LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
CITAÇÃO
CÔNJUGE
INSOLVENTE
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Sumário

1. Para além das normas especialmente previstas pelo CIRE, reguladoras da atividade de apreensão e liquidação a cumprir no processo de insolvência, na falta e/ou insuficiência destas o art.º 17º, nº 1 do CIRE remete subsidiariamente para as disposições do CPC, quer gerais, quer as do processo executivo comum, que se aplicam ao processo de insolvência desde que compatíveis com os princípios que o definem e caracterizam, designadamente, os da universalidade e da concursalidade.
2. A citação do cônjuge do insolvente nos termos e para os efeitos do art.º 786º, nº 1, al. a) do CPC não se aplica ao processo de insolvência posto que o estatuto processual do executado ao qual aquele fica equiparado e as normas da execução para que este estatuto remete não são compatíveis com a natureza universal e concursal do processo de insolvência, que obriga à apreensão e excussão de todo o património penhorável do devedor para máxima satisfação de todo o seu passivo, independentemente da natureza singular ou comum dos seus passivo e ativo, de o ativo incluir imóvel que constitui a casa de morada de família do devedor insolvente, e do estado civil deste.

(Da responsabilidade da relatora, cfr. art.º 663º, nº 7 do CPC.)

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I – Relatório:
1. No âmbito do processo de insolvência (apresentação) de A., declarada por sentença de 15.03.2023, em 04.03.2024 B. requereu seja decretada a nulidade da liquidação, mais concretamente, do procedimento de venda do imóvel apreendido para a massa insolvente por falta de cumprimento da sua citação nos termos dos arts. 786º, nº 6, 1ª parte, 187º al. a), 188º, nº 1, al. a), e 198º, nº 2 do CPC. Mais arguiu a inconstitucionalidade do art.º 34º do CPC e do art.º 1682º-A, nº 2 do Código Civil se interpretado no sentido de excluir a aplicação dessas normas às pessoas que vivam em união de facto nos termos previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 7/2001 de 11.05.
Em fundamento alegou que o imóvel apreendido constitui a morada da família por ele constituída com a insolvente, com quem vive há 19 anos em união de facto em condições análogas às dos cônjuges nos termos da Lei nº 7/2001 de 11.05, e o filho de ambos; que “não foi citado para exercer os seus direitos” e, por analogia com acórdão desta Relação de 09.11.2004 que cita, a liquidação não poderia prosseguir sem que fosse citado nos termos adaptados dos arts. 786º, nº 1, al. a) e 787º, nº 1 do CPC ex vi art.º 17º do CIRE, considerando que no requerimento de apresentação à insolvência a insolvente informou que vivia e vive em união de facto; que na qualidade de companheiro da titular do bem próprio, o princípio da proteção da economia familiar lhe permite arguir a nulidade em defesa dos interesses relativos ao património familiar como um interesse próprio; que a alienação da casa de morada de família carece sempre do consentimento de ambos os cônjuges, regime que, segundo o dito acórdão, tem aplicação na união de facto e permite ao unido de facto exercer os seus direitos relativamente a tais bens, nomeadamente, os mesmos que a lei processual confere ao insolvente relativamente a tais bens. Indicou uma testemunha.
2. Pronunciaram-se o Ministério Público, o AI, e o credor hipotecário pugnando todos pela improcedência da nulidade arguida por entenderem que a lei não impõe a citação do outro membro da união de facto nos termos reclamados pelo recorrente. Alegaram, em síntese: o primeiro que a proteção legal das situações de união de facto prevista pela Lei nº 7/2001 restringe-se a alguns aspetos da relação matrimonial e o direito de proteção da casa de morada de família só assume expressão no caso de dissolução da união de facto; o segundo que as medidas de proteção da união de facto não prevê a regulação de efeitos patrimoniais desta resultante e a proteção da casa de morada de família restringe-se aos casos de rutura da união de facto, por vontade, ou por morte de um dos seus membros, que até à notificação do pedido a que responde desconhecia a identidade do unido de facto com a insolvente porque não foi por esta indicado, na declaração de rendimentos do ano de 2021 que juntou aos autos consta identificada como solteira, e apesar de ter tentando não conseguiu contactar com a insolvente por total falta de colaboração desta com o AI, concluindo que a arguição da nulidade a que responde é uma manobra dilatória para protelar a liquidação; e o ultimo, aderindo aos fundamentos alegados pelo MP e pelo AI, mais alegou que o reclamante não tem qualquer direito de propriedade sobre o imóvel.
Pelo credor foi junta decisão que em 04.01.2023 julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelo reclamante contra a penhora do mesmo imóvel realizada no âmbito da execução 301/14.0T8ALM-C instaurada pelo credor hipotecário contra a insolvente.
3. Por decisão proferida em 9.04.2024 o tribunal recorrido concluiu pela não obrigatoriedade de citação do membro da união de facto para os termos do processo, julgou não verificada a nulidade, e indeferiu o pedido de anulação do processado com a seguinte fundamentação de direito:
A Lei n.º 7/2001, de 11.05, consagra medidas de protecção das uniões de facto, definida enquanto a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos (art.º 1º).
Em particular, as pessoas que vivem em união de facto têm direito a «Protecção da casa de morada de família, nos termos da presente lei» - art.º 3º alínea a) – ou seja, exclusivamente em caso de ruptura da união de facto e em caso de morte de membro da união de facto, nos termos expressamente delimitados nos artigos 4º e 5º da Lei.
Não se prevê outra regulação da protecção da casa de morada de família, não existindo qualquer equiparação absoluta das uniões de facto às relações jurídicas emergentes do casamento.
Deste modo, entende-se que não há lugar à citação do outro membro da união de facto para o processo de insolvência no qual foi apreendido o imóvel que constitui a casa de morada de família, sendo inaplicáveis as disposições previstas nos artigos 1682º-A nº 2 do Código Civil, e 786º n.º 1 alínea a) do CPC.
Com efeito, destes preceitos legais resulta que apenas o cônjuge do executado é citado (para exercer todos os direitos que a lei processual confere ao executado) quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis que o executado não possa alienar livremente, nomeadamente, a casa de morada de família.
Este entendimento não viola o princípio da igualdade pois, tal como vem sendo jurisprudência do Tribunal Constitucional, “há assinaláveis diferenças substanciais entre os regimes do casamento e da união de facto, que comprometem os termos de comparação de que se poderia partir para um juízo de violação do princípio da igualdade.” - Acórdão n.º 624/2019.
Na verdade, “o regime das pessoas unidas pelo matrimónio confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que nos postamos perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que requeiram tratamento igual” - Acórdão n.º 14/2000.
Se é verdade que para a noção constitucional de família também releva a “família não fundada no casamento”, e que isso gera para o legislador “um dever de não desproteger, sem uma justificação razoável”, certo é que este entendimento não implica qualquer equiparação geral do regime da família fundada no casamento e da família não assente no matrimónio – vd. Acórdão n.º 86/2007 e Acórdão n.º 87/2007.
Face ao exposto, prevendo a Lei expressamente quais as medidas de protecção da casa de morada de família na união de facto, inexiste qualquer lacuna que cumpra suprir, não sendo de aplicar por analogia o regime previsto para os cônjuges, o que também não é imposto pelo princípio da igualdade dado que se tratam de situações jurídicas substancialmente distintas que, consequentemente, não justificam nem exigem idêntico tratamento.”
4. Inconformado, o reclamante apresentou o presente recurso, requerendo a revogação daquela decisão e a sua substituição por outra que, “nos termos dos artigos 187º, alínea a), 188º, nº 1, alínea a), 198º, nº 2, 786º, nº 1, alínea a), primeira parte, e 787º, nº 1, todos do CPC, ex vi do artigo 17º, do CPC, determine a nulidade, por falta de citação, de todo o processado nos autos de liquidação à margem referenciados, nomeadamente do procedimento de venda do imóvel”. Formulou as seguintes conclusões:
(…)
3 - O objeto da matéria em crise é a aplicação, às uniões de facto, do regime previsto para os cônjuges naquilo que se refere às medidas de proteção da casa de morada de família, sob pena de violação do princípio da proibição das desigualdades injustificadas, previsto no art.º 13º, da Constituição da República Portuguesa, relativamente à proteção legalmente concedida à casa de morada de família;
4 - O artigo 36º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), preceitua que “Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”;
5 - Nos termos deste preceito constitucional, por um lado temos assegurado o direito de constituir família e por outro temos o direito de contrair casamento;
6 - O conceito de família absorve o conceito de casamento, sendo o casamento uma das vias, neste caso contratual, para constituir família;
7 - A união de facto, cujo reconhecimento da relevância pelo legislador ordinário, como relação jurídica familiar, resulta da imposição constitucional constante do art.º 36.º, da CRP, é outra das vias para constituir família;
8 - Na sua dinâmica existencial, a união de facto tem a proteção da casa de morada de família consagrada na Lei nº 83/2019, de 03 de Setembro, onde está expressamente consagrada a equiparação das uniões de facto ao casamento, quanto à proteção da casa de morada de família, concretamente no seu artigo 10º, nºs 3 e 4;
9 - A proteção da casa de morada de família tem a sua génese na família, o que vale tanto para o casamento quanto para as uniões de facto, nos termos deste diploma;
10 - É nestes termos, no conceito de família, que o outro membro da união de facto tem a sua legitimidade garantida na proteção da casa de morada de família, gozando dos mesmos direitos atribuídos aos cônjuges pelo artigo 34º, do Código de Processo Civil, e pelo artigo 1682º-A, do Código Civil;
11 - Sendo que, no artigo 1682º-A, nº 2, do Código Civil, o elemento distintivo e definidor é o conceito de família e não o de casamento, conceito de família que, nos termos legais, resulta tanto do matrimónio, como da união de facto;
12 - Por isso é que este artigo se impõe para além do regime de casamento, para além do vínculo contratual/matrimonial;
13 - Nos presentes autos, tendo em conta o conceito de família e a proteção da casa de morada de família nos termos supra expostos, a liquidação não poderia prosseguir sem que, por analogia e consequentemente, o aqui Recorrente, enquanto membro da união de facto, fosse citado, nos termos dos artigos 1682-A, nº 2, do Código Civil, e 786º, nº 1, alínea a), e 787º, nº 1, do CPC, ex vi do artigo 17º, do CIRE;
14 – Ainda para mais quando a união de facto foi logo comunicada no Requerimento de Insolvência;
15 - Ao decidir como decidiu, o Mmo Juiz a quo violou os artigos 187º, alínea a), 188º, nº 1, alínea a), 198º, nº 2, 786º, nº 1, alínea a), primeira parte, e 787º, nº 1, todos do CPC, ex vi do artigo 17º, do CPC, ao não decretar a nulidade, por falta de citação, de todo o processado nos autos de liquidação à margem referenciados, nomeadamente do procedimento de venda do imóvel sito na Avenida…, 2º andar Direito…, mais especificamente da fração autónoma designada pela letra E, correspondente ao 2º Andar Direito - para habitação - e arrecadação na cave, em regime de propriedade horizontal, sita no …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Seixal, sob o n.º …;
16 - Mais se invoca a inconstitucionalidade do artigo 34º, do Código de Processo Civil, e do artigo 1682º-A, nº 2, do Código Civil, quando interpretados no sentido de excluir a aplicação desses normativos às pessoas que vivam em união de facto nas condições previstas nos artigos 1º e 2º, da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio.
5. O credor Scalabis – Stc, SA (hipotecário) respondeu ao recurso e requereu a sua improcedência. Formulou as seguintes conclusões:
A) O objecto do presente recurso consiste em saber se existe legalmente obrigatoriedade de citação do membro da união de facto, nos termos do disposto no artigo 786º n.º 1 alínea a) do Código Processo Civil, aplicando se por analogia o regime previsto para os cônjuges.
A) A Lei n.º 7/2001, de 11.05, consagra medidas de protecção das uniões de facto, não consagrando, no entanto, uma equiparação absoluta das uniões de facto às relações jurídicas emergentes do casamento, por outras palavras, inexistindo qualquer equiparação geral do regime da família fundada no casamento e da família não assente no matrimónio.
B) As pessoas que vivem em união de facto têm direito a «Protecção da casa de morada de família, nos termos da presente lei» - art.º 3º alínea a) do identificado diploma legal – ou seja, exclusivamente em caso de ruptura da união de facto e em caso de morte de membro da união de facto, nos termos expressamente delimitados nos artigos 4º e 5º da identificada Lei, não existindo qualquer outra regulação da protecção da casa de morada de família do unido de facto.
C) Consequentemente as disposições previstas nos artigos 1682º-A n.º 2 do Código Civil, e 786º n.º 1 alínea a) do Código Processo Civil, aplicam-se apenas à citação do cônjuge do executado (para exercer todos os direitos que a lei processual confere ao executado), quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis que o executado não possa alienar livremente, nomeadamente, a casa de morada de família.
D) Não há violação do princípio da igualdade pois, tal como vem sendo jurisprudência do Tribunal Constitucional, “há assinaláveis diferenças substanciais entre os regimes do casamento e da união de facto, que comprometem os termos de comparação de que se poderia partir para um juízo de violação do princípio da igualdade”.
E) Prevendo a Lei expressamente quais as medidas de protecção da casa de morada de família na união de facto, inexiste qualquer lacuna que cumpra suprir, não sendo de aplicar por analogia o regime previsto para os cônjuges, o que também não é imposto pelo princípio da igualdade dado que se tratam de situações jurídicas substancialmente distintas que, consequentemente, não justificam nem exigem idêntico tratamento.
F) O Recorrente tenta tornar irrelevante o vínculo matrimonial, impondo assim a aplicação analógica dos artigos que determinam a citação dos cônjuges, aos unidos de facto, o que não é de todo possível, uma vez que qualquer aplicação analógica pressupõe uma lacuna legal: a analogia provoca a aplicação de lei existente em caso semelhante, para o qual as leis existentes são omissas.
G) Ora, no caso em apreço, não existe qualquer omissão, encontrando-se expressamente previstas as situações em que os unidos de facto beneficiam de protecção, no que à casa de morada de família diz respeito, a saber: em caso de rutura e de morte.
H) Foi intenção expressa do legislador (e não um esquecimento ou qualquer falha deste), não equiparar totalmente, e de forma absoluta, os direitos dos cônjuges aos unidos de facto, pelo que seria totalmente contrário ao sistema jurídico, proceder a essa operação quando não existe qualquer lacuna.
I) É importante distinguir uma situação que o legislador visou expressamente não contemplar em determinada situação, de uma alegada lacuna, quando estamos perante situações jurídicas substancialmente distintas (por exemplo, em termos também sucessórios, de partilha, de paternidade, entre outros) que, consequentemente, não justificam nem exigem idêntico tratamento.
J) Ao ter optado conscientemente pela união de facto e não pelo matrimónio, como regime subjacente à sua vida familiar, o qual é notoriamente caracterizado por uma maior informalidade, o Recorrente não pode agora invocar uma desigualdade injustificada.
K) Estamos sim perante um tratamento diferenciado para duas situações jurídicas significativamente distintas, que o legislador não quis propositalmente equiparar, de forma absoluta, mas sim, intencionalmente, diferenciar.
L) Por sua vez, uma omissão inconstitucional ocorre quando o legislador concede benefícios ou impõe obrigações ou sacrifícios a uma categoria de pessoas, mas se abstém de consagrar o mesmo regime para outra categoria de pessoas que se encontrem numa situação igual ou idêntica à dos destinatários da norma.
M) Trata-se de um silêncio legislativo não justificado, e não inclusivo da lei, que viola o princípio da igualdade.
N) Posto isto, dificilmente se entende como pode estar em causa uma situação de inconstitucionalidade, por o legislador ter optado por tratar de maneira diferente, aquilo que é diferente.
O) Note-se que os unidos de facto gozam de uma ampla liberdade contratual na modelação das suas relações patrimoniais, sendo a natureza factual e informal da união de facto avessa a uma intensa regulamentação legislativa.
P) Conforme refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 159/2005, “Assim, na ótica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer. (…)” (negrito e sublinhado nosso).
Q) Por sua vez, no Acórdão também do Tribunal Constitucional n.º 14/2000 consta expressamente “(…) o regime das pessoas unidas pelo matrimónio confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que nos postamos perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que requeiram tratamento igual.” (negrito e sublinhado nosso).”

II – Objeto do recurso – Questões a apreciar:
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil (CPC), o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto desta, tal qual como surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas e, sem prejuízo das questões que oficiosamente cumpra conhecer, destina-se a reponderar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões impugnadas por referências às questões de facto e/ou de direito submetidas à apreciação do tribunal a quo, estando vedada a apreciação de novos pedidos e/ou de novas causas de pedir em sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações mas apenas das questões de facto ou de direito que, não estando cobertas pela força do caso julgado, se apresentem relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na aplicação e interpretação do direito (cfr. art.º 5º, nº 3 do CPC).
Assim, considerando o teor da decisão recorrida e as conclusões enunciadas pelo recorrente, cumpre aferir se o procedimento de venda do imóvel em sede de liquidação da massa insolvente é nulo por falta de citação do recorrente nos termos e para os efeitos dos artigos 1682º-A, nº 2 do Código Civil (CC) e 786º, nº 1, al. a) e 787º, nº 1 do CPC, o que passa por apreciar se a lei impõe o cumprimento desta citação ao cônjuge do insolvente e, na positiva, da constitucionalidade da não aplicação dessas normas a quem vive em situação de união de facto com o insolvente.

III – Fundamentação
A) De Facto
Relevam na apreciação do mérito do recurso as alegações de facto descritas no relatório que, no essencial, se resumem à situação de união de facto entre o recorrente e a insolvente, de o imóvel ter sido por esta adquirido por compra no estado de solteira e como tal inscrito no registo predial em seu benefício exclusivo, e de o mesmo corresponder à casa de morada da família por ambos constituída.

B) De Direito
1. O recorrente submeteu à apreciação do tribunal a validade da atividade desenvolvida para cumprimento da venda do imóvel apreendido para a massa insolvente no pressuposto de a situação de união de facto com a insolvente impor a sua citação para os termos daquele procedimento por ter como objeto a casa de morada da família por eles constituída. Reconhece a insolvente como única titular do direito de propriedade do imóvel, mas reclama a equiparação da situação de união de facto ao casamento no sentido de o unido de facto com o insolvente beneficiar no processo de insolvência deste da tutela que a lei prevê para o cônjuge não executado no âmbito do procedimento de venda da casa de morada de família. É nesse pressuposto que vem arguida a nulidade da liquidação com fundamento na falta de citação do recorrente.
Sendo esta a questão a apreciar, importa identificar o procedimento legal devido cumprir na execução relativamente ao cônjuge do executado para, antes de mais, aferir da aplicabilidade ou não desse regime ao processo de insolvência.
Caso não resulte prejudicado, mais cumpre apreciar se os direitos constitucionais à constituição de família e à igualdade impõe a aplicação daquele procedimento ao unido de facto com o insolvente para tutela do interesse daquele sobre a respetiva casa de morada de família instalada em imóvel do devedor insolvente e objeto de apreensão no respetivo processo de insolvência.
2. No âmbito da execução singular contra um dos cônjuges – qualidade jurídica que pressupõe o casal constituído pelo vínculo/título jurídico do casamento – o art.º 786º, nº 1, al. a) do CPC determina que, Concluída a fase da penhora e apurada, pelo agente de execução, a situação registral dos bens, são citados para a execução: a) O cônjuge do executado, quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial que o executado não possa alienar livremente, ou quando se verifique o caso previsto no n.º 1 do artigo 740.º. O nº 8 estabelece que a citação do cônjuge do executado é realizada no prazo de 5 dias a contar do apuramento da situação registral dos bens.
Como é referido por A. Geraldes, P. Faria e L. Sousa, “O intuito das citações reguladas neste preceito varia em função os seus destinatários. O cônjuge do executado, se for citado nos termos da 1ª parte da al. a) do nº 1, passa a ter o estatuo processual que lhe é conferido pelo art.º 787º, nº 1; (…).[1]
Sob a epígrafe Estatuto processual do cônjuge do executado o art.º 787º define as ações reconhecidas exercer ao cônjuge do executado na sequência daquela citação, nos seguintes termos:
1 - O cônjuge do executado, citado nos termos da primeira parte da alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, é admitido a deduzir, no prazo de 20 dias, oposição à penhora e a exercer, nas fases da execução posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei processual confere ao executado, podendo cumular eventuais fundamentos de oposição à execução.
2 - Nos casos especialmente regulados nos artigos 740.º a 742.º, é o cônjuge do executado admitido a exercer as faculdades aí previstas.
Nos termos do art.º 784º do CPC a oposição à penhora, para que remete o nº 1 do art.º 787º, nº 1, só pode ter como fundamentos os seguintes:
a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada;
b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;
c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.
2 - Quando a oposição se funde na existência de patrimónios separados, deve o executado indicar logo os bens, integrados no património autónomo que responde pela dívida exequenda, que tenha em seu poder e estejam sujeitos à penhora.
Os demais direitos que a lei processual confere ao executado e para que remete o art.º 787º, nº 1 do CPC correspondem aos que neste diploma constam previstos sob os arts. 789º nº1 (impugnação dos créditos reclamados), 812º, nºs 1 e 7 (audição prévia à decisão da venda pelo agente de execução e reclamação desta para o juiz), 813º, nºs 1 e 3 (sustação da venda de outros bens perante a suficiência do produto já obtido na execução e ordem preferencial e ordem da venda dos bens em função da suficiência de uns para o pagamento da execução), 814º, nº2 (autorização para venda antecipada de bens), 821º, nº1 (pronúncia sobre as propostas de compra apresentadas no âmbito da venda por apresentação de propostas em carta fechada), 822º, nº1 (arguição, no ato de abertura das propostas em carta fechada, de irregularidades relativas a atos do procedimento da venda através daquela modalidade), 825º, nº1 (audição para pronúncia em caso de falta de depósito do preço pelo proponente), 832º, als a) e b) (acordo do execução para a realização da venda por negociação particular aceite pelo executado, e aceitação de comprador proposto pelo executado no âmbito desse modalidade de venda), 833º, nº2 (acordo do executado para a realização da venda por negociação particular pelo agente de execução), 834º, nº1, a) (acordo do executado para a realização da venda por leilão) e 835º, nº1 (arguição de irregularidades cometidas no ato do leilão)[2].
Normas que regulam os termos da execução singular posteriores à realização da penhora, mas que não encontram campo de aplicação no processo de insolvência por incompatíveis com o âmbito ou finalidade deste – de liquidação universal e concursal do ativo e do passivo do devedor –manifestada na regulação do incidente de reclamação, impugnação e verificação de créditos, da apreensão de bens e da sua liquidação por normas expressa e especialmente previstas pelo CIRE em coerência funcional e sistémica com a finalidade e princípios que caracterizam e distinguem de sobremaneira o processo de insolvência da execução singular.
O processo de insolvência é legalmente configurado como processo especial regulado em primeira linha pelas disposições próprias do CIRE; só na falta e/ou insuficiência das normas por este previstas é que remete subsidiariamente para as disposições aplicáveis do CPC, designadamente, do processo de execução comum face à idêntica natureza executiva do processo de insolvência mas que, em relação ao objeto da ação executiva singular, acrescenta o cariz universal da liquidação do ativo e do passivo do devedor. Ainda assim, e nos termos previstos pelo art.º 17º, a aplicação subsidiaria das disposições do CPC só tem lugar desde que não contrarie as disposições do presente Código, ressalva que se realça e que se justifica pelos princípios que caracterizam e determinam a caracterização do processo de insolvência como processo de execução universal, concursal e urgente.
Prevê o art.º 1º, nº 1 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[3] que O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. Da conjugação desta norma com o art.º 250º - que exclui a aplicabilidade do plano de insolvência aos não empresários ou aos titulares de pequenas empresas - resulta que o processo de insolvência de pessoa singular traduz-se em processo de execução universal e concursal que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação do património para afetação do respetivo produto à satisfação dos direitos dos credores. Execução universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art.º 46º, nº 1 e 2 (…) salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º, visando a liquidação do passivo global do devedor, procede-se para o efeito à citação de todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte da liquidação dos bens que integram o património do devedor, na medida das forças deste e em função da hierarquia/graduação dos créditos de acordo com a respetiva natureza.
Da sentença de declaração da insolvência decorre o poder-dever funcional do AI proceder de imediato à apreensão e liquidação de todos os bens que integram a massa insolvente (incluindo o produto da venda desses bens), ainda que arrestados, penhorados, apreendidos ou por qualquer outra forma detidos, dos quais o AI, na qualidade de representante legal da massa insolvente, fica administrador e liquidatário (cfr. arts. 36º, nº 1, al. g), 46º, 149º, 150º, nº 1, 81º, nº 1, 55º, nº 1, 150º, nº 1 e 158º).
A apreensão é formalmente comprovada nos autos através da junção do correspetivo auto de arrolamento contendo a descrição dos bens apreendidos (cfr. arts. 152º, nº 4 e 152º) e, sem prejuízo do disposto no art.º 150º, conforme dispõem os art.º 755º e 768º, nº 1 e 2 do CPC (ex vi art.º 17º do CIRE), a apreensão para a massa insolvente de bens sujeitos a registo realiza-se antes de mais pelo registo da sentença de declaração da insolvência no serviço de registo competente, registo que é obrigatório e cabe ao AI promover, conforme se prevê nos arts. 2º, nº 1, al. n) e 8ºB, nº 3, al. c) do Código de Registo Predial. É sobre os bens apreendidos para a massa insolvente que incide a atividade da liquidação para conversão do respetivo valor em dinheiro e subsequente distribuição/rateio pelo coletivo dos credores pela ordem e valores definidos por sentença, atividade (de liquidação) para a qual o AI tem exclusiva competência, desde logo para decidir sobre a modalidade da venda dos bens que integram a massa insolvente e fixar o preço base dos bens.
No âmbito do procedimento para venda o AI está apenas limitado ao dever de audição prévia do credor com garantia real sobre o bem objeto da venda, nos termos previstos pelo art.º 164.º, n.º 1 e 2, ou da comissão ou da assembleia de credores nos termos previstos pelo art.º 161º. Do art.º 164º - norma especialmente prevista para a venda em insolvência – resulta a contrario que, com exceção dos credores com garantia real, a lei não vincula a sua realização à prévia audição e, muito menos, à concordância ou autorização de qualquer credor. Sendo estes, os credores, os titulares dos interesses visados tutelar pela insolvência e os principais e primeiros interessados na otimização do resultado da liquidação, por maioria de razão se impõe entender que o AI não está vinculado à audição do insolvente a respeito da venda dos bens, ainda que estes se tratem de bens comuns do casal constituído pelo casamento, e muito menos condicionado à aprovação, concordância ou autorização da venda pelo insolvente e, por maioria de razão, pelo respetivo cônjuge. O que além do mais seria um contrassenso, precisamente, porque do que aqui se trata é da venda coerciva do património do devedor, por natureza, em substituição da vontade deste, no âmbito de procedimento legal para satisfação de créditos em concurso para os quais o património do devedor, por princípio, é insuficiente.
Como já se referiu, da natureza universal e concursal da insolvência decorre que por ela se procede à liquidação de todo o ativo e de todo o passivo do devedor, incluindo no primeiro o direito de propriedade do devedor sobre os bens dos quais seja contitular (em comunhão ou em compropriedade) e, no segundo, todo o passivo da responsabilidade do insolvente, no que se incluem as dívidas por ele contraídas e, se casado, as comunicáveis ao outro cônjuge, as por este contraídas e comunicáveis ao cônjuge insolvente, e as dívidas contraídas por ambos e, igualmente, as dívidas do insolvente na qualidade de garante de terceiros. A finalidade da insolvência obriga à apreensão e excussão de todo o património penhorável do devedor para máxima satisfação de todo o seu passivo, independentemente da natureza singular ou comum dos seus passivo e ativo[4], de este incluir imóvel que constitui a casa de morada de família do devedor insolvente, e do estado civil deste. Acresce que a apresentação do devedor à insolvência implica o reconhecimento da sua situação de insolvência e afasta inelutavelmente a sua legitimidade para deduzir qualquer oposição à declaração de insolvência ou à apreensão de todos os bens penhoráveis dos quais seja titular e que, por efeito da declaração da insolvência, passam a constituir a massa insolvente que, como consta expressamente definida no art.º 46º, nº 1, se caracteriza como património autónomo de exclusiva afetação à satisfação dos créditos patrimoniais a cargo do devedor insolvente ou dos respetivos bens.
De resto, da conjugação das normas acima citadas - máxime, do teor do art.º 787º do CPC que, por remissão para outras normas processuais, define a finalidade da citação prevista pelo art.º 786º, nº 1, al. a) - resulta que a intervenção processual por ela visada facultar ao cônjuge não executado não abrange a tutela do imóvel que constitui a casa de morada da família por ele constituída com o executado em detrimento da função de garantia geral dos bens deste e/ou com preferência sobre o direito dos credores à satisfação dos seus créditos pelo produto destes.
Com efeito, a casa de morada de família não integra o rol dos bens impenhoráveis previsto pelo art.º 736º do CPC, pelo que constitui bem penhorável nos termos e para os efeitos dos arts. 601º do CC e 735º do CPC. Nos processos executivos comuns[5], não só é penhorável como é ‘vendável’, e isso mesmo decorre logicamente do regime legal do processo executivo previsto nos arts. 751º, nº 4, 756º, nº 1, al. a) e 862º (ex vi art.º 828º) do CPC para realização da penhora e desocupação do imóvel que constitui a casa de habitação do executado, que precisamente pressupõe e expressamente prevê a sua penhorabilidade e subsequente venda para pagamento do crédito exequendo (e, se for o caso, dos reclamados), pelo que não se admite oposição à penhora de imóvel com esse fundamento, ainda que este constitua bem do património do casal em regime de comunhão ou compropriedade. Designadamente, não abrange a possibilidade de levantamento da penhora do imóvel se no património do executado não existirem outros bens suscetíveis de satisfazer o crédito exequendo, as custas e demais encargos da execução. Como é salientado por salientado por Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[6], “se a penhora recair sobre bem imóvel que o devedor não possa alienar livremente, o cônjuge do devedor deve ser citado a fim de poder deduzir oposição à penhora, designadamente para «dizer que há outros bens penhoráveis de que o devedor tem a live disposição, se for o caso, contra os quais a penhora se devia dirigir em primeiro lugar». Cenário que não encontra paralelo no processo de insolvência liquidatário porque, como se disse, não se compatibiliza com um qualquer princípio ou procedimento de excussão prévia de bens na medida em que abrange todo o património penhorável do devedor insolvente, o que de antemão arreda a aplicabilidade de qualquer um dos fundamentos de oposição à penhora previstos no art.º 784º do CPC e, logicamente, a citação legalmente prevista para o exercício dessa faculdade.[7]
Nesse sentido, entre muitos outros, acórdão do Supremo Tribunal de 05.03.2015 – “II - A casa de morada de família não consta actualmente do elenco dos bens impenhoráveis do art.º 822.º do CPC e deve ter-se como um bem sujeito a penhora de acordo com a regra enunciada no art.º 821.º do mesmo diploma.//III - O direito à habitação do cidadão e da família, consagrado no art.º 65.º da CRP, não se confunde com o direito a ter casa própria, sendo que o legislador ordinário, não obstante estar ciente da sua importância, não estabeleceu, em homenagem àquele direito, a impenhorabilidade da casa de morada de família, mas apenas algumas defesas (art.º 834.º, n.º 2, do CPC e actual art.º 751.º, n.º 3, als. a) e b), do NCPC (2013)).” E acórdão da Relação de Lisboa de 12.01.2023 – “3. Incidindo a penhora sobre bem imóvel adquirido em comum, em data anterior ao casamento celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos, não há lugar à citação prevista no art.º 740º do CPCivil, mas à prevista no art.º 743º do mesmo diploma legal, ainda que se trate de imóvel que constitui a casa de morada de família.»
De todo o exposto resulta que o art.º 786º, nº 1, al. a) do CPC, no qual o recorrente fundamenta a nulidade que arguiu, não encontra campo de aplicação na insolvência; antes resulta afastado pelo regime legal próprio desta, que as normas especiais do CIRE manifestam, máxime e ao que aqui releva, as que regulam o âmbito da apreensão de bens e a fase da liquidação da massa insolvente, designadamente, do procedimento da venda.
No âmbito da tutela dos interesses próprios do cônjuge do executado, a única formalidade que o CPC prevê e cujo cumprimento se impõe no processo de insolvência é a citação para separação de meações (sob pena de prosseguimento da liquidação sobre os bens comuns) nos termos do art.º 740º, nº1 do CPC.
Dando por assumida a legalidade objetiva da penhora de bens que integram o património conjugal do casal, prevê esta norma que Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns. Dando seguimento, dispõe o nº 2 que, Apensado o requerimento de separação ou junta a certidão, a execução fica suspensa até à partilha; se, por esta, os bens penhorados não couberem ao executado, podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido, permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão. Conforme realçam A. Geraldes, P. Faria e L. Sousa, esta norma prevê a penhora de bens comuns do casal que, por natureza, é objeto de um direito único de propriedade titulado por ambos os cônjuges que, por isso, se caracteriza como comunhão una, indivisa emergente do regime de bens do casamento e que, até à partilha, mantém a natureza de património coletivo de afetação, responsável pelo passivo comum do casal e, subsidiariamente, pelas dívidas da responsabilidade de um só cônjuge posto que, primeiro, respondem os seus bens próprios e só subsidiariamente a respetiva meação no património comum, cfr. art.º 1696º, nº 1 do CC. Para acautelar a ilegalidade subjetiva da penhora – por recair sobre bens que não pertencem exclusivamente ao executado - a lei impõe [a] imediata citação do respetivo cônjuge com vista a conceder-lhe a oportunidade de requerer a separação de bens (art.º 786º, nº 1, al. a), in fine). O sentido desta previsão é simples: caso venha a ter lugar a partilha do património conjugal através do referido processo especial, os bens perderão a qualidade de comuns e passarão a pertencer a cada um dos cônjuges, nos termos que vierem a ser adjudicados. (…). É para assegurar a adequação da penhora ao desfecho da partilha que se impõe que a ação executiva fique suspensa até esse momento (nº 2).[8] Solução legal que (melhor) se adequa à finalidade e características do processo de insolvência e que se impõe para tutela constitucional do direito de propriedade (no caso, do cônjuge não devedor) e pelo princípio geral da garantia geral das obrigações, que o art.º 608º do CC restringe aos bens (e direitos) do devedor. Caso o AI omita o devido cumprimento do art.º 740º, o cônjuge meeiro não insolvente pode lançar mão dos procedimentos previstos pela al. b) do nº 1 do art.º 141º e arts. 144º e 146º, nº 2, através dos quais a lei atribui ao cônjuge do insolvente o direito de requerer a verificação do direito a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, esta (a meação) através do reconhecimento da natureza comum do bem apreendido e consequente declaração do direito à separação da sua meação no património comum/conjugal.
No caso o AI procedeu à apreensão do imóvel cujo direito de propriedade, conforme consta do registo, foi adquirido exclusivamente pela insolvente, pelo que duvida não há que ao recorrente não assiste nem comunga em qualquer direito de propriedade sobre o imóvel da insolvente, que não lhe advém da situação de união de facto com esta e que, de resto, o recorrente também não reclama para si. A apreensão do imóvel foi cumprida pelo AI nos termos dos arts. 2º, nº 1, al. n) e 8ºB, nº 3, al. c) do CRP, diligenciando pela inscrição do registo definitivo da sentença de insolvência na ficha predial do imóvel, que foi lavrado sem menção a quota ideal ou a meação, sem qualquer restrição ao objeto da apreensão, e, nesse cenário, diligenciou pela sua venda sem que tenha procedido à citação do recorrente nos termos e para os efeitos do art.º 786º-A, nº 1, al. a) do CPC ou outro que, como do exposto já resulta, não era nem é devida em qualquer circunstância, isto é, independentemente de ser ou não casado com a insolvente ou de com ela viver em situação de união de facto, com prejuízo para a apreciação da questão da equiparação do unido de facto ao cônjuge por referência ao exercício processual da tutela da casa de morada de família prevista pelo art.º 1608º-A, nº2 do Código Civil no âmbito do processo de insolvência.
Termos em que se conclui pelo acerto da decisão recorrida, ainda que com fundamentação distinta da por esta considerada.

IV – Decisão
Em conformidade com o exposto, decide-se pela improcedência do recurso, com consequente manutenção da decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo do apelante.

Lisboa, 13.09.2024
Amélia Sofia Rebelo
Paula Cardoso
Teresa de Sousa Henriques
_______________________________________________________
[1] CPC Anotado, GPS, Vol. II, 2, p. 184.
[2] Rui Pinto, A Ação Executiva, Almedina, 2019, págs 791 e 792.
[3] Diploma a que reportam todas as normas aqui citadas se outro não for indicado.
[4] No sentido de que, uma vez declarada a insolvência, os regimes de penhorabilidade subsidiária –  no que se integra os bens comuns do casal e os bens próprios de cada um em função da origem ou imputação da dívida a ambos ou apenas a um deles – não impedem a apreensão imediata do bens subsidiariamente penhoráveis, vd. Lebre de Freitas, Apreensão, Separação, Restituição e Venda,  p. 18 e 19, disponível em
 https://recil.grupolusofona.pt/bitstream/10437/6397/1/jurismat5_15-25.pdf
[5] Por contraposição com a Lei nº 13/2016 de 23.05 exclusivamente aplicável aos processos de execução fiscal, que estabelece restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado com o objetivo de proteger a casa de morada de família, realçando-se que esta tutela apenas se faz por sacrifício do Estado, e não com sacrifício dos interesses privados dos demais credores posto que só àquele, e não aos particulares, compete assegurar a sua proteção.
[6] Apud Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Executivo, Almedina, 5ª ed., p 480.
[7] Com interesse neste segmento, J. Castro Mendes e M. Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, AFDL Editora, p. 876, pontos 4.3. e 4.4.
[8] CPC Anotado, GPS, Vol. II, p. 110