante da alínea b) do n.º 4.

XXX. Ou seja, não faz sentido vir defender que só a aplicação da norma travão (100.000,00 €) a toda a remuneração variável permite acabar com as remunerações excessivas dos Sr.s AI, porque isso será aceitar a demissão dos Sr.s Juízes das suas funções ou, pior ainda, defender a sua menorização processual - na certeza de que, como ficou expresso supra, não foi isso que o legislador quis.

XXXI. Repare-se, voltando à literalidade da lei, que o legislador teve aqui (no n.º 8) o cuidado de, ao falar na remuneração variável, referir expressamente “incluindo portanto a majoração” – prova evidente de que, se tivesse querido a aplicação da norma travão inclusa no n.º 10 a toda a remuneração variável, não teria referido apenas a al. b) do n.º 4, ou teria, no mínimo teria feito igual referência à que fez no n.º 8.

XXXII. Donde resulta, salvo devido respeito, que não vemos como se pode pensar que o legislador, quando escreveu: “a remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro)”; queria ter escrito: a remuneração variável não pode ser superior a 100 000 (euro).

XXXIII. Até porque, como vimos supra, cremos que ele não se enganou, nem se esqueceu, apenas pretendeu premiar os Sr.s AI mais competentes e diligentes pelo trabalho efetuado – prémio esse que, estando fora da norma travão, não ficou ainda assim à margem da redução judicial permitida por via do n.º 8 do mesmo art. 23.º do EAJ.

XXXIV. Em sintonia e sobre esta questão, pronunciou-se já esta Relação por acórdão de 07-11-2023 (processo n.º 691/12.0TYVNG-I.P1), no qual veio a concluir que era devida uma remuneração variável ao então apelante (Sr. AI) no valor de 160.000,00 € porque, in casu, não se observava “qualquer desproporção ou excesso no valor da remuneração variável encontrado por aplicação dos critérios estabelecidos nos n.º 4 a 7 do EAJ” que importasse corrigir ou mitigar com recurso à aplicação do n.º 8 do mesmo artigo.

XXXV. Ou seja, esta Relação considerou, e bem, que, se por aplicação dos critérios normais de cálculo da remuneração variável o valor obtido foi de 160.000,00 €, e se este valor, face às circunstâncias do processo, não for exagerado e/ou desproporcional, então não deve ser reduzido judicialmente (por aplicação do n.º 8 do art. 23.º do EAJ).

XXXVI. Isto quer dizer que os Sr.s Desembargadores (e bem) entendem que não é de aplicar a limitação imposta pelo n.º 10 do art. 23.º do EAJ a toda a remuneração variável, mas apenas e só á que resultar da alínea b) do n.º 4 do mesmo artigo, respeitando assim a vontade expressa pelo legislador na letra da lei. Por último,

XXXVII. Quanto à questão da justiça na quantificação da remuneração variável, a apelante entende que também aí a razão lhe assiste de sobremaneira, sendo certo que tanto o Ministério Público como a decisão recorrida apontam expressamente para a sua competência e diligência.

XXXVIII. Não podemos esquecer que a remuneração variável agora em fixação corresponde a mais de 10 anos de trabalho, de um vasto número de pessoas, com centenas de diligências e com resultados muito positivos.

XXXIX. Basta dizer, se a apelante trabalhasse como leiloeira ou agente imobiliária, bastaria concretizar a venda do património da insolvente (como fez) para ser remunerada em quase 500.000.00 € (valor correspondente a 5% do valor obtido na venda), sem ter elaborar relatórios, rececionar, apreciar e guardar reclamações de créditos, apreender bens, emitir pareceres, elaborar lista de créditos, fazer rateios e pagamentos, fazer e receber notificações constantes, cumprir prazos processuais, assumir a representação da insolvente e da massa insolvente perante as entidades públicas e privadas, incluindo em ações pendentes e de enorme responsabilidade.

XL. Portanto, o que a apelante vem requerer ao tribunal não é que tenha pena dela, nem que lhe seja atribuído mais do que aquilo que tem direito, veio apenas solicitar aquilo que a lei taxativamente lhe confere, e que, além do mais, no caso concreto, não é nada injusto, nem excessivo, muito menos injustificado. Em suma,

XLI. Cremos ter ficado evidenciado que o tribunal recorrido interpretou erradamente o normativo constante do art. 23.º do Estatuto dos Administradores Judiciais, nomeadamente as regras constantes dos n.º 4, 7 e 10 do referido diploma legal.

XLII. As quais deviam ter sido interpretadas no sentido que a apelante acima expôs, o que levaria à não aplicação do limite constante do n.º 10 do art. 23.º do CIRE a toda a remuneração variável, mas apenas à que for calculada por aplicação da alínea b) do n.º 4, tal como expressamente remete a lei.

XLIII. A interpretação vertida no despacho recorrido é, salvo devido respeito, errada e errónea, conduzindo a final a uma redução injusta e ilegal da remuneração variável devida à apelante na ordem dos 424.932,86 €, deixando-o fixada, quase imoralmente, em 100.000,00 €.

XLIV. Pelo que o despacho recorrido merece censura, devendo ser substituído por outro, onde se faça uma correta interpretação dos normativos supra identificados e, a final, se decida pela procedência do cálculo da remuneração variável apresentado pela Recorrente, o qual mereceu já a anuência do Sr. Contador.

Nestes termos, e noutros que V/ Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, consequentemente, ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra, que negue a aplicação do n.º 10 do art. 23.º do EAJ à remuneração variável calculada nos termos da alínea a) do n.º 4 do mesmo artigo, procedendo então o cálculo da remuneração variável apresentado pela apelante e fiscalizado pelo Sr. Contador, assim se fazendo JUSTIÇA!”

O MINISTÉRIO PÚBLICO veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma:

“1ª - O limite de € 100.000 previsto no art.º 23.º, n.º 10, do EAJ, representa o teto máximo para a remuneração variável no seu todo, e não apenas o limite da componente da remuneração sem a majoração.

2ª – A decisão recorrida deverá ser mantida nos seus precisos termos, por nenhum agravo ter feito à Lei.

Termos em que se conclui que o recurso não merece provimento e que a douta decisão recorrida deve ser mantida nos seus precisos termos.”

O recurso foi admitido como apelação a subir imediatamente e em separado dos autos principais e com efeito meramente devolutivo - artºs. 629º, 638º, 644º, n.º 1, al. a), 645º, n.º 1, al. a) e 647º, n.º 3 al. d) do C.P.C. e 14º, n.º 5 do CIRE.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

A questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber como opera o limite previsto no nº10 do art. 23º do EAJ, no cálculo da remuneração variável do Administrador de Insolvência em face da nova redação dada ao art. 23º pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, concretamente, em saber se este limite se aplica apenas ao cálculo proveniente da al. b) do n.º 4 do art.º 23.º do EAI, ou se se aplicará a toda a remuneração variável (majoração incluída).

III-FUNDAMENTAÇÃO:

Dão-se aqui por reproduzidos os atos processuais supra mencionados no relatório.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:

Dispõe o art. 60º do CIRE o seguinte:

“1-O administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.

2-Quando eleito pela assembleia de credores, a remuneração do administrador da insolvência é a que for prevista na deliberação respetiva.

3-O administrador da insolvência que não tenha dado previamente o seu acordo à remuneração fixada pela assembleia de credores pela atividade de elaboração de um plano de insolvência, de gestão da empresa após a assembleia de apreciação do relatório ou de fiscalização do plano de insolvência aprovado, pode renunciar ao exercício do cargo, desde que o faça na própria assembleia em que a deliberação seja tomada.”

O pagamento da remuneração do administrador da insolvência é suportado pela massa insolvente (artigo 29.º, n.º 1 do EAJ), sendo composta por uma componente fixa e uma componente variável.

Relativamente á fixação da componente variável, que se encontra em apreço, neste recurso, são aplicáveis as disposições do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) que foi aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, sendo que no seu artigo 22.º consta igualmente que o administrador judicial tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas.

As regras relativas ao montante da remuneração do administrador da insolvência e à sua forma de cálculo constam do artigo 23º Estatuto do Administrador Judicial.

Esta norma em concreto – artigo 23º do EAJ – viu a sua redação ser alterada pela Lei nº 9/2022, de 11/01 e que entrou em vigor no dia 11 de abril de 2022 e é imediatamente aplicável aos processos pendentes, por força da norma transitória contida no seu Artigo 10.º nº 1

Dispõe o seguinte o art. 23º do EAJ, na redação aplicável:

“1 - O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro).

2 - Caso o processo seja tramitado ao abrigo do disposto no artigo 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração referida no número anterior é reduzida para um quarto.

3 - Sem prejuízo do direito à remuneração variável, calculada nos termos dos números seguintes, no caso de o administrador judicial exercer as suas funções por menos de seis meses devido à sua substituição por outro administrador judicial, aquele apenas aufere a primeira das prestações mencionadas no n.º 2 do artigo 29.º

4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:

a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;

b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.

5 - Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.

6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.

7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.

8 - Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.

9 - À remuneração devida ao administrador judicial comum para os devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo, nomeado nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 52.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplica-se o limite referido no número anterior acrescido de (euro) 10 000 por cada um dos devedores do mesmo grupo.

10 - A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro).

11 - No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.”

Do exposto resulta que, a remuneração do administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz obedece a um regime misto, constituído por uma parte fixa (art. 23º nº 1 do EAJ) e uma parte variável, esta calculada em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente (art. 23º nºs 4, 5, 6, e 7 do EAJ), permitindo a parte fixa maior certeza e “constituindo a parte variável como que uma motivação para o exercício da atividade.”

Neste recurso, a questão que se coloca é a de saber se o limite estabelecido no art. 23º nº 10 do EAJ é um limite imposto e aplicável à remuneração variável total, (compreendendo a majoração, nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente), ou se constitui um limite apenas à parcela achada com a operação de cálculo prevista na al. b) do nº 4 e no nº 6 do mesmo artigo.

O primeiro entendimento mostra-se acolhido no despacho recorrido e o segundo é aquele que se mostra defendido pela Apelante neste recurso.

Na decisão recorrida entendeu-se que aquele é um limite absoluto da remuneração variável global e efetuou todos os cálculos, incluindo a majoração, aplicando-o ao resultado final (superior a cem mil euros).

A recorrente porém, defende que este limite de cem mil euros é aplicável apenas à primeira parcela, a prevista na al. b) do nº4 e no nº6 do art. 23º, a qual, sendo superior a cem mil euros, como no caso concreto, deve ser reduzida a este montante, sendo esse o valor a considerar e a deduzir ao resultado da liquidação para cálculo da majoração.

Vejamos.

A remuneração variável que pode ser majorada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos (nº 7 do art. 23º do EAJ), tem por objetivo, estimular a diligência do administrador de insolvência, no sentido de obter para os bens da massa insolvente o valor mais alto possível.

Tal propósito presidiu ao estabelecimento (criação) de tal incremento (majoração) à remuneração variável – o Estatuto do Administrador da Insolvência aprovado pela Lei 32/2004, de 22/07, previa que a remuneração variável do administrador de insolvência nomeado pelo juiz, apurada em função do resultado da liquidação da massa insolvente, fosse majorada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos (art. 20º, nº 4 do EAI), tendo o regime (misto) então adotado sido justificado na exposição de motivos ‘da proposta de Lei que deu origem à Lei n.º 32/2004 [Proposta de lei n.º 112/IX/2] nos seguintes termos: «No que respeita à remuneração, estabeleceu-se um regime misto constituído por uma parte fixa e outra variável. Assim, a par de um montante fixo suportado pela massa insolvente, cria-se um sistema de prémios cujo montante varia em função da efetiva satisfação dos créditos. Este sistema garante, quer uma maior certeza no que respeita ao montante da remuneração, em virtude da existência de critérios objetivos, quer um incentivo que premeia o bom exercício da atividade»’.

Propósito comum (idêntico) aos diplomas que, desde 2004 e até à entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11/01, regulavam a matéria da remuneração do administrador da insolvência/administrador judicial (o EAI, aprovado pela Lei 32/2004 e o EAJ, aprovado pela Lei 22/2013, com as sucessivas alterações).

Desde o Estatuto do Administrador da Insolvência (Lei 32/2004) até à entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11/01, quer o montante da remuneração fixa, quer os fatores necessários para determinação do valor da remuneração variável e da majoração desta eram estabelecidos através de portaria (portaria conjunta dos ministros das finanças e da Justiça no âmbito do EAI - art. 20º, nº 1, 2 e 4 da Lei 32/2004, de 22/07 -, portaria conjunta dos ministros das finanças, da justiça e da economia no âmbito do EAJ – art. 23º, nº 1, 2 e 5 da Lei 22/2013, de 26/02, solução que se manteve com as alterações introduzidas pela Lei 17/2017, de 16/05 e DL 52/2019, de 17/04) – podia na vigência de tais diplomas afirmar-se, com inteira propriedade, que a remuneração do administrador da insolvência era calculada de acordo com ‘dois critérios cumulativos’: um primeiro critério fixo de acordo com o montante estabelecido na portaria; e um segundo, com carácter variável, pois dependente do resultado da liquidação da massa insolvente (ou da recuperação do devedor), com majoração em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos (art. 20º, nº 2 a 4 do EAI e art. 23º, nºs 2 a 5 do do EAJ e o art. 2 da Portaria 51/2005, de 20/01).

A um maior grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos (correspondendo-lhe maior percentagem) correspondia um mais elevado fator de majoração (e logo mais elevada remuneração variável, satisfazendo o propósito da visado com o estabelecimento e tal majoração – a um maior grau de satisfação dos credores correspondia uma mais elevada remuneração).

O regime normativo impunha que fosse atendido o grau de satisfação de todos os credores admitidos ao concurso (não só os que viam os seus créditos satisfeitos, ainda que parcialmente, mas também aqueles que não obtinham, ainda que parcialmente, qualquer pagamento para satisfação de créditos reclamados e admitidos ao concurso), e assim que também a insatisfação daqueles créditos reclamados e admitidos mas não satisfeitos se repercutia diretamente no valor da remuneração a auferir pelo administrador (no valor da majoração da remuneração variável).

Com a alteração introduzida pela Lei 9/2022, de 11/01, o Estatuto do Administrador Judicial passou a ser auto-suficiente quanto à matéria da regulamentação da remuneração do administrador – deixou de remeter-se a fixação do valor fixo e a concretização dos fatores para a determinação da remuneração variável e sua majoração para outra fonte de direito (para diploma regulamentar – portaria), passando a regulamentação da matéria a ser feita, exclusivamente, no estatuto (arredando-se, assim, os riscos associados à remessa para outras fontes de direito).

Manteve o regime misto da remuneração (remuneração fixa e remuneração variável, bem assim a previsão de majoração desta), a Lei 9/2022, de 11/01, determina que o valor da remuneração variável (este encontrado por referência ao resultado da liquidação da massa insolvente) é majorado “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.”

O legislador impôs porém, um limite no cálculo da remuneração variável, ao estabelecer o seguinte: “nos termos do nº 10 do art. 23º a remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a cem mil euros.”

Este nº10 constitui uma inovação da Lei n.º 9/2022, de 11-01-22, e tem suscitado algumas dúvidas de interpretação, nomeadamente a que a aqui se suscita, de saber se o limite de €100,00 euros é aplicável aquando do cálculo dos 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6 - nos termos da alínea b) do n.º 4, ou se, abrange ainda a majoração que é feita, nos termos do nº 7 da mesma norma, aplicando-se à remuneração variável no seu todo, não apenas àquela parcela do seu cálculo.

A decisão recorrida, perfilhou, tal como aí se expressa, “(…) o entendimento exposto, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Dezembro de 2022 (in www.dgsi.pt), onde se lê o seguinte: “O limite previsto no art. 23º nº 10 do Estatuto do Administrador Judicial é aplicável à remuneração variável total, compreendendo a majoração, nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente, funcionando como limite da mesma e não apenas da parcela achada com a operação de cálculo prevista na al. b) do nº 4 e no nº 6 do mesmo artigo” e também a interpretação feita “no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Dezembro de 2022 (in loc. cit.), “O n.º 10 do preceito contém também uma norma “travão”, fixando para a remuneração variável de AJ no caso de liquidação – sentido em que deve ser interpretada a remissão para a alínea b) do n.º 4 – um limite de € 100.000,00”.

De acordo com o art. 9º do CC, são dois os fatores interpretativos: “a) o elemento gramatical (isto é, o texto, a “letra da lei”) e b) o elemento lógico. Este último, por seu turno, aparece-nos subdividido em três elementos: a) o elemento racional (ou teleológico), b) o elemento sistemático e c) o elemento histórico.”, sendo que a letra da lei e o espírito da lei têm sempre que ser utilizados conjuntamente.[1]

A letra da lei é suscetível de causar dúvidas, no sentido em que, pretendendo o legislador aplicar o limite máximo à globalidade da remuneração variável, podia ter expresso o seu pensamento referindo-se diretamente a essa parte da remuneração do administrador judicial.

Porém, não o tendo feito, tal não invalida, que a ela se tenha querido referir, tendo em vista a remuneração variável na liquidação na sua totalidade, por contraposição à remuneração devida na recuperação, a que alude a outra alínea, a al. a), da mesma disposição do nº4 do art. 23.º do EAJ, “Pois este art. 23.º/4 do EAJ é que constitui a norma legal que atribui a remuneração variável, sendo a al. a) reportada à recuperação e a al. b) relativa à liquidação, pelo que, é possível que o limite máximo previsto no nº10 tivesse tido em consideração a remuneração global (pela liquidação).

De modo que, nesta segunda hipótese interpretativa, a “remuneração calculada nos termos da al. b) do nº4” constituiria apenas uma forma diversa de dizer “remuneração variável na liquidação”, e sinónima ainda de “processos em que haja liquidação da massa insolvente”, a que alude o nº8, sendo todas essas expressões utilizadas pelo legislador, reportadas, nesta interpretação, à mesma realidade.”[2]

Com efeito, reconstruindo-se o pensamento legislativo, é perfeitamente admissível que o legislador pode ter tido em vista a remuneração variável na liquidação na sua totalidade, por contraposição à remuneração devida na recuperação, a que alude a outra alínea, a al. a), da mesma disposição do nº4 do art. 23.º do EAJ.

E se por regra as remunerações não conhecem limites máximos, rigidamente estabelecidos no processo de insolvência, a não ser nos casos expressamente previstos (como ocorre com o fiduciário), a imposição de limites legais ocorre noutras situações, em que há lugar á fixação de remuneração (veja-se por exemplo, o limite estabelecido no art. 17º nº 4 do Regulamento das Custas Judiciais, para a remuneração das entidades que intervenham nos processos judiciais ou que coadjuvem em quaisquer diligencias, como peritos, tradutores ou consultores técnicos).

E o limite fixado de €100,000 euros (para a parte variável) da remuneração, atento o contexto sócio económico em que vivemos, é um valor em si considerado bastante elevado, pelo que, a interpretação perfilhada é também aquela que mais se adequa a evitar remunerações exorbitantes, sem paralelo relativamente a remuneração de outros participantes no desempenho da atividade judicial,[3] no contexto económico em que vivemos.

Desta forma subscrevemos a jurisprudência dos acórdãos que a seguir mencionados:

O Acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2022 citado no despacho recorrido[4], fundou a sua decisão no seguinte raciocínio interpretativo, que passamos a transcrever: “[a) Primeiramente, porque quando se refere à remuneração, o legislador pretende reportar-se ao seu valor global, uma vez que, com todas as suas componentes, “a remuneração variável integra a remuneração do administrador judicial (…) e todas estas aceções da remuneração se integram na remuneração global, de acordo com a norma do nº 1 do art. 60.º do CIRE”. b) Por outro lado, atenta a organização do art. 23.º do EAJ e o lugar em que foi introduzido o limite máximo de € 100.000,00, visto que “a sistemática do preceito, inserindo esta norma no nº 10, após a previsão de todas as (demais) operações de cálculo da remuneração, incluindo a majoração do nº 7, aponta no sentido de que o legislador se estará a referir a um limite absoluto à remuneração a aplicar depois de todas as operações antes previstas”. c) Para além disso, um argumento simultaneamente de ordem sistemática e racional, que radica na manutenção da norma do nº 8 do preceito, que prevê a redução, por decisão do juiz, do valor da remuneração que supere 50.000,00€, e que notoriamente visa o seu montante global, pois não faria “qualquer sentido limitar a primeira parcela de uma remuneração a cem mil euros e depois (…) de lhe somar uma segunda parcela (…), permitir ao julgador que reduza a soma das duas parcelas a € 50.000,00. Finalmente, com recurso a um argumento histórico, o aresto compara o texto do projeto da portaria de 2019 com a redação final da lei, afirmando que no art. 2.º daquele, “o nº3 tinha uma redação similar ao atual art. 23.º, nº 10, mas o uso da expressão remuneração, naquele local, não deixava qualquer dúvida de que o limite compreendia todas as parcelas da remuneração variável”].”.

E é este, na verdade, o entendimento que tem sido acolhido pelos Tribunais superiores, chamados a pronunciar-se sobre esta questão.

Com efeito, mostra-se esta interpretação ainda acolhida em acórdão da mesma data e Relação de Lisboa [5](no P 1159711.7.TYLSB-J-L1) e mais recentemente no Acórdão de 4.6.2024 (P 1545/09.2TYLSB-L.[6]

Também nesta Relação do Porto, foi a questão apreciada e decidida em acórdão de 18.4.2023, no P 1024/10.5TYVNG-N.P1,[7] com o seguinte sumário: “O limite de 100.000€ previsto no art. 23.º, n.º 10, do EAJ, representa o teto máximo para a remuneração variável no seu todo, e não apenas o limite da componente da remuneração sem a majoração.”

No Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 12-09-2023 (proferido no P1510/14.8TBACB.C1)[8], foi decidido que, “O limite previsto no art. 23.º, n.º 10, do Estatuto do Administrador Judicial é aplicável à remuneração variável total, compreendendo a majoração, nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente, funcionando como limite da mesma e não apenas da parcela achada com a operação de cálculo prevista na al. b) do nº 4 e no nº 6 do mesmo artigo.”

De igual forma o acórdão do TRE de 15 de dezembro de 202, proferido no processo 1157/17.7T8OLH-M.E1[9], é dito de forma esclarecedora o seguinte: “O n.º 8 (do art.º 23º do EAI) contém uma norma que permite limitar eventual desproporção entre a atividade desenvolvida, o resultado obtido e o montante da remuneração que se atinja pela aplicação das regras de cálculo expostas nas precedentes disposições, dispondo que “Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50.000,00 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.

Faz-se aqui notar que esta norma “travão” pode ser ativada pelo juiz sempre que a remuneração variável – incluindo a majoração, como resulta claro da referência ao “disposto nos números anteriores”, englobando quer a regra de cálculo do n.º 4, alínea b), quer do precedente n.º 7 – exceda o montante de € 50.000,00 por processo. E sublinha-se este aspeto porque uma leitura sistemática e integrada do preceito leva-nos a concluir que também o limite estabelecido no n.º 10, reportando-se à remuneração variável devida ao administrador em caso de liquidação, inclui a majoração – porque de remuneração variável se trata, ainda aqui – sendo esse o sentido a atribuir à referência feita à alínea b) do n.º 4. Tal interpretação, com o maior respeito por opinião diversa, é aquela que, afigura-se, melhor harmoniza as diversas disposições, por não fazer sentido que o legislador previsse, por um lado, a possibilidade de o juiz reduzir a remuneração que resultaria da aplicação dos critérios de cálculo adotados, incluindo inequivocamente a majoração, tão logo atingisse os € 50.000,00, por apelo a critérios que apelam à qualidade do desempenho do Sr. Administrador e conexão com o resultado, para vir depois consagrar o limite de € 100.000,00 apenas para a remuneração base, admitindo uma majoração sem qualquer limite quantitativo.”

Também Nuno Marcelo de Freitas Araújo in A remuneração do Administrador Judicial. Parte II – A remuneração variável,

Também não vemos que a interpretação que aqui deixamos afirmada para o art. 23º n.º 10, do EAJ, possa violar qualquer norma ou princípio constitucional, nomeadamente o direito dos trabalhadores, na dimensão retributiva, consagrado no art. 59.º, n.º 1, al. a) da Constituição da República Portuguesa, porquanto se nos afigura inteiramente legítimo a fixação de um teto remuneratório máximo para o exercício da atividade em causa, que no caso poderá ser tudo menos “condigno”, sendo certo de que dentro de tal teto é sempre possível ajustar a remuneração concreta em função do efetivo trabalho e resultados alcançados.

Concluímos, assim, que o limite previsto no art. 23º nº10 do EAJ deve ser entendido, como o foi na decisão recorrida, com o sentido de que se aplica à remuneração variável completamente calculada (incluindo majoração) nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente.

Desta forma, seguindo a linha jurisprudencial apontada, que vem sendo acolhida pelos Tribunais superiores, porque a remuneração reclamada pela Srª Administradora da Insolvência, ultrapassa aquele teto máximo de 100.000€ previsto no n.º 10 do art. 32º do EAI, apenas lhe assiste o direito a auferir o montante de 100.000€ a tal título (remuneração variável), acrescido de IVA à taxa legal em vigor, sendo essa a remuneração a que tem direito, nos termos do n.º 1 do artigo 60.º do CIRE.

V-DECISÃO:

Pelo exposto e em conclusão acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante na proporção do decaimento.


Porto, 10/9/2024
Alexandra Pelayo
Anabela Dias da Silva
Márcia Portela [VOTO DE VENCIDA:
Concordo que o limite dos € 100.000,00 tenha sido estabelecido para remuneração global. No entanto, há situações em que esse limite pode acarretar injustiças. Afigura-se que o caso dos autos é uma dessas situações.
A liquidação, segundo é afirmado, se arrastou por uma dúzia de anos, tendo sido praticado um elevado número de atos. O argumento do paralelo com a mediação imobiliária me parece pertinente. O AJ tem que suportar uma estrutura que envolve custos significativos e deve ser remunerado devidamente pela sua atividade.
Parece-me oportuno chamar à colação o Ac. Tribunal Constitucional n.º 33/2017, que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma que impede a fixação de remuneração de perito em montante superior ao limite de 10 UCs, interpretativamente extraída dos n.os 2 e 4 do artigo 17.º do Regulamento das Custas Processuais em conjugação com a sua tabela IV, por violação do princípio da proporcionalidade, ancorado no princípio do Estado de direito democrático consignado no artigo 2.º da Constituição e também consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
NUNO MARCELO DE NÓBREGA DOS SANTOS DE FREITAS ARAÚJO, A remuneração do Administrador Judicial, Parte II – A remuneração variável, Data Venia, Revista Digital 2023, pg. 67 e ss., admite que, a título excecional, o limite de € 100.000,00 pode ser ultrapassado, tendo em conta a complexidade da liquidação.
Dever-se-ia, pois, fazer uma interpretação conforme a CRP.
Para o efeito, determinaria a baixa dos autos à 1.ª instância para fixação dos atos praticados a fim de melhor se aquilatar o montante adequado da remuneração.]
_______________
[1] João Baptista Machado em Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, reimpressão de 2022, pg. 181.
[2] Neste sentido ver Nuno Marcelo de Freitas Araújo in A remuneração do Administrador Judicial. Parte II – A remuneração variável, Data Venia, Revista Digital, 2023, pg. 66, mencionando-se ainda aí que tal interpretação, pelo menos aparentemente, foi entendida por Nuno Vinha, in Jornal Económico, edição de 12/1/2022, na fórmula utilizada, disponível em linha em https://jornaleconomico.pt/noticias/respostasrapidas-o-que-vai-mudar-no-estatuto-dos-administradores-judiciais-830653.aí
[3] O administrador de insolvência participa no desempenho da atividade judicial de composição dos interesses dos credores e do insolvente no âmbito de um processo judicial, sendo nomeado pelo juiz do processo (art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26-02)
[4] Proferido no P. 22770/19.2.T8LSB-F.L, (relatora Fátima Reis Silva) disponível in www.dgsi.pt
[5] Em que é relatora Isabel Fonseca.
[6] Também relatado pela Desembargadora Fátima Reis Silva.
[7] Relatado por Fernando Vilares Ferreira.
[8] Relatado por José Avelino Gonçalves.
[9] Relatado por Maria Domingas, encontrando-se todos os acórdãos citados disponíveis in www.dgsi.pt.