INSOLVÊNCIA CULPOSA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
INIBIÇÃO DO FALIDO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I- As nulidades de sentença constituem vícios intrínsecos da própria decisão, de deficiente estrutura da mesma, não se confundindo com erros de julgamento. A integração jurídica de determinada factualidade na lei vigente à data da prolação da sentença, sem cuidar de apreciar a sucessão de leis no tempo, não consubstancia uma nulidade de sentença, mas sim um erro de julgamento, base central do recurso intentado.
II- É pela lei em vigor à data da prática dos factos suscetíveis de caracterizar a insolvência como culposa que a mesma deve ser apreciada.
III - A Lei n.º 16/2012 de 20/04 (com entrada em vigor em 21/05/2012), que alterou a redação da al. b-) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, aditando ainda a tal preceito uma nova alínea, a e), estabelecendo os pressupostos para a constituição do direito de indemnização a favor dos credores, apenas tem aplicação aos factos que tiveram lugar após a sua entrada em vigor, de acordo com o disposto no art.º 12.º n.º 1 e n.º 2 do C.Civil.
IV- Não obstante a Lei n.º 9/2022, que entrou em vigor em 11/04/2022, ser aplicável aos processos pendentes, como resulta do n.º 1 do seu art.º 10.º, a mesma não tem aplicação nos autos, pois que todos os factos suscetíveis de caracterizar a insolvência como culposa ocorreram na vigência do DL 53/2004, de 18/03, diploma à luz do qual deverão ser apreciados os efeitos que essa qualificação culposa deve acarretar para o afetado.
V- Tendo assim aplicação nos autos o art.º 189.º do CIRE na redação originária, não pode o afetado ser alvo da medida prevista naquela al. b), de inabilitação, em face da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral pelo Acórdão n.º 173/2009, de 02/04 (publicado no DR, série I, n.º 85, de 04/05/2009), não podendo igualmente ser alvo de condenação em inibição para administração do património de terceiro, por falta de normativo que então sustentasse tal sanção, que não pode ser aplicada por violação do art.º 12.º do CC.
VI- Igualmente não pode o afetado ser condenado a indemnizar os credores da insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do seu património, por tal normativo não existir àquela altura, não podendo igualmente, por força do disposto no art.º 12.º do CPC, aplicar-se a nova lei retroativamente.
VII- A norma do art.º 189.º, n.º 2, al. c), do CIRE, na redação do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/03, que hoje se mantém, quando estabelece o dever de se decretar a inibição para o exercício do comércio e desempenho de determinados cargos, por determinado período (2 a 10 anos), das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, não é inconstitucional.
VIII- Para a fixação da duração do período de inibição, além da gravidade da conduta do afetado e do número de circunstâncias qualificadoras preenchidas, com vista a aferir o contributo daquele para a situação de insolvência, se determinado diretamente se apenas agravado, deve também atender-se ao tempo decorrido entre a prática dos factos que levaram à qualificação da insolvência e a data da sentença em que esta foi proferida.
IX- Neste sentido, não obstante a efetiva gravidade da conduta adotada pelo afetado, que esteve na causa da insolvência, no preenchimento das alíneas d), e) e f) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, o que aquele não questionou em recurso, os 18 anos decorridos sobre a prática das condutas que levaram à qualificação da insolvência sem que haja notícia nos autos de qualquer fator que possa desabonar o afetado, tem que ser relevado para efeitos da fixação de uma menor duração daquela inibição.

Texto Integral

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
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I-/ Relatório:
Por sentença proferida em 12/02/2008, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de (...) Internacional, Lda..
Na sentença foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter pleno.
Por apenso ao processo de insolvência, o Sr. Administrador da Insolvência pugnou pela qualificação culposa da insolvência, com afetação do administrador da insolvente, B...., por terem sido violados os deveres previstos no art.º 186º, n.º 2, als. b), c), d), e) e f), e n.º 3, al. b), do CIRE.
Igualmente se pronunciou o Ministério Público, no sentido de a insolvência ser considerada culposa, por terem sido violados os deveres previstos nos n.ºs 2, als. b), d), e) e f) e 3.º al. b) do art.º 186.º do CIRE, com afetação do administrador da insolvente, B…
Foi notificado o proposto afetado, que deduziu oposição.

Foi proferido despacho saneador, no qual se identificou o objeto do litígio e se fixaram os temas da prova.
Realizou-se a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo, conforme resulta da ata respetiva.

Após, foi proferido sentença, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, qualifica-se como culposa a insolvência de (…) Internacional, Lda., declarando afetado pela mesma o seu gerente de facto B….
Em consequência:
a) Declara-se a inibição, pelo período de 7 anos, de B… para:
- Administrar patrimónios de terceiros;
- O exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
b) Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por B….
c) Condena-se B… a indemnizar os credores da insolvente (..) Internacional, Lda. até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do seu património.
Custas pelo requerido B… – artigo 303.º a contrario do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
Após trânsito, cumpra o disposto no artigo 189.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas».

Inconformado, veio o requerido interpor o presente recurso, que finalizou com as seguintes conclusões que aqui se reproduzem:
«A. O tribunal a quo violou o disposto no artigo 12º do Código Civil (CC) ao aplicar a norma constante do artigo 189º, nº 2, alíneas b) e e), do CIRE na sua versão atual, considerando os factos dados como provados;
B. Com efeito, resulta dos pontos 1, 2, 6 e 8, alíneas a); ab); v); ae); af); ag); ah); aj) que a insolvente (..) Internacional, Lda.., foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 12 de Fevereiro de 2008, transitada em julgado; que o processo de insolvência teve início no dia 18 de Dezembro de 2007 a pedido de um credor; que o recorrente foi condenado por acórdão transitado em julgado no dia 7 de Setembro de 2009 pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103º, n.º1, b) e c), e 104, n.º 1, d) e e), e n.º 2, da Lei n.º 15/2001, e de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. nos termos do artigo 368º-A, n.º1 e 4, do Código Penal e que os factos praticados pelo recorrente e alvo de censura ocorreram nos anos de 2005 e 2006;
C. Ora, a Lei nº 16/2012, de 20-04, sem qualquer disposição expressa quanto à sua aplicação retroativa e que entrou em vigor em 20-05-2012, substituiu a medida de inabilitação das pessoas afetadas constante da alínea b) pela medida de inibição para administrarem patrimónios de terceiros e aditou a medida constante da alínea e), consistente na condenação das pessoas afetadas no pagamento de uma indemnização aos credores, até à força dos respetivos patrimónios, sendo que a Lei n.º 9/2022 veio alterar a alínea e), do nº 2, do normativo sob escrutínio, fixando como teto máximo indemnizatório o valor dos créditos não satisfeitos;
D. Ou seja, as alterações do quadro legal aplicável assumem natureza substantiva, porquanto atinam às medidas que consagram os efeitos pessoais, em relação às pessoas afetadas, da qualificação como culposa da insolvência;
E. A nova redação do artigo 189º do CIRE acarreta para os afetados, consequências patrimoniais e limitações ao exercício de direitos fundamentais, como o do livre exercício de atividade profissional e da sua capacidade civil, gravíssimas, pelo que não podem estes ver-se surpreendidos com a sua aplicação retroativa;
F. Assim, as normas inovadoras constantes das alíneas b) e e), do nº 2 e nº 4, ambos do artigo 189º do CIRE e as condenações que delas resultam assentam nos factos que são suscetíveis de originar e produzir a apontada qualificação, consubstanciados no comportamento dos afetados em violação das obrigações e deveres que sobre si impendem na qualidade de administradores, o que inexoravelmente leva à aplicação dos efeitos pessoais da qualificação segundo o quadro vigente à data da sua ocorrência;
G. Logo, nos termos do disposto no artigo 12º, nºs 1 e 2 do CC, deverão in casu ser aplicadas as normas ínsitas no artigo 189º do CIRE na redação vigente à data dos factos, ou seja, aquela consagrada pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18-03 e não a redação de lege lata como o efetuou o Tribunal a quo – vide páginas 18 e 19 da decisão recorrida;
H. Por conseguinte, errou o Tribunal a quo ao fazer aplicação do artigo 189º do CIRE na redação atual, violando, com tal modo de proceder, o disposto no artigo 12º, nº 1 e 2, do CC;
I. Ao não se ter pronunciado quanto ao quadro legal aplicável, atenta a sucessão de leis que alteraram a norma convocada pelo Tribunal a quo, omitiu a decisão recorrida pronúncia sobre questão que lhe incumbia conhecer, nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 17.º do CIRE, omissão esta que fera a sentença da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, a qual desde já se invoca, com as legais consequências;
J. Deverá, em consequência, a sentença revidenda ser revogada e substituída por outra que faça aplicação do artigo 189º do CIRE na redação originária, isto é, aquela constante do Decreto Lei nº 53/2004, de 18-03;
K. Ao ter aplicado a sanção prevista no artigo 189º, nº 2, alínea b), do CIRE, na redação vigente, violou o Tribunal recorrido as normas constantes dos artigos 12º, nºs 1 e 2, do CC, 189º, nº 2, alínea b) do CIRE, seja na redação vigente, seja naquela resultante do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18-03 e o disposto no artigo 204º da CRP;
L. Consequentemente, o Acórdão a prolatar deverá recusar, ao abrigo do disposto no artigo 204º da CRP, a aplicação do disposto no artigo 189º, nº 2, da alínea b), do CIRE na redação aplicável, ou seja, aquela resultante do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18-03 e, consequentemente, não poderá aplicar a sanção de inibição do recorrente para administrar patrimónios de terceiros;
M. Por outro lado, admitir a aplicação da inibição prevista na alínea c), do nº 2, do artigo 189º do CIRE ao processo de insolvência culposa é permitir a aplicação de uma sanção que, ao fim e ao cabo, configura uma verdadeira pena acessória, o que a Lei Fundamental não legitima, antes proíbe nos termos da norma ínsita da conjugação do disposto no artigo 29º, nº 4, 30º, nº 5, da CRP, artigo 1º do CP e do princípio geral de direito nulla poena sine crimen (consequência do princípio geral de direito democrático nullum crimen, nulla poena sine praevia lege), sem olvidar que o artigo 66º, nºs 1 e 3 do CP, não contempla a aplicação da sanção de proibição de funções para o crime de insolvência culposa, circunscrevendo a sua aplicação aos crimes de recebimento ou oferta indevida de vantagens e corrupção;
N. Os artigos 65º e 66º do CP consagram um quadro substancialmente mais exigente do que o CIRE nas condições de aplicação da pena acessória de inibição de funções, o que bem se entende atentas as consequências gravíssimas e compressão de direitos fundamentais que a mesma implica, sendo que, considerando a aplicação conjugada do disposto nos artigos 186º, nºs 1 e 2 e 189º, nº 2, ambos do CIRE, assola a disparidade nas garantias concedidas ao afetado que, fruto de uma presunção inilidível, se vê sancionado por uma verdadeira pena acessória, limitadora dos seus direitos fundamentais, sem beneficiar das garantias de defesa que o pleito penal lhe concede, nomeadamente, presunção de inocência e produção dos meios de prova que entenda necessários à sua defesa – artigos 61º, nº 1, alíneas d) e g), do Código de Processo Penal e 32º, nºs 1 e 2, da CRP;
O. Acresce que a consagração de tal medida configura inadmissível e ilegal compressão dos direitos fundamentais à livre escolha da profissão – artigo 47º da CRP – do direito à iniciativa económica privada – artigo 61º da CRP – e do direito de propriedade- artigo 62º CRP;
P. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 189º, nº 1, alínea c) do CIRE e 204º da CRP, ao aplicar o efeito pessoal da inibição para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
Q. Por conseguinte, deverá ser revogada a aplicação da sanção de inibição prevista na alínea c), do nº 2, do artigo 189º do CIRE;
R. Ademais, considerando que, à data da prática dos factos, o artigo 189º, nº 2, do CIRE ainda não integrava nem a alínea e) do nº 2, nem o nº 4, emerge perspícuo que mal andou o Tribunal a quo ao fazer aplicação do efeito pessoal da condenação do pagamento de indemnização aos credores, violando o disposto no artigo 12º do CC,
S. Aplicação esta errada ainda que se considere o critério da data de vencimento dos créditos, porquanto da Relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos apresentada nos autos pelo Administrador da Insolvência (seja provisória, nos termos do disposto no artigo 154º do CIRE, seja definitiva, nos termos do disposto no artigo 129º do citado diploma legal), e da sentença de verificação e graduação dos créditos, prolatada nos termos do disposto no artigo 140º do CIRE, conclui-se que os créditos reconhecidos venceram-se todos antes da data de entrada em vigor da Lei nº 16/2012, de 20-04, ou seja, antes de 20-05-2012;
T. Por conseguinte, deverá a sentença ser revogada e o recorrente absolvido da condenação prevista na alínea e), do nº 2, do artigo 189º, do CIRE;
U. Finalmente e quanto ao período de duração das inibições previstas nas alíneas b) e c), o legislador apenas consagrou uma baliza temporal de 2 a 10 anos, não cuidando de estabelecer quais os critérios a aplicar na sua concretização casuística, pelo que quer a doutrina, quer a jurisprudência têm entendido que o julgador deverá atender à gravidade da conduta da pessoa afetada e à sua relevância para a verificação da situação da insolvência ou para o agravamento da mesma;
V. Sem embargo, deverão ser considerados outros fatores, como a circunstância de já ter sido ou não declarado insolvente, assim como o comportamento assumido pelo afetado após a prática dos factos, por aplicação analógica dos critérios de determinação das penas consagrados nos artigos 40º, 71º, 72º e 75º, nos termos dos quais, nomeadamente, deverá ponderar-se a conduta anterior ao facto e posterior a este, ter decorrido muito tempo sobre a prática do facto e o agente ter mantido boa conduta;
W. Considerando que o recorrente nunca foi objeto de sentença de insolvência; nunca mais foi condenado pela prática de qualquer crime, muito menos de insolvência culposa e já decorreram 18 anos sobre a prática das condutas que levaram à qualificação da insolvência, deverá o período de inibição seja da alínea b), seja da alínea c), fixado no período de 4 anos, respeitando, assim, a ratio da norma aplicada.
X. A aplicação retroativa da norma constante das alíneas b) e e), do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE na sua redação posterior à Lei n.º 16/2021, de 20/04 é inconstitucional, porque violadora do princípio da não retroatividade da lei consagrado no artigo 12º, nº 1, do Código Civil e do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, este na sua vertente de sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança, mormente nas limitações à aplicação de leis retroativas, como deflui do nº 3 do artigo 18º daquela mesma Lei fundamental, já que a ratio da disposição tem a ver com a materialidade objetivamente considerada para a avaliação da insolvência como culposa;
Y. O artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, na redação aprovada pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, é ferida de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, por violação dos artigos 26.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente, devendo a sua aplicação ser recusada nos termos do disposto no artigo 204º da Lei Fundamental;
Z. A norma constante da alínea c), do nº 2, do artigo 189º, conjugada com o disposto no artigo 186º, nºs 1 e 2, ao consentir a aplicação da sanção de inibição é ilegal e inconstitucional, porque violadora do disposto nos artigos 29º, nº 4 e 30º, nº 5, ambos da CRP, por configurar a aplicação de uma pena acessória, em clara violação do disposto nos artigos 1º, nº 1, 65º, 66º, nºs 1 e 3, todos do Código Penal, e, consequentemente, do direito à liberdade;
AA. A norma constante da alínea c), do nº 2, do artigo 189º, conjugada com o disposto no artigo 186º, nºs 1 e 2, ao permitir a aplicação da sanção de inibição através do recurso a presunções irrefragáveis, é ilegal e inconstitucional, porque violadora do disposto no artigo 32º, nºs 1 e 2 da CRP, por compressão ilegal e inadmissível das garantias de defesa de que deve beneficiar o cidadão por força da aplicação de uma pena acessória, em clara violação do disposto no artigo 61º, nº 1, alíneas d) e g) do CPP;
BB. A norma constante da alínea c), do nº 2, do artigo 189º, conjugada com o disposto no artigo 186º, nºs 1 e 2, ao permitir a aplicação da sanção de inibição para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, é ilegal e inconstitucional, porque violadora do disposto nos artigos artigo 47º, 61º e 62º, todos da CRP, por compressão ilegal e inadmissível dos direitos fundamentais à livre escolha da profissão, à iniciativa económica privada e ao direito de propriedade.
Termos em que, na procedência do presente recurso, deverá a nulidade invocada, porque procedente, ser declarada, com as legais consequências, sem prejuízo de, caso assim não se entenda, ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, a sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que acolhe os argumentos esgrimidos, assim se fazendo a COSTUMADA JUSTIÇA!!!

O Ministério público apresentou contra-alegações nos autos, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.

O recurso foi admitido, após o que os autos subiram a este Tribunal da Relação, e, colhidos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões essenciais que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em:

(i) aferir se a sentença recorrida, ao aplicar aos factos o regime que resulta do CIRE na sua redação atual, padece da nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por o julgador não se ter pronunciado sobre o quadro legal aplicável no enquadramento da sucessão de leis que alteraram a norma (189.º) convocada pelo Tribunal a quo;
(ii) aferir se o regime aplicável aos autos é o que decorre do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
(iii) Aferir se, a ser assim, a condenação do requerido nos termos sentenciados com aplicação retroativa da norma constante das alíneas b) e e), do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, na redação atual – decretando a sanção de inibição de administrar património de terceiros e condenando a indemnizar os credores da insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do seu património – é ilegal e inconstitucional, porque violadora do princípio consagrado no art.º 12.º, n.º 1, do CC e do art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa;
(iv) aferir, por outro lado, se o art.º 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, na redação aos autos aplicável, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, está ferido de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, por violação dos arts.º 26.º e 18.º n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, devendo assim ser recusada a sua aplicação;
(v) aferir igualmente se a norma constante da alínea c), do n.º 2, do mesmo preceito legal, conjugada com o disposto no art.º 186.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE, ao consentir na aplicação de uma sanção que configura uma pena acessória, é ilegal e inconstitucional, porque violadora do disposto nos arts. 18.º n.º 2, 26.º, 29.º, n.º 4, 30.º, n.º 5, 47.º, 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa;
(vi) aferir, sem prescindir, se o período de inibição a fixar, seja da alínea b), seja da alínea c), do n.º 2 do art.º 189.º, deve ater-se num período de 4 anos, em face das concretas circunstâncias do caso, respeitando, assim, a ratio da norma aplicada.

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III-/ Fundamentação de facto:
Foram dados por provados os seguintes factos:
1. A (...) Internacional Lda., pessoa coletiva …, com sede …, foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 12 de fevereiro de 2008, transitada em julgado, tendo sido nomeado para assumir as funções de administrador da insolvência o Sr. Dr. …
2. O processo de insolvência teve início no dia 18 de dezembro de 2007, a requerimento da credora Arrow Ibéria Electrónica, S.L.U..
3. A (...) Internacional Lda. tem por objeto a comercialização de material elétrico e eletrónico, importação e exportação, formação e assistência técnica na área dos produtos comercializados. Importação e exportação de mercadoria diversa.
4. A (...) Internacional Lda. foi constituída no dia 8 de janeiro de 2004, tendo como sócios os pais de B…, sendo nomeado gerente JO….
5. No dia 12 de outubro de 2005, os pais de B… cederam as suas quotas à (…) S.A., pessoa coletiva, representada no ato pelo seu presidente do conselho de administração, B…, sendo nomeada gerente a não sócia mãe de B…
6. Por acórdão transitado em julgado no dia 7 de setembro de 2009, relativamente a B…., confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.º …/06.7TELSB, pendente no Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 20, B.... foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 anos de prisão, pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103º, n.º1, b) e c), e 104, n.º1, d) e e), e n.º 2, da Lei n.º 15/2001, e de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. nos termos do artigo 368º-A, n.º 1 e 4, do Código Penal, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7. No âmbito do processo referido em 6., a responsabilidade criminal da insolvente (...) Internacional Lda. foi declarada extinta, atenta a sua declaração em situação de insolvência.
8. Conforme demonstrado no âmbito do processo referido em 6., em síntese e com relevo para os presentes:
a) Em data não concretamente determinada mas em finais de 2005, B.... e um indivíduo italiano, G…, acordaram entre si atuar de forma a por tempo indeterminado e enquanto lhes fosse possível, de forma regular e reiterada, obterem à custa do Estado Português vantagens patrimoniais que sabiam não lhes serem devidas, aproveitando-se da livre circulação de mercadorias, instituída pelos tratados da Comunidade Económica Europeia e da União Europeia, bem como pelos regulamentos atinentes às transações intracomunitárias de mercadorias.
b) Com efeito, nesse tipo de transações, envolvendo, necessariamente, pelo menos, dois Estados Membros da União Europeia, a aquisição de mercadorias é feita à taxa de 0% de IVA.
c) A liquidação do IVA, com o seu efetivo pagamento, é efetuada na primeira transação nacional da mercadoria, o que obriga o adquirente intracomunitário, assim colocado na posição de depositário do IVA, a entrega-lo ao Estado respetivo.
d) Face a tal circunstancialismo o arguido B.... e o referido G… recorriam basicamente a esquemas derivados da apelidada “fraude carrossel”, que consiste em transmissões sucessivas dos mesmos bens entre diversos operadores sediados em pelo menos dois Estados da União Europeia e se carateriza pela não entrega do IVA devido por pelo menos um operador no seu país. Como também, à utilização de um esquema em que a mercadoria é adquirida intracomunitariamente e vendida no território nacional, ficcionando-se a sua aquisição no mercado nacional através da contabilização de faturas falsas, como forma de absorver o IVA que deveria ser entregue ao Estado.
e) Estes esquemas de atuação têm sempre subjacente, como condição indispensável ao seu funcionamento, a decisão prévia de não entrega do IVA liquidado, bem como a constituição formal de empresas, tendo em vista a obtenção do número fiscal de operador que possibilita a transmissão intracomunitária de mercadorias.
f) A decisão prévia de não entregar o IVA liquidado nas faturas permite ao operador que o liquida baixar o preço de venda da mercadoria para um valor inferior ao da respetiva compra e, ainda assim, realizar lucro, permitindo ao mesmo tempo àquele a quem vende a dedução do valor do imposto contido na sua fatura.
g) A consolidação destes esquemas requer, por outro lado, a criação de um circuito de papel (assim chamado por não ter subjacente a transação real de qualquer mercadoria), o qual visa, em primeira linha, produzir o IVA dedutível necessário para que a empresa possa formalmente evitar a entrega ao Estado do IVA liquidado, permitindo também, noutros casos, a introdução no mercado interno de bens objeto de transações intracomunitárias reais ou simuladas, bem como de importações.
h) Esse circuito de papel provém, na maior parte dos casos de empresas constituídas por indivíduos estrangeiros, sem residência em Portugal e com paradeiro desconhecido que funcionam como verdadeiras “empresas lavandaria” do IVA, quer produzindo IVA dedutível que vai justificar a não entrega do IVA liquidado pelas empresas que integram a organização, quer colocando-se na posição de primeiro vendedor nacional de mercadoria proveniente de aquisição intracomunitária, liquidando o IVA respetivo, que não entregam ao Estado.
i) De acordo com o plano gizado por B... e G…, decidiram adquirir, nas mesmas circunstâncias, mercadoria proveniente de vendas intracomunitárias (isentas de IVA), por empresa que aderisse ao seu plano.
j) E decidiram que essas mercadorias seriam, depois da apropriação do IVA, vendidas em Portugal ou faturadas para Espanha, em ambos os casos a um preço sempre inferior ao do custo.
k) Para desenvolver esta atividade decidiram angariar colaboradores com vista a desenvolver todo o conjunto de atividades necessárias para alcançar o seu propósito.
l) Tal conjunto de colaboradores viria a ser formado por um conjunto de indivíduos e de empresas sediadas em Portugal e em países da União Europeia, que interviriam no plano gizado.
m) As empresas constituir-se-iam como uma teia de intermediários, cada um com funções bem definidas, que dissimulariam, no seu centro, B… que tudo dirigia.
n) Com essas empresas e indivíduos disseminados, designadamente no território nacional e em Espanha, dificultar-se-ia a ação fiscalizadora da Administração Fiscal, permitindo alcançar a impunidade de cada um dos intervenientes, já que se dispersava a atividade e se transferia a responsabilidade dela decorrente para terceiros.
o) Para levar a cabo o seu plano, B... e G… decidiram criar uma sociedade que assumiria a natureza de “sociedade-ecrã” (“missing trader”), ou seja, seria uma sociedade com existência jurídica, mas sem existência de facto, que colocada no início da cadeia não entregaria ao Estado o IVA proveniente das vendas que efetuariam no mercado interno.
p) Essa empresa destinava-se a adquirir mercadorias, nas circunstâncias já referidas em Estados Membros da União Europeia, à taxa de 0% de IVA, e a faturá-las no mercado nacional a preço inferior ao de custo e com IVA, sendo que a perda efetiva na transação da mercadoria seria compensada através do IVA de que se apropriaria.
q) Para além desta, estabeleceram ainda B... e G… uma “empresa-tampão” (“buffer”), cujo controle assumiriam também.
r) Visando a concretização do plano supra descrito, B... decidiu utilizar a empresa X para desempenhar as funções de “missing trader” e a empresa V para desempenhar as funções de “buffer”.
s) B.... teve o propósito, que concretizou, de controlar a atividade daquelas duas empresas, o que fez, de forma a ocultar a sua verdadeira identidade.
t) Com tal objetivo, B... acordou com G… a aquisição formal por este das duas empresas referidas em r), que destinava a serem utilizadas no plano que projetou praticar, o que se concretizou.
u) No ano de 2006, G… é o único sócio e gerente da X, Lda. e o único sócio e gerente da V.
v) Em concretização do plano delineado por B... foi aberta em Dezembro de 2005 uma conta no banco BCP e outra no banco BPI em nome da X, e uma conta no banco BCP em nome da V, e em Março de 2006 foi aberta conta no banco BPI em nome da V.
x) Tanto a X como a V não desenvolviam qualquer projeto económica lícito, não dispunham de instalações fixas que funcionassem como escritórios das suas atividades, não dispunham de armazéns para recolha das mercadorias a adquirir, não dispunham de registos contabilísticos. Como suporte da sua atividade a X e a V dispunham de dois “escritórios”, a partir dos quais efetuavam os necessários contactos com clientes e fornecedores.
y) Não dispondo de armazém, as mercadorias adquiridas pela X aos seus fornecedores intracomunitários, no momento da aquisição, eram diretamente transportadas para as instalações de logística da empresa Garland. Deste local as mercadorias adquiridas pela X, e depois faturadas por esta à V, eram transportadas para os clientes finais da V.
z) Na estrutura montada por B.... este tudo dirigia: determinava as mercadorias a comprar pela X, indicava os fornecedores intracomunitários que haviam de fornecer tais mercadorias, estabelecia contactos com as empresas clientes da V, que lhe permitiam escoar a mercadoria, estabelecia os preços de venda, determinava a emissão de faturas e respetivos valores, quer da empresa X para a V quer desta para os consumidores finais, ordenava a realização das operações bancárias, nomeadamente transferências das contas da V para a X e desta para empresas estrangeiras, determinou a realização de operações que, convertendo quantias monetárias, escondendo a sua origem ilícita, permitiu que o mesmo e terceiros com ele relacionados fizessem tais quantias coisa sua.
aa) Para melhor concretizar o plano que idealizou, B.... utilizou também, nos termos adiante descritos, as empresas (…) Internacional, Lda. e a empresa On.
ab) Visando ocultar o facto de ser a pessoa que dirigia a atividade de tais empresas, B.... decidiu que as participações sociais daquelas empresas pertenceriam a seus pais. A mãe de B…, sabendo embora que o seu filho fora anteriormente condenado por crime de fraude fiscal, e admitindo como provável que o mesmo pretendia voltar a praticar atos ilícitos, nomeadamente de natureza fiscal, e lesivos dos interesses patrimoniais do Estado, aceitou colaborar com o mesmo nos termos que este lhe indicou. Para o efeito aceitou ser sócia da (…) Internacional, Lda. e da On, tendo ainda assumido a gerência nominal da primeira. Com tal facto pretendeu ocultar a atividade desenvolvida por B.... no âmbito da (…) Internacional, Lda., nada obstando às atividades adiante descritas desenvolvidas por B.... no âmbito das aludidas empresas. Ainda para concretização do plano por si delineado, B.... utilizou nos termos adiante descritos as empresas S e OC (esta uma empresa de direito espanhol), das quais B.... é único sócio.
ac) O esquema de fraude delineado por B.... assumiu duas vertentes distintas, circuito A e B.
ad) No âmbito do Circuito A foram efetuadas três operações, adiante descritas, nas quais tiveram intervenção as sociedades OC, a (…) Internacional, Lda., a X, a I V, a L2VM, a J. e a On.
ae) (1ª operação realizada no âmbito do plano delineado por B....) Através da empresa (…) Internacional, Lda., foram adquiridos à empresa espanhola, SL, 100 processadores Intel Pentium IV 630 e 200 processadores Intel Pentium IV 640 – fatura F500132530, de 11 de Janeiro de 2006, no valor de €48.895. A (…) Internacional, Lda., efetuou o pagamento através de uma transferência bancária nesse valor, no dia 10 de Janeiro de 2006, da sua conta bancária no BCP. A mercadoria foi transportada de Espanha para Portugal pela empresa de transportes e logística TNT. A (…) Internacional, Lda., através da fatura com o n.º 2 de 11 de Janeiro de 2006, no valor de €49.925, vendeu alegadamente a mercadoria à empresa espanhola OC. Alegadamente, o transporte da mercadoria de novo para Espanha foi efetuado pela empresa On, formalmente propriedade dos pais de B.... Em 11 de Janeiro de 2006, a L2VM transferiu para a conta da V no BCP €5.877 e €50.000, no total de €55.877,80, correspondente ao pagamento da fatura da V, com o n.º 1, de 11 de Janeiro de 2006, naquele valor. A mercadoria vendida pela V à L2VM foi 100 processadores Intel Pentium IV 630 e 200 processadores Intel Pentium IV 640, ou seja, o mesmo tipo e quantidade de produtos adquiridos em nome da (…) Internacional, Lda., à aludida empresa espanhola. Em 11 de Janeiro de 2006, a V transferiu para a conta da X no BCP a importância de €50.899,86, valor que corresponde ao pagamento da fatura da X de 12 de Janeiro de 2006, em pagamento, conforme fatura, de 100 processadores Intel Pentium IV 630 e 200 processadores Intel Pentium IV 640. Em 11 de Janeiro de 2006, a x transfere para a OC a quantia de €50.225.
af) (2ª operação realizada no âmbito do plano delineado por B....) Através da empresa (…) Internacional, Lda., foram adquiridos à empresa espanhola SL, 200 processadores Intel Pentium IV 650 – fatura F500134129, de 16 de Janeiro de 2006, no valor de €44.600. A (…) Internacional, Lda., efetuou o pagamento à SL através de uma transferência bancária nesse valor, no dia 12 de Janeiro de 2006, da sua conta bancária no BCP. A mercadoria foi transportada de Espanha para Portugal pela empresa de transportes e logística TNT. A (…) Internacional, Lda., alegadamente, vendeu a mercadoria à empresa espanhola OC - fatura com o n.º 4 de 13 de Janeiro de 2006, no valor de €45.300. A OC transferiu para a conta da (…) Internacional, Lda., no BCP as importâncias de €38.500 (12/01/2006) e €6.800 (17/01/2006), no valor total de €45.300 (valor da fatura). Alegadamente, o transporte da mercadoria de novo para Espanha foi efetuado pela empresa On, formalmente propriedade dos pais de B.... Em 12 de Janeiro de 2006 e 13 de Janeiro de 2006, a L2VM transferiu para a conta da V no BCP €33.000 e €18.304, respetivamente, no total de €51.304, valor correspondente ao pagamento da fatura da V com o n.º2 de 16 de Janeiro de 2006, no valor de €51.304, sendo a mercadoria vendida 200 processadores Intel Pentium IV 650, ou seja, o mesmo tipo e quantidade de produto adquirido em nome da (…) Internacional, Lda., à empresa espanhola SL. Em 12 de Janeiro de 2006, a V transferiu para a conta da X no BCP a importância de €38.000, valor que corresponde ao pagamento da fatura da X de 13 de Janeiro de 2006, apenas na parte respeitante a mercadoria (o IVA no valor de €7.980 foi pago através de uma transferência realizada no dia 16 de Janeiro de 2006. Nos termos daquela fatura a mercadoria vendida pela X à V foi 200 processadores Intel Pentium IV 650. Em 12 de Janeiro de 2006, a X transfere para a OC a quantia de €38.500.
ag) (3ª operação realizada no âmbito do plano delineado por B....) A (…) Internacional, Lda., adquiriu à empresa espanhola Informática MG, S.L. a seguinte mercadoria: 315 unidades de processador Intel Pentium IV 3,0775, no valor de €45.139,50 e 140 unidades do processador Intel Pentium VI 630, no valor de €20.006, no valor total de €65.145,50, que a (…) Internacional, Lda., pagou por transferência bancária da sua conta do BCP. A mercadoria foi transportada de Espanha para Portugal pela empresa de transportes e logística TNT. A (…) Internacional, Lda., alegadamente, vendeu toda a mercadoria à empresa espanhola OC - fatura com o n.º 6 de 20 de Janeiro de 2006, no valor de €66.430 (dos quais €45.990 respeitam às 315 unidades de processador e €20.440 às 140 unidades de processador). Aquele valor de €66.430 foi pago pela OC nomeadamente através de transferência bancária efetuada no dia 18 de Janeiro de 2006 para a conta da (…) Internacional, Lda., no BCP no valor de €65.000. Alegadamente, o transporte da mercadoria de novo para Espanha foi efetuado pela empresa On, formalmente propriedade dos pais de B..... Pela fatura n.º10 de 20 de Janeiro de 2006, no valor de €22.420,09 (€18.529 de mercadoria e €3663,24 IVA), a V faturou os referidos 140 processadores à J., Lda. Recuando na cadeia de faturação, constata-se que a mesma mercadoria foi faturada à V pela x através da fatura n.º7 de 20 de Janeiro de 2006, no valor de €21.107,24 (€17.444 mercadoria €3.663,24 IVA), que a adquiriu à OC. Quanto ao pagamento à OC, da análise dos movimentos a débito da conta da x permite concluir que o mesmo não poderá ser inferir a €20.440, ou seja, o valor faturado pela (…) Internacional, Lda., à OC tem de encontrar-se incluído na importância de €50.000 transferida da conta da x para a OC, no dia 19 de Janeiro de 2006, em duas tranches de €25.000 cada.
ah) No tocante à importância de €29.560, correspondente à diferença entre os €50.000 e os €20.440, corresponde a uma parte do lucro de €53.688,76, obtido à custa do IVA nas transações efetuadas até 23 de Janeiro de 2006.
ai) Relativamente a todas as três descritas operações verifica-se que: as vendas da (…) Internacional, Lda., à OC foram vendas simuladas, os transportes alegadamente realizados pela On de Portugal para Espanha também foram simulados e as mercadorias adquiridas às empresas espanholas SL e MG, S.L. ter-se-ão destinado, na realidade e logo aquando da sua aquisição, às empresas portuguesas L2VM e J. respetivamente, para as quais foram, porém, canalizadas documentalmente através das faturas da V, antecedidas de faturas da X para aquela V.
aj) De forma a apropriar-se das quantias obtidas à custa do IVA devido ao Estado Português, dissimulando a sua origem, B... assegurou a sua transferência das contas da V para as contas da x e desta, passando pela conta da empresa espanhola Tiara, para a conta da (…) Internacional, Lda.,  no BCP, concretizando, nos dias 14, 17 e 18 de Agosto de 2006, a x fez transferências bancárias para a conta bancária da Tiara, uma por dia, no valor total de €112.204,50, e esta última nos dias seguintes transferiu para a conta bancária da (…) Internacional, Lda., no BCP uma quantia no valor total de €109.000, dos quais, nos dias 21, 23 e 30 de Agosto de 2006, a (…) Internacional, Lda., transferiu, respetivamente, €25.000, €37.500 e €30.000, no total de €92.500, para a conta n.º113451277 do Banco Internacional do Funchal, titulada por B...., o qual, nos dias 23 e 30 de Agosto de 2006, dessa quantia levantou 91.500, através de dois cheques de caixa, respetivamente no valor de €61.500 e de €30.000, quantias que fez coisa sua. Do mesmo modo e intenção, no dia 28 de Março de 2006, 4 dias depois da x lhe ter transferido €30.000, a Tiara transfere para a conta bancária da (…) Internacional, Lda., no BCP uma quantia no valor de €20.000 sem qualquer fundamento legítimo, de que se apoderou B...., fazendo-a sua.

Não resulta demonstrada qualquer outra factualidade relevante para apreciação do mérito da causa, nomeadamente que B.... fez desaparecer a viatura de matrícula ….

***

IV-/ Do mérito do recurso:
Conforme decorre do recurso intentado nos autos, constata-se que o recorrente, administrador da insolvente, acatou o decidido quanto à qualificação da Insolvência como culposa, por preenchimento dos pressupostos exarados no art.º 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas d), e) e f), do CIRE, insurgindo-se apenas contra a decisão recorrida em face dos efeitos pessoais decretados por aplicação, que afirma ser desconforme ao direito, do disposto no art.º 189.º, n.ºs 2 e 4, do CIRE, na sua redação vigente.

Apreciando.

(i) Da invocada nulidade:
Principiamos por apreciar a invocada nulidade da sentença por, na apreciação do recorrente, ao aplicar aos factos o regime que resulta do CIRE na sua redação atual, o julgador não se ter pronunciado sobre o quadro legal aplicável no enquadramento da sucessão de leis que alteraram a norma convocada (189.º) assim incorrendo a sentença proferida na nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Vejamos então.
Diz o citado preceito legal que a sentença é nula quando «…. d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Tal nulidade está diretamente relacionada com o consagrado no art.º 608.º n.º 2, do CPC, que obriga a que o juiz resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuando aquelas que fiquem prejudicadas pela solução dada a outras, bem como as que imponham um conhecimento oficioso.
Para que exista uma nulidade na sentença, por omissão de pronúncia, a mesma terá assim que decorrer do facto de existir uma questão que devia ter sido conhecida e não foi.
Neste contexto, Ferreira de Almeida (na obra “Em Direito Processual Civil”, Vol. II, Almedina, 2015, pg. 371) ensina que «Integra esta causa de nulidade a omissão do conhecimento total ou parcial do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes). Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes.».
A ser assim, as nulidades de sentença, que encerram em si vícios decorrentes de uma deficiente estrutura da decisão, não se confundem com erros de julgamento, erros que, sendo de facto, ou de direito, obrigam ao conhecimento do objeto do recurso, em termos da apreciação do seu mérito, não se subsumindo tal apreciação a uma situação de nulidade meramente formal da decisão.

No caso concreto, do que aqui se trata é da discussão de fundo da sentença recorrida, uma vez que o recorrente entende que o tribunal a quo errou na aplicação da norma, pois que os factos ocorreram em momento anterior à vigência da Lei atualmente em vigor, que, como tal, não teria aplicação na situação dos autos. Trata-se, pois, de matéria que terá de ser abordada e conhecida no âmbito da própria apelação, sendo, em bom rigor, a questão central do recurso.
Não sofre assim a sentença recorrida da patologia invocada, pois que o tribunal a quo apreciou a factualidade dada por provada e fez o enquadramento jurídico que reputou como sendo o correto, não existindo propriamente um vício meramente formal que possa ser imputado à decisão proferida, pois o que existe será então um erro de julgamento, consubstanciado na alegação da violação da lei, ou seja, da determinação da norma aplicável e aplicação do direito.
Improcede, pois, nulidade invocada.

*

(ii) Do erro de julgamento: a determinação da lei aplicável aos autos
A questão essencial colocada no âmbito do presente recurso prende-se, pois, e na verdade, com a aplicação da lei no tempo.
Com efeito, centrando-se o período relevante para efeitos decorrentes do próprio incidente, tal como resulta do n.º 1 do art.º 186.º, do CIRE, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, nos autos, tendo-se o processo de insolvência iniciado em 18/12/2007, o período relevante situava-se então entre 18/12/2004 e aquela data.
Acresce que, tal como resulta da sentença recorrida, a (…) Internacional, Lda., foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 12/02/2008, tendo o aqui recorrente, afetado pela decisão de qualificação culposa da insolvência, sido condenado, por acórdão transitado em julgado no dia 07/09/2009, pela prática de um crime de fraude fiscal e de um crime de branqueamento de capitais, por factos praticados nos anos de 2005 e 2006 (ou seja, no período relevante para efeitos de qualificação).
 Na altura do início do processo de insolvência, e do presente incidente de qualificação, estava em vigor a versão originária do CIRE, consagrada no Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03 (que criou o novo ‘incidente de qualificação da insolvência’), entretanto alterada pela n.º 16/2012, de 20/04, que procedeu a uma revisão do quadro dos efeitos da insolvência culposa. Tal lei não determinou qualquer aplicação retroativa das alterações promovidas, antes determinando, no seu art.º 6.º, apenas e tão só, a sua entrada em vigor 30 dias após a sua publicação.
A mencionada lei, que entrou assim em vigor em 20/05/2012, substituiu a medida de inabilitação das pessoas afetadas constante da alínea b) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, pela medida de inibição para administrarem patrimónios de terceiros, e aditou uma nova medida, sob a alínea e), consistente na condenação das pessoas afetadas no pagamento de uma indemnização aos credores, até à força dos respetivos patrimónios.
Também essa lei foi posteriormente alterada com a entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11/01 (90 dias após a sua publicação, tal como resulta do art.º 12.º do diploma em causa), em vigor à data da prolação da sentença recorrida, que alterou a redação da al. e) art.º 189.º do CIRE, substituindo a expressão então ali considerada “no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios” por “até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios.”.
Com entrada em vigor em 11/04/2022, aquela Lei, 9/2022, é aplicável aos processos pendentes, como resulta do n.º 1 do seu art.º 10.º. À data da prolação da sentença recorrida estava, pois, em vigor a nova lei, de aplicação imediata; não obstante, e como vimos, todos os factos que estiveram na origem daquela qualificação foram praticados entre 2005 e 2006, o processo de insolvência iniciou-se em 18/12/2007, a sentença de declaração de insolvência foi proferida em 12/02/2008 e o incidente de qualificação iniciou-se em 2010. Ainda que pendente à data da entrada em vigor da nova lei, tudo se processou na vigência da versão originária do CIRE, com exceção da sentença recorrida que veio a ser proferida em 06/05/2024.

Vejamos então.
Antunes Varela (na obra “Em Manual de Processo Civil”, 2ª edição, Coimbra Editora,1985, págs. 46 e 47) dizia-nos que, em primeiro lugar, a solução dos problemas de aplicação da lei processual no tempo deveria ser procurada na própria lei nova “… através de disposições transitórias especiais destinadas a definir o seu campo temporal de aplicação”, e depois no regime geral “… aplicável ao comum das leis processuais sempre que não haja disposição transitória, especial ou sectorial em contrário.”
Também Baptista Machado (na sua obra “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 229-231), ensinava que «Os problemas de sucessão de leis no tempo suscitados pela entrada em vigor de uma LN [lei nova] podem, pelo menos em parte, ser diretamente resolvidos por esta mesma lei, mediante disposições adrede formuladas, chamadas "disposições transitórias"».
«Estas disposições transitórias podem ter carácter formal ou material. Dizem-se de direito transitório formal aquelas disposições que se limitam a determinar qual das leis, a LA [lei antiga] ou a LN, é aplicável a determinadas situações. São de direito transitório material aquelas que estabelecem uma regulamentação própria, não coincidente nem com a LA nem com a LN, para certas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis.»
«A maior parte das vezes ou para a grande maioria dos casos o legislador nada diz em especial sobre a lei aplicável a situações em que se suscita um problema de conflitos de leis no tempo. O jurista é então remetido para o princípio da não retroatividade da lei, nos termos do artigo 12.º [do Código Civil]. Este princípio, à primeira vista tão simples, tem-se revelado de aplicação sobremodo complexa nas diferentes hipóteses. Aos critérios ou normas deduzidas de tal princípio chamaremos por vezes critérios ou normas de direito transitório».
Na jurisprudência, o acórdão do STJ de 20/03/2022, relatado por Jorge Arcanjo, no âmbito do processo 2309/16.2T8PTM.E1-A.S1, pronunciando-se sobre esta temática, consignou que «Na sucessão de leis no tempo, o problema terá que ser resolvido, em primeiro lugar, através de normas de direito transitório especial (ou seja, normas da própria lei nova que disciplinem a sua aplicação no tempo), depois pelas normas de direito transitório sectorial (ou seja, que regulem na aplicação no tempo das leis sobre certa matéria), e finalmente por normas de direito transitório geral (ou seja, que definam o modo de aplicação no tempo da generalidade das leis, independentemente da matéria sobre que versam). Só na ausência de qualquer regime especial é que se deve indagar, sucessivamente, da existência de normas de direito transitório sectorial ou de direito transitório geral - como é o regime fixado no art.º 12 do CC - para, na sua falta, recorrer aos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência».

Donde, para aferir qual a lei aplicável aos presente autos teremos então, em primeiro lugar, que atentar no art.º 10.º da Lei n.º 9/2022, que, como vimos, nos diz que a nova lei é aplicável aos processos pendentes. Não obstante, ainda que o legislador tivesse tomado posição expressa naquela norma transitória, a mesma não resolve, a nosso ver, todos os problemas de aplicação da lei no tempo, pois que, ainda assim, para concluir pela sua aplicabilidade, importa aferir o tipo de norma que aqui está em causa – art.º 189.º do CIRE.
Com efeito, o princípio geral em matéria de aplicação das leis no tempo, tal como consta do art.º 12.º, do CC, é o de que «1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”».
Como vemos, quando é publicada uma lei nova, esta dispõe, por via de regra, para o futuro, a menos que o legislador lhe atribua efeitos retroativos, sendo que, nada sendo dito, a aplicação imediata da lei não deve aplicar-se a factos passados, nem aos seus efeitos.

Ora, como vimos, no caso dos autos, os atos relevantes para efeitos de qualificação de insolvência foram todos eles praticados antes da entrada em vigor desta lei, e as alterações do quadro legal aplicável, quer na lei 16/2012 quer na lei 9/2022, assumem natureza substantiva, porquanto respeitam a medidas que consagram os efeitos pessoais em relação às pessoas afetadas, da qualificação culposa da insolvência, acarretando para os afetados consequências patrimoniais e limitações ao exercício de direitos fundamentais, com o que não podem ser confrontados quase no final do processo em curso. O princípio da proteção da confiança, que resulta do princípio do Estado de Direito democrático acolhido no art.º 2.º, da CRP, não poderia tolerar a aplicação retroativa da lei, fazendo aplicar a mesma a factos passados, gorando a confiança que os cidadãos devem depositar na ordem jurídica que os rege.
O entendimento assim sufragado foi afirmado em jurisprudência dos nossos tribunais logo aquando da entrada em vigor da Lei 16/2012. Veja-se, a titulo meramente exemplificativo, o Acórdão do STJ, proferido em 27/10/2020, no âmbito do Processo nº 814/13.1TYVNG-A.P1.S1, relatado por Henrique Araújo, assim sumariado em parte «I - É a data da prática dos factos suscetíveis de caracterizar a insolvência como culposa que serve de referência temporal à aplicação das alterações introduzidas ao art.º 189.º do CIRE pela Lei n.º 16/2012 (...)» e o Acórdão do TRC, proferido em 02/06/2015, no âmbito do Processo nº 528/12.0TBCLD-C.C1, relatado por Maria Inês Moura, assim sumariado em parte «(…) 2. O art.º 189 n.º 2 al. b) e e) e nº 4 do CIRE estatuem sobre os efeitos a atribuir a quem seja afetado pela qualificação da insolvência como culposa. Só podem por isso aplicar-se a situações em que os factos que a determinam tiveram lugar após 30 de maio de 2012, data a partir da qual tais normas entraram em vigor, de acordo com o disposto no art.º 12.º n.º 1 e n.º 2 do C. Civil (..)».

Donde, e em resumo, não obstante as alterações introduzidas no CIRE ao normativo convocado na sentença recorrida, pelas Leis 16/2012 e 9/2022, as mesmas não têm aplicação nos autos, pois que todos os factos suscetíveis de caracterizar a insolvência como culposa ocorreram na vigência do DL 53/2004, de 18/03, diploma à luz do qual deverão ser apreciados os efeitos que essa qualificação culposa deve acarretar para o afetado.

Procede assim o recurso nesta parte, procedendo-se à aplicação ao caso dos autos do art.º 189.º do CIRE na redação originária constante do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03.

*

(iii) Das consequências legais do definido regime jurídico, ao nível da condenação do requerido nos termos sentenciados:
Vejamos então.

Era a seguinte a redação inicial do art.º 189.º do CIRE:
«1- A sentença qualifica a insolvência como culposa ou como fortuita.
- Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas afetadas pela qualificação;
b) Decretar a inabilitação das pessoas afetadas por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afetadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
3- A inibição para o exercício do comércio tal como a inabilitação são oficiosamente registadas na Conservatória do Registo Civil, e bem assim, quando a pessoa afetada fosse comerciante em nome individual, na conservatória do registo comercial, com base em certidão da sentença remetida pela secretaria».

a-) Assim sendo, e como vemos, no que concerne à al. b) do n.º 2 do art.º 189.º, de acordo com a versão originária do CIRE (depois eliminada pela Lei 16/2012 de 20/04) na sentença que qualificava a insolvência como culposa devia ser decretada uma medida de inabilitação por um período de 2 a 10 anos.
Tal norma foi alvo de duras críticas, quer na doutrina quer na jurisprudência, por se entender que configurava uma restrição ilegal e inconstitucional do direito à capacidade civil dos cidadãos, acarretando a inabilitação obrigatória das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, independentemente da verificação dos requisitos gerais da inabilitação, o que culminou com a decisão do Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade da aludida norma, com força obrigatória geral, através do Acórdão n.º 173/2009, de 02/04 (publicado no DR, série I, n.º 85, de 04/05/2009), nos seguintes termos: “Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional acorda em declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto Lei nº 53/2004, de 18 de Março, por violação dos artigos 26.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.”.
Alega então o recorrente que, por ser assim, o acórdão a prolatar deverá recusar, ao abrigo do disposto no art.º 204.º da CRP, a aplicação do disposto no citado preceito legal, e, consequentemente, concluiu, não lhe poderá ser aplicada a medida de inibição para administração de património de terceiros, pois que tal medida não existia naquela versão da lei, sendo ilegal e inconstitucional a sua aplicação retroativa.
Na sentença recorrida, como vimos, não se decretou qualquer inabilitação do recorrente, declarando-o, isso sim, inibido para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada, empresa pública de órgão ou cooperativa durante o período de 7 (sete) anos.
Assiste razão ao recorrente.
Na verdade, a substituição do efeito anterior, da inabilitação, pelo da inibição para a administração de patrimónios de terceiros, foi feita pela Lei 16/2012, correspondendo à necessidade de corrigir o erro de que padecia a norma inicial, declarada, como vimos, inconstitucional; como tal, e a ser assim, com a declaração de inconstitucionalidade operada pelo Acórdão 173/2009, teria sempre que se repristinar as normas anteriores, revogadas pela lei declarada inconstitucional (ver anotação ao art.º 282.º da CRP, anotada por Gomes Canotilho/Vital Moreira, 3ª edição, Coimbra editora, 2007).
Neste enquadramento, vemos então que a inibição para administrar o património de terceiros, foi instituído pela alteração introduzida pela Lei 16/2012, não estando prevista no Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de abril, que criou o CPEREF, tal como resulta dos arts.º 147.º e 148.º daquele código.
Ainda que tal inibição possa resultar da globalidade dos efeitos da insolvência e da consequente impossibilidade de administrar os bens de sociedades comerciais ou civis, impossibilidade de administrar os bens de associação ou fundação privada, empresa pública de órgão ou cooperativa, certo é que a mesma, com a abrangência que daí se retira, dúvidas não há, foi introduzida pelo legislador de 2012. Catarina Serra (em “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 161) criticou, aliás, tal alteração de “inabilitação” para “inibição de administrar património de terceiros” por defender que a inibição nos moldes introduzidos ficou quase desprovida de objeto, dizendo que «Quando, como sucede mais frequentemente, o insolvente é uma sociedade e o sujeito afetado é o administrador, ele já está privado da administração dos bens da sociedade, por força do disposto no n.º 1 do art.º 81. Em ambos os casos existe uma inibição para a ocupação de certos cargos (cfr. al. c) do n.º 2 do art.º 189.º) e a consequente impossibilidade de administrar os bens das sociedades comercias ou civis, associações ou fundações privadas de atividades económicas, empresas publicas e cooperativas (…)».
Não obstante, temos por certo, o dever de recusa de aplicação do disposto na alínea b), do n.º 2, do art.º 189.º, do CIRE, na redação aos autos aplicável, em face da inconstitucionalidade daquele normativo, não permite aplicar ao mesmo, como por si argumentado, a inibição de administrar patrimónios de terceiro, precisamente por esse tipo de inibição não estar contido na redação inicial do preceito em análise, faltando assim normativo que suporte condenar o recorrente naquela inibição, que não pode ser aplicada, por violação do consagrado no acima citado art.º 12.º do CC.
Por conseguinte, a ilegalidade da aplicação retroativa da norma em causa nos autos, deve determinar que a sentença seja revogada nessa parte e o recorrente absolvido da condenação de que foi alvo à luz da alínea b), do n.º 2, do art.º 189.º, do CIRE na sua atual redação (inibição para administrar património de terceiros).

b-) Na continuação da sua argumentação, defende o recorrente que, à data da prática dos factos em causa nos autos, o art.º 189.º, n.º 2, do CIRE, na redação aplicável, ainda não integrava nem a alínea e) do n.º 2, nem o n.º 4, pelo que, alega, mal andou o Tribunal a quo ao proceder à aplicação do efeito pessoal da condenação do pagamento de indemnização aos credores, assim violando o disposto naquele art.º 12º do CC.
E, como vimos, tem razão.
De facto, com a entrada em vigor da Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, foi estabelecida, naquele art.º 186.º, n.º 2, alínea e), uma fonte autónoma de responsabilidade dos afetados pela qualificação como culposa da insolvência, através da previsão da sua condenação a indemnizar os credores em relação aos créditos não satisfeitos, dentro das forças dos seus patrimónios.
No caso de que aqui cuidamos, o recorrente foi condenado a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos incluídos na lista de credores reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência, não satisfeitos no âmbito dos presentes autos e até à força do seu património.
Ora, é inegável de que de tal condenação não poderia ser alvo, não podendo o mesmo ser responsabilizado pelo pagamento dos créditos reconhecidos nos autos e que não venham a obter o respetivo pagamento, pois que todos os comportamentos adotados pelo requerido, que estiveram na base da qualificação culposa da insolvência declarada, ocorreram antes da entrada em vigor daquela alteração, numa altura em que a lei não previa assim tal tipo de sancionamento.
Por ser assim, a alínea e) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, não pode ser aplicada retroativamente, pois, como vimos, os novos pressupostos da constituição da obrigação de indemnizar os credores da sociedade insolvente, fixados em sentença judicial proferida em sede de incidente de qualificação da insolvência, não podem abranger factualidade pretérita.
Nesse sentido, ver os acórdãos do TRC de 27/05/2015 e 02/06/2015, nos Processos nºs 17/10.5TBMMV-A.C1 e 528/12.0TBCLD-C.C1, relatados Jorge Arcanjo e por Maria Inês Moura, respetivamente, onde se consignou «(…) II - A Lei nº 16/2012 de 20/4 (com entrada em vigor em 21/5/2012), que alterou o CIRE, aditou ao art.º 189.º, n.º 2, a alínea e), com o que criou um novo efeito da qualificação da insolvência ao estabelecer os pressupostos para a constituição do direito de indemnização a favor dos credores. Tratando-se de uma lei sobre o modo de constituição do direito de indemnização (alterando e ampliando a fattispecie constitutiva), não se aplica aos factos anteriores» e «(…) 2. O art.º 189 n.º 2 al. b) e e) e nº 4 do CIRE estatuem sobre os efeitos a atribuir a quem seja afetado pela qualificação da insolvência como culposa. Só podem por isso aplicar-se a situações em que os factos que a determinam tiveram lugar após 30 de maio de 2012, data a partir da qual tais normas entraram em vigor, de acordo com o disposto no art.º 12.º n.º 1 e n.º 2 do C. Civil», ambos disponíveis na dgsi.
Por conseguinte, a ilegalidade da aplicação retroativa da norma em causa nos autos, deve determinar que a sentença seja revogada nessa parte e o recorrente absolvido da condenação de que foi alvo à luz da alínea e), do n.º 2, do art.º 189.º, do CIRE na sua atual redação (condenação a indemnizar os credores da insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do seu património).

Em face do que, na procedência do recurso com a consequente revogação da sentença nas aludidas condenações, prejudicada fica, por perda de utilidade, a apreciação da inconstitucionalidade derivada da aludida aplicação retroativa.
*

(iv) Da invocada inconstitucionalidade da alínea c), do n.º 2, do art.º 189.º do CIRE e da sua consequente inaplicabilidade:
Alega o recorrente que tal norma sofre de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos arts.º 26.º e 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental, devendo, por conseguinte, ser recusada a sua aplicação, por força do disposto no art.º 204.º da CRP.
Com efeito, argumenta, a medida de inibição ali consagrada configura uma verdadeira pena acessória, de cariz penalístico, não podendo ser aplicada neste pleito, sobrepondo-se, de forma ilegítima e ilegal, ao disposto nos arts. 29.º, n.º 4 e 30.º, n.º 5, da CRP, tanto mais que configura uma inadmissível e ilegal compressão dos direitos fundamentais à livre escolha da profissão, prevista no art.º 47.º da CRP e dos direitos de iniciativa privada e de propriedade, aludidos nos arts.º 61.º e 62.º da mesma Lei Fundamental, permitindo-se a aplicação daquela sanção através do recurso a presunções irrefragáveis, com compressão ilegal e inadmissível das garantias de defesa de que deve beneficiar o cidadão por força da aplicação de uma pena acessória, em clara violação do disposto no art.º 61.º, n.º 1, alíneas d) e g) do CPP.
Por conseguinte, sustenta, deverá ser revogada a aplicação da sanção de inibição prevista na alínea c), do n.º 2, daquele art.º 189.º do CIRE.

Não tem razão.
Em primeiro lugar, não esqueçamos, o acórdão do Tribunal Constitucional nº. 173/2009, de 4 de maio, apenas declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do art.º 189.º, nº. 2, alínea b), do CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 53/2004, de 18 de março, por violação dos arts.º 26.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que impunha que o juiz, na sentença que qualificasse a insolvência como culposa, decretasse a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.  A inabilitação aí em causa era a inabilitação civil, não tendo a inibição a que se referia a alínea c), que não contendia com a gestão do património pessoal do afetado, sido objeto de qualquer juízo de inconstitucionalidade.
Aliás, a inibição para o exercício do comércio vem já dos diplomas anteriores ao CIRE, remontando ao passado, e, no que aos autos interessa, no Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de abril, que criou o CPEREF, foi consagrado o regime da inibição/proibição legal para o exercício do comércio, como resultado automático da declaração de falência, sendo que com a restruturação operada em 1998, pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de outubro, foi instituída a distinção dos casos de falência consoante o sujeito passivo fosse uma pessoa singular ou coletiva.
O art.º 147.º do CPEREF, que regulava as limitações resultantes da declaração de falência, estabelecia que «1 - A declaração de falência priva imediatamente o falido, por si, ou, no caso de sociedade ou pessoa coletiva, pelos órgãos que o representem, da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes ou futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário judicial. 2 - O liquidatário judicial assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência», regulando o art.º 148.º do mesmo código as consequências imediatas da declaração, nos seguintes termos «1- A declaração de falência determina o encerramento dos livros do falido e implica a inibição dele ou, no caso de sociedade ou de pessoa coletiva, dos seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa. 2 - Tratando-se de pessoa singular, o falido pode, no entanto, ser autorizado pelo juiz, a seu pedido ou sob proposta do liquidatário judicial, a exercer as atividades referidas no número anterior, desde que a autorização se justifique pela necessidade de angariar os meios indispensáveis de subsistência e não prejudique a boa liquidação da massa».
Ora, a inibição para o exercício do comércio, e para a ocupação de determinados cargos como consagrado na lei da insolvência, não fere qualquer princípio constitucional. As finalidades visadas com o incidente de qualificação da insolvência, tal como o mesmo foi introduzido no CIRE, teriam de acarretar consequências para os responsáveis que determinaram a situação de insolvência ou agravaram a mesma, e os efeitos potenciados com aquelas inibições têm justificação na proteção dos credores e da saudável vida económica de um país. Aliás, consta expressamente no ponto 40 do seu diploma preambular que «Um objetivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas coletivas. É essa a finalidade do novo ‘incidente de qualificação da insolvência’.
As finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações. A coberto do expediente técnico da personalidade jurídica coletiva, seria possível praticar incolumemente os mais variados atos prejudiciais para os credores (…)».
Foi ciente das dificuldades inerentes ao apuramento das condutas que estiveram na base da insolvência ou do seu agravamento, que o legislador instituiu nos arts. 185.º a 189.º do CIRE um sistema que, sinalizando determinadas situações-tipo, permite concluir pela culpabilidade naquelas situações, presumindo-a em termos inilidíveis ou onerando os responsáveis com a prova das circunstâncias que lhes permitem afastar a presumida culpabilidade. Consignando-se naquele ponto 40, mais adiante, que «O incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos atos necessariamente desvantajosos para a empresa».
A este novo incidente e sua regulação não obsta o direito criminal e as suas exigências legais, pois que nos autos de qualificação também o afetado tem direito à defesa, ao respeito pelo contraditório e à produção e meios de prova que indique, não se verificando assim, e também, qualquer violação do princípio constitucional do direito de defesa, de compressão injustificada de quaisquer dos invocados direitos fundamentais do afetado ou da aplicação de qualquer sanção de duração ilimitada ou indefinida, pois que as sanções aplicadas são meramente temporárias.
Veja-se, neste sentido, e a título exemplificativo, sobre esta problemática, e para onde remetemos, o Acórdão do TRG, relatado por Rosa Tching em 12/04/2011, no âmbito do proc. 3489/08.6TBGMR-A.G1, assim sumariado em parte «(…) 3º- A normas dos artigos 186.º, n.º 2 e 189.º, n.º 2, al. c) do CIRE não violam o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da CRP, não enfermando, por isso, de inconstitucionalidade material» onde, em fundamentação, se consignou «Ora resulta do diploma que aprovou o CIRE (DL nº 53/2004, de 18 de Março) que a finalidade do incidente de qualificação da insolvência “reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares da empresa ou dos administradores de pessoas coletivas”, com o propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, objetivo que não seria alcançado se, nessas situações, não sobreviessem quaisquer consequências para os responsáveis que hajam contribuído para a insolvência da empresa, pois que "a coberto do expediente técnico da personalidade jurídica coletiva, seria possível praticar incolumemente os mais varados atos prejudiciais para os credores". Entre essas consequências penalizadoras para os responsáveis pelas insolvências culposas encontra-se, precisamente, a inibição temporária para o exercício do comércio e desempenho de determinados cargos, a qual visa proteger o interesse dos credores, assumindo um carácter sancionatório predominantemente preventivo. E ainda que essas medidas possam ser entendidas como restrições ao direito à capacidade civil, a verdade é que as mesmas não são arbitrárias, injustas ou prepotentes, na medida em que justificam-se pela proteção devida aos credores e ao interesse coletivo do regular desenvolvimento da atividade económica e empresarial. Daí impor-se concluir que a norma do art.º 189º, nº 2, al. c) do CIRE não ofende o princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 18º, nº 2 da CRP, não se mostrando, por isso, ferida de inconstitucionalidade material (…)» e ainda o do TRP, proferido em 15/06/2015, no proc. n.º 2888/13.6TBVFR-E.P1, relatado por Manuel Domingos Fernandes, onde se sumariou «I-A apreciação da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de quaisquer normas é de conhecimento oficioso como decorre do artigo 204.º da Constituição da Republica Portuguesa e, por isso, pode ser suscitada em via de recurso havendo apenas, quando assim seja, que fazer atuar o princípio do contraditório (artigo 3.º, nº 3 do CPCivil). II - O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência, e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor. III - E o que releva, para estes efeitos é a factualidade existente à data da declaração de insolvência, sendo inócuo que os bens alienados tenham revertido para a massa por via da resolução dos respetivos negócios. IV - A norma do artigo 189º, nº2, als. e c), do CIRE, quando estabelece o dever de se decretar a inibição para o exercício do comércio e desempenho de determinados cargos, por determinado período (2 a 10 anos), das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, não é inconstitucional».

Isto posto, acolhendo o sufragado na jurisprudência citada, a al. c-) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, não tem para nós implícita a violação de qualquer princípio constitucional.
Como tal, naufraga o recurso interposto pelo recorrente neste segmento, mantendo-se a sanção decretada.

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(vi) Da excessividade do período das inibições aplicadas:
Como última frente de batalha, argumenta o recorrente que o período fixado às medidas aplicadas são excessivos e devem ser reduzidos.

Vejamos pois.
No que concerne ao período de duração das inibições previstas nas alíneas b) e c), do nº 2, do art.º 189.º do CIRE, o legislador apenas consagrou uma baliza temporal de 2 a 10 anos, não cuidando de estabelecer quais os critérios a aplicar na sua concretização casuística.
A sentença recorrida fixou em 7 anos o período de inibição do recorrente para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, considerando os comportamentos imputados, muito graves, nomeadamente atenta a sua natureza criminosa e respetivas consequências.
Defende o recorrente que naquela aplicação não poderá deixar de se fazer o paralelismo com os critérios de determinação das penas consagrados nos arts.º 40.º, 71.º, 72.º e 75.º do CP, nos termos dos quais, nomeadamente, deverá ponderar-se a conduta anterior ao facto e posterior a este, ter decorrido muito tempo sobre a prática do facto e o agente ter mantido boa conduta. Assim, deverá ser considerado que o recorrente nunca foi objeto de sentença de insolvência, nunca mais foi condenado pela prática de qualquer crime, muito menos de insolvência culposa, e já decorreram 18 anos sobre a prática das condutas que levaram à qualificação da insolvência. Nestes termos, pede, deverá o período de inibição, seja da alínea b), seja da alínea c), ser fixado no período de 4 anos, respeitando-se, assim, a ratio da norma aplicada.
Vejamos então, sem esquecer que para a fixação do período em causa, quer a doutrina quer a jurisprudência têm entendido que o julgador deverá atender à gravidade da conduta da pessoa afetada e à sua relevância para a verificação da situação da insolvência ou para o agravamento da mesma.
As medidas inibitórias, que assumem natureza punitiva, devem assim atender à atuação concreta do requerido na criação ou agravamento da situação de insolvência, aferindo-se da intensidade do juízo de censurabilidade que lhe possa ser imputado, em face da natureza ilícita e culposa do comportamento que adotou e que se encontra evidenciado pelos factos dados por provados, que estiveram na base da qualificação da insolvência.
O fundamento material da inibição do insolvente que assume consigo a defesa geral da credibilidade do comércio, passando pelo afastamento daqueles agentes que incorreram em comportamentos censuráveis e cuja atividade pode gerar desconfianças e perturbar a atividade comercial, obriga, pois, a que os critérios que o juiz se deve socorrer sejam, precisamente, o grau de culpa e a gravidade do comportamento do afetado, incluindo o número das circunstâncias qualificadoras preenchidas (ver, nesse sentido, o Acórdão do TRL de 28/02/2023, relatado por Fátima Reis Silva, no âmbito do proc. 5920/21.6T8LSB-F.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, assim em parte sumariado, «(…) 6- São critérios para a fixação da duração do período de inibição das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa a gravidade da conduta, incluindo o número de circunstâncias qualificadoras preenchidas, as consequências do comportamento, o grau de culpa e o contributo para a situação de insolvência, nomeadamente se determinou diretamente a situação de insolvência ou apenas agravou a mesma»).
Neste sentido, não obstante a efetiva gravidade da conduta adotada pelo afetado, que esteve na causa da insolvência, no preenchimento das alíneas d), e) e f) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, o que aquele não questionou em recurso, certo é que, na verdade, decorreram já 18 anos sobre a prática das condutas que levaram à qualificação da insolvência e tal período de tempo, sem que haja notícia nos autos de qualquer fator que possa desabonar o afetado, cujo comportamento processual foi escorreito, tem que ser relevado, pois que um atraso na justiça (veja-se que o processo de insolvência teve início no dia 18/12/2007, que foi decretada em 12/02/2008, que os factos praticados pelo recorrente e integradores dos factos-índices do carácter culposo da insolvência, previstos nas alíneas d), e) e f), do n.º 2, do art.º 186.º, foram balizados nos anos de 2005 e 2006, que apenas em 30/11/2023 foi proferido saneador nos autos de incidente iniciados em 2010, após o que, realizado julgamento, apenas em 06/05/2024 foi proferida a sentença recorrida) não pode ser impeditivo de que a todos seja possível virar a página e ter a segurança jurídica de que o seu erro foi sancionado no devido tempo. Por isso, e sem mais, acolhendo em parte a argumentação do recorrente, fixam-se as sanções aplicadas à luz da al. c) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, em 4 anos.
Por conseguinte, procede igualmente nesta parte o recurso interposto.

Impõe-se assim, na parcial procedência da apelação, a parcial revogação da sentença recorrida.
As custas na presente instância recursiva, em face do disposto no art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, são integralmente da responsabilidade do recorrente, quer pelo critério da causalidade quer pelo critério do proveito, sem prejuízo, naturalmente, do benefício do apoio judiciário com que litiga.

*

V-/ Decisão:
Perante o exposto, julga-se a presente apelação parcialmente procedente por provada e, consequentemente:

A-) Julga-se não verificada a invocada nulidade da sentença recorrida;

B-) Revoga-se a sentença recorrida na parte em que:
(i) declarou a inibição do recorrente, pelo período de 7 anos, para administrar patrimónios de terceiros;
(ii) condenou o recorrente a indemnizar os credores da insolvente (…) Internacional, Lda. até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do seu património;

C-) Altera-se para o período de 4 anos, a inibição do recorrente para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.

D-) No mais, mantêm-se a sentença proferida.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do concedido apoio judiciário.
Registe e notifique.

Lisboa, 13/09/2024

Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro
Amélia Rebelo