INSOLVÊNCIA CULPOSA
LEIS TRANSITÓRIAS COVID-19
SUSPENSÃO DO PRAZO
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I- De acordo com o disposto no art.º 186º nº 1 do C.I.R.E., são pressupostos da qualificação da insolvência culposa:
- Uma conduta do devedor (ou dos seus administradores, de facto ou de direito).
- Ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo.
- Que seja dolosa ou com culpa grave.
- Tenha criado ou agravado a situação de insolvência.
II- Provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do art.º 186º nº 2 do C.I.R.E., estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das referidas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.  Por seu turno, o art.º 186º nº 3 do C.I.R.E. apresenta um conjunto de situações de presunção de culpa grave, tratando-se de presunções “juris tantum”, ilidíveis por prova contrária. 
III-  A Lei nº 31/2023, de 4/7, que determinou a cessação da vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia da doença Covid-19, e que entrou em vigor a 5/7/2023, terminou com a suspensão, entre outros, do prazo do dever de apresentação à insolvência, que durava, como se viu, desde 22/1/2021.
IV-  O fim da suspensão do prazo de apresentação à insolvência veio a ter a seguinte consequência prática:  Uma vez que é de 30 dias o prazo para cumprir o dever de apresentação à insolvência (contados da data em que o devedor teve, ou devesse ter tido, conhecimento de que se encontrava em situação de insolvência) tal significa que, os devedores obrigados à apresentação à insolvência, que tiveram conhecimento de tal situação no decurso da suspensão do prazo, deveriam dar cumprimento a tal dever até ao dia 5/8/2023.
V-  Sendo a insolvência culposa, tem o Juiz de identificar as pessoas afectadas pela qualificação (a pessoa singular insolvente ou os administradores da entidade colectiva insolvente) e, depois, deve “declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão (de administração ou de fiscalização) de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa” (art.º 189º nº 2, al. c) do C.I.R.E.).
VI- Os gerentes de direito não são livres de exercerem ou de deixarem de exercer os poderes de gerência que a lei, o contrato de sociedade e os estatutos lhes conferem, nem os podem exercer a seu “bel prazer”, mas antes terão de os assumir e cumprir e, bem assim, de os exercer segundo determinadas regras impostas legal e contratualmente. 
IX- No cumprimento desses deveres legais específicos e contratuais, nos termos do art.º 64º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais, os gerentes ou administradores devem observar deveres de cuidado (revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gerente criterioso e ordenado) e deveres de lealdade (no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores).
X- Por via da nomeação para o cargo de gerente, o gerente de direito fica imediatamente investido no cargo e, em consequência, submetido ao dever fundamental de gerir e representar a sociedade, mas também a uma panóplia de outros deveres legais, contratuais e estatutários.
XI- Sempre que os gerentes deixem de exercer os poderes-deveres de gerência que lhe são impostos por lei, pelo contrato de sociedade e/ou pelos estatutos e em que ficam automaticamente investidos por via da sua nomeação para o cargo de gerência, ou sempre que exerçam esses poderes funcionalizados erroneamente, nomeadamente, desviando-os dos fins a que se destinam e para os quais lhes foram concedidos, essas suas condutas activas ou omissivas são susceptíveis de constituir justa causa de destituição das funções de gerência e de os fazer incorrer em responsabilidade civil perante a sociedade (art.º 72º do Código das Sociedades Comerciais), os credores sociais (art.º 78º do Código das Sociedades Comerciais), os sócios e terceiros (art.º 79º do Código das Sociedades Comerciais) e de os constituir, inclusivamente, em responsabilidade criminal.
XII- A indemnização a que alude o art.º 189º nº 2, al. e) do C.I.R.E. tem uma natureza sancionatória, constituindo um meio eficaz de prevenção da prática de actos culposos na criação ou agravamento da situação de insolvência.

(Da responsabilidade do relator (art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil)

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
1- No presente incidente de qualificação da insolvência de “C… Unipessoal, Ldª” (declarada insolvente em 22/4/2021), veio a credora “E., Ldª” pedir a qualificação como culposa da insolvência da devedora, devendo ser afectados pela qualificação o gerente e a sócia da insolvente AF e CF.
Invoca, para tanto, o disposto no art.º 186º nºs. 2, als. a), b), c), d), e), f), g) e h) e 3, als. a) e b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.).
2- O Tribunal, por despacho de 22/9/2021, declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência.
3- No dia 14/10/2021, veio o Sr. Administrador da Insolvência juntar aos autos o seu parecer sobre a qualificação da insolvência, sustentando que “nada resulta que qualifique a insolvência como culposa.  Assim, sou de parecer que a insolvência deverá ser qualificada por V. Exa. como fortuita”.
4- O M.P. apresentou parecer, defendendo a qualificação da insolvência como culposa.
5- A insolvente, apresentou oposição, referindo, em síntese, que a situação de insolvência foi consequência da crise económica originada pela pandemia de “Covid-19”, que determinou a suspensão da sua actividade e uma quebra da facturação aquando da sua reabertura.
Refere ainda que, em face das dificuldades em suportar o pagamento das rendas do seu estabelecimento, em 28/12/2020, celebrou um contrato de dação em cumprimento com o seu senhorio, mediante o qual lhe entregou o equipamento que constituía o seu imobilizado, com excepção de um veículo automóvel, pelo valor de 9.000€.
No entanto, na expectativa de voltar a adquirir tal equipamento, foi aposta no contrato uma cláusula de preferência na respectiva aquisição e celebrado um aditamento ao contrato de arrendamento nos termos do qual o espaço passou a ser arrendado com o equipamento.
Mais alega que apresentou um plano de pagamentos junto da credora “E., Ldª”, o qual não foi aceite por esta.
Neste contexto, e face ao agravamento da situação “Covid-19”, no início do ano de 2021, e uma vez que não conseguia suportar o pagamento das rendas, tendo o senhorio, a 2/4/2021, resolvido o contrato de arrendamento, apresentou-se à insolvência.
Conclui que o incidente deverá improceder e ser a insolvência qualificada como fortuita.
6- O M.P. e a credora “E., Ldª” apresentaram articulado de resposta à oposição, mantendo a posição de qualificação da insolvência como culposa.
7- Foi proferido despacho saneador onde foi enunciado o objecto do litígio e indicados os temas de prova.
8- Seguiram os autos para julgamento, o qual se realizou com observância do legal formalismo.
9- Posteriormente foi proferida Sentença a julgar o incidente procedente, constando da sua parcela decisória:
“Pelo exposto, qualifico a insolvência de C… Unipessoal, Lda., NIPC …, com sede na Rua …, como culposa e, em consequência:
a) Declaro AF afectado pela qualificação da insolvência como culposa.
b) Declaro AF inibido para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa durante o período de três anos.
c) Determino a perda por AF de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e condeno-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
d) Declaro CF afectada pela qualificação da insolvência como culposa.
e) Declaro CF inibida para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa durante o período de quatro anos.
f) Determino a perda por CF de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e condeno-a na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
g) Condeno solidariamente AF e CF a indemnizarem os credores da insolvente no montante total de €61.985,60 (sessenta e um mil novecentos e oitenta e cinco euros e sessenta cêntimos), considerando as forças dos respectivos patrimónios.
*
Custas pela massa insolvente, nos termos do art.º 303º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
Registe e Notifique”.
9- Inconformados com tal decisão, dela recorreram os afectados CF e AF, para tanto apresentando as suas alegações, onde indicaram as seguintes conclusões:
“I. O Tribunal a quo ao afirmar que o Devedor ultrapassou o prazo de que dispunha para se apresentar à insolvência, incorreu em erro porquanto à data em que o Tribunal entende ser de presumir o conhecimento da situação de insolvência (Julho de 2020), encontravam-se, como ainda se encontravam na data em que a devedora se apresentou à insolvência, suspensos os prazos para apresentação do devedor à insolvência, previstos no art.º 18º do CIRE (cfr. artigo 7º, nº 6, al. a) na Lei nº 1-A/2020, depois da sua primeira alteração, pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril; artigo 7º (prazos e diligências), a qual foi “substituída” pela nova norma do artigo 6º-A da Lei nº 16/2020, de 29 de Maio; o artigo 6º-B da Lei nº 4-B/2021 de 1 de Fevereiro, que procede à nona alteração à Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, alterada pelas Leis nºs 4-A/2020, de 6 de Abril, 4-B/2020, de 6 de Abril, 14/2020, de 9 de Maio, 16/2020, de 29 de Maio, 28/2020, de 28 de Julho, 58-A/2020, de 30 de Setembro, 75- A/2020, de 30 de Dezembro, e 1-A/2021, de 13 de Janeiro, veio revogar esse artigo 6º-A; artigo 6º-E da Lei nº 13-B/2021 de 5 de Abril que cessa o regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adotado no âmbito da pandemia da doença Covid-19, alterando a Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março e revogou o atrás citado art.º 6º-B).
II. Pelo que deve a decisão em crise ser revogada e substituída por oura que declare não estar preenchido o circunstancialismo previsto na alínea a), do nº 3, do artigo 186º do CIRE.
III. Entendem ainda os recorrentes que foram omitidos do elenco de factos provados e não provados, factos essenciais, nomeadamente os que sem seguida se enunciam:
IV. “Até Março de 2020 a sociedade C. laborou de forma estável” (Para além dos documentos contabilísticos juntos aos autos, que demonstram que até 2020 a sociedade Insolvente laborou de forma estável e que só começou a sentir maiores dificuldades após o surgimento da pandemia (Covid 19) – relembrando que se tratava de empresa recém aberta, pois foi constituída em finais de 2017 e, portanto, até o surgimento da pandemia, laborou apenas 2 anos -  temos ainda a seguinte prova testemunhal: Depoimento testemunha Dr. CM, Administrador de Insolvência, Min. 3:28; depoimento de AF (20220930104850_1722385_3994081), Min. 1:08, Min. 7:38; Declarações de CF (20220930113233_1722385_3994081), Min. 5:00; Depoimento da testemunha SGFF (20220930121119_1722385_3994081), Min 1:00; Depoimento da testemunha PT, (2021007142040_1722385_3994081), Min. 3:28, Min. 16:20, Min. 17:18, transcritos no corpo das alegações).
V. “Quando a insolvente retomou a sua actividade, após o primeiro encerramento no 2º trimestre de 2020, por força da Covid, tinha movimento que permitia a realização de pagamentos a fornecedores e Estado, ainda que em prestações.” e “Entre Julho de 2020 e Março de 2021 a sociedade insolvente realizou diversos pagamentos aos seus credores, incluindo à credora E., em montante não concretamente apurado” (Relativamente a estes pontos entendem os Recorrentes que devem também fazer parte do elenco de factos provados, existindo nos autos a seguinte prova que os sustenta: Prova documental: - Reclamação de créditos da AT de onde não resulta qualquer dívida no ano de 2020; - reclamação de créditos do Instituto de Segurança Social, de onde decorre a reclamação de contribuições de apenas alguns meses, dali resultando que a Insolvente pagou as contribuições de Fevereiro, Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro de 2020, Janeiro e Fevereiro de 2021; - pagamentos à Credora E. devidamente reconhecidos por esta, no montante de €500,00 a 8 de Janeiro de 2021, €500,00 a 15 de Janeiro de 2021 e €200,00 a 16 de Março de 2021 (cfr. ponto 37 dos factos provados); - Reclamação de créditos da credora LP Unipessoal, Lda. da qual decorre ter sido acordado com a Insolvente o pagamento em prestações mensais, a iniciar em Março de 2021, tendo a Insolvente cumprido a primeira prestação (arts. 9º e 10º da reclamação). – Reclamação de créditos do Banco S., da qual decorre que o empréstimo encontrava-se em bom cumprimento (art.º 6º), pois a Devedora encontrava-se a liquidar as respectivas prestações mensais, ao longo de 2020 e 2021; e ainda a seguinte prova testemunhal: Declarações CF (20220930113233_1722385_3994081) Min. 7:50, Min. 11:41, Declarações CF– Parte 2, Min. 7:19, Min. 17:00; Depoimento da testemunha PT (2021007142040_1722385_3994081) Min. 13:03, transcritos no corpo das alegações).
VI. “Para ultrapassar as dificuldades surgidas durante a pandemia, a sócia única da sociedade Insolvente celebrou acordos de pagamento com os credores e publicitou a oficina em diversos eventos, como forma de captação de clientes” (Relativamente a este ponto, existe nos autos a seguinte prova documental: Reclamação de créditos da credora W., Lda., da qual decorre (artigos 9º e 10º) que a credora e a Insolvente chegaram a acordo, mediante o qual esta pagaria àquela o crédito em divida, em três prestações mensais e sucessivas de €474,34, tendo a Insolvente pago em 08/03/2021 uma prestação e em 08/03/2022 a segunda prestação; Reclamação de créditos do Banco S., da qual decorre que em 30 de Junho de 2020, a pedido e no interesse da Insolvente, foi celebrado um “Acordo de Regularização de Responsabilidades” e que o empréstimo encontrava-se em bom cumprimento (art.º 6º), pois a Devedora encontrava-se a liquidar as respectivas prestações mensais, ao longo de 2020 e 2021. Foi produzida ainda a seguinte prova testemunhal: Declarações CF (20220930113233_1722385_3994081) Min. 9:22; Declarações CF– 2ª parte Min. 17:00; Depoimento da testemunha PT (2021007142040_1722385_3994081) Min. 13:05, Min. 31:13).
VII. “No início de 2021, houve um agravamento da situação pandémica na Madeira, e foram decretadas novas medidas de confinamento para a RAM, o que implicou novamente o encerramento da sociedade insolvente” (No que se refere a este ponto, entendem os Recorrentes que além do conhecimento geral (e, por conseguinte, do Tribunal), porque bastante noticiado na altura, sobre as novas medidas de confinamento Região Autónoma da Madeira, no inicio do ano de 2021, foi produzida prova testemunhal a este respeito, da qual decorre que a insolvente voltou a encerrar o seu estabelecimento em Janeiro de 2021, pelo que deverá também ser incluindo no elenco de factos provados, com base na seguinte prova testemunhal: Depoimento AF (20220930104850_1722385_3994081), Min. 38:40; Declarações CF (20220930113233_1722385_3994081), Min. 7:50, Min. 11:41; Depoimento testemunha SGFF (20220930121119_1722385_3994081) Min. 12:30; Depoimento da testemunha PT, (2021007142040_1722385_3994081) Min. 36:12, transcritos no corpo das alegações).
VIII. “AF, na prática, nunca exerceu a gerência da sociedade insolvente, a qual foi sempre exercida apenas por CF” (Entendem os recorrentes que resultou bem claro da prova produzida em audiência de julgamento que quem exerceu a gerência da sociedade Insolvente foi sempre CF e que AF não dava ordens, nem instruções, não tomava decisões, não fazia pagamentos, era apenas trabalhador da sociedade; que AF só aparece nesta sociedade em finais de 2019, e resulta ainda dos autos que o exercia as funções de mecânico, auferindo o salário mínimo regional; e foi ainda provado em audiência de julgamento as circunstâncias pelas quais a sócia CF, em junho de 2020, renunciou à gerência, designando gerente AF, tendo sido explicado que tal ocorreu apenas por questões familiares de CF, relacionadas com a assistência que tinha prestar à sua mãe, doente oncológica. No entanto ficou também demonstrado que se tratou de um acto inútil, pois na prática, CF continuou a ser a gerente e nada mudou. (Tudo conforme seguinte prova testemunhal: Depoimento AF (20220930104850_1722385_3994081) Min. 0:20, Min. 1:08, Min. 6:45, Min. 9:11, Min. 12:30, Min. 13:22, Min. 14:27, Min. 23:33; Declarações CF (20220930113233_1722385_3994081) Min. 2.40, Min. 3:18, Min. 9:22, Min. 11:41, Min. 15:00, Min. 18:21 Depoimento testemunha SGFF (20220930121119_1722385_3994081) Min. 00:20, Min. 23:49, Min. 37:00; Depoimento sócio gerente da credora E., EL (20221007150623_1722385_3994081) Min. 3:57, Min. 16:20).
IX. Os factos supra enunciados são factos essenciais e andou mal o tribunal a quo ao não fazê-los constar do elenco de factos provados, sobretudo se tivermos em conta que no incidente de qualificação de insolvência vigora o princípio do inquisitório que permite ao juiz fundar a decisão em factos não alegados, bem como, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem como, recolher as provas e informações que entender convenientes.
X. Assim, devem os referidos factos ser aditados à matéria provada, pois resultam da prova produzida e existente nos autos.
XI. Ainda que assim não se entenda, ou seja, caso se entenda não ser de aditar tais factos ao elenco de factos provados, deve tal matéria/prova ser tida em conta no juízo formular e decisão a proferir acerca da(s) causa(s) que conduziram à insolvência, do comportamento adoptado para inverter a situação, momento em que a sociedade se considera realmente em estado de insolvência, e ainda acerca de quem administrava a sociedade e, por conseguinte, quem e em que medida deverá ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa, caso venha a manter-se tal qualificação.
Mais,
XII. Não podem os recorrentes conformar-se com os pontos 24, 28 e 40 do elenco de factos provados, bem assim alínea f) dos factos não provados, que entendem ter sido incorrectamente julgados,
XIII. Com efeito, foi junto aos autos, como documento nº 5, com o requerimento de 12/11/2021, um mapa de depreciações, cujo conteúdo foi inclusivamente confirmado pela testemunha PT, a min. 38 do seu depoimento, dos mesmos resultando que o valor de todo o imobilizado da sociedade, onde se inclui a viatura automóvel, com as depreciações, entre 01/01/2020 e 31/12/2020, totalizava 5.219,83€.
XIV. Assim, o ponto 24 dos factos provados deverá ser corrigido, passando ali a contar o seguinte: 24 - No mapa de depreciações da insolvente, do período de 01-01-2020 a 31-12-2020, consta que o seu imobilizado era composto por elevadores 2 colunas, macaco de 3 toneladas, aspirador de óleo c/ aparadeira, pistola pneumática, carro de ferramenta completo, suporte de motor, grua de 1 tonelada, macaco de fossa 500 kg, compressor de 200 litros 220v, prensa 20 toneladas, ferramentas e utensílios, material de mecânica e Ford Fiesta sport van (..-AL-..), no valor total de 5.219,83€.
XV. Foi junto aos autos, no respectivo apenso de apreensão de bens, no dia 16/06/2021 (com a ref. 4218078) o Auto de Apreensão referente aos bens da insolvente (que haviam sido alvo de contrato de dação), pelo que o Tribunal a quo não tem como ignorar que em 15/06/2021 foram efectivamente apreendidos os bens da devedora e avaliados pelo AI, através do perito avaliador, JAVF, em 3.250,00€. (e cfr. ainda prova testemunhal nomeadamente depoimento da testemunha Dr. CMLAS, Administrador de Insolvência, a Min. 33:15)
XVI. Assim sendo, como efectivamente é, deve o ponto 28 dos factos provados ser alterado, passando a ter a seguinte redação: “No processo de insolvência foram apreendidos os bens da devedora, constantes do auto de apreensão do Exmo. Sr. Administrador de insolvência, de 15/06/2021, e melhor discriminados em 15 e 17, ais quais foi atribuído o valor de €3.250,00”.
XVII. Foram reclamados créditos pela Sociedade F. & O., no valor de €16.000,00, condicionadas à confirmação da resolução do contrato de dação, operada pelo Exmo. Sr. AI, a título de rendas desde abril de 2020 até Março de 2021, bem assim compensação pela ocupação do espaço, no valor de €2.000,00 mensais, desde Abril de 2021 até desocupação do locado (cfr. reclamação de créditos junta aos autos).
XVIII. Assim sendo, como é, deve o ponto 40 dos factos provados, ser alterado em conformidade, ali passando a constar que: “F & O, Lda. reclamou créditos no valor de €16.000,00, a título de rendas desde abril de 2020 até Março de 2021, bem assim compensação pela ocupação do espaço, no valor de €2.000,00 mensais, desde Abril de 2021 até desocupação do locado, doa quais €13.000,00 são condicionados à confirmação da resolução do contrato de dação, operada pelo Exmo. Sr. AI”.
XIX. E, finalmente, quanto ao ponto f) do elenco de factos não provados, para além do já referido quanto ao ponto 28, dúvidas não poderão restar de que foi produzida prova suficiente de que os bens objecto do contrato de dação em pagamento tinham o valor de €3.250,00, ou pelo menos valor inferior a €5.000,00 (cfr. mapa de depreciações já supra mencionado do qual decorre que todo o imobilizado da sociedade, onde se inclui a viatura automóvel, com as depreciações, entre 01/01/2020 e 31/12/2020, totalizava 5.219,83€, pelo que deduzido o valor da viatura, nomeadamente €1.024,60, temos que os bens e equipamentos objecto do contrato de dação e cumprimento estavam avaliados naquele período em €4.195,23; auto de apreensão junto aos autos pelo Exmo. Sr. AI, do qual resulta que tais bens foram por si avaliados em 2021, através de perito avaliador, no montante de €3.250,00. O que foi confirmado pelo Exmo. Sr. AI, no seu depoimento, em audiência de julgamento, cfr. depoimento já supra transcrito; e ainda depoimento da testemunha S, a min, 7:43, que referiu ter sido feita avaliação por um mecânico seu conhecido, que lhe disse que “que aquilo tudo podia valer uns três mil, quatro mil euros”).
XX. Assim, ponto f) dos factos não provados deve passar a constar do elenco de factos provados, com a seguinte redação: “Os bens e equipamentos objecto do contrato de dação em cumprimento foram avaliados pelo Exmo. Sr. AI, através de perito avaliador, no montante de €3.250,00”. Ou então “Os bens e equipamentos objecto do contrato de dação em cumprimento têm valor inferior a €5.000,00”.
XXI. Face à impugnação da matéria de facto, nos termos sobreditos, e salvo melhor entendimento, entendem os recorrentes que o elenco de factos provados e não provados deve ser alterado em conformidade (e conforme melhor discriminado no corpo das alegações), e deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que decida pelo carácter fortuito da insolvência, por inexistência dos pressupostos legais para a declaração da insolvência como culposa.
Com efeito,
XXII. O Tribunal a quo decidiu pelo carácter culposo da insolvência com fundamento no preenchimento do circunstancialismo previsto na al. d) do nº 2 e na alínea a), do nº 3, ambos do artigo 186º do CIRE.
XXIII. Não obstante o já atrás mencionado quanto aos prazos de apresentação do devedor à insolvência (que entendemos estarem, à data, suspensos), no que se refere à(s) causa(s) da insolvência, resulta da prova produzida que: a sociedade Insolvente laborou de forma estável até Março de 2020; que atendendo à situação pandémica, viu-se obrigada, numa primeira fase, a encerrar o seu estabelecimento comercial (oficina) e, mesmo tendo reaberto posteriormente, enfrentou desde então uma crise acentuada devido à diminuição de clientes; que a insolvente retomou a sua actividade, após o encerramento por força da Covid, e tinha movimento que permitia a realização de pagamentos a fornecedores e Estado, ainda que em prestações; tanto que entre Julho de 2020 e Março de 2021 a sociedade insolvente realizou diversos pagamentos aos seus credores, incluindo à credora E., em montante não concretamente apurado; e que pagou impostos.
XXIV. Os problemas da Insolvente só começaram no ano 2020, com o surgimento da pandemia de SARS-COV- 2, que afectou pelo conseguinte a conjuntura económica da Insolvente, e as dificuldades começaram a surgir, especificamente, no 2º trimestre de 2020, sendo do conhecimento público e, portanto oficioso, que atravessámos um período de emergência de saúde pública de âmbito internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde, no dia 30 de Janeiro de 2020, a qual determinou ao Governo Português a tomada de medidas excepcionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 dia 13/03/2020, tendo, no dia 18/03/2020, sido decretado pelo Presidente da República o Estado de Emergência Nacional o qual se mostra executado pelo Decreto nº 2-A/2020 de 20 de Março de 2020 e que foi renovado pelo menos até dia 02/05/2020, diplomas através dos quais foram determinadas diversas medidas, entre as quais o encerramento obrigatório de determinados serviços e o isolamento profilático.
XXV. E a insolvente, à semelhança de tantas outras sociedades, foi gravemente prejudicada durante o período de tempo em que vigorou o Plano de prevenção, contenção, mitigação da contaminação por Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
XXVI. A sociedade Insolvente era uma empresa recém criada, pois foi constituída em finais de 2017 e começou a laborar em 2018, pelo que laborou apenas durante 2 anos até o surgimento da pandemia. Apesar disso a Insolvente conseguiu laborar de forma mais ou menos estável até Março de 2020, conforme resulta provado nestes autos.
XXVII. Em finais de 2020 já se falava em vacinação, em imunidade de grupo, no regresso à normalidade, e a sócia da insolvente acreditou que iria conseguir retomar aquela que era a normalidade da oficina antes da pandemia. No entanto, é também do conhecimento público e, portanto oficioso, que no inicio de 2021 houve um agravamento da situação pandémica na Região Autónoma da Madeira, o que motivou novas medidas entre as quais o encerramento obrigatório de determinados serviços e o isolamento profilático.
XXVIII. Ora, a Insolvente, que já vinha a laborar em esforço durante todo o ano de 2020, sujeita a um novo encerramento, não aguentou. E é neste momento que se apercebe que não irá conseguir cumprir com as suas obrigações vencidas: não conseguiu fazer face ao pagamento da renda a partir de janeiro de 2021, não conseguiu chegar a acordo com o seu fornecedor, aqui credora E. quando ao pagamento do crédito e, entretanto, em Abril de 2021, a sociedade senhoria resolve o contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas dos meses de janeiro a março de 2021.
XXIX. E aqui chega à conclusão que tem de apresentar a empresa à insolvência. E fê-lo de imediato.
XXX. Assim entende a recorrente, salvo melhor opinião, que a insolvência tem como causa a pandemia de SARS-COV-2, que afetou gravemente a situação económica da Insolvente e que o conhecimento da situação de insolvência ocorre em 2021, no seguimento do novo encerramento de que foi alvo a oficina explorada pela Insolvente.
XXXI. Veja-se que a sociedade insolvente não tinha processos executivos a correr contra si; continuou a conseguir pagar, ainda que parcialmente, as suas dividas, no ano de 2020; elaborou acordos com fornecedores e realizou pagamentos; continuou a conseguir pagar impostos; continuou a pagar os empréstimos bancários; com a dação em pagamento, conseguiu também pagar as rendas (tudo isto está demonstrado nos presentes autos, quer através de prova documental, quer através de prova testemunhal transcrita no corpo das alegações).
XXXII. O único crédito que não pagou para fazer face a outros compromissos, foi o salário do trabalhador, mas porque o trabalhador é marido da sócia e chegaram a esse acordo, em prol da sobrevivência da sociedade, visto que estava a atravessar uma fase que à partida seria temporária, causada pela pandemia.
XXXIII. Pelo que até final de 2020 não havia incumprimento generalizado de dos tipos de obrigações elencadas na al. g) do nº 1 do art.º 20º, designadamente obrigações tributárias, contribuições para a segurança social (com excepção das dívidas emergentes do contrato de trabalho, que assim permaneceram, por acordo, para fazer face a outros pagamentos até a situação pandémica melhorar).
XXXIV. O que só acontece de facto em 2021, em virtude do agravamento da situação pandémica que motivou novo encerramento da oficina explorada pela insolvente.
XXXV. E sobretudo depois da resolução do contrato pelo senhorio, em abril de 2021, pois aí de facto a sociedade não tem maneira de continuar a fazer receitas para cumprir as suas obrigações vencidas. Pelo que, salvo melhor entendimento, cremos ser este o momento do conhecimento da situação da insolvência.
XXXVI. Ora, atendendo às circunstâncias supra descritas, entendem os recorrentes ser de concluir que não criaram ou agravaram passivo ou prejuízos, nem realizaram negócios ruinosos. Antes pelo contrário: a sócia única da Insolvente fez tudo que estava ao seu alcance para ultrapassar as consequências da situação excepcional que foi a pandemia, no entanto em 2021 a situação tornou-se insustentável e teve de apresentara a empresa à insolvência.
XXXVII. Razão pela qual, não obstante o já supra referido quanto à suspensão de prazos para apresentação à insolvência, entendem os recorrentes não estar preenchido o circunstancialismo previsto na alínea a), do nº 3, do artigo 186º do CIRE.
XXXVIII. No que se refere ao preenchimento do circunstancialismo previsto na alínea d), do nº 2, do artigo 186º do CIRE, entendem os Recorrentes, sempre com o devido respeito, que é muito, que o mesmo também não está preenchido e que o Tribunal a quo chegou a tal conclusão partindo de erradas premissas.
XXXIX. Por um lado, entendem os recorrentes que andou mal o Tribunal a quo ao partir da premissa de que em 2020 já a sociedade estava em situação de insolvência, por outro lado andou mal o tribunal a quo ao não ponderar os factos à luz da realidade de então, em que por força da situação absolutamente excepcional e sem precedentes de pandemia e perante os problemas por ela ocasionados, a sócia viu-se obrigada a tomar decisões também elas excepcionais, como a entrega de parte dos seus bens, para evitar a resolução do contrato de arrendamento do espaço onde a sua oficina laborava, e fê-lo, no intuito de a crise pandémica passar e, com a esperança de a sua situação melhorar;
XL. Por outro lado, entendem ainda os Recorrentes que andou mal o Tribunal a quo ao considerar que a dação em cumprimento realizada pela Insolvente e F & O, Lda. em 28/12/2020 “provocou uma desigual distribuição do património entre os credores, beneficiando a credora F & O, Lda., deixando os demais credores, privilegiados e comuns, sem qualquer património para repartir para satisfação dos seus créditos”, senão vejamos:
XLI. Decorre dos depoimentos transcritos no corpo das alegações, de AF (20220930104850_1722385_3994081), Min. 23:33; Declarações de CF (20220930113233_1722385_3994081) Min. 13:18; Depoimento testemunha SGFF (20220930121119_1722385_3994081), Min 1:00, em que circunstancias é que foi celebrado o contrato de dação, em Dezembro de 2020, nomeadamente por imposição do senhorio, e que a sócia aceitou celebrar a dação única e exclusivamente para evitar a resolução do contrato de arrendamento, pois se tal ocorresse, iria necessariamente perder toda a sua actividade comercial (e, como tal, deixar de facturar), dessa forma agravando a respectiva situação financeira.
XLII. Nos termos do referido contrato, e para pagamento integral da quantia de €9.000,00 (nove mil euros), a insolvente deu à sociedade F & O, Lda. que aceitou e declarou extinta a dívida, bens móveis a que atribuíram valor igual ao da dívida, mas que valiam menos de 5.000,00€, conforme já supra explanado.
XLIII. Assim, por um lado, foram entregues por um valor muito superior ao que valiam, pelo que a sociedade F & O Lda. não obteve benefício/proveito (além de que só há que falar em proveito quando o acto de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional, o que não sucede no presente caso), nem a Insolvente sofreu prejuízo.
XLIV. Por outro lado, tal dação não prejudicou os credores da insolvência, antes pelo contrário: com a dação, extinguiu-se o crédito da F & O no valor de 9.000,00€, pelo que nestes autos é credora apenas da quantia de €3.000,00 a título de rendas vencidas e não pagas entre os meses de Janeiro e Março de 2021, qualificado como crédito comum.
XLV. Se não tivesse havido dação, a F & O seria titular de um crédito no valor de 11.000,00 (onze mil euros) a título de rendas vencidas e não pagas entre os meses de Abril de 2020 e Março de 2021, a acrescer os valores devidos pela ocupação do espaço, estes já como dívida da massa e, portanto, pagos em 1º lugar (Tanto assim que, atenta a resolução efectuada por parte do Exmo. Sr. Administrador, a sociedade F e O reclamou créditos no valor de 16.000,00€).
XLVI. Sendo que, a manter-se a dação nos termos em que foi realizada (como efectivamente se manteve), tal crédito no valor de €13.000,00 (à data), acrescido de €2.000,00 por cada mês de ocupação do espaço com os referidos bens, já não é devido.
XLVII. Por outro lado, caso não tivesse havido dação em pagamento, e tendo tais bens sido avaliados em €3.250,00, o resultado seria o mesmo: o processo seria (como foi) encerrado por insuficiência de massa. Ou seja, não teria havido rateio.
XLVIII. Assim, com a entrega do activo em dação de pagamento, por um valor muito superior ao que o activo valia (porque para extinção de uma divida de €9.000,00) a insolvente e sua gerente não favoreceram credores, nem impediram de forma relevante o ressarcimento de outros, não se traduzindo tal disposição numa disposição em proveito de terceiros, nem colocando em perigo ou retardando a satisfação de credores. Nem nunca houve intenção da devedora de proporcionar vantagens a algum ou alguns credores ou causar prejuízos a outros credores, em detrimento dos demais.
XLIX. Pelo que não pode concluir-se, como concluiu o Tribunal a quo, que a dação em causa “provocou uma desigual distribuição do património entre os credores, beneficiando a credora F & O, Lda., deixando os demais credores, privilegiados e comuns, sem qualquer património para repartir para satisfação dos seus créditos”.
L. E assim sendo, como entendemos que é, deve considerar-se não preenchido o circunstancialismo previsto na al. d) do nº 2 do art.º 186 do CIRE “disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”.
LI. Face a todo o exposto, entendem os recorrentes que nenhum dos pressupostos da qualificação da insolvência se encontram preenchidos, pelo que deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão que declare o caracter fortuito da insolvência (Como, de resto, pugnou o senhor administrador da insolvência, ao emitir parecer em que concluiu pelo carácter fortuito da insolvência, afirmando não ter verificado qualquer indício de a insolvência ter sido culposamente causada ou agravada).
Assim não se entendendo,
LII. Mantendo-se a qualificação da insolvência como culposa, não deverá o recorrente AF ser afectado por tal qualificação, até porque escutando os supra transcritos depoimentos prestados em audiência de julgamento quer pela sócia, quer pelo recorrente AF, pelas demais testemunhas indicadas, particularmente nas partes indicadas com precisão no corpo das alegações supra, e compaginando os mesmos com a supra citada prova documental que se encontra junta aos autos, é manifesto que AF nunca exerceu de facto as funções de gerente daquela rudimentar oficina.
LIII. Acresce que a douta sentença em crise não especifica quais os deveres que considera terem sido violados por AF; nem quais os actos por si praticados, suscetíveis de conduzir à sua afectação, sendo apontado ao recorrente AF apenas o seguinte “Todavia, constata-se que este ainda veio a ter intervenção na gestão da insolvente, participando até na celebração do contrato de dação em cumprimento celebrado com a sociedade F & O, Lda”.
LIV. No entanto, não resulta do elenco de factos provados, nem da douta sentença no seu todo, qualquer intervenção na gestão da insolvente por parte do recorrente AF.
LV. A única intervenção que teve, susceptível de se enquadrar em “acto de gerência” foi a assinatura do contrato de dação, no entanto, não passou disso, da mera aposição de assinatura (por exigência do representante da sociedade senhoria, e apenas porque AF resultava na certidão comercial da sociedade, como gerente), sendo certo que tal contrato não foi consigo discutido, não foi por si decidido, e AF não teve qualquer “voto na matéria”, nem intervenção, para além da mera aposição da sua assinatura (O que resulta da prova produzida, conforme depoimentos supra transcritos).
LVI. E, nunca tendo exercido as funções de gerente de facto, entendemos ainda que AF enquanto gerente de direito não violou os deveres gerais que se lhe impunham nessa qualidade. Nem da sentença recorrida resulta que o haja feito, tal como não resulta que AF, com culpa grave presumida, criou ou agravou a situação de insolvência para que a mesma possa ser qualificada como culposa.
LVII. Sempre salvo o devido e merecido respeito, parece óbvio que, no caso descrito nos autos, não só é impossível divisar qualquer conduta dolosa ou com culpa grave do apelante AF, como, ainda muito menos é possível ficcionar que da circunstância de o mesmo ter sido indicada como “gerente de direito” da sociedade insolvente resulta ou pode ser extraído qualquer tipo de nexo de causalidade entre essa mera circunstância e a situação de insolvência.
LVIII. E importa ter ainda em conta a razão pela qual foi o Apelante AF designado gerente de direito: Apenas e tão só para a eventualidade de a gerente CF poder ficar impossibilitada, por razões pessoais (devido à situação de doença da sua mãe), de exercer a gerência, o que resultou demonstrado nunca ter ocorrido.
LIX. Pelo que parece evidente que, nas descritas circunstancias da indicação do nome do Apelante AF para, aparentemente, constar como “gerente de direito”, não podem ser extraídos os requisitos objectivos, nem os requisitos subjectivos, e muito menos algum nexo de causalidade que, da sua não actuação e da circunstancia em que aquela oficina se encontrava, em virtude da pandemia entretanto surgida, pudesse resultar.
LX. E isto pela singela razão que, afinal e na realidade, nem “gerente de direito” o apelante AF era da sociedade insolvente: O Apelante não era verdadeira e real “gerente de direito” e, muito menos era “gerente de facto” da sociedade.
LXI. Não devendo ser atingido pelos nefastos efeitos substantivos que estão automaticamente associados à qualificação da insolvência como culposa, pelo que, salvo melhor opinião, AF não deverá ser afectado por eventual qualificação da insolvência como culposa.
LXII. No entanto, caso se entenda não ser de excluir a responsabilidade do Apelante AF, nos termos alegados anteriormente, por não lhe serem aplicáveis aqueles normativos, o que não se aceita nem concede, sempre a Sentença recorrida devia ter tido em atenção, na fixação dos critérios para a quantificação, a “culpa” dos afectados, o principio da proporcionalidade, responsabilizando-os apenas e só na medida em que a sua conduta tivesse causado – o que não aconteceu.
LXIII. O tribunal a quo declarou a afectação dos recorrentes por essa qualificação, decretando a inibição de CFF para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 4 (quatro) anos e de AF por um período de 3 (três); determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos recorrentes condenando-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; condenando-os ainda, solidariamente, a indemnizar os credores da devedora no montante total de €61.985.60, até à força do respectivo património.
LXIV. No entanto, não foi feita qualquer ponderação do grau de ilicitude e culpa dos afectados, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa.
LXV. Nas alíneas, em que a lei prevê um limite mínimo e um limite máximo “(…) a duração concreta será encontrada tendo em conta vários aspectos relativos à atuação: por exemplo, se há dolo ou culpa grave, se criou ou agravou a situação de insolvência, se foi solitária ou não, se havia autonomia decisória, quais as consequências e sua gravidade, etc… Nada disto ocorreu no presente caso.
LXVI. E no que diz respeito concretamente ao valor da indemnização fixado pela afectação da insolvência, desde logo não logram os recorrentes compreender como chegou a MM. Juíza a quo à fixação de tal valor (Julgam os recorrentes, embora sem certezas, porque a sentença é omissa quanto a tal matéria, que a MM. Juiz a quo terá subtraído ao valor total de créditos reclamados o crédito reclamado pelo recorrente AF, e obtido montante de €61.985,60).
LXVII. No entanto e independentemente do calculo que esteja por detrás de tal fixação, a verdade é que não é feita qualquer ponderação do grau de ilicitude e culpa dos afetados, não podendo a indemnização ser superior ao valor do prejuízo causado à massa com a prática dos factos fundamentadores da qualificação.
LXVIII. Da conjugação do disposto na al. e), do nº 2, com o nº 4, do art.º 189º, do CIRE, resulta que a al. e) não pode ser interpretada no sentido de que o valor da indemnização é fixo e que corresponde sempre ao montante dos créditos não satisfeitos pois tal interpretação levantaria problemas de constitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso.
LXIX. Sobre esta matéria refere o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015, (publicado na II série, do DR, de 16.6.2015) que “esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do nº 2 do artigo 189º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 189º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do nº 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal”.
LXX. Assim, na fixação do montante indemnizatório deveria o Tribunal a quo ter ponderado o grau de ilicitude e culpa de cada um dos afectados, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa. O que não ocorreu no presente caso, pois em momento algum o Tribunal de 1ª instância se pronuncia acerca da gravidade dos factos imputados a cada um dos afetados nos presentes autos, e nomeadamente qual a concreta contribuição de cada um deles no criar ou agravar o estado de insolvência.
LXXI. Esta condenação dos afectados, aqui recorrentes, por excessivamente severa e desproporcional, mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação, conforme previstos no artigo 18º, nº 2 da CRP.
LXXII. Situação que reveste maior importância e constituiu maior injustiça, no caso do recorrente AF, pois, conforme já referido, é manifesto que AF nunca exerceu de facto as funções de gerente daquela oficina explorada pela sociedade insolvente, nunca teve qualquer intervenção directa e efectiva na gestão da empresa.
LXXIII. AF não contribuiu para o aumento do passivo da insolvente, não podendo assim ser condenado a indemnizar os credores da insolvente com o seu património da forma como foi, porque, conforme está provado nos autos, não foi ela quem provocou qualquer aumento do passivo da Insolvente.
LXXIV. Ora, não se mostrando comprovado, em face das circunstâncias e atuação descritas na douta Sentença, que responsabilidade ou culpa o afetado pela qualificação, AF, possa ter tido concretamente na criação ou agravamento da situação de insolvência – no curto período em que foi gerente de direito, e mesmo na hipótese de ter sido gerente de facto desde então e até à apresentação da devedora à insolvência.
LXXV. Salvo melhor opinião, com o devido respeito, não se mostram reunidas as condições para que ao afectado pela qualificação, AF, possa ser condenado a qualquer período de inibição, muito menos condenado solidariamente a pagar a indemnizar os credores no montante total de €61.985,60, na mesma medida em que foi CF, gerente de direito da sociedade desde o seu início até 2020 e gerente de facto desde o seu inicio até apresentação da sociedade à insolvência – sendo patente uma errada subsunção jurídica dos factos ao previsto no art.º 189º do CIRE.
LXXVI. Assim sendo, conjugando o teor das alíneas a) e e) do nº 2 e o nº 4 do artigo 189º do CIRE, verifica-se que na fixação da indemnização deveria ser ponderada a culpa dos afectados que deverão responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos dessa culpa.
LXXVII. Facto este que se não fosse suficiente para eximir na integra o afectado AF de qualquer responsabilidade subjectiva na insolvência, deveria pelo menos, mitigar fortemente aquele grau de eventual ilicitude e culpa.
LXXVIII. Assim sendo, entendemos ser excessivo o período de tempo fixado de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 189º do CIRE, bem assim o valor da indemnização.
LXXIX. E entendemos que na fixação do critério de tempo de cumprimento das medidas inibitórias e do critério da quantificação da indemnização devia o douto tribunal, entre outros, ter tido em atenção o facto de o Apelante ter sido motivado a aceitar que o seu nome fosse colocado como aparente “gerente de direito” da sociedade pelas supra identificadas e demonstradas razões de ajuda da sua mulher. Ou seja, motivos socialmente compreensíveis e denotando um total desprendimento de interesses económicos.
LXXX. E mesmo em relação à Apelante CF, resulta demonstrado nestes autos que até Março de 2020 a insolvente laborou de forma estável, qual a causa de insolvência desta sociedade; e que era a Apelante CF quem exercia a gerência de facto da sociedade, o que ocorreu desde o momento da sua constituição, até apresentação da mesma à Insolvência.
LXXXI. Assim, importa também aferir em que medida é que a sua conduta contribuiu para o aumento do passivo da insolvente, sendo a sentença igualmente omissa a este respeito.
LXXXII. Entendemos que a Apelante CF, enquanto sócia única e gerente da insolvente não criou ou agravou passivos ou prejuízos, nem realizou negócios ruinosos, pois não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respectivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – neste caso a conjuntura/condições de mercado em virtude da pandemia surgida.
LXXXIII. Mas ainda que assim não se entenda, a culpa da sócia e gerente CF, a existir, é diminuta, pois da prova produzida nestes autos resulta que a sociedade começou a apresentar dificuldades após o surgimento da pandemia, e mesmo em relação ao contrato de dação celebrado em Dezembro de 2020, a mesma acedeu a esse pedido no sentido de impedir a resolução do contrato de arrendamento, e na esperança de viabilizar a empresa.
LXXXIV. De qualquer modo, mesmo atendendo à data a partir da qual a douta sentença considera encontrar-se a sociedade em estado de insolvência (Julho de 2022) – posição com a qual não se concorda, conforme já supra explanado – desde essa data e até a apresentação da sociedade à insolvência, em Abril de 2021, o passivo da Insolvente aumentou em €40 594,89 (cfr. se pode verificar pelas reclamações de crédito juntas aos autos).
LXXXV. Ora, salvo melhor entendimento, os gerentes apenas podem ser responsabilizados pela diferença que apresentem os créditos reconhecidos e não satisfeitos entre a data em que se deveria ter apresentado à insolvência e a data da declaração da insolvência, até porque apenas nesta medida a sua atuação pode ter agravado a situação destes credores.
LXXXVI. E, portanto, entendemos que a Apelante CF, mesmo que se considere ter agido com culpa – o que não se concede – em circunstância alguma poderá ser responsável por pagamento de valor superior àquele, de €40.59,89, que corresponde à diferença dos créditos reconhecidos e não satisfeitos entre a data em que se deveria ter apresentado à insolvência e a data da declaração da insolvência.
LXXXVII. Assim, em relação ao afectado AF, deve ser revogada a decisão proferida e em seu lugar nova e diferente decisão que, nos critérios para a quantificação da indemnização, tenha em conta estas descritas e comprovadas circunstâncias, particularmente, sempre tenha em atenção os princípios constitucionais da proporcionalidade, e o grau, que é nulo, de ilicitude da conduta e a culpa, que se crê inexistente, do Apelante
LXXXVIII. Em relação à afectada CF, deve ser revogada a decisão proferida e em seu lugar nova e diferente decisão que, nos critérios para a quantificação da indemnização, tenha em conta estas descritas e comprovadas circunstâncias, particularmente, e sempre tenha em atenção os princípios constitucionais da proporcionalidade, e o grau, de ilicitude da conduta e a culpa da Apelante, condenando-a em quantia que este Tribunal da Relação de Lisboa considere proporcional e adequada, correspondente à diferença que apresentam os créditos reconhecidos e não satisfeitos entre a data em que se deveria ter apresentado à insolvência e a data da declaração da insolvência, nunca superior a €40.594,89 (caso se considere que deveria ter apresentado a sociedade à insolvência em julho de 2020).
Como é de Direito e inteira Justiça”.
10- O M.P. apresentou contra alegações onde conclui:
“1- O presente recurso vem interposto da sentença proferida no presente Incidente de Qualificação da Insolvência, por se entender que a douta sentença incorreu em falta de pressupostos essenciais para a qualificação da insolvência como culposa e, para a afectação dos recorrentes por essa qualificação;
2- Além de ter incorrido em erro de julgamento quanto à seleção da matéria de facto e quanto à interpretação e aplicação do Direito, designadamente do disposto no artigo 186º e 189º, nº 4 do CIRE.
3- Salvo todo o devido respeito que é muito, o Ministério Público concorda, na íntegra com o teor da douta sentença, e com todos os seus fundamentos de facto e de direito.
4- O Ministério Público, com a devida vénia, para além do douto Acórdão já referido na douta sentença, cita, o douto Acórdão, do Venerando Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09-06-2021, Processo nº 1338/17.3 T8STS-A.P1.S1, Relator, Exmo. Senhor Juiz Conselheiro, Barateiro Martins.
5- Termos em que se conclui pela existência dos pressupostos para a qualificação da insolvência da Sociedade, “C… Unipessoal, Lda.”, como culposa, e da afectação dos Recorrentes, CF, e AF, nos termos dos artigos 186º, nºs 1, 2, alíneas d) e nº 3, alínea a), do referido artigo, do CIRE, conforme efetuada pela douta sentença, nos seus exactos termos, fundamentos e consequências.
6- Termos em que, salvo o devido respeito, não deverá ser a douta sentença revogada e substituída por outra que acolha a pretensão dos Ilustres Recorrentes nos termos doutamente alegados.
Mas Vossas Excelências Venerandos Juízes Desembargadores farão como sempre, Justiça”.

*  *  *

II – Fundamentação
a)  A matéria de facto dada como provada em 1ª instância foi a seguinte:
1- A insolvente foi constituída em 8/11/2017, tendo como objecto social a manutenção e reparação de veículos automóveis e o comércio a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis.
2- A insolvente tem o capital social de 5.000 € e como única sócia CF.
3- CF foi designada gerente da insolvente na data da sua constituição, tendo cessado estas funções, por renúncia, em 26/6/2020.
4- Em 26/6/2020, foi designado gerente da insolvente AF.
5- Em 7/11/2017, CF contraiu um crédito pessoal no valor de 27.880,25€.
6- Este valor foi utilizado para adaptar o espaço onde a insolvente passou a laborar para a actividade de oficina e aquisição de material para o exercício da actividade.
7- A insolvente laborava numa oficina, na Rua …, sob o nome comercial “R… M…”.
8-  As instalações onde se localizava a oficina da insolvente foram arrendadas à sociedade “F & O, Ldª”, através de um contrato de arrendamento para fins não habitacionais, de 17/11/2017, nos termos do qual as partes acordaram no pagamento pela insolvente de uma renda no montante de 750 € nos primeiros doze meses e, a partir da décima terceira renda, uma renda no montante de 1.000€.
9- Em 21/6/2019, CF contraiu um crédito pessoal no valor de 39.032,35 €.
10- Em Março de 2020, por força das medidas adoptadas no âmbito da pandemia Covid-19, a insolvente suspendeu a sua actividade.
11- Uma parte não concretamente apurada do volume de trabalho da insolvente provinha da manutenção de carros de turismo e de aluguer e da escola de condução “F… A…”.
12- Em consequência das medidas decretadas durante a pandemia Covid-19, a escola de condução “F… A…” esteve fechada durante meses e deixou de solicitar serviços à insolvente.
13- Por escrito particular designado “Dação em Cumprimento”, com data de 28/12/2020, celebrado entre a sociedade “F & O, Ldª” e a insolvente, representada pela sócia CF e pelo gerente AF, as partes declararam que:
“a)  Entre a Primeira, na qualidade de senhoria, e a segunda, na qualidade de arrendatária, foi celebrado a 17/11/2017, um contrato de arrendamento para fins não habitacionais mediante o qual a primeira deu de arrendamento à segunda o 3º piso do imóvel sito na Rua…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Câmara de Lobos sob o nº… e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …, com a licença de utilização nº…emitido pela Câmara Municipal de Câmara de Lobos;
b)  Mediante tal contrato a Segunda obrigou-se a pagar, a título de renda, nos primeiros 12 meses, a quantia mensal de € 750,00, passando a € 1.000,00 a partir do 13º mês;
c)  Atendendo ao quadro mundial de pandemia de contágio por Covid-19, cujas medidas governamentais e europeias aconselharam, e impuseram, prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infecção epidemiológica por coronavírus, a Segunda viu-se obrigada, numa primeira fase, a proceder ao encerramento de instalações e estabelecimentos e a partir de Março de 2020 enfrenta uma crise acentuada, devido à diminuição de clientes;
d)  A Segunda deixou de conseguir suportar a renda mensal devido à primeira, pelo arrendamento mencionado em a), estando em dívida, à data, a quantia de €9.000,00 (nove mil euros), que corresponde às rendas vencidas e não pagas nos meses de Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro do corrente ano de 2020.”
14- Nos termos do contrato celebrado, a insolvente confessou-se devedora à sociedade “F & O, Ldª” da quantia de 9.000€.
15- E as partes acordaram que, pelo contrato celebrado e para pagamento integral da quantia de 9.000€, a insolvente dava à sociedade “F & O, Ldª”, que aceitava e declarava extinta a dívida, os seguintes bens móveis a que atribuíam valor igual ao da dívida:
- Elevadores 2 colunas;
- Macaco de 3 toneladas;
- Aspirador de óleo com aparadeira;
- Pistola pneumática;
- Carro de ferramenta completo;
- Suporte de motor;
- Grua de 1 tonelada;
- Macaco de fossa de 500 kg;
- Compressor de 200 litros 220v;
- Prensa de 20 toneladas;
- Ferramentas e utensílios;
- Material de mecânica.
16- As partes acordaram ainda que, em caso de venda dos equipamentos, a sociedade “F & O, Ldª” obrigava-se a dar preferência à insolvente na aquisição dos mesmos.
17- Por escrito particular denominado “aditamento ao contrato de arrendamento para fins não habitacionais”, celebrado na mesma data, as partes acordaram que a sociedade “F & O, Ldª” daria de arrendamento à insolvente, que o aceitava, o 3º piso do imóvel sito na Rua…, nas condições já acordadas, locado com o seguinte equipamento:
- Elevadores 2 colunas;
- Macaco de 3 toneladas;
- Aspirador de óleo com aparadeira;
- Pistola pneumática;
- Carro de ferramenta completo;
- Suporte de motor;
- Grua de 1 tonelada;
- Macaco de fossa de 500 kg;
- Compressor de 200 litros 220v;
- Prensa 20 toneladas;
- Ferramentas e utensílios;
- Material de mecânica.
18- Por carta registada com aviso de recepção, com data de 2/4/2021, a sociedade “F & O, Ldª” comunicou à insolvente a resolução do contrato de arrendamento do 3º piso do imóvel sito na Rua…, por falta de pagamento das rendas de Janeiro, Fevereiro e Março de 2021, no valor total de 3.000 €.
19- A insolvente depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas dos anos de 2017, 2018 e 2019.
20- No ano de 2018 a insolvente apresentou um activo de 17.019,48€ e um passivo de 15.863,62 €.
21- No ano de 2018, a insolvente detinha activos fixos tangíveis no montante de 6.602,89€ e inventários no valor de 4.923,09 €.
22- No ano de 2019 a insolvente apresentou um activo de 29.647,35€ e um passivo de 22.099,94 €.
23- No ano de 2019, a insolvente detinha activos fixos tangíveis no montante de 6.405,17€ e inventários no valor de 6.349,21€.
24-  No mapa de depreciações da insolvente, do período de 1/1/2020 a 31/12/2020, consta que o seu imobilizado era composto por elevadores 2 colunas, macaco de 3 toneladas, aspirador de óleo com aparadeira, pistola pneumática, carro de ferramenta completo, suporte de motor, grua de 1 tonelada, macaco de fossa de 500 kg, compressor de 200 litros 220v, prensa de 20 toneladas, ferramentas e utensílios, material de mecânica e “Ford Fiesta Sport Van” (AL), no valor total de 7.839,36€.
25- Por petição inicial apresentada a 20/4/2021, a insolvente requereu a declaração da sua insolvência.
26- Por sentença proferida a 22/4/2021, foi declarada a insolvência.
27- Por despacho proferido a 6/7/2022, foi declarado o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente para pagamento das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente.
28- No processo de insolvência, não foi apreendido qualquer bem ou direito da insolvente.
29- A insolvente era titular de um veículo automóvel de marca “Ford Fiesta”, com a matrícula ..-AL-.., sobre o qual incidia uma reserva de propriedade registada a favor da “C… Sucursal em Portugal S.A.”, tendo sido entregue a esta.
30- No processo de insolvência foram reconhecidos créditos no valor total de 84.054,10 €.
31-  AF reclamou créditos no valor total de 13.068,50 €, referente às retribuições de Abril a Dezembro de 2020 e Janeiro a Abril de 2021, subsídios de férias dos anos de 2020 e 2021, férias não gozadas de 2020, subsídio de Natal de 2020, subsídio de alimentação de Abril a Dezembro de 2020 e Janeiro a Abril de 2021 e subsídios de férias dos anos de 2020 e 2021, fundamentados na celebração de um contrato de trabalho com a insolvente a 11/6/2019.
32- A “ACA, Ldª reclamou créditos no valor total de 707,79€, referentes ao fornecimento de peças e acessórios automóveis à insolvente, no período compreendido entre 8/6/2020 e 11/8/2020.
33- O “Banco B…” reclamou créditos no valor total de 6.289,87 € referentes a um contrato de crédito celebrado com a insolvente a 8/6/2020, nos termos do qual concedeu à insolvente um financiamento no montante de 6.015,38 € e saldo devedor de duas contas bancárias.
34- O “Banco S…” reclamou créditos no valor total de 6.882,53 € referentes a um “Acordo de Regularização de Responsabilidades” da quantia de 7.500 €, celebrado com a insolvente a 30/6/2020, nos termos do qual foi renegociado o valor em dívida, de 7.500 €, concedido à insolvente por contrato de abertura de crédito celebrado em 28/2/2018, e descoberto em conta.
35-  A “C…, Sucursal em Portugal da S.A. francesa C…” reclamou créditos no valor total de 1.163,14 € referentes a um contrato celebrado com a insolvente a 26/4/2018, nos termos do qual lhe concedeu um financiamento no montante de 3.417 €, para aquisição do veículo de marca “Ford Fiesta Sport Van”, com a matrícula ..-AL-.., incumprido a 5/4/2021.
36- A “E., Ldª” reclamou créditos no valor total de 23.788,03€ referentes ao fornecimento de peças e acessórios automóveis à insolvente, no período compreendido entre 22/7/2020 e Dezembro de 2020, no valor total de 24.353,20 €.
37- A insolvente fez os seguintes pagamentos à credora “E., Ldª:  500 € a 8/1/2021, 500 € a 15/1/2021 e 200 € a 16/3/2021.
38- CF apresentou um plano de pagamentos, não concretamente apurado, à credora “E., Ldª”.
39- A credora “E., Ldª” solicitou à insolvente garantias adicionais.
40- A “F & O, Ldª” reclamou créditos no valor total de 16.000 €, referentes a rendas em dívida desde Abril de 2020 a Março de 2021.
41-  O Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM reclamou créditos no valor total de 1.639,13 € referentes a contribuições e juros de mora, sendo 1.621,10 € de contribuições referentes aos seguintes períodos:  488,07 € de Novembro e Dezembro de 2019, 226,18 € de Janeiro de 2020, 669,85 € de Março a Maio, Novembro e Dezembro de 2020 e 237€ de Março de 2021, sendo a quantia de 964,40€ reconhecida como crédito privilegiado.
42- A “J.P., Ldª” reclamou créditos no valor total de 474,34€ referentes ao fornecimento de peças e acessórios automóveis à insolvente.
43- “M., S.A.” reclamou créditos no valor total de 1.379,38€ referentes a serviços de telecomunicações electrónicas prestados entre 23/6/2020 e 19/4/2021.
44- A AT – Autoridade Tributária e Aduaneira reclamou créditos no valor total de 174,97 € referentes a IVA do período de 1/4/2019 a 30/6/2019 e IRS do ano de 2019.
45- A “PR, Ldª” reclamou créditos no valor total de 7.508,24€ referentes ao fornecimento de peças e acessórios automóveis à insolvente, entre 15/5/2020 e 21/7/2020, relativamente ao qual foram emitidas 106 facturas.
46- A “W…, Ldª” reclamou créditos no valor total de 289,22 € referentes à venda de dois conjuntos de chaves à insolvente, a 6/7/2020.
47- AF e CF são casados entre si.
*
b)  O Tribunal “a quo” considerou que não se provaram os seguintes factos:
A- AF foi gerente de outras sociedades que foram declaradas insolventes.
B- AF apetrechou o seu veículo de “rali” com bens da insolvente.
C- A insolvente prestava serviços a clientes sem emissão de factura.
D- O valor referido em 9. foi utilizado para fazer face a despesas e dívida da conta caucionada da insolvente.
E- No início do ano de 2021, a insolvente funcionou com uma redução do horário de funcionamento.
F- Os bens e equipamentos objecto do contrato de dação em cumprimento têm valor inferior a 4.000€/5.000€.
*
c)  Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Assim, perante as conclusões das alegações da recorrente, as questões em recurso são as seguintes:
- Saber se existem motivos para alterar a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de 1ª instância.
- Determinar se existem motivos para qualificar a insolvência da “C… Unipessoal, Ldª” como culposa.
- Determinar se a qualificação da insolvência como culposa deve abranger o recorrente AF.
- Determinar se, caso a qualificação da insolvência como culposa abranja os recorrentes CF e AF, foi adequado o período de inibição fixado e se deviam ser eles condenados em indemnização.
*
d)  Há agora que verificar se existem motivos para alterar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.
Ora, de acordo com o disposto no art.º 640º nº 1 do Código de Processo Civil (antigo art.º 685º-B nº 1), quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, especificar:
- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
- Quais os concretos meios de probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Há que realçar que as alterações introduzidas no Código de Processo Civil com o Decreto-Lei nº 39/95, de 15/2, com o aditamento do art.º 690º-A (posteriormente art.º 685º-B e, actualmente, art.º 640º) quiseram garantir no sistema processual civil português, um duplo grau de jurisdição.
De qualquer modo, há que não esquecer que continua a vigorar entre nós o sistema da livre apreciação da prova conforme resulta do art.º 607º nº 5 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “o Juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
*
e)  Em síntese, dizem os recorrentes que devem ser aditados os seguintes Factos Provados:
- “Até Março de 2020 a sociedade “C.” laborou de forma estável”.
- “Quando a insolvente retomou a sua actividade, após o encerramento por força da “Covid”, tinha movimento que permitia a realização de pagamentos a fornecedores e Estado, ainda que em prestações”.
- “Entre Julho de 2020 e Março de 2021 a sociedade insolvente realizou diversos pagamentos aos seus credores, incluindo à credora “E.”, em montante não concretamente apurado”.
- “Para ultrapassar as dificuldades surgidas durante a pandemia, a sócia única da sociedade Insolvente celebrou acordos de pagamento com os credores e publicitou a oficina em diversos eventos, como forma de captação de clientes”.
- “No início de 2021, houve um agravamento da situação pandémica na Madeira, e foram decretadas novas medidas de confinamento para a RAM, o que implicou novamente o encerramento da sociedade insolvente”.
- “AF, na prática, nunca exerceu qualquer acto de gerência, a qual foi sempre exercida apenas por CF”.
*
f)  Quanto ao primeiro (“Até Março de 2020 a sociedade “C.” laborou de forma estável”).
Trata-se, a nosso ver, de uma mera conclusão a extrair de factos concretos.  E os mesmos são os Factos Provados 19. a 23. (“19-  A insolvente depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas dos anos de 2017, 2018 e 2019”; “20-  No ano de 2018 a insolvente apresentou um activo de 17.019,48 € e um passivo de 15.863,62€”; “21-  No ano de 2018, a insolvente detinha activos fixos tangíveis no montante de 6.602,89€ e inventários no valor de 4.923,09€”; “22-  No ano de 2019 a insolvente apresentou um activo de 29.647,35€ e um passivo de 22.099,94€”; “23-  No ano de 2019, a insolvente detinha activos fixos tangíveis no montante de 6.405,17€ e inventários no valor de 6.349,21€”).
Ora, por imperativo do disposto no art.º 607º nº 4 do Código de Processo Civil, devem constar da fundamentação da Sentença os factos julgados provados e não provados, pelo que deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de Direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.
E, assim sendo, nesta parte o recurso improcede, não se aditando o supracitado “facto” ao elenco dos Factos Provados.
*
g)  No que diz respeito aos segundo e terceiro factos (“Quando a insolvente retomou a sua actividade, após o encerramento por força da “Covid”, tinha movimento que permitia a realização de pagamentos a fornecedores e Estado, ainda que em prestações”;  “Entre Julho de 2020 e Março de 2021 a sociedade insolvente realizou diversos pagamentos aos seus credores, incluindo à credora “E.”, em montante não concretamente apurado”):
Também aqui estamos perante conclusões e não factos.
Com efeito, dizer-se que a insolvente, após a reabertura, “tinha movimento que permitia a realização de pagamentos a fornecedores e Estado” é um juízo conclusivo a extrair de outros factos.
Por outro lado, não podem os recorrentes pretender que se provem “diversos pagamentos” e referir que os mesmos são de “montante não concretamente apurado”.  A existência desses pagamentos teria de resultar de prova documental que os apelantes não juntaram.
Assim sendo, e pelos motivos já expostos em f), supra, não se aditarão os “factos” sugeridos.
*
h)  No que respeita ao quarto facto (“Para ultrapassar as dificuldades surgidas durante a pandemia, a sócia única da sociedade Insolvente celebrou acordos de pagamento com os credores e publicitou a oficina em diversos eventos, como forma de captação de clientes”):
Trata-se, mais uma vez, de um conjunto de conclusões que nada têm a ver com factos (sendo que estes abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas e das coisas).  Na realidade, se podemos aceitar que a celebração de acordos de pagamento possa constituir a enunciação de um facto, o mesmo não acontece com as expressões as expressões “para ultrapassar as dificuldades surgidas durante a pandemia” e “como forma de captação de clientes”.
E, como já referimos, apenas factos devem constar da fundamentação da Sentença, pelo que, com a fundamentação já exposta em f), supra, não iremos aditar o referido “facto”.
*
i)    Quanto ao quinto facto sugerido, defendem os apelantes que se deve dar como provado:
“No início de 2021, houve um agravamento da situação pandémica na Madeira, e foram decretadas novas medidas de confinamento para a RAM, o que implicou novamente o encerramento da sociedade insolvente”.
Ora, o decretamento de medidas de confinamento (devido à situação pandémica decorrente da pandemia Covid-19) resultou de diplomas legais e os mesmos, como é evidente, não são factos, havendo que atender a essa legislação, se disso for caso, apenas em sede de Direito e não de facto.
Assim sendo, e tendo mais uma vez em atenção o decidido em f), supra, não se aditará o “facto” sugerido pelos apelantes.
*
j)  Finalmente, entendem os recorrentes que deve ser aditado o seguinte facto:
“AF, na prática, nunca exerceu qualquer acto de gerência, a qual foi sempre exercida apenas por CF”.
Também aqui não estamos perante um facto.
Com efeito, os apelantes vêm aqui invocar que o recorrente seria um mero gerente de Direito e não de facto.  Só que essa discussão apenas tem razão de ser em sede de fundamentação de Direito e não na fundamentação de facto.
Assim, e sem necessidade de mais considerandos, atentos os motivos já expostos em f), supra, não se aditará o “facto” sugeridos.
*
k)  Mais referem os recorrentes que os Factos Provados 24., 28. e 40. devem ser alterados.
E defendem ainda que o Facto Não Provado F. deve passar a integrar o elenco dos Factos Provados.
*
l)  Quanto ao Facto Provado 24..
Consta do mesmo:
“24-  No mapa de depreciações da insolvente, do período de 1/1/2020 a 31/12/2020, consta que o seu imobilizado era composto por elevadores 2 colunas, macaco de 3 toneladas, aspirador de óleo com aparadeira, pistola pneumática, carro de ferramenta completo, suporte de motor, grua de 1 tonelada, macaco de fossa de 500 kg, compressor de 200 litros 220v, prensa de 20 toneladas, ferramentas e utensílios, material de mecânica e “Ford Fiesta Sport Van” (..-AL-..), no valor total de 7.839,36€”.
Em sede de fundamentação, referiu o Tribunal “a quo” que a prova de tal facto “assenta no mapa de depreciações da insolvente, junto ao processo, conjugado com o depoimento de PAST, que procedeu à sua elaboração e explicitação”.
Por sua vez, referem os apelantes que “foi junto aos autos, como documento nº 5, com o requerimento de 12/11/2021, um mapa de depreciações”.
“A min. 38 do seu depoimento, a testemunha PT, contabilista, confirmou o conteúdo de tal mapa de depreciações”.
“A testemunha confirmou que o valor de aquisição do imobilizado, que corresponde aos equipamentos que foram objecto de dação, bem assim a uma viatura automóvel, era 7.839,36€ (min. 41:25)”.
“Confirmou ainda que o valor de todo o imobilizado da sociedade, onde se inclui a viatura automóvel, com as depreciações, entre 01/01/2020 e 31/12/2020, totalizava 5.219,83€ (cfr. mapa de depreciações junto aos autos)”.
Defendem, assim, que o valor vertido no facto em causa não deverá ser de 7.839,36€”, mas sim de 5.219,83€.
Vejamos:
A insolvente juntou aos presentes autos, por requerimento datado de 12/11/2021, o seu mapa de depreciações da insolvente, do período de 1/1/2020 a 31/12/2020.
 O teor do documento foi confirmado pela pessoa que o elaborou, a testemunha PAT, que foi contabilista da insolvente “C… Unipessoal, Ldª”.
Ora, aquilo que resulta da leitura do “Mapa” é que o valor das “Depreciações acumuladas” no referido período temporal foi de 7.839,36€.  O valor das mesmas depreciações, agora “reavaliadas” foi de 5.219,83€.
De qualquer modo, a testemunha acima identificada também afirmou que o valor de aquisição dos bens foi de 7.839,36€.
Assim sendo, iremos fazer constar do facto em causa esses esclarecimentos.
Deste modo, e sem necessidade de mais considerações, altera-se o Facto Provado 24., que passa a ter a seguinte redacção:
“24- No mapa de depreciações da insolvente, do período de 1/1/2020 a 31/12/2020, consta que o seu imobilizado era composto por elevadores 2 colunas, macaco de 3 toneladas, aspirador de óleo com aparadeira, pistola pneumática, carro de ferramenta completo, suporte de motor, grua de 1 tonelada, macaco de fossa de 500 kg, compressor de 200 litros 220v, prensa de 20 toneladas, ferramentas e utensílios, material de mecânica e “Ford Fiesta Sport Van (AL), no valor total de aquisição de 7.839,36 €, sendo o “valor das depreciações acumuladas reavaliadas” de 5.219,83 €”.
*
m)  No que diz respeito ao Facto Provado 28..
O seu teor é o seguinte:
“28- No processo de insolvência, não foi apreendido qualquer bem ou direito da insolvente”.
Dizem os recorrentes que “foi junto aos autos, no dia 16/06/2021 (…) o Auto de Apreensão referente aos bens da insolvente (que haviam sido alvo de contrato de dação)”.  E adiantam que “tendo sido junto, no respectivo apenso de apreensão de bens, no dia 16/06/2021 (…) o Auto de Apreensão referente aos bens da insolvente, o Tribunal a quo não tem como ignorar que em 15/06/2021 foram efectivamente apreendidos os bens da devedora”.
Vejamos:
É certo que no dia 16/6/2021 foi junto, no Apenso “B” (Apreensão de Bens) um “Auto de Apreensão, nos termos do artigo 150º nº 4, alínea e) do CIRE”, no qual consta a apreensão dos móveis ali listados.
No entanto, tratou-se de um mero acto formal, pois, em 28/12/2020 (ver Facto Provado 13.), a insolvente celebrou com a sociedade “F & O, Ldª” um contrato de dação em pagamento, nos termos do qual aquela entregava a esta, para pagamento de rendas em atraso, os equipamentos descritos no Auto de Apreensão.  E, em consequência de tal, por carta datada de 6/5/2021, dirigida à “F & O Ldª”, o Administrador da Insolvência, ao abrigo do disposto nos artºs. 120º a 127º do C.I.R.E., notificou aquela sociedade da resolução do contrato de dação, em benefício da massa insolvente.
Posteriormente, em 17/6/2021, a insolvente intentou contra a Massa Insolvente, acção de impugnação daquela resolução (Apenso “C”), pedindo que se declarasse nula, ineficaz e de nenhum efeito a referida carta resolutiva enviada pelo Administrador da Insolvência.
Tal acção veio a ser julgada procedente por Sentença de 3/6/2022, declarando “declaro nula a resolução do contrato de dação em cumprimento celebrado em 28 de Dezembro de 2020 entre a insolvente e a sociedade F & O, Lda”.
Tal Sentença transitou em julgado.
Assim, em 28/9/2022, no Apenso de apreensão de bens (“B”), foi proferida a seguinte decisão:
“Considerando a decisão proferida no âmbito do Apenso C, nos termos da qual foi declarada nula a resolução do contrato de dação em cumprimento celebrado em 28 de Dezembro de 2020 entre a insolvente e a sociedade F & O, Lda., dê baixa do presente apenso”.
Ou seja, em bom rigor, no processo de insolvência, não foi apreendido qualquer bem ou direito da insolvente.  Houve, é certo, um acto de apreensão que, logo à partida, assumiu um carácter provisório em face da situação criada pelo contrato de dação em pagamento.
Mas o certo é que o Apenso de apreensão de bens e a insolvência vieram a terminar por insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente.
Assim sendo, não vemos motivos para alterar o Facto Provado 28., pelo que o recurso nesta parte improcede.
*
n)  No que respeita ao Facto Provado 40., onde consta: “40- A “F & O, Ldª” reclamou créditos no valor total de 16.000€, referentes a rendas em dívida desde Abril de 2020 a Março de 2021”.
Dizem os recorrentes que “foram reclamados créditos pela Sociedade F & O, no valor de €16.000,00, condicionadas à confirmação da resolução do contrato de dação, operada pelo Exmo. Sr. AI, a título de rendas desde Abril de 2020 até Março de 2021, bem assim compensação pela ocupação do espaço, no valor de €2.000,00 mensais, desde de abril de 2021 até desocupação do locado.  Assim sendo, como efectivamente é, deve o ponto 40 dos factos provados, ser alterado em conformidade, ali passando a constar que: “F & O, Lda. reclamou créditos no valor de €16.000,00, a título de rendas desde Abril de 2020 até Março de 2021, bem assim compensação pela ocupação do espaço, no valor de €2.000,00 mensais, desde Abril de 2021 até desocupação do locado, dos quais €13.000,00 são condicionados à confirmação da resolução do contrato de dação, operada pelo Exmo. Sr. AI.””.
Tendo em atenção o teor da reclamação de créditos apresentada pela sociedade “F & O, Ldª” (ver Apenso “F”), afigura-se-nos que assiste razão aos apelantes, pecando o Facto 40. por defeito.
Assim sendo, altera-se o Facto Provado 40., que passa a ter a seguinte redacção:
“40- A “F & O, Ldª” reclamou créditos no valor total de 16.000€, referentes a rendas em dívida desde Abril de 2020 a Março de 2021, acrescido do valor mensal de 2.000€ até efectiva entrega do locado, livre de pessoas e bens”.
*
o)  Quanto ao Facto Não Provado F..
Consta do mesmo:
“F- Os bens e equipamentos objecto do contrato de dação em cumprimento têm valor inferior a 4.000€/5.000€”.
Como refere o Tribunal “a quo”, afigura-se-nos que não foi produzida prova cabal e fiável que permitisse concluir que os bens tinham um valor inferior a 4.000€ ou 5.000€.
É certo que no auto de apreensão dos bens junto ao Apenso “B” consta que o valor dos bens apreendidos (que correspondem, no essencial, aos bens objecto do aludido contrato) é de 3.250€ (valor atribuído pela Administrador da Insolvência). 
Porém, há que ter em devida consideração que, no ano de 2018, a insolvente tinha um activo de 17.019,48€.  Os activos fixos tangíveis (isto é, todos os bens e materiais tangíveis e físicos que podem ser palpáveis, como por exemplo terrenos, edifícios, instalações técnicas, mobiliário, equipamentos informáticos, mercadorias e materiais) ascendiam a 6.602,89€.  Os inventários (ou seja, a listagem dos bens, produtos e materiais, que uma empresa tem disponível num determinado período) tinha o valor de 4.923,09€.
Já no ano de 2019, o activo era de 17.019,48€.  Os activos fixos tangíveis tinham o valor de 6.405,17€.  Por fim, os inventários ascendiam a 6.349,21€.
Verifica-se, por outro lado, não ter sido efectuada qualquer avaliação dos bens em causa.
Assim sendo, e até pelos valores apresentados pela insolvente nas suas contas no que aos activos fixos tangíveis diz respeito, nunca se poderia tirar a conclusão de que os bens e equipamentos objecto do contrato de dação em cumprimento tinham um valor inferior a 4.000€ ou 5.000€.
Significa isto que inexistem motivos para alterar o Facto Não Provado F., mantendo-se o mesmo nos seus precisos termos.
*
p)  Será, pois, com base na factualidade fixada pelo Tribunal “a quo”, com as alterações acima apontadas (e devidamente sublinhadas), que importa doravante trabalhar no âmbito da análise das restantes questões trazidas em sede de recurso.
*
q)  Vejamos, agora, se existem motivos para qualificar a insolvência da “C… Unipessoal, Ldª” como culposa.
Nos termos do art.º 185º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.) a insolvência pode ser qualificada como fortuita ou como culposa.  Por exclusão de partes, uma vez que a lei apenas define os pressupostos da insolvência culposa, fortuita é a insolvência que não é culposa.
De acordo com o art.º 186º nº 1 do C.I.R.E., a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. 
São, assim, pressupostos desta qualificação da insolvência culposa:
-Uma conduta do devedor (ou dos seus administradores, de facto ou de direito).
-Ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo.
-Que seja dolosa ou com culpa grave.
-Tenha criado ou agravado a situação de insolvência.
Segundo Alexandre de Soveral Martins (in “Um Curso de Direito da Insolvência, 2016, 2ª ed., revista e actualizada, pág. 404, “considera-se culposa a insolvência se a situação (de insolvência) foi “criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, de devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (art.º 186º, 1).  Assim, a lei exige que esteja em causa um comportamento de certos sujeitos (o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de um certo lapso de tempo (nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência).  A situação de insolvência pode ter sido criada sem que existisse culpa mas pode ter havido culpa no agravamento da situação de insolvência.  Em ambos os casos a insolvência pode ser qualificada como culposa”.
A este propósito, no Acórdão da Relação do Porto de 12/10/2010 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt, Relatora Maria Cecília Agante) refere-se que “o que se qualifica é o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigue se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo ou culpa grave.  Dolo que, enquanto conhecimento e vontade de realização do facto em causa, pode revestir-se das modalidades de directo, necessário e eventual.  Culpa (stricto sensu), quando o autor prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar.  Este é o recorte da culpa consciente, já que na culpa inconsciente se enquadram as situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida.  Estes os termos em que devem ser entendidas estas noções usadas pelo C.I.R.E. (artigo 186º, 1).  Nada dispondo em particular sobre essa matéria, tais conceitos devem ser entendidos nos termos gerais do Direito.  E, por isso, também repescada a tese da culpa em abstracto consagrada no Código Civil, apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, 2).  A norma exige, no entanto, a culpa grave, traduzida em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, observam, contraposta à culpa leve, vertida na omissão da diligência normal, e à culpa levíssima, correspondente à omissão de cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes e escrupulosas observam”.
O art.º 186º nº 2 do C.I.R.E. acrescenta que se considera sempre culposa “a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzidos lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e)  Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f)  Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g)  Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h)  Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i)  Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º”.
Por sua vez, o art.º 186º nº 3 do C.I.R.E. estatui que se presume “a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a)  O dever de requerer a declaração de insolvência;
b)  A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial”.
A generalidade da doutrina (vejam-se, a título de exemplo, Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pg. 14, e Menezes Leitão, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, 2ª ed. pg. 175, 2ª edição) considera que as várias alíneas do art.º 186º nº 2 do C.I.R.E. constituem presunções legais “jure et jure”, isto é, inilidíveis, conducentes à qualificação da insolvência como culposa.
Apesar disso, e partindo do conceito de presunção legal desenhado no art.º 349º do Código Civil, inclinamo-nos mais para o entendimento de que essas alíneas integram factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa (neste sentido cf. Acórdãos da Relação do Porto de 15/7/2009 e de 7/12/2015, ambos consultados na “internet” em www.dgsi.pt).
No Acórdão do Tribunal Constitucional de 26/11/2008 (in D.R., 2ª Série, de 14/1/2009), refere-se, a este propósito, que “é duvidoso que na previsão do artigo 186º do C.I.R.E. se instituam verdadeiras presunções.  Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram.  Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal (…) de situações típicas de insolvência culposa”.
De qualquer modo, sejam presunções ou factos-índice, o certo é que o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa.
Assim provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do art.º 186º nº 2 do C.I.R.E. e a situação de insolvência ou o seu agravamento.  Por seu turno, o art.º 186º nº 3 do C.I.R.E. apresenta um conjunto de situações de presunção de culpa grave.  Trata-se, contudo, de presunções “juris tantum”, ilidíveis por prova contrária.  A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se actuou com culpa grave.  Com efeito, como nas hipóteses do citado nº 3 não se presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, para além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.
“Para auxiliar o intérprete, o art.º 186º (…) prevê dois conjuntos de presunções:  O nº 2 contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular;  por seu turno, o nº 3 prevê um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular.  A opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior “eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências”, para além disso favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos” (cf. Maria do Rosário Epifânio, in “Manual do Direito da Insolvência”, 5ª ed., pg. 131).
No mesmo sentido apontam Menezes Leitão (in “Direito da Insolvência”, 2009, pg. 271, e Alexandre de Soveral Martins (in “Um curso de direito da Insolvência”, 2016, 2ª ed., revista e actualizada, pg. 422).
Na Jurisprudência podemos indicar, entre muitos outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 26/1/2010 e de 7/12/2016, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 13/9/2007, todos consultados na “internet” em www.dgsi.pt.
*
r)  No caso em apreço está em causa a circunstância qualificativa da insolvência constante do art.º 186º nº 2, al. d) do C.I.R.E..
Relembre-se que tal preceito dispõe que “considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros (…)”.
Como é sabido, nesta alínea estão em causa (à semelhança do que ocorre com as als. b), e) e g) do normativo), “comportamentos dos administradores do insolvente que, afectando a situação patrimonial deste, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador que os adopta ou para terceiros” (cf. Carvalho Fernandes, in “Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência”, 2005, pg. 95, nota 23).
Tais comportamentos tanto são aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor (como sucede, por exemplo com a venda ou a doação dos bens), assim como os que, não implicando necessariamente a saída dos bens do património do devedor, lhe retiram, no entanto, a disponibilidade, colocando-os na disponibilidade de outrem.
Em qualquer uma das situações, o legislador formula, no entanto, a exigência adicional de que o acto de disposição seja feito em proveito pessoal dos administradores ou de terceiros.
Destas considerações decorre, assim, que, no âmbito do art.º 186º nº 2, al. d) do C.I.R.E., ter-se-ão de apurar factos de onde decorra que os Administradores, de facto, ou de direito, da devedora insolvente realizaram:
- Actos de disposição;
- De bens do devedor;
- Em proveito pessoal (do Administrador) ou de terceiros.
*
s)  O Tribunal “a quo” entendeu que a actuação dos recorrentes, preencheu a previsão do art.º 186º nº 2, al. d) do C.I.R.E..
E refere a 1ª instância, a propósito do contrato de “dação em cumprimento” celebrado em 28/12/2020, referido no Facto Provado 13., que “na data em que o contrato de dação em cumprimento é celebrado (…), a sociedade já se encontrava em situação de insolvência”.
Mais adianta que:
“Na verdade, nesta data, para além das rendas vencidas desde Abril de 2020, a insolvente encontrava-se num incumprimento generalizado das suas obrigações perante os seus fornecedores, com todo um passivo já vencido, que se vinha avolumando desde, pelo menos, Junho de 2020”.
“O maior credor da insolvente, a requerente do incidente, E., Lda., apresentava nesta data um crédito de €24.353,20, referente ao fornecimento de peças e acessórios automóveis, no período compreendido entre 22 de Julho de 2020 e Dezembro de 2020”.
“A insolvência foi requerida a 20 de Abril de 2021, tendo, pois, o contrato de dação em cumprimento sido celebrado três meses e vinte dias antes da apresentação à insolvência”.
“Por outro lado, a satisfação do crédito da sociedade F & O, Lda. foi feita por via de uma dação em cumprimento, ou seja, em termos que não se podem considerar usuais no comércio jurídico e que a respectiva credora não podia exigir”.
“Com efeito, ainda que a dação em cumprimento seja um meio normal e legal de extinção das obrigações (cf. art.º 837º do Código Civil), ela não pode, por regra, ser vista como meio usual no comércio jurídico e, correspondendo à prestação de coisa diversa da que era devida, também não pode, por regra (ressalvando eventual disposição contratual em contrário) ser exigida pelo credor”.
“Está em causa, portanto, a satisfação do direito de um credor que foi efectuada pela insolvente, na pessoa da sua sócia e do seu gerente, num momento em que já se encontrava em situação de insolvência, e que foi concretizada por meios não usuais no comércio jurídico que o credor não podia exigir”.
“E tal implicou um efectivo proveito para a credora, dado que obteve por via daquele negócio algo que, apesar de lhe ser devido, por corresponder à satisfação de um direito de que era titular, não lhe devia ter sido atribuído naquelas circunstâncias, por dever ser atribuído aos outros credores, no âmbito do concurso a realizar no âmbito de processo de insolvência, desde logo, ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, a quem foi reconhecido um crédito privilegiado”.
“Estamos, pois, perante um acto que frustrou a satisfação dos credores da insolvência, na medida em que fez sair da esfera jurídica da insolvente os bens que a compunham, em pagamento da uma dívida de um credor da insolvência, gorando, assim, as pretensões de todos os demais credores”.
“Ou seja, tratou-se de um acto que provocou uma desigual distribuição do património entre os credores, beneficiando a credora F & O, Lda., deixando os demais credores, privilegiado e comuns, sem qualquer património para repartir para satisfação dos seus créditos”.
“Conclui-se, assim, pelo preenchimento da alínea d) da norma em apreciação”.
Os recorrentes defendem o contrário, dizendo que “andou mal o Tribunal “a quo” ao partir da premissa de que em 2020 já a sociedade estava em situação de insolvência, por outro lado andou mal o Tribunal “a quo” ao não ponderar os factos à luz da realidade de então, em que por força da situação absolutamente excepcional e sem precedentes de pandemia e perante os problemas por ela ocasionados, a sócia viu-se obrigada a tomar decisões também elas excepcionais, como a entrega de parte dos seus bens, para evitar a resolução do contrato de arrendamento do espaço onde a sua oficina laborava, e fê-lo, no intuito de a crise pandémica passar e, com a esperança de a sua situação melhorar”.  E acrescentam que “a sócia aceitou celebrar a dação única e exclusivamente para evitar a resolução do contrato de arrendamento, pois se tal ocorresse, iria necessariamente perder toda a sua actividade comercial (e, como tal, deixar de facturar), dessa forma agravando a respectiva situação financeira”.  Referem ainda que “nos termos do referido contrato, e para pagamento integral da quantia de €9.000,00 (nove mil euros), a insolvente deu à sociedade F & O, Lda. que aceitou e declarou extinta a dívida, bens móveis a que atribuíram valor igual ao da dívida, mas que valiam menos de 5.000,00€ (…)”.  “Assim, por um lado, foram entregues por um valor muito superior ao que valiam, pelo que a sociedade F & O, Lda. não obteve benefício/proveito (além de que só há que falar em proveito quando o acto de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional, o que não sucede no presente caso), nem a Insolvente sofreu prejuízo”.  “Assim, com a entrega do activo em dação de pagamento, por um valor muito superior ao que o activo valia (porque para extinção de uma divida de €9.000,00) a insolvente e sua gerente não favoreceram credores, nem impediram de forma relevante o ressarcimento de outros, não se traduzindo tal disposição numa disposição em proveito de terceiros, nem colocando em perigo ou retardando a satisfação de credores. Nem nunca houve intenção da devedora de proporcionar vantagens a algum ou alguns credores ou causar prejuízos a outros credores, em detrimento dos demais”.
*
t)  Vejamos:
Há que apurar se o contrato de “dação em cumprimento” foi praticado em benefício da credora “F & O, Ldª”, dado que aquele acto visou o pagamento de créditos desta sobre a insolvente, decorrentes de rendas vencidas, sobre a insolvente.
O proveito exigido para efeitos de preenchimento da previsão do art.º 186º nº 2, al. d) do C.I.R.E. corresponde, por regra, a um benefício que não seja devido e que não corresponda à satisfação de um direito, ou seja, um benefício adquirido pelo administrador ou por terceiro sem qualquer contrapartida ou benefício para a sociedade insolvente, ou, pelo menos, sem uma contrapartida que seja justa e adequada.  Tal proveito poderá ainda corresponder ao benefício que, apesar de devido, não deveria ter sido atribuído e concedido nas concretas circunstâncias em que o foi porque, nessas circunstâncias, ele devia pertencer a outrem (situação que assume particular relevância nas situações de favorecimento de credores que analisaremos mais adiante).  O que ali se pretendeu incluir – enquanto atitude censurável que se considera relevante para efeitos de qualificação de insolvência – foi a situação anómala em que o benefício emergente da disposição dos bens não reverte em favor da pessoa que, naquelas circunstâncias, dele deveria beneficiar, mas sim em favor de outrem, seja ele o administrador da pessoa colectiva a quem pertencem os bens, seja um terceiro.
À luz dessas considerações, cumpre analisar, como já dissemos, se a situação de facto em apreço, ou seja, a dação em cumprimento referida nos Factos Provados 13. a 17., efectuada para pagamento de uma dívida de 9.000€ à credora “F & O, Ldª”, se enquadra, ou não, na supracitada alínea.
 “In casu”, e como resulta dos Apensos de Apreensão de Bens (“B”) e de Liquidação (“D”) está provado que a insolvente dispôs da totalidade dos seus bens.
Tal dação em cumprimento da totalidade do património da insolvente foi efectuada cerca de quatro meses antes de se apresentar à insolvência (dação em pagamento em 28/12/2021 e apresentação à insolvência em 20/4/2021), bem sabendo aquela o peso das suas dívidas, que ascendiam a 84.054,10€ (foi esse o montante dos créditos reconhecidos no processo de insolvência).
Dispôs, assim, a insolvente da totalidade do seu pouco património disponível para solver a sua dívida para com uma credora e, consequentemente, agravou a sua situação de insolvência.
Com efeito, ao subtrair tais bens ao património que iria responder pelos créditos que vieram a ser reclamado, a devedora privou-os de serem ressarcidos (mesmo que parcialmente) pelo produto da venda dos mesmos (sendo que o processo de insolvência foi, inclusive, encerrado por insuficiência da massa insolvente).
E, considerando as circunstâncias em que procedeu, impõe-se concluir que mais não visou a insolvente do que impedir a satisfação dos créditos precisamente através do produto de tal venda.
Nem tem lógica a posição dos recorrentes que a referida dação em pagamento não prejudicou os credores da insolvência, antes os beneficiando, pois com tal contrato extinguiu-se o crédito da “F & O Ldª” no valor de 9.000€.  Sim, o crédito extinguiu-se mas… à custa do prejuízo para os outros credores (e não está aqui em causa qual iria ser a satisfação dos vários créditos reclamados).
Ou seja, tratou-se de um acto que provocou uma desigual distribuição do património entre os credores, beneficiando a aludida credora, deixando os demais credores, privilegiado e comuns, sem qualquer património para repartir para satisfação dos seus créditos.
Mostra-se, pois, preenchida a al. d) do art.º 186º nº 2 do C.I.R.E. e tanto basta para que se conclua, de modo inilidível, pela natureza culposa da presente insolvência (sem necessidade de demonstração do nexo causal entre tal actuação e a situação de insolvência, que veio a ser declarada).
Assim sendo, nesta parte o recurso improcede.
*
u)  Há, agora, que verificar o eventual preenchimento do art.º 186º nº 3, al. a) do C.I.R.E.
De acordo com tal normativo, presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, da insolvente que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.
Trata-se, como já acima se referiu, de uma presunção de culpa grave “juris tantum”, ilidível por prova contrária.  A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se actuou com culpa grave.  Além disso, não se presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, pelo que, para além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.
Ou seja, “in casu” havia que apurar se a omissão dos recorrentes na apresentação à insolvência no prazo previsto no art.º 18º nº 1 do C.I.R.E. (“O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência (…), ou à data em que devesse conhecê-la”) determinou o efectivo agravamento da situação de insolvência, com o consequente prejuízo para os credores.
De salientar ainda o disposto no art.º 18º nº 3 do C.I.R.E., segundo o qual “quando o devedor seja titular de uma empresa presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1, do art.º 20º”.
*
v)  Ora, como é salientado na decisão recorrida, “atentas as datas de incumprimento da insolvente, designadamente no pagamento aos seus fornecedores, serviços de telecomunicações e rendas do estabelecimento, as quais se encontravam em dívida desde Abril de 2020, conclui-se que, pelo menos, em Julho de 2020, já se encontrava impossibilitada de cumprir com a generalidade das suas obrigações.  Todavia, a insolvência apenas veio a ser requerida em 20 de Abril de 2021”.
Defendem os recorrentes que, “à data em que o Tribunal entende ser de presumir o conhecimento da situação de insolvência (Julho de 2020), encontravam-se, como ainda se encontravam na data em que a devedora se apresentou à insolvência, suspensos os prazos para apresentação do devedor à insolvência, previstos no art.º 18º do C.I.R.E.”, por força do “regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença Covid-19”.
Vejamos:
Em Abril de 2020 Portugal vivenciava uma situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS Cov 2 e pela doença Covid-19.
Em consequência de tal, foi publicado o Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13/3, depois, a Lei 1-A/2020, de 19/3, e, mais tarde, a Lei 4-A/2020, de 6/4, resultando deste diplomas legais que, a partir de 7/4/2020, estava suspenso o prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no art.º 18º nº 1 do C.I.R.E..
A Lei nº 31/2023, de 4/7, que determinou a cessação da vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia da doença Covid-19, e que entrou em vigor a 5/7/2023, terminou com a suspensão, entre outros, do prazo do dever de apresentação à insolvência, que durava, como se viu, desde 22/1/2021.
O C.I.R.E. consagra, como vimos, um dever de apresentação à insolvência das empresas que se encontrem nessa situação.  Este dever também existe para as pessoas que desempenham cargos de administradores ou gerentes de empresas que se encontrem insolventes.
Consideram-se em situação de insolvência as empresas ou as pessoas que se encontrem impossibilitadas de cumprir com as suas obrigações vencidas. As empresas consideram-se igualmente em situação de insolvência quando o seu passivo é manifestamente superior ao seu ativo.
O dever de apresentação à insolvência existe para garantir que que quem intervém no tráfego comercial o faz de forma responsável e será capaz de garantir os compromissos assumidos perante os seus credores.
A supra referida suspensão do dever de apresentação à insolvência não impedia nenhum devedor de se apresentar à insolvência, o que continuou, naturalmente, a ser possível, nem impedia que algum terceiro pudesse requerer a insolvência de um devedor.
O fim da suspensão do prazo de apresentação à insolvência veio a ter a seguinte consequência prática:  Uma vez que é de 30 dias o prazo para cumprir o dever de apresentação à insolvência (contados da data em que o devedor teve, ou devesse ter tido, conhecimento de que se encontrava em situação de insolvência) tal significa que, os devedores obrigados à apresentação à insolvência, que tiveram conhecimento de tal situação no decurso da suspensão do prazo, deveriam dar cumprimento a tal dever até ao dia 5/8/2023.
*
w) “In casu” verifica-se, como acima se referiu, que:
-Desde Julho de 2020 que a devedora tinha conhecimento da sua situação de insolvência.
-De acordo com a Lei, devia requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes a tal situação, isto é, até Agosto de 2020.
-A insolvência veio a ser requerida em 20/4/2021.
No entanto:
-Desde 7/4/2020 que se encontrava legalmente suspenso o prazo de apresentação à insolvência.
-Em 5/8/2023 cessou tal suspensão legal.
Deste modo, teremos de concluir que, na altura em que a devedora teve conhecimento da sua situação de insolvência, o prazo para se apresentar à mesma encontrava-se suspenso por força de Lei.  Além disso, a insolvente veio a requerer a insolvência ainda num período temporal em que o prazo para tal se encontrava suspenso.
Temos, pois, de concluir que não é possível qualificar a insolvência como culposa por inaplicabilidade ao caso do disposto no art.º 186º nº 3, al. a) do C.I.R.E..
Procede, pois, o recurso nesta parte.
*
x)  Concluindo quanto à questão da qualificação da insolvência:
É de qualificar a presente insolvência de “C… Unipessoal, Ldª” como culposa, por força do disposto no art.º 186º nº 2, al. d) do C.I.R.E. (mas não pelo estipulado no art.º 186º nº 3, al. a) do C.I.R.E.).
*
y)  Cumpre agora determinar se a qualificação da insolvência como culposa deve abranger o recorrente AF, isto é, se deve ele ser afectado por tal qualificação.
Dispõe o art.º 189º nº 2, al. a) do C.I.R.E. que, “na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o Juiz deve:  a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa”.
Sustenta o apelante que “não deverá o recorrente AF ser afectado por tal qualificação, até porque (…), é manifesto que (…) nunca exerceu de facto as funções de gerente daquela rudimentar oficina”.  Segundo defende, “não resulta do elenco de factos provados, nem da douta sentença no seu todo, qualquer intervenção na gestão da insolvente por parte do recorrente AF”, sendo que “a única intervenção que teve, suscetível de se enquadrar em “acto de gerência” foi a assinatura do contrato de dação, no entanto, não passou disso, da mera aposição de assinatura (por exigência do representante da sociedade senhoria, e apenas porque AF resultava na certidão comercial da sociedade, como gerente), sendo certo que tal contrato não foi consigo discutido, não foi por si decidido, e AF não teve qualquer “voto na matéria”, nem intervenção, para além da mera aposição da sua assinatura”.
Segundo se refere na decisão recorrida, o apelante “foi designado gerente numa data em que a insolvente já atravessava largas dificuldades económicas.  Todavia, constata-se que este ainda veio a ter intervenção na gestão da insolvente, participando até na celebração do contrato de dação em cumprimento celebrado com a sociedade F & O, Ldª”.
Vejamos:
Está provado que em 26/6/2020 o recorrente AF foi designado gerente da insolvente, qualidade que manteve.
Para efeitos do C.I.R.E., nos casos em que o devedor não seja pessoa singular, como é o caso da sociedade insolvente, que é uma sociedade comercial por quotas unipessoal, são considerados administradores aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da sociedade, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente (art.º 6º nº 1, al. a) do C.I.R.E.).
Conforme decorre desse preceito, bem como, entre outros, dos artºs. 186º e 189º do C.I.R.E., os administradores, que, nas sociedades por quotas, nomeadamente nas sociedades unipessoais por quotas, se designam por “gerentes”, podem ser de direito ou de facto.
O “gerente” é a pessoa que gere ou administra os negócios jurídicos e o património de outrem.
Sendo as pessoas coletivas, onde se inserem as sociedades comerciais, organizações constituídas por uma coletividade de pessoas ou por uma massa de bens, dirigidos à realização de interesses comuns ou colectivos, às quais a ordem jurídica atribui personalidade e capacidade jurídica, diversamente do que acontece quanto às pessoas singulares, aquelas não têm uma vontade individual própria, nem actuam na ordem jurídica por si e em sua representação, mas a vontade daquelas é necessariamente a vontade dos órgãos a quem a lei atribui competência para decidir as diversas matérias que digam respeito à pessoa colectiva e para a representar.
São esses órgãos que terão, assim, de formar a vontade colectiva, própria da pessoa colectiva, e de actuar no tráfego jurídico em nome e em representação desta.
Daí que a vontade da pessoa colectiva tem de corresponder, necessariamente, à vontade do órgão a quem a lei reconhece legitimidade para formar essa vontade colectiva sobre os vários assuntos que lhe digam respeito, e serão esses órgãos que terão de actuar no tráfego jurídico, em nome e em representação da sociedade, pelo que, a administração e a representação das pessoas colectivas são necessariamente orgânicas.
Nas sociedades unipessoais por quotas, o sócio único desta exerce as competências próprias das assembleias gerais, podendo, designadamente, nomear gerentes (art.º 270º-E, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais), sendo a esse tipo de sociedades aplicáveis as normas que regulam as sociedades por quotas, salvo as que pressupõem a pluralidade de sócios (art.º 270º-G do Código das Sociedades Comerciais).
Nas sociedades unipessoais por quotas, a gerência é o órgão social a quem, nos termos do disposto no art.º 252º do Código das Sociedades Comerciais, compete a administração e a representação da sociedade.
Para o efeito, o art.º 259º do mesmo Código, atribui à gerência a competência para praticar todos os actos que sejam necessários ou meramente convenientes para a realização do objecto social.
Por isso, é à gerência das sociedades unipessoais por quotas que cumpre o dever fundamental de a administrar, conduzindo a actividade social, estando nesse poder compreendido, em geral, a prática de todos os actos que não estejam reservados à competência de outro órgão, e também é à gerência que cabe o poder de representar a sociedade, de modo que os atos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam a sociedade perante terceiros (art.º 260º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais), sem prejuízo dos sócios poderem limitar os poderes dos gerentes (art.º 246º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais) – cf. Menezes Cordeiro, in “Código das Sociedades por Quotas Anotado”, 4ª ed., pg. 910.
Os administradores ou gerentes de direito são aqueles que foram formalmente investidos no cargo de administradores (no caso de sociedade anónima) ou de gerentes (no caso de sociedade por quotas ou de sociedades unipessoais por quotas).  E são administradores ou gerentes de facto os que, sem título bastante, exercem, directa ou indirectamente e de modo autónomo (não subordinadamente), funções próprias de administrador ou gerente de direito da sociedade, cabendo aqui os casos em que a designação da pessoa como administrador ou gerente é nula, os casos em que o título, originariamente válido, caducou ou foi extinto e, ainda, os casos em que não existe qualquer título, válido ou inválido, de nomeação (cf. Coutinho de Abreu, in “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades”, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Caderno nº 5, 2007, pg. 99).
Saliente-se que a administração e a representação da sociedade que é exercida pelos administradores ou gerentes de facto da sociedade, nos casos de nomeação de gerente de direito, exige necessariamente a conivência e o comportamento (activo e passivo) por parte dos administradores ou gerentes de direito, na medida em que os últimos terão de assinar a documentação exigida por lei, necessária à administração e à representação da sociedade, e que é imposta pelos negócios que celebre, além de que terão de consentir que os gerentes de facto exerçam os poderes de gerência da sociedade, abstendo-se eles próprios de os exercerem.
Daí que a essa atuação conjunta entre gerentes de direito e de facto presida necessariamente um acordo celebrado entre os mesmos, ainda que tácito, mediante o qual criam, ao nível do tráfego jurídico, uma divergência entre, por um lado, a realidade jurídica e, por outro, a realidade material ou ontológica, na medida em que, na aparência e em termos jurídicos e formais, a sociedade é administrada e representada pelos seus administradores ou gerentes de direito, que assinam os documentos necessários à administração e representação desta, quando essa administração e representação é em termos efetivos, materiais e ontológicos exercida por outra pessoa, o gerente de facto, que é quem, efectivamente, decide os destinos da sociedade.
Por mero efeito da nomeação para o cargo de gerente de direito, este fica automaticamente investido no dever fundamental de gerir e de representar a sociedade, para o que lhe são conferidas todas as competências para praticar todos os actos necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios (art.º 259º do Código das Sociedades Comerciais), mas também numa série de outros deveres que lhe são atribuídos por lei, pelo contrato de sociedade ou pelos estatutos desta.
Note-se que esses deveres são poderes-deveres, ou seja, poderes funcionalizados, que são concedidos ao gerente de direito como efeito automático da sua nomeação para o cargo de gerência, mas que este tem de exercer com vista a serem alcançadas determinadas finalidades e segundo determinadas regras legal ou contratualmente estabelecidas.
Os gerentes de direito não são, assim, livres de exercerem ou de deixarem de exercer os poderes de gerência que a lei, o contrato de sociedade e os estatutos lhes conferem, nem os podem exercer a seu “bel prazer”, mas antes terão de os assumir e cumprir e, bem assim, de os exercer segundo determinadas regras impostas legal e contratualmente.  Na verdade, no exercício dos poderes-deveres ou funcionalizados que a lei, o contrato de sociedade e os estatutos lhes conferem, é dever fundamental dos gerentes administrarem e representarem a sociedade (cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 7/6/2023, Relator José Alberto Moreira Dias, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
No cumprimento desse dever fundamental, mas também dos deveres legais específicos e contratuais, nos termos do art.º 64º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais, os gerentes ou administradores devem observar deveres de cuidado (revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gerente criterioso e ordenado) e deveres de lealdade (no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores).
Por via da nomeação para o cargo de gerente, o gerente de direito fica imediatamente investido no cargo e, em consequência, submetido ao dever fundamental de gerir e representar a sociedade, mas também a uma panóplia de outros deveres legais, contratuais e estatutários.
Sempre que os gerentes deixem de exercer os poderes-deveres de gerência que lhe são impostos por lei, pelo contrato de sociedade e/ou pelos estatutos e em que ficam automaticamente investidos por via da sua nomeação para o cargo de gerência, ou sempre que exerçam esses poderes funcionalizados erroneamente, nomeadamente, desviando-os dos fins a que se destinam e para os quais lhes foram concedidos, essas suas condutas activas ou omissivas são susceptíveis de constituir justa causa de destituição das funções de gerência e de os fazer incorrer em responsabilidade civil perante a sociedade (art.º 72º do Código das Sociedades Comerciais), os credores sociais (art.º 78º do Código das Sociedades Comerciais), os sócios e terceiros (art.º 79º do Código das Sociedades Comerciais) e de os constituir, inclusivamente, em responsabilidade criminal.
Revertendo ao caso “sub judice”, verifica-se que o apelante é o único gerente da sociedade insolvente, pelo que é a ele que, nos termos da lei, do contrato de sociedade e dos estatutos, incumbem os poderes fundamentais de administrar e representar a sociedade devedora.
Para além desses deveres essenciais e fundamentais de ter de gerir e representar a sociedade devedora, aquele também ficou automaticamente investido, por mera decorrência de ter sido nomeado para o cargo de gerência daquela sociedade, de uma série de outros poderes e deveres que lhe são impostos por lei, nomeadamente, no Código das Sociedades Comerciais, C.I.R.E., Código Penal, etc., pelo contrato de sociedade e pelos estatutos da sociedade devedora.
O apelante não é livre de exercer esses poderes de gerência ou de os exercer como bem entender, mas tem de os exercer para os fins para que os mesmos lhe foram concedidos, segundo o grau de exigência de um gestor criterioso e ordenado (art.º 64º nº 1, al. a) do Código das Sociedades Comerciais), de boa fé, prosseguindo, em primeira linha, os interesses da sociedade, subsidiariamente, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e, finalmente, ponderando nos interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, como trabalhadores, clientes e credores (art.º 64º nº 1, al. b) do Código das Sociedades Comerciais).
Ora, alega o recorrente AF que quem geria e representava a sociedade devedora, não era ele, e que a única intervenção que teve, suscetível de se enquadrar em “acto de gerência” foi a assinatura do contrato de dação em cumprimento em causa, no qual se limitou a apor a sua assinatura.
No entanto, estando ele designado como gerente da sociedade (gerente de direito), após a renúncia da recorrente CF, torna-se incompreensível qualquer atitude omissiva da sua parte.  Com efeito, estava ele legal e contratualmente investido em funções às quais não podia renunciar ou deixar de exercer, e se se absteve de as exercer tal constitui uma violação frontal dos seus deveres legais, contratuais e estatutários.
Com efeito, “um administrador, devidamente nomeado e cuja designação foi registada, que não exerce qualquer acto de gerência é um gerente que viola o fundamental dever de cuidar, de administrar, previsto no art.º 64º do CSC.  Não é um gerente isento de responsabilidade, é um gerente que já se colocou em situação de ilicitude.  Um administrador de direito que não exerce, de facto, está, por opção, ou seja, com dolo, a não cumprir o dever de cuidar, ao menos na modalidade do dever de controlo” (cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 23/3/2021, Relatora Fátima Reis Silva, consultado na “internet” em www.dgsi.pt), que o “obriga a prestar atenção à evolução económico-financeira da sociedade e ao desempenho de quem gere (administradores e outros sujeitos, designadamente trabalhadores de direção)” – cf. Coutinho de Abreu, in “Deveres de Cuidado e de Lealdade dos Administradores e Interesse Social, Reformas do CSC”, IDE 5, Colóquios nº 3, 2007, pgs. 20 e 21).
Por isso, é que se compreende que quando os gerentes de facto adotem, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência da sociedade devedora, condutas, activas ou omissivas, dolosas ou gravemente negligentes e, em consequência de tais condutas criem ou agravem o estado de insolvência daquela (art.º 186º nº 1 do C.I.R.E.), ou sempre que adoptem, nos três anos anteriores ao inicio do processo de insolvência, uma das condutas típicas previstas numa das diversas alíneas do art.º 186º nº 2 do C.I.R.E., que levam a que se presuma ou ficcione jurídica e inilidivelmente que a insolvência da sociedade devedora é culposa, ou sempre que adoptem, naquele período, uma das condutas típicas elencadas numa das duas alíneas do art.º 186º nº 3 do C.I.R.E., que leva a que se presuma elidivelmente a culpa grave da assunção dessas condutas e quando adicionalmente se prove que essas condutas criaram ou agravaram o estado de insolvência da sociedade devedora, pelo que a insolvência desta tem de ser qualificada como culposa, tais condutas, nos termos do disposto no art.º 186º nº 1 do C.I.R.E., têm de ser imputadas quer ao gerente de facto (por ser o sujeito que materialmente as adotou), quer ao gerente de direito (por ser o sujeito que, nos termos da lei e do contrato de sociedade, competia gerir e representar a sociedade e que, em fraude à lei, ao contrato social e aos estatutos, portanto, dolosamente e com grave lesão dos seus poderes-deveres funcionais – ilicitamente – se absteve de gerir e administrar a sociedade e consentiu não só que outrem – o gerente de facto – a gerisse e representasse, em sua substituição, e com essa sua gerência de facto levasse à criação ou ao agravamento do estado de insolvência da sociedade devedora, como omitiu, ilícita e dolosamente o dever de controlar a atividade de gerência exercida pelo gerente de facto.
Com efeito, o art.º 186º nº 1 do C.I.R.E., ao reportar-se tanto aos administradores de direito como de facto, não teve por propósito desresponsabilizar os administradores ou gerentes de direito da sociedade insolvente pelos actos ilícitos, dolosos ou gravemente negligentes praticados pelos administradores de facto nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência que criaram ou agravaram o estado de insolvência da sociedade, mas antes o de estender essa responsabilidade também aos administradores de facto, ou seja, àqueles que praticaram actos de administração ou gerência sem que se encontrassem legalmente nomeados para o exercício desse cargo, e sem que, por isso, dispusessem de qualquer legitimidade nem competência para os praticar e, por via dessa sua actuação ilícita, dolosa ou gravemente negligente levaram à criação ou ao agravamento do estado de insolvência da sociedade devedora, até porque solução diversa seria uma aberração jurídica (cf. o já citado Acórdão da Relação de Guimarães de 7/6/2023, Relator José Alberto Moreira Dias, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Daí que os gerentes de direito, a par dos gerentes de facto, não possam deixar de ser afectados pela qualificação da insolvência da sociedade como culposa.
Ao que se acaba de dizer, não obsta o facto de o apelante AF afirmar ter-se mantido à margem da gerência da sociedade e de desconhecer tudo o que se relacionava com a gerência desta.
Com efeito, se o apelante se manteve à margem da gerência da sociedade devedora e se desconhecia tudo o quanto se relacionava com a gerência desta, limitando-se a “assinar” um contrato, “sibi imputet”, já que não desconhecia, nem podia desconhecer que, tendo sido nomeado para o cargo de gerente da sociedade, ficou automaticamente investido no dever fundamental de gerir e representar a sociedade, além de uma panóplia de outros poderes-deveres que, enquanto único gerente da sociedade, lhe competia exclusivamente exercer, tendo em vista a prossecução dos interesses para que estes lhe foram conferidos (em primeira linha, os interesses da sociedade) abstendo-se ele próprio, por opção, de controlar os actos de gerência.
E mesmo que não tivesse competência ou habilitações para exercer as funções de gerência para que foi nomeado, naturalmente que não as devia ter assumido, tanto mais que sendo pessoa adulta é de presumir ter plena consciência das suas competências e capacidades.
Em face do exposto, teremos de concluir que a qualificação da insolvência como culposa deve abranger o recorrente AF, isto é, deve ele ser afectado por tal qualificação, motivo pelo qual o recurso, nesta parte, improcede.
*
z)  Há agora que apurar se foi adequado o período de inibição fixado aos recorrentes CF e AF.
O Tribunal “a quo” declarou a afectação dos recorrentes pela qualificação da insolvência, decretando a inibição de CF para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de quatro anos e de AF por um período de três anos.  Mais determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos recorrentes condenando-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.  Por fim, condenou-os, solidariamente, a indemnizarem os credores da devedora no montante total de 61.985.60 €, até à força do respectivo património.
Segundo defendem os apelantes, não foi feita qualquer ponderação do grau de ilicitude e culpa dos afectados, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa ou deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa.
Ora, como é pacificamente apontado pela jurisprudência “na ponderação da duração do período de inibição deve levar-se em conta a gravidade da conduta da pessoa afectada com a qualificação culposa da insolvência, as repercussões do comportamento, o grau de culpa (actuação dolosa ou com culpa grave, sendo que no primeiro caso é relevante a natureza do dolo) e o contributo para a situação de insolvência (balizado entre um comportamento que determinou directamente a situação de insolvência e outro que apenas agravou a mesma)” (cf. Acórdão do S.T.J. de 6/9/2022, Relator José Rainho, consultado na “internet” em www.dgsi.pt),
“In casu”, e em relação a ambos os recorrentes verifica-se a concorrência de causas exógenas para a situação de insolvência (a situação pandémica e a consequente crise de todos os sectores que suportam a economia).  No entanto, a conduta de ambos os apelantes foi causadora do agravamento da situação de insolvência.

Ambos os recorrentes agiram com dolo e a sua conduta preencheu apenas uma circunstância qualificadora (prevista no art.º 186º nº 2, al. d) do C.I.R.E.).
Ainda assim, há que fazer uma distinção entre a conduta da recorrente e a conduta do recorrente.
Na verdade, foi durante a gestão da apelante CF que se praticaram factos que precipitaram a posterior situação de insolvência da “C… Unipessoal, Ldª”.  Com efeito, apercebeu-se aquela, desde Julho de 2020, da situação de insolvência da sociedade.  Porém, entre Junho de 2020 e Dezembro de 2020, não se coibiu de adquirir peças e acessórios automóveis à “Autocrescente, Comércio de Automóveis, Ldª”, à “E., Ldª” e à “PeçasRam – Comércio de Peças e Acessórios, Ldª” no valor, respectivamente, de 707,79€, 23.788,03€ e 24.353,20€.  Além disso, não se inibiu de contrair um novo crédito, cujo fim se desconhece, em nome da insolvente dias antes de renunciar à gerência.  Contribuiu, assim, de forma clara e evidente, para a insolvência da empresa.
Por seu turno, o recorrente AF deu continuidade à contração de novas obrigações, não apresentando a sociedade à insolvência, vindo a esvaziá-la de património com o contrato de dação em cumprimento, celebrado em 28/12/2020, no qual a anterior gerente também teve intervenção, na qualidade de sócia.
A inibição da apelante CF foi decretada pelo período de quatro anos.
A inibição do recorrente AF foi decretada pelo período de três anos.
Considerando as condutas de ambos, o seu concurso para a ocorrência da insolvência da empresa, e a circunstância de entendermos que apenas se verifica uma circunstância qualificativa da insolvência (e não duas, como entendeu o Tribunal “a quo”, afigura-se-nos ser de reduzir as medidas de inibição fixadas, tendo-se por adequadas outras mais próximas do mínimo legal previsto.
A inibição da apelante CF foi decretada pelo período de quatro anos e passará para os três anos.
A inibição do recorrente AF foi decretada pelo período de três anos e passará para os dois anos e meio.
Assim sendo, o recurso procede nesta parte.
*
aa) Por fim, vejamos se os apelantes CF e AF deviam ser eles condenados em indemnização.
O art.º 189º nº 4 do C.I.R.E. dispõe que o Juiz deve fixar a indemnização devida ou, se tal não for possível por indisponibilidade dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, deve fixar os critérios a utilizar para a sua quantificação a efectuar em liquidação de sentença.
Ora, o Tribunal condenou os recorrentes, solidariamente, a indemnizar os credores da devedora no montante total de 61.985,60 €, até à força do respectivo património.
Defendem os recorrentes que “na fixação do montante indemnizatório deveria o Tribunal “a quo” ter ponderado o grau de ilicitude e culpa de cada um dos afectados, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.  O que não ocorreu no presente caso, pois em momento algum o Tribunal de 1ª instância se pronuncia acerca da gravidade dos factos imputados a cada um dos afectados nos presentes autos, e nomeadamente qual a concreta contribuição de cada um deles no criar ou agravar o estado de insolvência”.  Mais referem que “esta condenação dos afectados, aqui recorrentes, por excessivamente severa e desproporcional, mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação, conforme previstos no artigo 18º, nº 2 da CRP”.
Neste ponto vamos citar o Acórdão da Relação de Lisboa de 24/1/2023, Relatora Teresa de Sousa Henriques, consultado na “internet” em www.dgsi.pt:
“Soveral Martins, refere que, tendo em conta que a responsabilidade entre os afectados é solidária, parece que a fixação do grau de culpa que o art.º 189º, nº 2, al. a) manda efectuar terá relevo no plano interno, mas não na fixação do valor das indemnizações devidas por cada um dos afectados pela qualificação, sendo uma responsabilidade por dívida de terceiro que resulta da lei em consequência do que justificou que o sujeito em causa fosse considerado afectado pela qualificação.  E continua referindo que se verifica uma responsabilidade que não parece depender nem da prova da existência da culpa do afectado pela não satisfação dos créditos nem sequer da prova de um nexo causal entre o respectivo comportamento e essa não satisfação.  Acrescenta que daí se aluda a uma dimensão punitiva desta responsabilidade concluindo que o regime pode ser bastante gravoso para os afectados podendo a desproporção, eventualmente, conduzir a um juízo de inconstitucionalidade”.
“Também Maria do Rosário Epifânio coloca interrogações quanto ao preenchimento dos factos constitutivos da responsabilidade extracontratual”.
“Catarina Serra aponta uma desconformidade na redaçção do texto legal, enquanto na al. e) se alude a “montante dos créditos não satisfeitos”, no nº 4 alude-se a “prejuízos sofridos” sugerindo interpretações com recurso a presunções para superar a desconformidade ou evitar a inutilização do nº 4”.
“A responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana prevista no C.I.R.E. é diferente da responsabilidade civil a que se reposta o art.º 483º do CCiv”.
“Na última são requisitos necessários: o facto (ou omissão) voluntário praticado pelo agente lesante; a ilicitude(violação de direitos subjectivos alheios ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios; a culpa que se exprime através de um juízo de censura; o dano[patrimonial e/ou não patrimonial, se for o caso] e o nexo de causalidade entre o facto/omissão e o dano”.
“No C.I.R.E. esta responsabilidade é: i) subsidiária (só se verifica em caso de insuficiência do património do devedor); ii) solidária (entre os afectados pela qualificação) e; iii) limitada pois tem como montante máximo os créditos não satisfeitos e exclui danos não patrimoniais”.
“Maria do Rosário Epifânio considera que se enquadra na responsabilidade insolvencial extracontratual subjectiva”.
“Efectivamente entende-se, como entende a maioria da jurisprudência, que a circunstância de se ter taxativamente consagrado por via legislativa a culpa e o nexo de casualidade entre esta e o dano não dispensa o julgador, na atribuição da indemnização (que é unicamente o que aqui está m causa), de fixar o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da conduta”.
“Como se referiu no Ac. STJ de 22.06.2021 “I – A qualificação como culposa de uma insolvência – consistindo no escrutínio das condições em que eclodiu ou se agravou uma situação de insolvência – tem em vista “moralizar o sistema”: aplicar certas medidas/sanções ao(s) culpado(s) por tal criação ou agravamento, não permitindo que, havendo culpado(s), o(s) mesmo(s) passem(m) “impune(s)”. II – O que não significa que tais medidas/sanções – maxime, a indemnização consagrada no art.º 189º, nº 2, al. e), do C.I.R.E. – devam ser impostas automaticamente, sem quaisquer limites e fora de quaisquer exigências ou controlo de proporcionalidade (ou de não desproporcionalidade). III – Assim, no caso de indemnização consagrada no art.º 189º, nº 2, al. e), do C.I.R.E., será atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que o afectado alegou e provou em sua “defesa”) que o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas. IV – E entre as circunstâncias com relevo para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o factor/grau de culpa da pessoa afectada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o factor/proporção em que o comportamento da pessoa afectada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização. V – Não perdendo o juiz de vista, na fixação das indemnizações, que a responsabilidade consagrada no art.º 189º, nº 2, al. e), do C.I.R.E. (sobre as pessoas afectadas pela qualificação da insolvência como culposa) tem uma função/cariz misto, ou seja, sem prejuízo da sua função/cariz ressarcitório, tem também uma dimensão punitiva ou sancionatória (da pessoa afectada/culpada na insolvência), pelo que a observância do princípio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável””.
“No Ac. TRL de 22.02.2022 entendeu-se que “5. O regime legal plasmado no art.º 189º do CIRE, quanto à indemnização devida aos credores da insolvência, deve ser interpretado, com base numa leitura integrada do texto vertido no seu número 2, alínea e) e número 4 e a exigência de uma leitura conforme ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que a indemnização devida pela entidade afectada pela qualificação deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o activo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, salvaguardando-se, no entanto, que esse valor possa ser fixado em montante inferior sempre que o comportamento da pessoa afectada pela qualificação justifique essa diferenciação, mormente por ser diminuta a medida da sua contribuição para a verificação dos danos patrimoniais em causa, assim mitigando o recurso àquele critério exclusivamente aritmético e que, por isso, em determinadas circunstâncias, pode ser redutor””.
“Também Catarina Serra no recente artigo publicado na Revista Julgar “O factor que pode e deve ser ponderado e tem efeitos sensíveis na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade, é um único: a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/ a medida da participação efectiva de cada um.(...) A qualificação da insolvência como culposa pressupõe sempre a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta e a criação ou o agravamento da insolvência (a causalidade preenchedora da responsabilidade civil)”.
No caso “sub judice” verifica-se que o Tribunal “a quo”, na fixação da indemnização a pagar pelos recorrentes, tomou como ponto de partida o valor dos créditos reconhecidos, resultante da lista apresentada pelo Administrador da Insolvência, nos termos do art.º 129º do C.I.R.E. (ver Apenso “A”), apurando o montante de 84.054,10 €;  a esse valor subtraiu 13.068,50 €, valor dos créditos do recorrente cuja perda foi determinada na decisão recorrida;  em relação ao crédito da sociedade “F & O, Ldª”, e considerando que o contrato de dação em cumprimento se manteve em vigor, foi subtraído no crédito daquela sociedade o montante de 9.000 €, valor dos bens dados em pagamento.
Foi, assim, fixado o valor da indemnização em 61.985,60 € (84.054,10 € - 13.068,50 € - 9.000 € = 61.985,60 €).
Dizem os recorrentes que o Tribunal de 1ª instância, para determinar tal valor, a pagar por eles solidariamente, não ponderou o grau de ilicitude e culpa de cada um dos afectados, e “em momento algum” o Tribunal “a quo” se pronunciou acerca da gravidade dos factos imputados a cada um dos afectados.
Ora, como refere Catarina Serra (in Revista Julgar nº 48, Setembro 2022, pgs. 26 a 31): “Resulta agora, inequivocamente, do articulado que o montante dos créditos não satisfeitos é só o montante máximo da indemnização (…).  O montante dos créditos não satisfeitos deixa de poder ser utilizado como ponto de partida ou como padrão para o cálculo da indemnização e o (…) critério, disponibilizado no art.º 189º, nº 4, passa a ser o montante dos prejuízos sofridos.  Ao montante dos créditos não satisfeitos resta imputar uma única função:  a de limitar o montante da indemnização (…).  Com isto o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória e (re)aproxima-se do regime geral da responsabilidade civil, com um desvio, atendendo à fixação de um (do tal) máximo.  Traduz-se isto, em suma, na máxima de que devem ser indemnizados (só) os danos (cfr. art.º 483º do CC) mas não necessariamente todos os danos.  (…) O factor que pode e deve ser considerado e tem efeitos sensíveis na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade, é um único:  a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/a medida da participação efectiva de cada um.  (…) A qualificação da insolvência como culposa pressupõe sempre a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta e a criação ou o agravamento da insolvência (a “causalidade fundamentadora” da responsabilidade civil), mas esta não basta para responsabilizar os sujeitos afectados; deve ainda verificar-se a causalidade entre a conduta e os danos (a “causalidade preenchedora” da responsabilidade civil).  (…) é preciso apurar a diferença entre a situação que existe e a situação que existiria se a conduta ilícita não tivesse tido lugar – apurar, mais precisamente, o dano diferencial. (…) Cumpre ao juiz discriminar, sobretudo, entre as condutas criadoras e as condutas agravadoras da situação de insolvência.  Na prática, o dano causado pelas primeiras é susceptível de se aproximar do montante dos créditos não satisfeitos.  Relativamente ao dano causado pelas segundas, esta proximidade nunca se verifica”.
Em nosso entender, na decisão em apreço, a apreciação da culpa foi devidamente efectuada na parcela decisória referente aos -períodos de inibição dos apelantes e, vindo a questão da indemnização imediatamente a seguir, entendeu-se, por redundante, estar de novo a apreciar tal matéria.
Por outro lado, não se vê que tenham sido violados os princípios da proporcionalidade e da adequação, previstos no art.º 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, “in casu” releva a mediana ilicitude da conduta dos recorrentes, acolhida pelo Tribunal recorrido nas medidas de inibição de 4 e de 3 anos que decretou, não muito longe do limite mínimo legal de 2 anos (sendo o máximo de 10 anos).
Releva ainda o encerramento do processo de insolvência com fundamento em insuficiência da massa, na sequência do acto dos recorrentes que celebraram o contrato de dação em pagamento que impossibilitou, totalmente, a satisfação (ainda que parcial) dos credores.
Assim sendo, afigura-se-nos que a indemnização imposta não pode ser avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável, atenta a violação dos deveres gerais de gerente e de sócia.
*
bb) Resumindo, diremos que o recurso procede parcialmente, nos termos que ficarão expostos na parcela decisória do presente Acórdão.

*  *  *

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em:
1º- Alterar a matéria de facto nos termos supra expostos.
2º- Conceder provimento parcial ao recurso e, nessa medida, alteram-se as alíneas b) e e) do Dispositivo da Sentença recorrida, passando a constar das mesmas:
“b) Declaro AF inibido para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa durante o período de dois anos e seis meses”.
“e) Declaro CF inibida para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa durante o período de três anos”.
3º- No mais, confirma-se a decisão recorrida.
Custas:  Pelos recorrentes na proporção de 3/4 (art.º 527º do Código de Processo Civil).
 
Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 13 de Setembro de 2024
Pedro Brighton
Teresa Sousa Henriques
Isabel Fonseca