NULIDADE DE ACÓRDÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PODERES DO JUIZ
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário

Nulidades do acórdão – Artigos 3.º n.º 3, 608.º n.º 2 e 615.º n.º 1 d) do Código de Processo Civil
(Sumário da autoria da Relatora)

Texto Integral

Apelação em acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento
Tribunal de origem: 1º Juízo do Trabalho de Almada – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa
Reclamante (ré/apelada ou recorrida na apelação/recorrente na revista)
Farmácia... de EE, Unipessoal, Lda., titular do número único de pessoa colectiva e de identificação fiscal ..., com sede na Rua...
Reclamada (autora/ apelante ou recorrente na apelação/ recorrida na revista)
AA, titular do número de identificação fiscal ..., residente na Rua...

Acordam em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Por acórdão de 3.7.2024, proferido nos presentes autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, a 4.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa decidiu julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela reclamada, nos termos constantes do dispositivo a seguir citado:
“(...)
Decisão
Acordam as Juízes desta secção em:
I. Julgar parcialmente procedente o recurso.
II. Revogar a decisão recorrida na parte em que julgou lícito o despedimento e substituí-la por outra que declara ilícito o despedimento da recorrente.
III. Alterar a decisão recorrida proferida quanto à reconvenção deduzida pela recorrente e condenar a recorrida a pagar à recorrente as seguintes quantias
Retribuições intercalares
i. 890,17 euros (oitocentos e noventa euros e dezassete cêntimos), devidos pelo mês de Maio de 2023.
ii. 1.271,67 euros (mil duzentos e setenta e um euros e sessenta e sete cêntimos) devidos, respectivamente, por cada um dos meses seguintes, desde Junho de 2023 até ao trânsito em julgado do presente acórdão.
iii. Às retribuições intercalares acima mencionadas em i. e ii., a recorrida deve deduzir e entregar à segurança social o montante de 4.871,79 (quatro mil e oitocentos e setenta e um euros e setenta e nove cêntimos) já recebido pela recorrente a título de subsídio de desemprego até Novembro de 2023 e o valor do subsídio de desemprego atribuído à recorrente desde Dezembro de 2023 até ao trânsito em julgado do presente acórdão, conforme se liquidar em execução de sentença.
iv. Os juros de mora, à taxa legal, vencidos sobre os valores mencionados em i. ii. e iii. desde a data em que se liquidarem essas quantias.
Indemnização pelo despedimento ilícito
v. 13 806,73 euros (treze mil oitocentos e seis euros e setenta e três cêntimos).
vi. Os juros de mora à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, sobre a quantia acima indicada em v.
vii. A quantia devida por cada ano ou fracção de antiguidade que, até ao trânsito em julgado do presente acórdão, venha a acrescer aos indicados no parágrafo 123, à razão de 20 (vinte) dias de retribuição base, que perfazem 726,67 euros (setecentos e vinte seis euros e sessenta e sete cêntimos), por cada ano ou fracção de antiguidade, acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data do trânsito em julgado do presente acórdão.
IV. Manter no mais a decisão recorrida sobre a reconvenção.
V. Condenar a recorrida nas custas, na proporção em que decaiu e determinar que a dispensa de pagamento de custas de que beneficia a recorrente, em virtude do apoio judiciário, não prejudica a aplicação do disposto no artigo 26.º n.º 6 do RCP

Lisboa, 3 de Julho de 2024
Paula Pott (relatora)  
Paula Santos (1.ª adjunta)
Maria José Costa Pinto (2.ª adjunta), com a seguinte declaração de voto:
Consigno que, na minha perspectiva, os juros de mora sobre as retribuições intercalares a que a trabalhadora tem direito deveriam ser computados à taxa legal desde a data de vencimento de cada prestação, até efectivo e integral pagamento (em conformidade com o decidido, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 2022, processo 16995/17.2T8LSB.L2.S1), aspecto que, todavia, no contexto da decisão que subscrevo, tem uma escassa relevância.”

Alegações da reclamante
2. Inconformada com o acórdão mencionado no parágrafo anterior, a reclamante/apelada, dele veio interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. referência citius 704178 de 23.7.2024, cujo teor se dá por reproduzido).
3. No recurso de revista que interpôs, a reclamante invoca a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação mencionado no parágrafo 1, com base, em síntese, nos seguintes fundamentos:
• O acórdão impugnado, ao apreciar a excepção de prescrição não invocada pela reclamada/apelada nas alegações do recurso de apelação, violou o disposto nos artigos 3.º n.º 3 e 608.º n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC) e no artigo 87.º n.º 3 do Código de Processo do Trabalho (CPT);
• O acórdão impugnado é nulo por ter incorrido no vício de excesso de pronúncia previsto no artigo 615.º n.º 1 – d) do CPC.
Contra-alegações da reclamada
4. A reclamada/apelante, contra-alegou (cf. referência citius 706216 de 6.8.2024, cujo teor se dá por reproduzido), pugnando pela improcedência das invocadas nulidades, em síntese, pelos seguintes fundamentos:
• A reclamada, nas alegações do recurso de apelação que interpôs, defendeu que o decurso de mais de um ano sobre a data em que foi praticada a infracção disciplinar, integra a excepção de caducidade, que aí invocou, por ter confundido a caducidade com a prescrição;
• O Tribunal da Relação, qualificou a excepção invocada como prescrição e não como caducidade, por não estar vinculado às alegações das partes no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. artigo 5.º n.º 3 do CPC, ex vi artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT).
Resumo do recurso na segunda instância
5. Inconformada com a sentença de 15.2.2024, proferida pelo 1.º Juízo do Trabalho de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (referência citius 432951042), a reclamada/apelante dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (cf. referência citius 38796284 de 14.3.2024 cujo teor se dá por reproduzido).
6. A reclamante/apelada, contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso de apelação (cf. referência citius 39066910 de 12.4.2024, cujo teor se dá por reproduzido).
7. O digno magistrado do Ministério Público junto ao Tribunal da Relação, emitiu parecer ao abrigo do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT, pugnado pela improcedência do recurso (cf. referência citius 21547150 de 15.5.2024, cujo teor se dá por reproduzido).
Factos que o Tribunal leva em conta para fundamentar a decisão
8. Os factos processuais acima mencionados nos parágrafos 1 a 7, constantes das referências citius aí indicadas.
Quadro legal relevante
9. Para a apreciação da nulidade do acórdão tem relevo o quadro legal seguinte:
Constituição da República Portuguesa
Artigo 203.º
(Independência)
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.
Código de Processo Civil ou CPC
Artigo 3.º
Necessidade do pedido e da contradição
1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
Artigo 5.º
Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Artigo 608.º
Questões a resolver - Ordem do julgamento
1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.
2 - O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Artigo 615.º
Causas de nulidade da sentença
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.
Artigo 635.º
Delimitação subjetiva e objetiva do recurso
1 - Sendo vários os vencedores, todos eles devem ser notificados do despacho que admite o recurso; mas é lícito ao recorrente, salvo no caso de litisconsórcio necessário, excluir do recurso, no requerimento de interposição, algum ou alguns dos vencedores.
2 - Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre.
3 - Na falta de especificação, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente.
4 - Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso.
5 - Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.
Artigo 665.º
Regra da substituição ao tribunal recorrido
1 - Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.
2 - Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
3 - O relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias.
Código de Processo do Trabalho ou CPT
Artigo 1.º
Âmbito e integração do diploma
1 - O processo do trabalho é regulado pelo presente Código.
2 - Nos casos omissos recorre-se sucessivamente:
a) À legislação processual comum, civil ou penal, que directamente os previna;
b) À regulamentação dos casos análogos previstos neste Código;
c) À regulamentação dos casos análogos previstos na legislação processual comum, civil ou penal;
d) Aos princípios gerais do direito processual do trabalho;
e) Aos princípios gerais do direito processual comum.
3 - As normas subsidiárias não se aplicam quando forem incompatíveis com a índole do processo regulado neste Código.
Artigo 87.º
Julgamento dos recursos
1 - O regime do julgamento dos recursos é o que resulta, com as necessárias adaptações, das disposições do Código de Processo Civil que regulamentam o julgamento do recurso de apelação e de revista.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando funcionar como tribunal de revista, o Supremo Tribunal de Justiça tem os poderes estabelecidos no Código de Processo Civil.
3 - Antes do julgamento dos recursos, o Ministério Público, não sendo patrono ou representante de qualquer das partes, tem vista no processo para, em 10 dias, emitir parecer sobre a decisão final a proferir, devendo observar-se, em igual prazo, o contraditório.
Código do Trabalho ou CT
Artigo 329.º
Procedimento disciplinar e prescrição
1 - O direito de exercer o poder disciplinar prescreve um ano após a prática da infracção, ou no prazo de prescrição da lei penal se o facto constituir igualmente crime.
2 - O procedimento disciplinar deve iniciar-se nos 60 dias subsequentes àquele em que o empregador, ou o superior hierárquico com competência disciplinar, teve conhecimento da infracção.
3 - O procedimento disciplinar prescreve decorrido um ano contado da data em que é instaurado quando, nesse prazo, o trabalhador não seja notificado da decisão final.
4 - O poder disciplinar pode ser exercido directamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele.
5 - Iniciado o procedimento disciplinar, o empregador pode suspender o trabalhador se a presença deste se mostrar inconveniente, mantendo o pagamento da retribuição.
6 - A sanção disciplinar não pode ser aplicada sem audiência prévia do trabalhador.
7 - Sem prejuízo do correspondente direito de acção judicial, o trabalhador pode reclamar para o escalão hierarquicamente superior ao que aplicou a sanção, ou recorrer a processo de resolução de litígio quando previsto em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho ou na lei.
8 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto no n.º 6.
Código Civil ou CC
Artigo 298.º
(Prescrição, caducidade e não uso do direito)
1. Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.
2. Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.
3. Os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis nesses casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade.
Artigo 303.º
(Invocação da prescrição)
O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público.
Apreciação da nulidade do acórdão
10. Segundo o Tribunal julga perceber, a reclamante defende que, pelo facto de a reclamada ter invocado, por via de excepção, factos que, na sua óptica, acarretam a extinção do direito de exercer a acção disciplinar por caducidade, o Tribunal não podia qualificar tais factos como prescrição, uma vez que, não tendo sido invocada a exceção de prescrição, a mesma não é objecto do presente recurso. Além disso, ao apreciar a exceoção de prescrição sem ouvir previamente as partes, na óptica da reclamante o Tribunal da Relação infringiu o princípio do contraditório.
11. A esse propósito, o Tribunal começa por recordar que, tal como foi explicado no parágrafo 4 do acórdão impugnado, nas conclusões 21 e 22 das alegações do recurso de apelação, a reclamada/apelante defende que, provando-se que a apelada/reclamante teve conhecimento dos factos que fundamentam a decisão de despedimento da trabalhadora há mais de sessenta dias e que tais factos ocorreram há mais de um ano, em Março de 2023, quando foi instaurado o processo disciplinar, já tinha caducado o direito de a empregadora exercer o poder disciplinar.
12. Com efeito, é o seguinte o teor das conclusões 21 e 22 das alegações do recurso de apelação, que o Tribunal aqui transcreve:
“21) Feita a alteração dos factos, a primeira conclusão que resulta clara é que sendo do conhecimento da gerência a prática pela arguida/trabalhadora dos factos que lhe foram imputados na Nota de culpa, sempre o processo disciplinar movido em Março de 2023 estaria ferido de morte por CADUCIDADE do mesmo.
22) Razão pela qual tendo decorrido mais de um ano sobre tais factos, e sendo os mesmos do conhecimento directo da gerência, há muito caducou o prazo para a instauração do procedimento disciplinar. Ao decidir de forma diferente violou a douta sentença o referido preceito legal;”.
13. Nos parágrafos 41 a 51 do acórdão impugnado, o Tribunal da Relação explicou o seguinte:
“ 41. A recorrente defende que o direito de a recorrida exercer o poder disciplinar caducou porque a recorrida, desde 2019, tinha conhecimento dos factos. Invoca a aplicação do disposto no artigo 329.º do CT. Por seu lado, a recorrida, nas alegações de recurso defende que os factos imputados à recorrente são susceptíveis de integrar um crime, por isso aplica-se o prazo de prescrição da lei penal. Em particular, no artigo 582.º do articulado de motivação (cf. referência citius 36637304 de 25.7.2023) a recorrida defendeu que os factos praticados pela recorrente são susceptíveis de integrar um crime de abuso de confiança.
42. O Tribunal a quo, antes de proferir sentença, solicitou a informação junta aos presentes autos em 5.2.2024, com a referência citius 432651770, da qual resulta que a recorrente foi constituída arguida no inquérito n.º 3754/23.2T9ALM, que nessa data estava em curso na Procuradoria da República da Comarca de Lisboa, sem decisão de encerramento.
43. Na sentença recorrida o Tribunal a quo apreciou a questão como se segue:
“Por outro lado, a trabalhadora invoca a caducidade, nos termos do disposto no artigo 392.º, n.º 2, do Código de Processo do trabalho.
Ora, tendo em consideração que a empregadora teve conhecimento dos concretos factos praticados pela trabalhadora em fevereiro de 2023, não ocorreu a caducidade a que se reporta o artigo 392.º, n.º 2, do Código do Trabalho, uma vez que o processo disciplinar foi instaurado em março de 2023.
Improcede, portanto, também esta questão suscitada pela trabalhadora.
A trabalhadora suscita a prescrição a que alude o artigo 329.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
Ora, a factualidade apurada enquadra-se, objetivamente, no tipo legal de crime de falsidade informática, previsto pelo artigo 3.º, n.º 1, da Lei 109/2009, de 15 de setembro.
Com efeito, nesse preceito consagra-se o seguinte:
Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias.
O comportamento da trabalhadora enquadra-se objetivamente nesta conduta típica. Com efeito, a trabalhadora, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas (assumindo pontos a que não tinha direito, fazendo-se passar por quem tem direito aos mesmos) introduziu dados informáticos (inserção dos pontos inerentes às transações) produzindo dados não genuínos (número de pontos de que beneficia) com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes (benefício dos pontos que não são seus).
Nessa medida, tem aplicação o prazo prescricional do processo criminal.
Improcede também esta questão suscitada pela trabalhadora.”
44. Antes de mais, do contexto transcrito no parágrafo anterior resulta que as referências aí feitas ao artigo 392.º n.º 2 do Código de Processo do Trabalho (diploma que não contém esse número de artigos) e 392.º n.º 2 do Código do Trabalho (preceito que não se refere aos prazos de prescrição ou caducidade analisados na sentença recorrida), se deve a erro de escrita manifesto. Pelo que, em lugar de 392.º n.º 2 deve ler-se 329.º n.º 2 do CT – cf. artigo 249.º do CC.
“45. Feita esta rectificação, convém também sublinhar que o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – cf. artigo 5.º n.º 3 do CPC, ex vi artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT.
46. Assim sendo, o Tribunal começa por recordar que o artigo 329.º do CT prevê os seguintes prazos, de prescrição e de caducidade, consoante os casos.
47. Um prazo de prescrição do direito de exercer o poder disciplinar, que é de um ano, salvo se o facto constituir crime, caso em que se aplica a prescrição da lei penal, contado a partir da prática da infracção, independentemente do seu conhecimento pelo empregador – artigo 329.º n.º 1 do CT.
48. Um prazo de caducidade para iniciar o procedimento disciplinar, que se conta a partir do conhecimento da infracção – artigos 329.º n.º 2 do CT e 298.º n.º 2 do CC.
49. Um prazo de prescrição do procedimento disciplinar já instaurado, que é de um ano e se conta a partir da data da instauração desse procedimento, ocorrendo a prescrição se, dentro desse prazo, o trabalhador não for notificado da decisão final – cf. artigo 329.º n.º 3 do CT.
50. Os prazos previstos no artigo 329.º n.ºs 1 e 2 do CT interrompem-se se for iniciado procedimento de inquérito prévio (não existindo prova suficiente de que isso tenha sucedido no presente caso), desde que observados os requisitos temporais previstos no artigo 352.º do CT; tais prazos interrompem-se também mediante a notificação da nota de culpa, nos termos previstos no artigo 353.º n.º 3 do CT, o que se apurou ter ocorrido em 23.3.2023 (cf. facto provado 19).
51. Feito este enquadramento, embora a recorrente qualifique os factos à luz da caducidade, o Tribunal julga que a argumentação da recorrente convoca a aplicação do disposto no artigo 329.º n.ºs 1 (prescrição) e 2 (caducidade) do CT. No primeiro caso (prescrição) o prazo conta-se desde a prática da infracção, independentemente do seu conhecimento pela empregadora. No segundo caso (caducidade) o prazo conta-se desde o conhecimento da infracção pela empregadora.
14. Ou seja, tal como foi explicado no acórdão impugnado, a apelante, na motivação do recurso de apelação, invocou factos extintivos do direito de a apelada exercer o poder disciplinar (a saber, o decurso de mais de um ano sobre a prática da infracção disciplinar) e factos extintivos do direito de instaurar o procedimento disciplinar (a saber, o decurso de mais de sessenta dias sobre o conhecimento da infracção por parte da empregadora), tendo qualificado o conjunto desses factos como caducidade. Porém, o Tribunal da Relação qualificou os factos extintivos alegados pela apelante, à luz de um regime jurídico parcialmente diverso daquele que, na óptica da apelante seria aplicável.
15. Assim, contrariamente ao que defende a reclamante, tendo a reclamada/apelante invocado o decurso de mais de um ano sobre a prática da infracção disciplinar, como um facto extintivo do direito de a apelada exercer o poder disciplinar, isso basta para dar resposta ao disposto no artigo 303.º do CC (que exige que a prescrição seja invocada pela parte a quem aproveita) ainda que a apelante qualifique tais factos à luz da caducidade e não da prescrição.
16. Com efeito, tal como foi mencionado no parágrafo 45 do acórdão impugnado, o artigo 5.º n.º 3 do CPC (ex vi artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT) confere ao Tribunal o poder de optar por uma qualificação jurídica dos factos diversa da alegada pelas partes. Convém também sublinhar que a liberdade de qualificação jurídica conferida ao Tribunal pelo artigo 5.º n.º 3 do CPC é um corolário do princípio da independência dos Tribunais, consagrado no artigo da 203.º da Constituição da República Portuguesa. Acresce que, a questão suscitada nas conclusões 21 e 22 da motivação do recurso de apelação faz parte do objecto do recurso, à luz do disposto no artigo 635.º do CPC e, por isso, o Tribunal da Relação tem o dever de resolver essa questão, como impõe o artigo 608.º n.º 2 (ex vi artigo 663.º n.º 2 do CPC e 87.º n.º 1 do CPT).
17. Pelo que, contrariamente ao que defende a reclamante, a opção do Tribunal da Relação por uma qualificação jurídica dos factos extintivos invocados nas conclusões 21 e 22 da motivação de recurso, parcialmente diversa da que é defendida pela apelante, não constitui um vício de excesso de pronúncia à luz do disposto nos artigos 608.º n.º 2 e 615.º n.º 1 – d) do CPC (ex vi artigos 666.º do CPC e 87.º n.º 1 do CPT).
18. Enfim, resulta dos factos provados, acima mencionados nos parágrafos 6 e 7 do presente acórdão, que foi observado o contraditório, uma vez que tanto a reclamante/apelada, como o digno magistrado do Ministério Público, tiveram oportunidade de se pronunciar sobre os efeitos do decurso do tempo – alegados nas conclusões 21 e 22 da motivação do recurso de apelação – no direito de exercer o poder disciplinar. Pelo que, não existiu qualquer decisão surpresa. Tal como se extrai do parágrafo 43 do acórdão impugnado, acima citado, a situação também não se enquadra no disposto no artigo 665.º n.º 3 do CPC.
19. Assim, contrariamente ao que defende a reclamante, não foram violados, nem o artigo 3.º n.º 3 do CPC (ex vi artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT), nem o artigo 87.º n.º 3 do CPT.
20. Motivos pelos quais se afigura que não se verifica nenhuma das nulidades invocadas pela reclamante.
21. Não há lugar a custas uma vez que, tendo a invocação das nulidades aqui em causa sido feita nas alegações de recurso de revista, a sua apreciação pelo Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto nos artigos 617.º e 666.º do CPC, insere-se na tramitação normal do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, ao qual cabe, em definitivo, apreciar se essas nulidades se verificam (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.º 271/06.9TBLMG.C1, disponível em dgsi.pt).
Decisão
Acordam as Juízes desta secção em:
I. Julgar que não se verificam as nulidades do acórdão acima enunciadas.
II. Sem custas.
Oportunamente conclua os autos à relatora para se pronunciar sobre a admissibilidade da revista.

Lisboa, 11 de Setembro de 2024
Paula Pott
Paula Santos
Maria José Costa Pinto