SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE DE DESPACHO
Sumário

I - Discutindo-se no processo o eventual incumprimento das regras ou injunções da suspensão provisória do processo, e na ausência de previsão legal de um mecanismo próprio, deve ser aplicado analogicamente o regime da suspensão da execução da pena, constante dos artigos 492º a 495 do C. P. Penal e nos artigos 55º e 56º do Código Penal.
II - Sendo imprescindível a formulação de um juízo de culpa em termos semelhantes aos previstos para a revogação da suspensão da execução da pena, a revogação da suspensão provisória do processo só poderá ocorrer quando for possível afirmar, não só que se verificou efetivamente o incumprimento definitivo da injunção, mas também que o incumprimento é repetido ou censurável, a título de dolo ou de negligência grosseira
III - Assim sendo, e uma vez verificado o incumprimento, impõe-se ao Ministério Público averiguar as respetivas razões, de modo a aferir a existência de culpa do arguido e a sua medida, e ponderar, seguidamente, se a suspensão provisória do processo deve ser prorrogada, modificada ou revogada, em termos semelhantes ao previsto para a suspensão da execução da pena de prisão (artigos 56º e 57º do Código Penal).
IV - O incumprimento poderá determinar, em alternativa à revogação da suspensão provisória do processo, um agravamento das regras de conduta impostas ou a sujeição do arguido a outros deveres, à semelhança do previsto no artigo 55º, al. c), do Código Penal, para a suspensão da execução da pena, exigindo-se ali a concordância do Ministério Público, do Arguido, do Assistente e do Juiz de Instrução.
V - Por estar em causa uma decisão que afeta pessoalmente o arguido, a revogação da suspensão provisória do processo deve ser precedida da audição pessoal do arguido, em termos idênticos ao previsto, para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, no artigo 495º, nº 2, do C. P. Penal.
VI - No caso concreto em análise, o arguido não foi ouvido previamente ao despacho que revogou a suspensão provisória do processo, e, por isso, enferma de nulidade esse despacho (a decisão proferida, em Inquérito, pelo Ministério Público, que determinou o prosseguimento dos autos - revogando a suspensão provisória do processo -).

Texto Integral



Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Criminal de Setúbal – Juiz 4, foi o arguido R submetido a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.

Após audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, por sentença de 20 de março de 2024, decidiu:

a) Condenar o Arguido R pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, à qual deve ser descontado um dia de multa nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º 2, do Cód. Penal.

b) Declarar perdido a favor do Estado o objecto apreendido a fls. 5 e, subsequentemente, entregar a faca apreendida à Polícia de Segurança Pública que deverá diligenciar pelo seu destino, nos termos do disposto nos artigos 109.º, do Cód. Penal, e 78.º, do Regime Jurídico das Armas e Munições.

*

Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

89.º

Com efeito, o Tribunal a quo decidiu condenar o Arguido ora Recorrente pela prática de um crime de detenção de arma proibida, sem atender a todas as factualidades e vicissitudes do processo até à fase de julgamento.

90.º

Primeiramente, não se pode concluir que o objecto apreendido possa ser considerado sequer uma “arma branca”.

91.º

O artigo 2.º, número 1, alínea m) da Lei n.º 5/2006 deve, naturalmente, que ser interpretado amplamente, porquanto, pela descrição que o legislador optou, todo o objecto com uma lâmina superior a 10 centímetros pode ser considerado como “arma branca”.

92.º

O objecto apreendido não é afecto ao “afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção”, tendo o Arguido justificado a sua posse.

93.º

O Arguido justificou com a factualidade de ter sido alvo de vários assaltos na zona onde os factos terão ocorrido, chegando a receber auxílio hospitalar decorrente das agressões e sem que tivesse sido auxiliado pelas forças de segurança.

94.º

Sendo um problema recorrente, não apenas em vários locais da cidade de Setúbal, como em todo o território nacional, e nem sempre as forças de segurança conseguem agir em conformidade.

95.º

O Recorrente é um cidadão impoluto, cumpridor da lei portuguesa e respeitador do ordenamento jurídico português e das autoridades, não tendo causado quaisquer perturbações aquando da sua detenção e tendo colaborado incessantemente com estes e com o Tribunal.

96.º

Foi o Recorrente questionado, a 08 de Março de 2022, se pretenderia beneficiar do instituto da suspensão provisória do processo, conforme previsto na legislação processual penal.

97.º

O Arguido anuído à mesma, ficando adstrio ao pagamento da quantia cifrada em 600,00€ (seiscentos euros), sendo que 300,00€ seriam liquidados através de Documento Único de Cobrança e os demais 300,00€ seriam liquidados a uma associação à escolha do Arguido

98.º

Tendo o órgão de polícia criminal que a propôs, em representação do Ministério Público, indicado e redigido no respectivo auto, que o DUC seria entregue ao Arguido, para que este pudesse cumprir com a injunção no prazo de seis meses.

98.º

Infelizmente, durante o período que decorreu entre o dia 08 de Março de 2022 e a data da acusação particular, nunca o Arguido ora Recorrente, recebeu qualquer Documento Único de Cobrança que lhe permitisse cumprir com os termos acordados.

99.º

O Digníssimo Procurador da República, a 30 de Março de 2022, pugnou pelo seguinte: “Entrega da quantia de € 300,00 ao Estado, mediante um DUC (Documento Único de Cobrança), que lhe será entregue / enviado para pagamento)” (negrito nosso).

100.º

A 13 de Abril de 2022, foi o Recorrente notificado em como lhe seria entregue ou enviado um DUC para pagamento, sem que tal alguma vez tivesse sido efectuado.

101.º

A própria Base de Dados da Suspensão Provisória de Processos Crime também corrobora o alegado pelo Recorrido, em como lhe seria entregue ou enviado um DUC para pagamento.

102.º

Lamentavelmente, o Douto Tribunal a quo entende que, não fazendo a Secretaria o seu trabalho, deveria ser o Arguido a fazê-lo.

103.º

O Arguido ora Recorrente tinha obrigações que decorriam da suspensão provisória do processo, as quais pretendia cumprir e obter os respectivos benefícios, mas não contou com a colaboração do Douto Tribunal a quo.

104.º

Ao invés, e aqui por manifesta incúria por parte do Ministério Público, pretenderam optar por notificar o Arguido para juntar os comprovativos de pagamento aos autos, sem se preocuparem em analisar o processo judicial e assumirem que um erro foi cometido.

105.º

Não sendo, sequer, colocado em causa que o Ministério Público, assumindo o erro cometido, remetesse o Documento Único de Cobrança ao Arguido ora Recorrente, com a cominação de pagamento num prazo manifestamente inferior ao dos seis meses anteriormente concedidos.

106.º

Certo é que, compulsado todo o processo, em momento algum se verifica da emissão de algum Documento Único de Cobrança.

107.º

Existiu uma grave quebra no princípio da protecção da confiança e do princípio da segurança jurídica, visto que o Arguido confiou no sistema judiciário e foi por este abandonado, esntado o Arguido a ser largamente e injustamente prejudicado.

108.º

O Tribunal a quo falhou na aplicação de dois regimes concretos: o regime legal que permitiu a acusação do Arguido ora Recorrente pelo crime pelo qual foi condenado; bem como na indiferença perante a violação do próprio regime da suspensão provisória do processo.

109.º

O Tribunal a quo, equivocamente, considerou o objecto como uma arma branca quando, por leitura e interpetação do regime jurídico que veio a aplicar, este nunca poderia ser qualificado como tal.

110.º

E, falhou na aplicação do regime da suspensão provisória do processo, nos termos dos artigos 281.º e 282.º do Código de Processo Penal, visto que não actuou com a diligência que lhe é exigida e não remeteu o DUC ao Arguido.

111.º

De igual forma, rejeitou esclarecer o Arguido sobre a ausência do DUC, quando lhe foram solicitadas informações, conferindo um grau de importância nula às preocupações do Arguido.

112.º

Por outro lado, preferiu a via mais simples de acusar o Arguido ao invés de, como seria esperado de quem tem o dever de investigar a prática de ilícitos criminais, indagar todo o processado e, a final, confessar que cometeu um erro na tramitação do processo.

113.º

A arrogância do Ministério Público, que se lamenta, teve efeitos nefastos na vida do Arguido ora Recorrente, a quem, sem ter agido com qualquer dolo – nem sequer com negligência – aguardou que o Tribunal cumprisse com os seus deveres, por forma a poder cumprir os seus.

114.º

O erro do Ministério Público e do Tribunal a quo tem consequências, contudo não são estes a sofrê-las, mas sim o Arguido ora Recorrente; a estes primeiros, não são julgados em tribunal, no âmbito de um processo que é público e que condiciona socialmente o Arguido.

115.º

O Arguido acaba, a final de contas, por ser condenado por uma sucessão de actos que não foram nem seriam da sua responsabilidade.

116.º

Pelo que urge revogar a Douta Sentença proferida e absolver o Arguido, como é da mais integral e elementar justiça.

Pelo exposto, nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente Recurso ser julgado totalmente procedente, sendo revertida a sentença proferida pelo Tribunal a quo, sendo o Arguido absolvido do crime pelo qual vem acusado.

*

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto no sentido do não provimento do mesmo, formulando as seguintes conclusões:

1- O Arguido foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, número 1, alínea d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 5,00€.

2- O Arguido não recorreu da matéria de facto.

3- O objeto apreendido nos autos, declarado perdido a favor do Estado, deve ser considerado “arma branca”.

4- Resulta do disposto no artigo 2.º n.º1, m) do RJAM que «Arma branca» é todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões.

5- A faca apreendida, na posse do Arguido, tem 21 cm de lâmina, portanto deve ser considerada como arma branca.

6- A matéria de facto dada como provada faz incorrer o Arguido na prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, número 1, alínea d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

7- Não pode colher a justificação apresentada pelo Arguido que a posse daquela arma se destinava a ser utilizada para defesa, por ter sido alvo de vários assaltos.

8- O Recorrente não fez prova de tal alegação, nem se retira do espírito da lei que qualquer cidadão possa desvirtuar a função daquela faca, isto é, aquela faca não foi concebida para ser um instrumento de agressão, pelo contrário é para utilização doméstica, portanto, a sua posse deverá conter-se dentro das finalidades para as quais foi idealizada.

9- Por despacho de 30 de Março de 2022, foi determinada a suspensão provisória do processo pelo período de seis meses, impondo-se ao Arguido as injunções seguintes: entrega da quantia de € 300,00 ao Estado, mediante um DUC que se lhe será entregue/enviado para pagamento, pagamento que deverá ser feito dentro do período da suspensão provisória do processo e entrega da quantia de € 300,00 a uma instituição de solidariedade social/associação à sua escolha, pagamento que deverá ser feito dentro do período da suspensão provisória do processo, e comprovado nos autos.

10- Decorrido o prazo da suspensão provisória do processo, foi o Arguido notificado para vir juntar aos autos comprovativos documentais do cumprimento das injunções, sob pena de ser elaborado despacho de acusação para ser sujeito a julgamento.

11- Regularmente notificado, o Arguido nada requereu e/ou informou aos autos.

12- Por despacho de 31 de Maio de 2023, foi determinado o prosseguimento dos autos, em conformidade com o estabelecido no artigo 282.º, n.º 4, alínea a), do Cód. Proc. Penal.

13- Resultou efectivamente provado que, até à presente data, o Arguido não procedeu ao pagamento de qualquer quantia.

14- Resulta de forma cristalina e à saciedade que foram propostas duas injunções e, de modo cabal, a injunção de entrega da quantia de € 300,00 a uma instituição de solidariedade social/associação à sua esolha, pagamento que deveria ser feito dentro do período da suspensão provisória do processo, e comprovado nos autos foi absolutamente incumprida por parte do Arguido.

15- A nosso ver bastaria apenas a verifcação deste incumprimento, desta injunção, para abalar de modo irreparável o acordo para a aplicação da Suspensão Provisória do Processo que o Arguido se vinculou, portanto, há fundamento para a revogação da suspensão provisória do processo.

16- O Arguido notificado da revogação da suspensão provisória do processo requereu a abertura de instrução, pedindo a sua não pronuncia e que lhe seja concedido novo prazo para cumprir as injunções propostas pelo Ministério Público em fase de inquérito, aduzindo que o Arguido apenas não as cumpriu antes porque aguardava remessa do DUC para entrega ao Estado do montante determinado em sede de suspensão provisória do processo, julgando ainda que a escolha da IPSS, a quem deveria entregar um donativo, seria feita em conjunto com o Tribunal.

17- A Mma JIC rejeitou a abertura de instrução.

18 - O Arguido pugnou pela sua absolvição por entender que o incumprimento das injunções que lhes foram aplicadas em sede de suspensão provisória do processo não lhe é imputável, tendo-se devido à falha gravosa do sistema judiciário.

19 O Tribunal a quo, concordando com o teor do despacho proferido pela Mma. Juiz de Instrução, concluiu que o comportamento do condenado indiciou o fracasso, em definitivo, da prognose social que determinou a aplicação da suspensão provisória do processo.

20 – E declarou que improcedia a exceção dilatória inominada invocada pelo Arguido, devendo o mesmo ser condenado pela prática do crime de que vinha acusado.

21 - Para alérm de que, tal questão já foi suscitada e analisada em momento adequado, estando decidida por despacho transitado em julgado, encontrando-se actualmente esgotado o poder jurisdicional quanto à mesma.

22 – Em tudo bem andou o tribunal a quo e não existe qualquer erro judiciário

Em consequência, deverá o presente recurso ser julgado improcedente, devendo ser integralmente mantida a douta Sentença a quo.

*

No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer nos seguintes termos:

“ (…)

Aos argumentos avançados pelo recorrente, respondeu o Ministério Público na primeira instância, por síntese, do seguinte modo:

• Arguido não recorreu da matéria de facto estabelecida pelo Tribunal a quo, aceitando, portanto, os factos como provados durante o julgamento;

• O objeto apreendido, uma faca com lâmina de 21 cm, foi classificado como "arma branca". Tal classificação baseia-se no artigo 2.º, número 1, alínea m) do RJAM, que define "arma branca" como qualquer objeto portátil com lâmina ou superfície cortante/perfurante superior a 10 cm;

• A posse desta faca pelo Arguido configura o crime de detenção de arma proibida, conforme estabelecido pelo artigo 86.º, número 1, alínea d) da Lei n.º 5/2006. A lei visa controlar a posse de objetos potencialmente perigosos para garantir a segurança pública;

• O Arguido alegou que a faca era para defesa pessoal, devido a ter sido alvo de assaltos. No entanto, ele não apresentou provas concretas para substanciar essa alegação. Além de que a Ordem jurídica não legítima a posse de tais armas para defesa pessoal, sendo a faca classificada para uso doméstico;

• Em 30 de março de 2022, foi determinada a suspensão provisória do processo por seis meses, impondo ao Arguido as seguintes injunções: pagamento de 300 € ao Estado, mediante Documento Único de Cobrança (DUC) e pagamento de 300 € a uma instituição de solidariedade social escolhida por si;

• Decorrido o prazo da suspensão provisória, o Arguido foi notificado para juntar aos autos os comprovativos de cumprimento das injunções, sob pena de prosseguimento do processo;

• O Arguido, apesar de regularmente notificado, não cumpriu as injunções nem apresentou qualquer justificativa nos autos. Em 31 de maio de 2023, foi determinado o prosseguimento do processo, conforme artigo 282.º, número 4, alínea a) do Código de Processo Penal;

• Ficou provado que o Arguido não cumpriu a injunção de entregar 300 € a uma instituição de solidariedade, um requisito essencial da suspensão provisória do processo. Esse incumprimento abalou irreparavelmente o acordo de suspensão provisória;

• Após a notificação da revogação da suspensão provisória, o Arguido requereu a abertura de instrução, pedindo novo prazo para cumprir as injunções. Alegou então que aguardava a remessa do DUC e que a escolha da instituição seria feita em conjunto com o Tribunal. A Juíza de Instrução rejeitou a abertura de instrução, despacho transitado em julgado;

• O Arguido defendeu que o incumprimento das injunções não lhe era imputável, atribuindo a falha ao sistema judiciário. No entanto, não apresentou provas convincentes de que havia tentado cumprir as injunções ou de que havia solicitado assistência adicional do Tribunal;

• O Tribunal a quo concordou com o despacho da Juíza de Instrução, concluindo que o comportamento do Arguido indicava o fracasso definitivo da prognose social que justificou a suspensão provisória;

O Tribunal a quo atuou corretamente ao manter a condenação do Arguido, não se diagnosticando qualquer erro. Conclui o Ministério Público pela improcedente do recurso e manutenção integral da sentença recorrida.

Ponderando agora de forma conjugada e crítica a decisão recorrida à luz das conclusões do recurso interposto e da resposta dada pelo Ministério Público na primeira instância aos argumentos invocados, com o que se concorda, concluímos por parecer de que não deve o recurso obter provimento, por não merecer reparo a decisão recorrida.”

*

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº2, do Código de Processo Penal, o arguido/recorrente respondeu nos seguintes termos:

“1.º

Não pode o Recorrente concordar com o parecer da Exma. Senhora Procuradora Geral Adjunta, por manifestas incoerências nesse vertidas.

2.º

Afigura-se-nos que, pela leitura do Douto Parecer, se confunde aquela que é a matéria de facto com aqueles que foram os entraves para que a Justiça fosse realizada, no âmbito dos autos que se recorrem.

3.º

Primeiramente, o Recorrente mantém que o objecto que possuía não consubstancia uma arma branca, nos termos do artigo 2.º, número 1, alínea m) da Lei n.º 5/2006, pelo que, só por si, faz impugnar a matéria de facto vertida nos autos, porquanto se baseia na existência de um objecto cuja posse faz incorrer na prática de crime.

4.º

O Ministério Público faz o Arguido ora Recorrente suportar todo o ónus na obtenção de um Documento Único de Cobrança quando este, por todas as notificações entregues ao Arguido, lhe deveriam ser entregues pelo Tribunal.

5.º

O que não veio a suceder e que tal foi até confirmado pelo Tribunal a quo.

6.º

O Recorrente confiou no sistema judiciário e foi, por este, colocado numa situação desprotegida, enfraquecida.

7.º

Não basta o Ministério Público vir alegar que então Arguido foi notificado para apresentar os comprovativos de pagamento das injunções e que nada mais veio a apresentar nos autos, mais que não fosse mera justificação para o seu incumprimento.

8.º

Sucede, porém, que o Recorrente dirigiu-se aos serviços da secretaria judicial, solicitou a emissão do Documento Único de Cobrança visto que nunca havia sido notificado do mesmo, pedido que lhe foi negado, atendendo a que nenhum DUC foi emitido. (negrito nosso)

9.º

Se o Arguido tinha a sua quota-parte da responsabilidade, este diligenciou para as resolver e cumprir com o acordado.

10.º

O mesmo já não se pode dizer do Ministério Público e, maxime, da própria secretaria judicial.

11.º

Porquanto, bastava ao Oficial de Justiça analisar o processo físico (ou até mesmo o electrónico) e verificava prontamente que não havia sido enviado qualquer DUC para a residência do Arguido, a qual constava do próprio Termo de Identidade e Residência.

12.º

Mais grave, ainda, é o Exmo. Senhor Procurador da República não analisar profundamente um processo, antes de proferir uma decisão de acusação, pois bastava-lhe verificar os autos e entender a grave falha do sistema judiciário e que mina todo o processado subsequente

13.º

Condenar o Arguido é simplesmente concordar que o Ministério Público não deve ser diligente antes de se decidir por uma acusação pública.

14.º

Concordar com a posição do Tribunal a quo, como resulta do Parecer da Exma. Procuradora Geral Adjunta, é perpetuar uma situação de ausência de cuidado e de análise, porquanto uma acusação pública não é um mero formalismo, mas sim algo bastante sério para ser tratado com leveza.

15.º

Posto isto, verifica-se claramente dos autos que o sistema judiciário falhou com o Arguido, permitindo a sua condenação quando, por sua primeira acção, não cumpriu com as suas obrigações. (negrito nosso).

16.º

Contudo, não é o Ministério Público que recorreu dos autos, nem é a Secretaria Judicial que se encontra em juízo por algo que deveria ter feito e não fez, mas sim o Arguido ora Recorrente que, nunca tendo recebido o DUC para pagamento, diligenciou pela sua obtenção, tendo-lhe sido negado.

17.º

Trata-se de uma flagrante situação de derrogação da justiça, violadora dos princípios constitucionais já alegados nas motivações de recurso e que devem ser atendidos no caso sub judice.

18.

Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exa. doutamente suprirá, deve o recurso apresentado pelo Recorrente ser dado o devido provimento, revertendo a decisão do Tribunal a quo.”


*

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

*

Fundamentação

- Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice a questão suscitada no recurso reconduz-se a saber se o incumprimento das injunções aplicadas ao arguido/recorrente em sede de suspensão provisória do processo lhe é, ou não, é imputável.

*

Da sentença recorrida

“ (…)

Ao qual vem imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea m) e 3.º, n.º 2, alínea ab), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições.


*

Distribuídos os autos, foi proferido despacho nos termos dos arts. 311.º e 311.º-A, ambos do Cód. Proc. Penal.

*

O Arguido apresentou contestação, alegando que o objecto apreendido ao Arguido não pode ser considerado uma arma, visto que não é afecto ao exercício das actividades elencadas no artigo 3.º, n.º 2, alínea ab) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro e que o Arguido justificou a sua posse.

Alegou ainda que não cumpriu as injunções que lhe foram propostas em sede de suspensão provisória do processo por não lhe ter sido remetido pela Secretaria o DUC para proceder ao pagamento da quantia de € 300,00 ao Estado, tendo aguardado pelo seu envio para o liquidar e questionar, seja junto do Tribunal ou junto do Órgão de Polícia Criminal para que instituição/associação poderia efectuar o restante pagamento, visto não ser conhecedor dessa realidade.

Mais arrolou testemunhas.

Concluiu pugnando pela sua absolvição.


*

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal.

*

Mantém-se a regularidade da instância.

II – Fundamentação

1. Factos provados

Com interesse para a decisão da causa provaram-se os seguintes factos:

1. No dia 31 de Dezembro de 2021, pelas 11:30 horas, na Avenida José Estrela Leão, em Setúbal, o Arguido trazia consigo, no interior da sua mochila, uma faca/punhal, sem marca, com comprimento total de 33 cm, com cabo preto, e com uma lâmina perfurante e cortante, em inox, com comprimento de 21 cm.

2. O Arguido conhecia as características da faca / punhal que detinha na sua mochila, bem sabendo que a sua posse era proibida.

3. Sabia o Arguido que a sua conduta lhe estava vedada por lei penal e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim, não se inibiu de a realizar, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente pelo que lhe foi imediatamente retirada por Agentes da PSP e devidamente apreendida.

4. Por despacho de 30 de Março de 2022, foi determinada a suspensão provisória do processo pelo período de seis meses, impondo-se ao Arguido as injunções seguintes: entrega da quantia de € 300,00 ao Estado, mediante um DUC que se lhe será entregue/enviado para pagamento, pagamento que deverá ser feito dentro do período da suspensão provisória do processo e entrega da quantia de € 300,00 a uma instituição de solidariedade social/associação à sua escolha, pagamento que deverá ser feito dentro do período da suspensão provisória do processo, e comprovado nos autos.

5. Não foi entregue ao condenado qualquer documento único de cobrança, por forma a que este pudesse efectuar o pagamento dos € 300,00 devidos ao Estado.

6. Até à presente, o Arguido não procedeu ao pagamento das quantias referidas em 4.

Mais ficou provado que:

7. O Arguido:

- é operador de máquinas;

- não tem quaisquer antecedentes criminais registados.

2. Factos não provados

Não existem factos a considerar não provados.

O Tribunal não teve em consideração quaisquer outros factos constantes da contestação apresentada pelo Arguido por consubstanciarem conceitos de Direito, factos conclusivos e/ou se mostrarem irrelevantes para a boa decisão da causa.”


*

Apreciando e decidindo

Resultam dos autos, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

- Em sede de inquérito, o Ministério Público, por despacho de 30 de março de 2022, e relativamente aos mesmos factos por que foi o arguido acusado e condenado, decidiu-se pela suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 281.º do Código do Processo Penal, pelo período de seis meses, impondo-se ao Arguido as injunções seguintes: entrega da quantia de € 300,00 ao Estado, mediante um DUC que se lhe será entregue/enviado para pagamento, pagamento que deverá ser feito dentro do período da suspensão provisória do processo e entrega da quantia de € 300,00 a uma instituição de solidariedade social/associação à sua escolha, pagamento que deverá ser feito dentro do período da suspensão provisória do processo, e comprovado nos autos.

- O Mmº Juíz de Instrução, por despacho de 31 de março de 2022, concordou com a suspensão provisória do processo, pelo período e com as injunções propostas pelo Ministério Público,

- Com a Referência:94642103 Inquérito 173/21.9PFSTB e data de 13-04-2022 o arguido foi notificado como segue:

“Notificação por via postal simples com prova de depósito

Assunto: Suspensão provisória do processo

Fica notificado, na qualidade de Arguido, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:

De que nos termos do disposto no art.º 281º do C. P. Penal, foi determinada a suspensão provisória do processo acima indicado, pelo período de 6 meses, impondo-se as injunções seguintes:

- Entrega da quantia de € 300,00 ao Estado, mediante um DUC (Documento Único de Cobrança), que se lhe será entregue / enviado para pagamento, pagamento que deverá ser feito dentro do período da suspensão provisória do processo;

- Entrega da quantia de € 300,00 a uma instituição de solidariedade social /associação à sua escolha, pagamento que deverá ser feito dentro do período da suspensão provisória do processo, e comprovado nos autos.

A presente notificação considera-se efetuada no 5º dia posterior ao do seu depósito na caixa de correio do destinatário, constante do sobrescrito (notificação por via postal simples com prova de depósito).”

- Não foi entregue ao arguido qualquer documento único de cobrança, por forma a que este pudesse efetuar o pagamento dos € 300,00 ao Estado.

- Em 2-3-2023 foi proferido o seguinte despacho: “Notifique o arguido para, em 10 dias, juntar aos autos comprovativos documentais do cumprimento das injunções, sob pena de ser elaborado despacho de acusação para ser sujeito a julgamento.

Setúbal, d. s.”

- Com a Referência: 96792801 Inquérito 173/21.9PFSTB e data de 03-03-2023 o arguido foi notificado nos seguintes termos:

“Notificação por via postal simples com prova de depósito

Assunto: Notificação

Fica V. Exª notificado, na qualidade de Arguido, para no prazo de 10 dias, vir aos presentes autos, juntar aos autos comprovativos documentais do cumprimento das injunções, sob pena de ser elaborado despacho de acusação para ser sujeito a julgamento.

Os prazos acima indicados são contínuos suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais”

- O arguido, notificado de tal despacho nada disse.

- Em 31 de maio de 2023 o Ministério Público decidiu que “O arguido não cumpriu as injunções determinadas no âmbito da suspensão provisória dos autos.

Pelo exposto, os autos prosseguem os seus termos, em conformidade com o estabelecido no artº. 282º, nº. 4, al. a), do Cód. Processo Penal.”

E deduziu acusação.

- Em 19 de junho de 2023 foi nomeado defensor oficioso ao arguido.

- Em 21 de agosto de 2023 o arguido requereu a abertura de instrução.

- Por despacho de 3 de novembro de 2023 foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução.

- Em 10 de janeiro de 2024 foram os autos remetidos para julgamento.

Ora, a suspensão provisória do processo consiste na faculdade, concedida ao Ministério Público, de, verificados os pressupostos legais e com a concordância do juiz de instrução, se abster de acusar, com aplicação ao arguido das injunções ou regras de conduta tipificadas na lei.

Como ensina Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, pág. 111, a suspensão provisória do processo “assenta essencialmente na busca de soluções consensuais para a protecção dos bens jurídicos penalmente tutelados e a ressocialização dos delinquentes, quando seja diminuto o grau de culpa e em concreto seja possível atingir por meios mais benignos do que as penas os fins que do direito penal prossegue”, sendo um instituto que reflecte a preocupação de “busca do consenso, da pacificação e da reafirmação estabilizadora das normas, assente na reconciliação”. Deste modo, estatui-se no nº1 do artº 281 do Código de Processo Penal, que “Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta”, sempre que se verifiquem determinados pressupostos aí mencionados.

É, pois, uma forma consensual de resolução do conflito criminal, corolário do princípio da oportunidade, que visa a pacificação social e a ressocialização do delinquente, evitando a condenação e o seu efeito estigmatizante.

E como dispõe o artigo 282º, n.º4 al. a) do Código do Processo Penal, o processo prossegue se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta.

No caso sub judice, entendeu o Ministério Público que “O arguido não cumpriu as injunções determinadas no âmbito da suspensão provisória dos autos” e deduziu acusação imputando ao arguido a prática dos mesmos factos objeto da suspensão provisória do processo.

Ora, a doutrina e a jurisprudência têm coincidido no entendimento de que numa situação em que se suscita o eventual incumprimento das regras ou injunções da suspensão provisória do processo e na ausência de previsão legal de um mecanismo próprio, deve ser aplicado analogicamente o regime próprio da suspensão da execução da pena, constante dos artigos 492º a 495 do Código de Processo Penal e nos artigos 55º e 56º do Código Penal (João Conde Correia, Incumprimento parcial dos prazos, injunções e regras de conduta fixados na suspensão provisória do processo, Revista do Ministério Público, Ano 34, nº 134, Abril-Junho 2013, pp 43-61, Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar e Outros, Almedina, 2014, p 989, Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009, p 741, Acórdão da Relação de Lisboa de 18-05-2010, proc. 107/08.6GACCH.L1-5, José Adriano, Acórdão da Relação do Porto de 09-12-2015, proc. 280/12.9TAVNG-A.P1, Nuno Ribeiro Coelho, Acórdãos da Relação de Coimbra de 17-05-2017, proc. 3/16.3PACVL.C1, Luís Teixeira, de 13-09-2017, proc. 81/14.0GTCBR.C1, Jorge França, de ...-09-2017, proc. 361/11.6JFLSB.C1, Paulo Valério e de 18-10-2017, proc. 10/16.6GBGRD.C1, Inácio Monteiro, todos acessíveis in www.dgsi.pt).

Sendo imprescindível a formulação de um juízo de culpa em termos semelhantes aos previstos para a revogação da suspensão da execução da pena, a revogação da suspensão provisória do processo só poderá ocorrer quando for possível afirmar, não só que se verificou efetivamente o incumprimento definitivo da injunção, mas também que o incumprimento é repetido ou censurável, a título de dolo ou de negligência grosseira.

Sobre a problemática em análise pronunciou-se em termos que se têm como inequivocamente corretos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de maio de 2024, acessível in www.dgsi.pt, cuja fundamentação se irá seguir de perto, por a ela aderirmos na sua globalidade. “ (…) O mesmo sucede quanto à revogação da suspensão provisória determinada, uma vez que do n.º 4 do art. 282º do Código de Processo Penal, transcrito, se não extrai a automaticidade da revogação uma vez que se verifique um dos fundamentos previstos na lei. É que a revogação pressupõe uma culpa grosseira ou reiterada no não cumprimento das obrigações impostas ao arguido, dependendo, assim, de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento verificado ([8]).

Deste modo, verificado o incumprimento impõe-se ao Ministério Público averiguar as razões, de modo a aferir a existência de culpa do arguido e a sua medida e ponderar, seguidamente, se a suspensão provisória do processo deve ser prorrogada, modificada ou revogada, em termos semelhantes ao previsto para a suspensão da execução da pena de prisão (arts. 56º e 57º do Código Penal).

Conforme refere Maia Costa ([9]), “O incumprimento deverá ser culposo, ou repetido, em termos idênticos aos que o Código Penal prevê para a revogação da suspensão da pena, no art. 56º, n.º 1, a). Ou seja, o incumprimento não terá que ser doloso, mas deverá ser imputável pelo menos a título de negligência grosseira ao arguido; ou então repetidamente assumido (…)

Assim, a constatação do incumprimento não pode conduzir automaticamente à “revogação” da suspensão, devendo o Ministério Público (ou o juiz de instrução, se a suspensão tiver sido decretada nessa fase) indagar das razões do incumprimento, em ordem a decidir-se pelo prosseguimento do processo para julgamento ou pelo decurso do prazo da suspensão, consoante apure haver, ou não, comportamento culposo, ou repetido, por parte do arguido”.

E Paulo Pinto de Albuquerque: “O incumprimento das condições da suspensão pode ocorrer infringindo o arguido grosseira ou repetidamente as injunções e regras de conduta (…). Não há revogação automática da suspensão provisória do processo, pois ela depende de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento. O critério estabelecido é o do incumprimento das injunções e regras de conduta com culpa grosseira ou reiterada do arguido, tal como prevê o art. 56º do C.P.” ([10]).

Entendemos ainda que o incumprimento poderá determinar, em alternativa à revogação da suspensão provisória do processo, um agravamento das regras de conduta impostas ou a imposição de outros deveres, à semelhança do previsto no art. 55º, al. c), do Código Penal para a suspensão da execução da pena, exigindo-se ali a concordância do Ministério Público, do arguido, do assistente e do juiz de instrução.

Certo é que para aferir os motivos e grau de culpa do arguido no incumprimento das regras de condutas impostas se mostra imprescindível a sua audição, no pleno cumprimento do direito constitucional ao contraditório plasmado no art. 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa: por se tratar de uma decisão que afeta pessoalmente o arguido, a revogação deve ser precedida da sua audição, em termos idênticos ao previsto para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, no art. 495º, n.º 2, do Código de Processo Penal ([11]).

Ou seja, a audição do arguido prévia à revogação tem de ser pessoal, nos exatos termos previstos a norma vinda de citar.

Só deste modo se cumpre plenamente o direito ao contraditório, consagrado ainda no art. 61º, n.º al. b), do Código de Processo Penal, por manifestamente se tratar de uma decisão do tribunal que afeta diretamente o arguido, que verá ser contra si deduzida acusação e, em consequência, ser sujeito a julgamento crime.

No caso, o arguido não foi por qualquer forma ouvido previamente ao despacho que revogou a suspensão provisória do processo. Mais: o arguido requereu a alteração de uma regra de conduta e sobre tal requerimento não houve pronúncia. Mostra-se, pois, violado o princípio do contraditório.

Importa agora extrair as consequências da referida omissão.

Desde logo, recorde-se que o art. 118º, n.º 1, do Código de Processo Penal estabelece o princípio da taxatividade das nulidades.

O recorrente defende que se trata da nulidade secundária prevista no art. 120º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal.

Dispõe esta norma que “Constituem nulidades dependentes de arguição, além das cominadas noutras disposições legais, d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”.

Salvo o devido respeito, não se dirige a norma que prevê a nulidade secundária e sanável transcrita a casos de não audição obrigatória do arguido ([12] ).

Na verdade, constitui direito do arguido, entre outros, “Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomas qualquer decisão que pessoalmente o afete”.

Nem se diga que por se tratar de ato de inquérito, da competência do Ministério Público, se não encontra abrangida a audição do arguido previamente à revogação da suspensão provisória do processo: o ato encontra-se, como se viu, sujeito a amplo contraditório, pois pode afetar a posição do arguido, não havendo qualquer razão para limitar aquele direito aos atos praticados exclusivamente pelo juiz, deixando que o Ministério Público decidisse atos de inquérito suscetíveis de afetar o arguido sem o ouvir, em violação direta do princípio do contraditóri0 consagrado na Constituição da República Portuguesa (art. 32º, n.ºs 1 e 5).

Deste modo, entendendo nós que é ao caso aplicável a norma que estabelece o procedimento com vista à revogação da suspensão da execução da pena, mormente a audição presencial do arguido prevista no art. 495º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ao ter sido proferido o despacho que revogou a suspensão provisória do processo foi cometida a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c), do Código de Processo Penal ([13]).

A nulidade cometida é de conhecimento oficioso, devendo ser declarada em qualquer fase do processo.

A consequência encontra-se prevista no art. 122º, n.º 1, do Código de Processo Penal: a invalidade do ato praticado bem como dos que se lhe seguiram – o que se determinará.”

Assim, sufragando a argumentação perfilhada no Acórdão supra citado e transcrito, que integralmente acolhemos, tendo sido omitida a audição presencial do arguido prevista no art. 495º, n.º 2, do Código de Processo Penal, previamente à prolação do despacho em que, tão só, se decidiu que “ O arguido não cumpriu as injunções determinadas no âmbito da suspensão provisória dos autos. Pelo exposto, os autos prosseguem os seus termos, em conformidade com o estabelecido no artº. 282º, nº. 4, al. a), do Cód. Processo Penal” e se deduziu acusação, foi cometida a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c), do Código de Processo Penal.


*

Decisão

Por todo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em declarar nula a decisão proferida em inquérito pelo Ministério Público em 31 de maio de 2023, que determinou o prosseguimento dos autos em conformidade com o estabelecido no artº. 282º, nº. 4, al. a), do Código de Processo Penal sem que tenha sido precedida de audição do arguido, bem como todos os atos processuais posteriormente praticados.

Sem tributação.


*

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 10 de setembro de 2024

Laura Goulart Maurício

Anabela Simões Cardoso

Jorge Antunes