PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE REVITALIZAÇÃO
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
Sumário

O plano de revitalização não pode produzir efeitos que se traduzam na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social, contra a sua vontade, constituindo violação negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo.

Texto Integral

PROC. Nº 3677/23.5T8STS.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 4

REL. N.º 896
Juiz Desembargador Relator: Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Lina Castro Baptista
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Rodrigues Pires

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO
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No processo especial de revitalização n.º 3677/23.5T8STS, após a competente tramitação, a requerente, “A..., Lda.”, N.I.P.C. ..., com sede na Rua ..., n.º ..., 1.º, freguesia e concelho de Santo Tirso, veio apresentar plano de recuperação que foi votado nos termos que constam da documentação junta pela Sra. Administradora Judicial Provisória a 28-04-2024, da qual resulta que uma maioria de 69,62% dos votos, sem créditos subordinados, foi favorável à aprovação do plano.
Sucessivamente, a 24-05-2024, o “Instituto da Segurança Social, I. P.” veio requerer a junção da deliberação do Conselho Diretivo do IGFSS, IP, daquela data e que seja declarada a ineficácia ou inoponibilidade da parte dispositiva do plano em relação aos créditos da segurança social, caso o plano viesse a ser aprovado e homologado, com fundamento no disposto nos artigos 30.º, n.º/s 1, 2 e 3 e 36.º, n.º/s 2 e 3 da LGT (Lei Geral Tributária – D.L. n.º 398/98, de 17.12), com as alterações introduzidas pelo art.º 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31.12),
Na referida deliberação consta que “A empresa não retomou o pagamento das contribuições mensais devidas, o que, nos termos do artigo 190.º, n.º 3, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), constitui indício da sua inviabilidade económica e viola o disposto no artigo 42.º do mesmo Código (…) não se afigura credível que uma empresa que, na pendência do PER, não retomou o pagamento das suas obrigações correntes para com a segurança social o irá fazer após este processo, em simultâneo com o pagamento do passivo que acumulou, em que a taxa de esforço mensal será substancialmente mais exigente. Nos termos do artigo 190.º, n.º 2, do CRCSPSS, as condições de regularização de dívida propostas no plano apenas podem ser autorizadas se forem indispensáveis para a viabilidade económica da empresa, o que, face ao exposto supra, não se encontra demonstrado (…) O plano de revitalização, no contexto suprarreferido, não acautela os interesses da segurança social (…) Nos termos do artigo 30.º, n.º 2, da LGT, o crédito tributário - no qual se integra o crédito da segurança social - é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua alteração, redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária. A homologação de um plano que inclua o pagamento em prestações de créditos sem o acordo da segurança social constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, nos termos do artigo 215.º do CIRE e, por tal motivo, o mesmo deve ser considerado ineficaz para com a segurança social, sendo-lhe inoponível”. Por isso, o ISS, IP votou contra a aprovação do plano em questão.
Ouvida a devedora, pronunciou-se esta contra tal pretensão, requerendo a homologação do plano com declaração de eficácia contra o ISS, IP.
Foi, sucessivamente, proferida sentença que homologou o plano de revitalização junto a 06-05-2024, pela A..., Lda, sem prejuízo de declarar a sua ineficácia relativamente aos créditos do “Instituto da Segurança Social, IP”.
É desta decisão que vem interposto recurso, pela devedora, que o terminou formulando as seguintes conclusões:
“1. Nos presentes autos foi homologado o plano apresentado no mesmo, contudo, com a ressalva que o mesmo é tido como ineficaz relativamente aos créditos reclamados e reconhecidos do Instituto da Segurança Social, IP, versando o presente recurso apenas contra a decisão de não oponibilidade do PER ao ISS.
2. Alicerça o Tribunal a quo que esta não oponibilidade do plano ao ISS deve-se ao facto deste instituto não ter anuído com o mesmo, com base na modificação do seu crédito, o que violaria o disposto no art. 30º n.s 2 e 3 da LGT.
3. Sendo que o voto contra do ISS deve-se ao facto de, após a entrada em juízo dos presentes autos, a Recorrente suspendeu o pagamento dos planos que tinha em vigor e em curso com o ISS, o que no entendimento do ISS violava o disposto no art. 30º n.s 2 e 3 da LGT, por violar o disposto no art. 190º n. 3 do CRCSPSS.
4. Com o devido respeito, quer-nos parecer que a decisão recorrida é ilegal (aliás, até será inconstitucional, por violação do princípio da igualdade), uma vez que o plano aprovado não viola o art. 30º n.s 2 e 3 da LGT.
5. Conforme documentação junta aos autos, o ISS reclamou a quantia de 107.232,46€, tendo a mesma sido reconhecida na sua integralidade e o plano aprovado previa o pagamento integral de tal quantia, acrescida de juros, no prazo de 83 prestações (prazo esse proposto pelo ISS), mantendo-se todas as demais garantias, sendo de referir que o ISS foi o credor que mais propostas efectuou à Recorrente, tendo todas sido atendidas (até a redução do numero inicial de prestações que passou de 120 para as 83 por sugestão destes últimos).
6. Em face de tal proposta, que foi aprovada, não existe qualquer redução, extinção ou perdão do crédito reclamado pelo ISS, o que afasta a violação do disposto no art. 30º n. 2 da LGT.
7. Pelo que, a não oponibilidade do plano aprovado ao ISS apenas foi decido pelo Tribunal a quo por este ter entendido que a suspensão dos pagamentos de tais planos que estavam em vigor em momento anterior à apresentação dos presentes autos, integravam uma violação do referido normativo, por conta do indicio, repetimos, indicio, referido no art. 190º n. 3 do CRCSPSS.
8. Olhando para estes factos, o voto desfavorável do ISS tem por base algo que, caso tivesse sido cumprido pela Recorrente, numa eventual não homologação do PER, levaria a Recorrente para uma insolvência, que poderia vir a ser qualificada como dolosa, precisamente pelo ISS ter sido beneficiado em detrimento dos demais credores.
9. Ou seja, o ISS pretendia um tratamento preferencial relativamente a todos os demais credores, incluído a Autoridade Tributária, que viu os seus planos de pagamento, também suspensos e mesmo assim votou favoravelmente, pelo que, tal situação violaria o princípio da igualdade entre credores.
10. Sendo certo que, o previsto no art. 190º n. 3 do CRCSPSS não é tido como uma violação do princípio da indisponibilidade dos créditos públicos (art. 30º n. 2 da LGT), antes sim, é apenas um indicio como lá referido.
11. Concluindo-se, não existe qualquer violação dos deveres previstos nos art. 30º n. 2 da LGT e/ou art. 215º do CIRE, antes sim, existe uma decisão que, de forma clara, beneficia de forma injustificada o ISS.
12. Mais concretamente quanto ao 30º da LGT, invocado pelo ISS, IP para votar contra a aprovação do PER, importa referir que os Tribunais Superiores tem decidido que não existe qualquer violação deste normativo quanto o plano aprovado não viole o regime prestacional legalmente previsto para a Segurança Social.
13. Neste sentido atente-se no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/04/2022 in www.dgsi.pt, referente ao proc. n. 840/21.7T8ACB.C1 (que nos diz que “Se o plano aprovado não contraria o regime prestacional legalmente previsto para os créditos da segurança social, a ausência de consentimento do credor Segurança Social não constitui violação “não negligenciável” de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.“) e Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, em douto acórdão datado de 27/10/2020 e publicado em www.dgsi.pt (que nos refere que a propósito de um plano que não obteve o voto favorável da segurança social e favorável da AT que considerou “… admissível a medida de pagamento do respetivo crédito em 150 prestações mensais e sucessivas, inserida em plano aprovado pela maioria de credores, incluindo a autoridade tributária, afirmando que o principio da indisponibilidade dos créditos tributários previsto no art. 30º, ns. 2 e 3, da LGT, significa que a AT e a SS não podem discricionariamente alterar a relação jurídica tributária, não significando que qualquer Plano Especial de Revitalização tenha que ter sempre o acordo destes dois credores.”).
14. Ou seja, só seria condição e razão válida para se tomar a decisão que se tomou caso o ISS estivesse a ser descriminado tal crédito e/ou reduzido o valor a pagar pelo mesmo, algo que, notoriamente não acontece nos autos, antes pelo contrário, mantem-se os créditos, juros à taxa legal aplicada pelo ISS, IP e ainda se mantem todas as garantias, consequentemente, não existe qualquer violação no PER aprovado do art. 30º n. 2 da LGT e do art. 215º do CIRE.
15. Isto porque, não contendo o plano aprovado qualquer violação de normas do regime legal de regularização de dívidas à Segurança Social ou mesmo qualquer violação do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, ter-se-á que concluir pela sua admissibilidade e oponibilidade contra o ISS.
16. Para alavancar o ora concluído, dever-se-á atentar, ainda, nas decisões mais recentes dos Tribunais Superiores que referem que quando um plano prevê o pagamento integral, sem qualquer redução dos montantes em divida e cujo número de prestações de pagamento não violam o limite máximo previsto, como é o caso, a falta de acordo de credor público (o ISS) é tida como uma violação negligenciável do Principio da Indisponibilidade dos Créditos Tributários pois, de outra forma, pode-se entender que os credores públicos têm direito de veto sobre os planos apresentados.
17. Nomeadamente o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 20/02/2024 no proc. n. 8830/23.9T8SNT.L1-1 e também no âmbito do processo n. 919/23.0T8BRR-AQ.L1-1, datado de 09/04/2024
18. Ou seja, para ser tomada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, teríamos que ter uma violação não negligenciável do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, mas o disposto no art. 30º n. 2 e 3 da LGT é claro ao referir que o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária e que tal princípio prevalece sobre qualquer legislação especial, nomeadamente o CIRE.
19. Percorridos os autos verificámos que o valor reclamado pelo ISS é o exacto valor a ser pago de acordo com o PER, o número de prestações é igual ao solicitado pelo ISS e encontra-se dentro dos limites legalmente admissíveis e todas as garantias existentes são mantidas, sendo paga a taxa de juros aplicada pelo ISS.
20. Não se podendo afirmar que a violação do art. 190º n. 3 do CRSPSS é tida como uma violação não negligenciável do princípio da indisponibilidade dos créditos públicos, uma vez que tal norma, apenas é uma declaração de mero indício, nada mais, o que, com o devido respeito, torna, ainda, mais estranha a decisão recorrida.
21. Concluindo-se, com o devido respeito, parece-nos que não existe qualquer motivo atendível para a não aplicabilidade do PER aprovado relativamente ao ISS, sendo certo que não se verifica qualquer um dos requisitos da não oponibilidade ao ISS, IP do plano aprovado pelos demais credores, uma vez que não existe qualquer legislação violada e tal não oponibilidade levaria mesmo a um tratamento diferenciado, violador do Princípio da Igualdade.
22. Aqui chegados, de acordo com o art. 215º do CIRE (ex vi do art. 17º n. 5 do CIRE), a homologação do plano de recuperação deve ser recusada oficiosamente pelo juiz no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, algo que aconteceu relativamente ao ISS.
23. É tido como “…não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza” (cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, pág. 713).
24. Nos presentes autos, não está em causa nem a extinção, nem a redução do crédito da segurança social, visto que se mantém o seu pagamento na totalidade.
25. Por outro lado, a dívida da segurança social não é objecto de tratamento desigual, menos favorável que os outros credores, aliás, o «outro» credor público é que está a ser tratado de forma desigual.
26. Consequentemente, pelo supra alegado e concluído, somos do entendimento que o Plano de Recuperação não viola qualquer norma imperativa (ou de outra natureza) do regime de regularização de dívidas à Segurança Social e, como tal, o mesmo deve ser declarado também eficaz em relação ao ISS, IP.
27. A decisão proferida e ora recorrida, ao decidir da forma como decidiu, fez uma interpretação desconforme do disposto nas normas supracitadas, mais concretamente do art. 30º n.s 2 e 3 da LGT.
Nestes termos e nos demais de direito, mas sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a decisão recorrida, sendo decretada a eficácia do Plano de Recuperação também quanto aos créditos tributários/créditos fiscais (ou como tal equiparados) reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P.”
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Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO
Não cabendo a este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, cumpre decidir se, apesar da rejeição, pelo IGFSS, IP, do plano de recuperação votado favoravelmente pela maioria dos credores, deve ter-se este por eficaz também quanto aos respectivo crédito.
1- É útil recordar que, em relação ao crédito do ISS, IP, o Plano previa o seguinte:
“INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP
Pagamento da totalidade da dívida reconhecida à Segurança Social, no âmbito do Processo Especial de Revitalização, nos seguintes termos:
Regularização da totalidade do crédito reconhecido, em 83 (oitenta e três) prestações mensais prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação no final do mês seguinte à sentença de homologação do plano, sem qualquer período de carência;
Taxa de juro à taxa legal aplicável pelo Instituto da Segurança Social.
As ações executivas pendentes para cobrança de dívidas à Segurança Social, no âmbito das quais será implementado o plano prestacional, não são extintas mantendo-se suspensas após aprovação e homologação do plano de revitalização até integral cumprimento do plano de pagamentos autorizado.
Manutenção das garantias existentes, nos termos do art.º 199º do CPPT.”
2 – O INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I. P., apresentou requerimento onde, além do mais, se apresentou a “ii. Declarar, ao abrigo do disposto nos artigos 30º, nº/s 1, 2 e 3 e 36º, nº/s 2 e 3 da LGT (Lei Geral Tributária – D.L. nº 398/98, de 17.12), com as alterações introduzidas pelo art.º 125º da Lei nº 55-A/2010, de 31.12, a ineficácia ou inoponibilidade da parte dispositiva do plano em relação aos créditos da segurança social, caso o mesmo venha a ser aprovado e subsequentemente homologado.
O sentido de voto já foi enviado, via email, à Exmª Sra. AI.”
3 – Como motivação da deliberação que determinou o voto negativo, foi referido:
“a. (…)
b. A empresa não retomou o pagamento das contribuições mensais devidas, o que, nos termos do artigo 190.º, n.º 3, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), constitui indício da sua inviabilidade económica e viola o disposto no artigo 42.º do mesmo Código. Com efeito, não se afigura credível que uma empresa que, na pendência do PER, não retomou o pagamento das suas obrigações correntes para com a segurança social o irá fazer após este processo, em simultâneo com o pagamento do passivo que acumulou, em que a taxa de esforço mensal será substancialmente mais exigente.
c. Nos termos do artigo 190.º, n.º 2, do CRCSPSS, as condições de regularização de dívida propostas no plano apenas podem ser autorizadas se forem indispensáveis para a viabilidade económica da empresa, o que, face ao exposto supra, não se encontra demonstrado.
d. O plano de revitalização, no contexto suprarreferido, não acautela os interesses da segurança social.
e. Nos termos do artigo 30.º, n.º 2, da LGT, o crédito tributário - no qual se integra o crédito da segurança social - é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua alteração, redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
f. A homologação de um plano que inclua o pagamento em prestações de créditos sem o acordo da segurança social constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, nos termos do artigo 215.º do CIRE e, por tal motivo, o mesmo deve ser considerado ineficaz para com a segurança social, sendo-lhe inoponível.”
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A questão colocada pela apelante como motivo da impugnação da decisão proferida vem sendo sucessivamente tratada pela jurisprudência, não apresentando novidade.
Assim, é certo que alguma jurisprudência – aliás referida pela apelante, em reforço dos seus argumentos– vem tentando empreender um caminho nos termos do qual a aprovação de um plano de recuperação apesar do voto contra do ISS, IP ou da Autoridade Tributária, desde que esse plano não altere o valor ou o regime de pagamento do crédito, compreenderá uma violação apenas negligenciável de normas aplicáveis ao seu conteúdo (de natureza tributária). E, por isso, conclui essa jurisprudência, que a existência de tal voto negativo não deve obstar à aprovação desse plano, com total eficácia, i. é, mesmo quanto aos respectivos créditos.
Todavia, é igualmente certo que a quase totalidade das decisões jurisprudenciais, incluindo as do STJ, vem continuando a afirmar a solução a que se reconduziu a decisão sob recurso.
É esse o caso do Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2023 (processo n.º 532/23.2T8AMT.P1, relator Artur Dionísio Oliveira), subscrito também pelo ora relator como adjunto. Mas é também esse o caso do Ac. do STJ de 17-10-2023, proferido no proc. nº 2395/22.6T8STR.E1.S1 (Relator: Luis Espírito Santo), onde se decidiu I - Havendo o plano de revitalização, aprovado e judicialmente homologado, previsto o pagamento em prestações do crédito do Instituto de Segurança Social, bem como a suspensão das suas execuções contra a recuperanda, é inegável que o respectivo conteúdo traduz e consubstancia uma efectiva, real e substantiva restrição ao conteúdo desses mesmos créditos. II – Ora, o plano de revitalização não pode produzir efeitos que se traduzam na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social, contra a sua vontade, o que constitui violação negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos e para os efeitos do artigo 215º do CIRE, extensivo ao processo especial de revitalização nos termos do artigo 17º-F, nº 7, do mesmo diploma legal. (…)”.
Como infra se refere, podemos adiantar que não vemos razão para nos afastarmos desta solução, invertendo o sentido da referida decisão desta secção do TRP.
No caso, alega a apelante que o fundamento da rejeição do Plano, pelo ISS, é destituído de razão.
O regime legal aplicável à questão suscitada mostra-se perfeitamente descrito quer na decisão recorrida, quer no já citado acórdão desta secção do TRP, com o nº 532/23.2T8AMT.P1, demonstrando a própria apelante oo seu perfeito conhecimento, apesar de concluir diferentemente quanto aos termos da sua aplicação.
Torna-se, por isso, superfluo descrevê-lo, sem prejuízo de se relembrar que tal regime aplicável é conformado quer pelo disposto no art. 215º do CIRE, que dispõe que “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação”; quer pelo disposto nos nºs 2 e 3 do art. 30º da LGT, de onde resulta a indisponibilidade de créditos fiscais e, bem assim, a proibição de homologação de planos de revitalização que contemplem a alteração, redução, extinção ou dilação temporal do pagamento de créditos de natureza tributária, sem que o Estado – a Fazenda Nacional/Segurança Social - tenha votado favoravelmente tal homologação.
Como refere a sentença recorrida, a homologação do plano nessas condições constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, nos termos do art. 215.º do CIRE e, por tal motivo, deve o juiz recusar oficiosamente a homologação do acordo na parte em que viola regras legais imperativas.
Acresce que a jurisprudência vem afirmando inequivocamente aquilo que se enunciou no citado acórdão deste TRP, isto é: “com a alteração introduzida naquela norma pelo artigo 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2011), e com a norma transitória do artigo 125.º, do mesmo diploma legal, o legislador deixou claro o propósito de reforçar a intangibilidade dos créditos tributários, impedindo que os mesmos possam ser afectados apenas com fundamento em normas especiais, nomeadamente as relativas aos processos insolvenciais ou pré-insolvenciais, à margem das regras consagradas nas normas gerais do direito tributário. E fê-lo, manifestamente, com o propósito de blindar os créditos tributários no processo de insolvência, ainda que, deste modo, possa criar entraves à recuperação da empresa”.
Assim, só pode acompanhar-se a conclusão enunciada naquele acórdão, nos termos da qual “(…) ressalvando situações limite que poderão justificar o recurso a válvulas de segurança interpretativa que a jurisprudência vem ensaiando –, o plano de recuperação aprovado no processo de insolvência ou no PER apenas pode afectar os créditos tributários se respeitar todas as condições de alteração, redução ou extinção desses créditos impostas na lei geral (maxime na LGT, no CPPT e no CRCSPSS), entre as quais se inclui o consentimento do organismo público competente, nomeadamente a AT ou o ISS.”
Como se menciona neste acórdão, a identificação de uma menor valia da solução legal vigente, pela jurisprudência, não deve redundar na adopção de interpretações legais correectivas e eventualmente abrogantes. Embora caiba recusar uma postura inteiramente positivista na aplicação do direito, isso não pode redundar na interpretação da Lei em ordem à aplicação de uma solução diversa daquela que foi sucessivamente afirmada como pretendida pelo legislador, mesmo que com esta se não concorde.
No caso sub judice, é óbvia a absolutamente clara a manifestação da vontade do credor ISS, IP, contrária à homologação do plano.
Por outro lado, ainda que no plano aprovado sejam mantidos o valor do crédito, a taxa de juro, as garantias existentes, também ali se prevê que as ações executivas pendentes para cobrança de dívidas à Segurança Social, no âmbito das quais será implementado o plano prestacional, não são extintas mantendo-se suspensas após aprovação e homologação do plano de revitalização até integral cumprimento do plano de pagamentos autorizado.
Essa suspensão, de per si, traduz-se numa restrição do conteúdo dos créditos dado ISS, obstando eventualmente à sua realização imediata, no âmbito das respectivas execuções, e consagrando essa realização através de um regime prestacional o qual, apesar de legalmente admissível (pois é inferior ao número máximo de prestações – 150 – previsto no nº 6 do art. 196º do CPPT (DL n.º 433/99, de 26 de Outubro), acabou por integrar uma solução que mereceu a votação negativa do ISS, IP.
Ora, como se refere no Ac. do STJ citado supra, o plano de revitalização não pode produzir efeitos que se traduzam na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social, contra a sua vontade, constituindo violação negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos e para os efeitos do artigo 215º do CIRE, aplicável ao processo especial de revitalização nos termos do artigo 17ºF, nº 7, do mesmo diploma legal.
Alega a apelante que, todavia, nem sequer é essa a motivação invocada por este credor para rejeitar a aprovação do plano que outros votaram favoravelmente, pois que se limitou a alegar que “A empresa não retomou o pagamento das contribuições mensais devidas, o que, nos termos do artigo 190.º, n.º 3, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), constitui indício da sua inviabilidade económica e viola o disposto no artigo 42.º do mesmo Código.”
E mais argumentou que a sua actuação foi a devida, pois que se realizasse tais pagamentos incorreria no favorecimento de um dos credores, o que lhe poderia acarretar responsabilidades de várias ordens, designadamente uma responsabilidade penal e a qualificação de uma hipotética insolvência como culposa.
Não pode reconhecer-se, no entanto, valor a este argumento pois que, como não deixa de reconhecer, o cumprimento de tal obrigação, isto é, a continuidade do estrito cumprimento de um regime de pagamento prestacional das dívidas existentes era-lhe imposto pelo nº 3 do art. 190º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), como forma de prevenir a indiciação da sua inviabilidade económica. Não haveria a devedora, ora apelante, de incorrer em conduta censurável de favorecimento de credores, na medida em que esse favorecimento foi manifestamente reivindicado pelo Estado para a tutela dos seus créditos, como se verifica das regras legais já enunciadas.
Como se referiu, não cabe aos tribunais rejeitar essa solução, por mero desacordo para com ela, sendo certo que na mesma não se indicia qualquer nota de inconstitucionalidade que possibilitasse a rejeição da sua aplicação.
Não pode, nestas circunstâncias, deixar de se reconhecer a utilidade do argumento usado pelo ISS, IP, para rejeitar o plano: a invocação da referida presunção de inviabilidade económica da devedora.
Associando essa motivação à constatação de uma efectiva alteração restritiva do conteúdo do direito do ISS.IP, se sujeito aos ditames do referido Plano, só pode concluir-se, com base nos argumentos de ambos os citados acórdãos (o do TRP e o do STJ), a que totalmente se adere, como acima se expôs, que ao tribunal recorrido só caberia concluir que a extensão da respectiva eficácia ao crédito do ISS, IP, consubstanciaria uma violação não negligenciável das citadas regras tributárias, obliterando a vontade expressa do ISS, IP, que concluiu pela inviabilidade económica da devedora e, consequentemente, que a implementação do Plano, quanto a si, tenderia a prejudicar a realização desse mesmo crédito.
Nestas circunstâncias, em cumprimento do art. 215º do CIRE, aplicável ao processo especial de revitalização nos termos do artigo 17ºF, nº 7, do mesmo diploma legal, só poderia o tribunal recorrido inibir os efeitos do Plano em relação ao crédito do ISS, IP, como o fez, sem prejuízo da respectiva homologação quanto ao mais.
Resta, em conclusão, afirmar o não provimento da presente apelação, na confirmação integral da douta decisão recorrida.
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Sumário:
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento à presente apelação na confirmação da decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Registe e notifique.
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Porto, 10 de Setembro de 2024
Rui Moreira
Lina Baptista
Rodrigues Pires