ESPECIAL COMPLEXIDADE DO PROCESSO
PROPORCIONALIDADE
RAZOABILIDADE
Sumário

I - O juízo sobre a especial complexidade do processo constitui um juízo de razoabilidade e da justa medida na apreciação das dificuldades do procedimento, tendo em conta, nomeadamente, as dificuldades da investigação, o número de intervenientes processuais, a deslocalização de atos, as contingências procedimentais das intervenções dos sujeitos processuais, ou a intensidade da utilização dos meios.
II - O juízo sobre a especial complexidade do processo deve consistir numa ponderação conjugada das concretas dificuldades suscitadas pelo procedimento já realizado e pelo que será expectável ainda ter de ser realizado, segundo critérios de razoabilidade e de proporcionalidade.

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No Proc. de Inquérito nº 62/21.7JBLSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Instrução Criminal de Évora, foi proferido o seguinte despacho judicial (transcrição):
O Ministério Público pede a declaração de excepcional complexidade alegando em síntese o número elevado de vítimas de nacionalidade estrangeira e dispersas pelo país, a existência de outros agentes para além dos arguidos presos preventivos, denúncias pendentes em Espanha, a análise da documentação apreendida e a necessidade de realização e conclusão de perícias informáticas.
Notificados, a pronúncia dos arguidos consta de fls. 3947 que se considera aqui inteiramente reproduzida.
Na investigação que decorre neste inquérito apuram-se, na sequência de primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos, 12 crimes de TSH, previstos e punidos pelo art.º 160/1/a/c e 160/1/b e d) e um crime de auxílio à imigração ilegal previsto e punido pelo artigo 183/2 da Lei 23/2007, de 4 de Julho.
O Ministério Público pretende investigar os crimes de associação de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art.º 184º da Lei n.º 23/2007, de 04 de julho, angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art.º 185.º da Lei n.º 23/2007, de 04 de julho e branqueamento de capitais, p. e p. pelo art.º 368.º-A do Código Penal, falsificação de documentos, p. e p. pelo art.º 256.º do Código Penal.
Nos termos do art.º 215.º, do Cód. Processo Penal:
« 3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime. 4 - A excepcional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.».
A respeito da excepcional complexidade, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-04-2019, proferido no proc. n.º 128/15.2JBLSB-B.L3-9, disponível em www.dgsi.pt.
Refere-se no aresto, «não [é] justificável abdicar antecipadamente de investigar uma parte substancial da atuação grave do arguido neste processo, sob pena, como se disse já, da pena a aplicar-lhe ficar muito aquém da verdadeira (e alargada) dimensão da sua atuação criminosa e, consequentemente, do mesmo obter um benefício ilegítimo.».
Os presentes autos iniciaram-se em 2021 e têm como objecto a investigação da actividade desenvolvida por um grupo de indivíduos em parte em prisão preventiva que de forma concertada com outros residentes em Espanha e noutros país angariam pessoas para trabalharem na agricultura em território nacional, obtendo quantias monetárias ainda não concretamente apuradas que dissipam para a Roménia.
Encontra-se apreendida diversa documentação e dispositivos tecnológicos após as buscas realizadas em várias comarcas do Distrito Judicial Sul.
Nesta operação, as quantias monetárias apreendidas junto dos bancos foram insignificantes dado que por razões não concretamente apuradas os arguidos procederam ao levantamento/transferência das mesmas.
As vítimas são estrangeiras em número ainda não determinado e devem ser ouvidas na fase de inquérito. Assim decorre dos indícios recolhidos que os factos sob investigação se inserem num contexto de criminalidade altamente organizada de tráfico de seres humanos, num contexto transnacional, aguardando-se a conclusão de perícias aos dispositivos tecnológicos, a detenção de outros suspeitos assim que localizados e a recolha de informação junto de autoridades estrangeiras, cuja morosidade é amplamente conhecida. Os autos aguardam a conclusão de exames periciais.
Após os relatórios será possível apurar outros indivíduos, nomeadamente, as empresas e os representantes legais para quem o grupo fornecia os trabalhadores. Não se exclui a necessidade de recurso ainda durante o inquérito de outros meios de obtenção de prova a definir.
As diligências probatórias, nomeadamente, as referentes aos dispositivos tecnológicos são de ordem a considerar a anormal o desenvolvimento do processo e não se pode deixar de analisar a responsabilidade criminal de todo o grupo criminoso.
O crime investigado – de tráfico de seres humanos - permite a declaração de excepcional complexidade, por integrar o conceito de criminalidade altamente organizada.
O requisito temporal, que o n.º4, do art.º 215.º fixa, encontra-se, igualmente, verificado.
No que respeita ao requisito material, ponderando todos os argumentos expendidos, e concordando com os apresentados pelo Ministério Público, que se consideram aqui inteiramente reproduzidos, devido ao carácter exemplificativo do conceito de excepcional complexidade prevenido no art.º 215.º, n.º3, e aos factores elencados na lei de forma não cumulativa, somos a considerar que tal requisito também se encontra preenchido.
Por o Ministério Público pretender investigar a associação criminosa transnacional e de actuação dispersa, as diligências são vastas e demoradas, mas necessárias a consolidar os indícios e a despistar os contra-indícios; o que é incompatível com os prazos normais legalmente previstos, o que está em conformidade com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2005 citado pelos arguidos.
Verificados todos os pressupostos dever-se-á declarar a excepcional complexidade dos autos.
Em conformidade, ao abrigo do art.º 215.º, n.º1, al. a), n.º2, al. e), n.ºs 3 e 4, do Cód. Processo Penal, declaro a excepcional complexidade dos presentes autos.
Notifique.
Junte cópia do despacho ao traslado para o acompanhamento das medidas de coacção privativas da liberdade.

B – Recurso

Inconformados com o assim decidido, recorreram os arguidos F, C, M, T, A e G, em peça conjunta, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1ª – O despacho ora recorrido menciona que este processo se enquadra na criminalidade altamente organizada, e bem assim que importa, ainda levar a cabo um conjunto de diligências, que não se compadecem com a duração de 6 meses do inquérito.
2ª - Ora, com todo o respeito, importa desde logo chamar á colação o facto indesmentível, que a presente investigação teve a sua génese a 26/09/2021.
3ª - Assim, aquando da realização das buscas, que ocorreram a 22/11/2023, já havia decorrido um período de mais de dois anos, mais propriamente dois anos e 2 meses.
4ª - Tal período de tempo foi longo, como longas e múltiplas foram as diligências até então levadas a cabo, com devassa da reserva da vida privada dos então suspeitos, por largo hiato temporal.
5ª - A investigação teve “todo o tempo do mundo” ao seu dispor para fazer o que muito bem entendeu, com o total beneplácito do Mmº JIC, que deferiu todo o requerido pelo MP.
6ª - Mormente a inquirição para memória futura de múltiplas testemunhas, muito antes de qualquer suspeito ter sido constituído arguido, impossibilitando assim o exercício do contraditório através da constituição pelos mesmos de advogado(s), por si escolhido(s), e antes nomeando-lhe defensor(es) “ad hoc”…
7ª - Ao fim de 26 meses, veio o MP a solicitar a emissão de mandados de busca e detenção contra os então suspeitos.
8ª - Ora presume-se que, quando o MP opta por deter e buscar, é porque, na sua ótica, a investigação já atingiu um grau de maturação, que o justifica, ou seja, que a prova, na sua maioria, já se encontra adquirida e conservada.
9ª - Tanto assim é que o MP, relativamente á maioria dos então já arguidos, pugnou pela respetiva prisão preventiva. Só depois da prisão preventiva de grande parte dos arguidos é que o MP se lembra, que a investigação é complexa e vem solicitar a presente declaração, que foi deferida pelo despacho recorrido.
10ª - Mais, nestes autos, em plenas férias judiciais, a 27/12/23, foram, devido á urgência na conclusão do inquérito, designadas e realizadas, sem hipótese de adiamento, inquirições de testemunhas para memória futura.
11ª - Celeridade essa que contrasta com o presente pedido para declaração de excecional complexidade, feito quando o prazo “normal” de duração do inquérito ainda está a meio, e foram já realizadas, a 15/04/24 novas declarações para memória futura.
12ª - Aliás, o facto de ser, eventualmente, necessária a realização de outras diligências investigatórias, de forma a serem ouvidas mais testemunhas e constituídos outros arguidos, tal situação é normal e nada tem de extraordinário, pelo que não pode justificar a declaração de excecional complexidade.
13ª - Quanto ao argumento referente às diligências probatórias, nomeadamente referentes aos dispositivos tecnológicos que o despacho considera de ordem anormal ao desenvolvimento do processo, salvo o devido respeito, mas o despacho não concretiza porque razão as adjetiva de “ordem anormal”.
14ª - De todo o supra exposto, resulta que “in casu” não deveria ter sido declarada a especial complexidade dos autos.
15ª - O despacho recorrido violou o disposto no artigo 215º, nºs 1, 2 e 3 do CPP.
16ª - Pelo que deve ser concedido provimento ao presente recurso.
***
Considera-se fundamental para instruir o presente recurso:
- Despacho que aplicou P.P. aos recorrentes a 24/11/23;
- Promoção do MP para ser declarada a especial complexidade;
- Requerimento da defesa no qual se opôs, enviado a 05/03/23;
- Despacho Recorrido.
TERMOS EM QUE, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA REVOGADO O DESPACHO RECORRIDO.

C – Resposta ao Recurso

O M. P, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1. Os arguidos encontram-se fortemente indiciados pela prática, entre outros crimes, do crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art.º 160.º do Código Penal, pelo que se enquadra no conceito de criminalidade altamente organizada, conforme resulta do disposto no art.º 1.º n.º 1 alínea m) do C.P.P..
2. O incidente de excecional complexidade do processo está regulado na lei processual penal portuguesa de forma dispersa, inexistindo um regime geral que regule a legitimidade, os requisitos, a competência, a tempestividade, os efeitos, entre outros aspetos, para além da redundância decorrente do art.º 215º, ns.º 3 e 4 do Código de Processo Penal, prevendo como circunstâncias a ter em conta o número de arguidos/ofendido (sem dizer qual) e o caráter altamente organizado do crime.
3. Trata-se, pois, de um conceito em branco a ser preenchido em cada caso concreto pelo decisor, cabendo à doutrina e à jurisprudência moldar o entendimento sobre as particularidades motivadoras de tal juízo.
4. Assim, parece assente que o juízo em causa tenha de decorrer da realidade factual e particular de cada caso concreto e fase processual respetiva sendo formulado e ponderado em função de particularidades paulatinamente aferidas, preenchendo-se, pois, tal conceito em função de cada caso concreto.
5. Serão assim fatores como o elevado número de arguidos, o caráter internacional da atividade investigada, a deslocalização de atos, a variedade e abundância de documentação recolhida e a analisar, o número de ofendidos, sobretudo quando cada ofendido representa um crime (tal como sucede no caso dos autos com o crime de tráfico de pessoas), que devem ser ponderados para efeitos de preencher tal conceito.
6. Com bem escreve Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª edição, Universidade católica Editora, pág.ª 281, “(…) A declaração deve, pois, fundar-se em fatores objetivos que coloquem uma dificuldade adicional, acrescida, de natureza excecional, ao juiz, não sendo por isso suficientes fatores de natureza subjetiva. Assim, a repercussão social do crime ou a especial notoriedade do arguido não são, em si, motivos suficientes para a declaração”.
7. De igual modo no Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 17.03.2015 (in Base de dados DGSI) entendeu-se que “I - O juízo sobre a “excecional complexidade” do processo é um juízo prudencial, de razoabilidade, de critério da justa medida na apreciação e na avaliação das dificuldades suscitadas pelo procedimento. II - O elevado número de ofendidos, as contingências procedimentais provenientes da necessidade de ouvir tais ofendidos (enquanto testemunhas) em diversos países estrangeiros, e o elevado número de crimes de roubo imputados ao arguido, são elementos a atender para considerar que o procedimento se reveste de “excecional complexidade (…)”.
8. Tomando tais ensinamentos como referência afigura-se nos que no caso dos autos onde foi proferida a decisão em recurso, se verifica que:
- estão neste momento identificadas mais de 20 vítimas da atividade criminosa desenvolvida pelos arguidos;
- o número de arguidos é superior a 10;
- a atividade criminosa passa por Espanha, Roménia, Moldávia, estendendo-se até Portugal;
- decorreu durante anos, gerando proventos acumulados;
- os apensos com elementos documentais e em suporte digital apreendidos são numerosos;
- por cada vítima existirá um crime de tráfico de pessoas;
- trata-se de criminalidade altamente organizada, com uma estrutura alicerçada numa base familiar, com dezenas de intervenientes, gerindo centenas de trabalhadores estrangeiros em situação ilegal em território nacional.
9. Por isso, entende o Ministério Público que se justifica, sem margem para dúvidas, a declaração da excecional complexidade, visando, pois, alargar o prazo de conclusão de todas as diligências.
10. O M.º Juiz de Instrução, como não podia deixar de ser, considerou esses elementos como suficientes e relevantes para efeitos de sustentar e assim justificar a declaração de excecional complexidade, reconhecendo-os como fatores que acarretavam maior dificuldade de tramitação, constituindo acertada aplicação do direito ao caso concreto, não merecendo qualquer censura.
11. No caso concreto estamos perante um elevado número de arguidos e ofendidos, acrescendo a dificuldade de captar integralmente o seu paradeiro por serem cidadãos estrangeiros e que maioritariamente estavam clandestinos em Portugal; os atos foram praticados não só no Baixo Alentejo e Alto Alentejo, estendendo-se a zonas agrícolas próximas de Lisboa/Alcochete.
12. Não pode deixar de se ter em consideração, como foi referido na decisão do M.º Juiz, o acervo de elementos probatório de cariz documental, facilmente aferível, pelo volume de apensos com apreensões de elementos nas várias buscas realizadas, suscita um esforço acrescido de análise, sobretudo em contraponto com o número de arguidos, intervenientes e demais elementos de cariz informático também apreendidos.
13. Assim, como é fácil perceber, tratam-se de investigações complexas e morosas, não só na fase que antecede as diligências intrusivas de recolha de prova, como as interceções, buscas e detenções, como depois, em face da prova recolhida nessas diligências, urge efetuar um conjunto de perícias, inquirições, análises bancárias, contabilísticas que não se compadecem com a duração máxima da prisão preventiva, ou seja, 6 meses.
14. Sendo certo que os primeiros factos denunciados datam de 26/09/2021(NUIPC100/21.3GFEVR) e, posteriormente outras vítimas apresentaram queixa, que deram origem a inquéritos que foram apensados, sendo que toda a factualidade em investigação está relacionada com os elementos da família S, sob o domínio de F, e seus ajudantes, nomeadamente, os arguidos/recorrentes.
15. Não é menos verdade que, desde que houve conhecimento da atividade ilícita perpetrada pelos arguidos que a investigação procurou ser exaustiva no sentido de confirmar a atividade desenvolvida pelos suspeitos e carrear para os autos elementos de prova que permitissem o cabal esclarecimento dos factos e dos sujeitos envolvidos nesse esquema criminoso.
16. A investigação foi norteada pela preocupação de ir recolhendo as declarações das vítimas em declarações para memória futura, não só para permitir que pudessem seguir as suas vidas e até regressarem aos seus países de origem, mas também para sustentar a prova da atividade de tráfico de pessoas desenvolvida pelos arguidos.
17. Não tendo qualquer intuito de obstar o exercício do contraditório conforme é alegado pelos arguidos!
18. Sendo que a urgência em recolher as declarações das vítimas, em plenas férias judiciais, a 27 de Dezembro de 2023, foi justificada pela vontade manifestada pelas vítimas de quererem abandonar o país e terem viagens marcadas para regressarem ao país de origem ou para onde tinham família de suporte.
19. Aliás, foi dado conhecimento aos arguidos dos motivos da urgência e da impossibilidade de adiar para Janeiro de 2024!
20. E claro que prevaleceram as razões de urgência das vítimas, sem qualquer prejuízo para os arguidos, e por esse motivo realizaram-se as declarações para memória futura em plenas férias judiciais!
21. Posteriormente, e do decorrer das diligências de investigação realizadas com base nos elementos de prova recolhidos na sequência das buscas e detenções, foram identificadas outras vítimas da atividade criminosa desenvolvida pelos arguidos, e por isso, foram agendadas declarações para memória futura, que tiveram lugar no dia 15.04.2024.
22. Tal revela à saciedade que ainda há prova que é necessário recolher, pois com a detenção dos arguidos foi possível identificar vítimas que até aí eram desconhecidas da investigação.
23. Face ao exposto, é por demais evidente que a investigação não está a ser feita ao “ralenti”, tudo o que tem sido feito, tem tido sempre subjacente a preocupação de imprimir a maior urgência possível de forma a concluir a investigação o mais breve possível!
24. Igualmente refutamos a alegação de que a investigação teve “todo o tempo do mundo”.
25. A investigação teve e deve ter o tempo estritamente necessário ao cabal esclarecimento dos factos, à identificação de todos os indivíduos envolvidos na atividade criminosa desenvolvida pelos arguidos e à recolha para os autos da prova que sustente a factualidade que lhes é imputada.
26. Em suma, à conclusão da investigação!
27. Sendo importante referir que os arguidos/recorrentes eram de tal forma atentos a qualquer movimentação das autoridades policiais que, em Novembro de 2022, quando se aperceberam das buscas e detenções efetuada no âmbito de um outro processo crime em que se investigava igualmente o crime de tráfico, mostraram preocupação e reforçaram as cautelas, sendo tal perfeitamente percetível nas interceções telefónicas juntas aos autos (cfr. sessão 2782 de 24.11.2022/ sessão 5732 de 19.12.2022).
28. E por isso, é inegável que, a investigação teve de aguardar por estarem reunidas as condições para se efetuarem as buscas domiciliárias e não domiciliárias, bem como a detenção dos arguidos.
29. E tal ocorreu quando a investigação já reunia elementos de prova que sustentavam os fortes indícios da prática do crime de tráfico de pessoas e outros crimes, por parte dos arguidos/recorrentes.
30. Por isso, ao invés do alegado, as razões que motivaram a requerida declaração de excecional complexidade do processo estão identificadas, são autónomas mas não indiferentes aos seus efeitos legais e é necessário o seu reconhecimento para concluir as diligências que se impõem, concretamente atentas as dificuldades decorrentes de inquirir dezenas de testemunhas (algumas com paradeiro desconhecido), constituir como arguidos pessoas coletivas, bem como na natureza transacional da atividade em causa e na difícil mas necessária análise de largo acervo documental (apreendido), e perícias informáticas aos dispositivos apreendidos, entre outros fatores.
31. Resulta com evidência da decisão em recurso que o M.º Juiz de Instrução elencou as concretas circunstâncias que no caso suscitavam uma anormal dificuldade de conclusão das diligências de investigação, nomeadamente pelo maior esforço e morosidade tendo em conta o alargado número de intervenientes e de perícias que carecem de ser realizadas para que a investigação possa estar concluída e avançar para a prolação do despacho final.
32. O despacho recorrido, numa primeira fase, fez uma ponderação das razões invocadas pelo Ministério Público e seguidamente interpretou as mesmas face à lei e em contraponto com as respostas apresentadas pelos arguidos/recorrentes.
33. De seguida, o M.º Juiz de Instrução ponderou sustentadamente os requisitos formais da declaração de excecional complexidade, concretamente sobre o momento temporal e a fase processual em que a mesma possa ocorrer, entrando na análise do conceito de excecional complexidade, expondo o seu entendimento de que na falta de um conceito legal terão de ser sopesados diversos fatores que pela sua vastidão, dificuldade ou demora previsível acarretam um arrastamento dos termos processuais e tempo de conclusão.
34. Entrou depois o M.º Juiz na aplicação ao caso concreto e aqui de forma objetiva e sustentada, referindo como fatores justificativos da especial complexidade, o número elevado de arguidos/suspeitos da prática dos factos, o elevado número de vítimas, em número ainda não determinado e a nacionalidade estrangeira da vítimas e dos arguidos /suspeitos; sopesou ainda o cariz transnacional da atividade, a necessidade de recolha de informação junto de autoridades estrangeiras; referiu ainda como circunstância relevante o facto de existirem periciais informáticas em curso, diligências morosas.
35. Por isso, estamos perante diligências de investigação vastas e morosas, mas necessárias para consolidar os indícios e despistar os contra-indícios, o que é, obviamente, incompatível, com os prazos normais legalmente previstos, o que está em linha com a posição defendida no Acórdão do supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2005 citado pelos arguidos/recorrentes.
36. Foram estes fatores retirados da realidade do processo que motivaram a decisão em recurso, revelando a convicção do decisor pela justificação em concreto da declaração da excecional complexidade do inquérito.
37. Termos em que tudo ponderado, entendemos que falece fundamento de facto e de direito para a procedência do recurso apresentado pelos arguidos F, C, M, T, P e G.
38. Não se se verificando que o despacho recorrido tenha violado quaisquer normativos, nomeadamente os artigos 215.º n.º 1, 2, 3,4, do Código de Processo Penal, 205.º da Constituição da República Portuguesa, nem constitui errada interpretação do disposto no art.º 215.º n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
39. Razão pela qual, não merece qualquer reparo ou censura, devendo ser mantida na integra e negado provimento ao recurso ora apresentado pelos arguidos F, C, M, T, P e G.
Termos em que deve ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto pelos arguidos, mantendo-se a douta decisão recorrida nos seus exatos termos.

D – Tramitação subsequente

Recebidos os autos nesta Relação, foram os mesmos com vista ao Exº Procurador-Geral Adjunto, que emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, foi apresentada resposta pelos recorrentes, reafirmando os seus argumentos.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão aos recorrentes quando entendem inexistir fundamento para que se tenha declarado a especial complexidade dos presentes autos.

B – Apreciação

A noção de especial complexidade de um processo, sendo um conceito amplo, aberto e com algum grau de indeterminação, a ser preenchido, casuisticamente, pelo julgador, tem subjacente como razão de fundo, para além do mais, a impossibilidade de cumprimento dos prazos legais previstos, designadamente para a prisão preventiva, sobrepondo-se a esta o interesse numa melhor investigação.
A sua declaração deve ser feita em despacho fundamentado e implica uma valoração vinculada aos direitos e deveres resultantes de tal declaração e aos critérios, ainda que imperfeitamente expressos, no Artº 215 do CPP, que apenas alude ao número de arguidos/ofendidos (sem os concretizar), e ao caráter altamente organizado do crime.
Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª edição, Universidade católica Editora, pág. 281, escreve que “A declaração deve, pois, fundar-se em fatores objetivos que coloquem uma dificuldade adicional, acrescida, de natureza excecional, ao juiz, não sendo por isso suficientes fatores de natureza subjetiva. Assim, a repercussão social do crime ou a especial notoriedade do arguido não são, em si, motivos suficientes para a declaração”.
Já o Supremo tribunal de Justiça, em aresto de 26/01/05, ensinara que “….onde se refere que tal conceito "constitui, no rigor, uma noção que apenas assume sentido quando avaliada na perspetiva do processo, considerado não nas incidências estritamente jurídico-processuais, mas na dimensão factual de procedimento enquanto sequência e conjunto de atos e revelação externa e interna de acrescidas dificuldades de investigação, composição e sequência com refração nos termos e nos tempos do procedimento. A decisão sobre a verificação da especial complexidade não depende, pois, da aplicação da lei a factos e da integração de elementos compostos com dimensão normativa, nem está tributária da interpretação de normas. O juízo sobre a complexidade assume-se, assim, como juízo prudencial, de razoabilidade, de critério da justa medida na apreciação e avaliação das dificuldades suscitadas pelo procedimento. Mas, dificuldades do procedimento e não estritamente do processo; as questões de interpretação e de aplicação da lei, por mais intensas e complexas, não atingem a noção. As dificuldades de investigações (técnicas, com intensa utilização das leges artis da investigação), o número de intervenientes processuais, a deslocalização dos atos, as contingências procedimentais provenientes das intervenções dos sujeitos processuais, a intensidade de utilização dos meios, tudo serão elementos a considerar, no prudente critério do juiz, para determinar que um determinado procedimento apresenta, no conjunto ou, parcelarmente, em alguma das suas fases, uma especial complexidade com o sentido, essencialmente de natureza factual, que a noção funcionalmente assume no artigo 215º, n.º 3, do CPP. A especial complexidade é, por isso, uma noção de facto.”
Esta Relação, por sua vez, em acórdão de 17/03/15, disponível em www.dgsi.pt, expressou que “Para a integração do conceito, indica o legislador, a título de exemplo (como é função do advérbio “nomeadamente”), dois tópicos: a “excecional complexidade” será revelada, nomeadamente, pelo número de arguidos ou de ofendidos ou pelo carácter altamente organizado do crime.
Por conseguinte, a consideração de um procedimento como sendo de “excecional complexidade” tem de ser ponderada, em larga medida, à luz de espaços de indeterminação, mas pressupondo, sempre, uma rigorosa análise de todos os elementos do procedimento e uma pronúncia sobre a concreta configuração processual em causa, ou seja (e resumindo), tem de ser ditada, caso a caso, uma decisão prudencial sobre a questão. A “excecional complexidade” constitui, assim, uma noção que apenas assume sentido quanto avaliada na perspetiva do processo, considerado não nas incidências estritamente jurídico-processuais, mas na dimensão factual do procedimento enquanto sequência e conjunto de atos e revelação externa e interna de acrescidas dificuldades de investigação e/ou de julgamento, dificuldades essas com tradução visível nos termos e nos tempos do procedimento.
A decisão sobre a verificação da “excecional complexidade”, por isso mesmo, não depende da aplicação da lei a factos e da integração de elementos compostos com dimensão normativa, nem está tributária da interpretação de normas.
O juízo sobre a “excecional complexidade” assume-se, pois, como um juízo prudencial, de razoabilidade, de critério da justa medida na apreciação e na avaliação das dificuldades suscitadas pelo procedimento.
Feito este excurso teórico, e revertendo ao caso destes autos, o muito elevado número de ofendidos, as contingências procedimentais provenientes da necessidade de ouvir tais ofendidos (enquanto testemunhas) em diversos países estrangeiros, e o elevado número de crimes de roubo imputados ao ora recorrente, tudo serão elementos a considerar, de acordo com um prudente critério (de justa medida, de normalidade e de razoabilidade), para determinar se o presente procedimento apresenta ou não uma “excecional complexidade.”
Serão assim factores como o elevado número de arguidos, o carácter internacional da actividade investigada, a deslocalização de actos, a variedade e abundância da documentação recolhida e a analisar, o número de ofendidos, sobretudo quando cada ofendido representa um crime (tal como sucede no caso dos autos com o crime de tráfico de pessoas), que devem ser ponderados para o preenchimento de tal conceito.
Ora, tendo estes vectores por referência, é evidente que no in casu os mesmos se mostram verificados por inteiro, na medida em que:
- estão neste momento identificadas mais de 20 vítimas da actividade criminosa desenvolvida pelos arguidos;
- por cada vítima existirá um crime de tráfico de pessoas;
- o número de arguidos é superior a 10;
- a actividade criminosa atravessa Espanha, Roménia, Moldávia, estendendo-se até Portugal;
- actividade que decorreu durante anos, gerando proventos acumulados;
- são numerosos os apensos com elementos documentais e em suporte digital apreendidos;
- trata-se de criminalidade altamente organizada, com uma estrutura alicerçada numa base familiar, com dezenas de intervenientes, gerindo centenas de trabalhadores estrangeiros em situação ilegal em território nacional.
Como muito bem nota o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, que agora, com a devida vénia, se transcreve, importa “…colocar o acento tónico no facto de estarmos perante a denominada “criminalidade transnacional”, já que e pese embora os factos típicos terem ocorrido em território nacional, vítimas e arguidos são de diversas nacionalidades o que, em larga medida, dificulta a investigação e a recolha de prova.
A Criminalidade Organizada Transnacional constitui-se como uma ameaça à integridade do Estado de Direito, aos direitos e liberdades dos cidadãos, e à segurança económica e financeira nacional. Estando Portugal inserido num espaço económico-financeiro global, integrado na União Europeia e no Espaço Schengen e com características históricas e geográficas que fazem do território nacional um eixo relevante no triângulo Europa-África-América, o nosso país não é naturalmente imune à atuação de estruturas de crime organizado transnacional, seja para a prossecução de atividades criminosas diretas ou de crimes económicos e financeiros conexos, sobretudo o branqueamento de capitais.
Acresce que, o tráfico de seres humanos tem uma estreita ligação com a criminalidade altamente organizada de acordo com o Protocolo relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças (adicional à Convenção de Palermo) que define no seu art. 3º tráfico como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coacção, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração”.
Ora, salvaguardando sempre o devido respeito por opinião contrária, o que acima se referiu no que toca ao circunstancialismo concreto dos autos seria o bastante para sufragar o despacho recorrido, porquanto do elenco das especificidades da situação sub judice, seja pelo número de ofendidos e de arguidos, seja pela natureza da actividade em causa, de natureza verdadeiramente transnacional e de uma criminalidade altamente organizada, seja ainda, pelas dificuldades decorrentes da necessidade de analisar inúmeros apensos de prova documental e em formato digital, torna-se evidente o preenchimento, de facto, do conceito legal de especial complexidade do processo.
É certo que o juízo de declaração de um processo como especialmente complexo deve ser ponderado, prudente, equilibrado e revestido da sensatez necessária, desde logo, pelo aumento do prazo de prisão preventiva que implica para os arguidos.
Mas, in casu, as complexidades da investigação são reais, concretas e evidentes, pelo tipo de criminalidade em causa, pelo seu carácter altamente organizado, pelo modo com atravessa vários países com os inerentes condicionalismos procedimentais e a deslocalização de actos, pelo número de intervenientes processuais e pela quantidade e diversidade dos meios de prova que terão de ser aferidos numa visão conjunta e concatenada.
Os factos sob investigação inserem-se num contexto de criminalidade altamente organizada de tráfico de seres humanos, em contexto transnacional, sendo certo que ainda se aguarda pela conclusão de perícias aos dispositivos tecnológicos e pela recolha de informação junto de autoridades estrangeiras, cuja morosidade é amplamente conhecida e, eventualmente, pela detenção de outros suspeitos assim que localizados.
Nesta medida, torna-se evidente o acerto do tribunal a quo na declaração de especial complexidade dos autos, sendo que o crime investigado - tráfico de seres humanos - permite a declaração de excepcional complexidade, por integrar o conceito de criminalidade altamente organizada.
Pelo exposto, não é o recurso merecedor de provimento.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter o despacho recorrido.
Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Artsº 513 nº1 e 514 nº1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 10 de setembro de 2024

Renato Barroso
Beatriz Marques Borges
Maria José Cortes