PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
PROVAS JUDICIALMENTE ADMITIDAS
PROVA TESTEMUNHAL
ATO INÚTIL
Sumário

I – A decisão recorrida não é nula quando contém os fundamentos de facto e de direito que a sustentam e quando o Tribunal analisou todas as questões relevantemente colocadas pelas partes.
II – Num processo de acompanhamento de maior, face ao regime previsto no art. 986º, nº 2, do C.P.C., por força da remissão operada pelo art. 891º, nº 1, do mesmo diploma legal, só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

         I – RELATÓRIO.

         AA, solteira, com NIF n.º ...05, residente na Travessa ..., ..., ... ...,

instaurou no Juízo Local Cível da Figueira da Foz acção especial de acompanhamento de maior relativamente a

         BB,

        pedindo, por razões de saúde e prodigalidade melhor discriminadas no requerimento inicial, que seja decretado o acompanhamento da beneficiária, por a mesma se mostrar impossibilitada de exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e cumprir os seus deveres [1].

         ***

           A requerida/beneficiária foi regularmente citada, não tendo sido apresentado resposta (art. 896º do C.P.C. [2]), após o que se procedeu à audição prevista no art. 898º do C.P.C., bem como à realização de exame por perito designado pelo INMLCF. 

            ***   

           Em 3/4/2024, concluídas as diligências periciais, foi proferida sentença que julgou a a acção improcedente, não sendo decretado o acompanhamento da beneficiária a que os autos se reportam.


***

           Não se conformando com a decisão proferida, a requerente interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

            (…).


***

           O Ministério Público contra-alegou, concluindo nos seguintes moldes:

            (…).


***

           Questão objecto do recurso: nulidade da decisão recorrida, decorrente, em particular, da omissão de diligências probatórias requeridas pela apelante.

            ***

            II – FUNDAMENTOS.

            2.1. Factos provados.

            A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:

            1. A requerida nasceu no dia ../../1962 e é filha de CC e de DD.             2. A requerida reside sozinha na Rua ..., ... ....

            3. A requerida tem três filhas, a aqui requerente AA, EE e FF.

            4. Aos 16 anos de idade a requerida teve a sua primeira consulta de psiquiatria.

           5. E a partir dos 23 anos passou a ser seguida regularmente pelas suas descompensações, por episódios depressivos graves e fases maníacas.

            6. Com o passar dos anos, a situação foi evoluindo, passando a ter necessidade e a ser receitados antidepressivos, estabilizadores de humor, anti psicóticos, ansiolíticos e indutores de sono.

            7. Desde janeiro de 2001 que a requerida é seguida por médico psiquiatra, por sofrer de Perturbação Bipolar I, complicada por uma FTD (Frontotemporal dementia).

            8. No início de 2009, a requerida desenvolveu problemas graves de alcoolismo, o que a vem afetando até ao presente.

            9. Episódios de embriaguez que agravaram os seus problemas de saúde e situação clínica, o que teve forte impacto na sua performance profissional.    

           10. Em agosto de 2015, foi diagnosticada à requerida patologia depressiva.

           11. A requerida foi trabalhadora da Câmara Municipal ..., entre ../../1987 e ../../2016, com a categoria de Técnica Superior, estando desde ../../2011 afeta à Divisão de Cultura – Biblioteca, e em regime de horário de trabalho flexível a partir de 01 de agosto de 2015.         

           12. A requerida continuou repetidamente com baixas médicas por não se encontrar em condições de exercer a sua atividade laboral, tendo apresentado inúmeros certificados de incapacidade temporária para o trabalho.

            13. E por informação clínica de 23 de setembro de 2016 do Sr. Dr. GG, vem referido que “Face ao exposto, não se encontra capaz de retomar as suas funções laborais, carecendo de internamento com a brevidade possível”.

           14. Internamento que efetivamente se veio a verificar em 2016, como também consta do referido relatório médico.

           15. A requerida é uma pessoa que sofre de défices amnésicos grosseiros, enfrenta enormes desafios no que toca à problemática social – tem dificuldade em expressar-se e perceber a comunicação dos outros - sofre de aplanamento dos afetos, de afasia semântica – tem défices na comunicação verbal e não-verbal, quer na lógica, quer na gramática - com prejuízo de funções executivas, com ausência de crítica face a comportamentos socialmente desadequados.

           16. Tendo-lhe sido diagnosticada, através de Tomografia Computadorizada Crâneo- Encefálica (TAC-CE), uma “(…)Involução do volume encefálico co maior expressão cortical e predomínio fronto-temporal bilateral. (…)”, imagens compatíveis com FTD.           

            17. FTD ou “Frontotemporal Disorder”.

           18. Em 2020 a requerida apresentou pedido de aposentação por invalidez, o qual foi deferido, que se junta e se dá por inteiramente por reproduzida.

           19. A requerida mantém hábitos graves de alcoolismo, consumindo exageradamente bebidas alcoólicas.           

           20. A requerida consume e faz gastos diários desnecessários, celebra negócios e faz compras absolutamente inúteis.

           21. A. requerida não tem autocontrolo sobre a sua situação patrimonial, gasta o que tem e o que não tem, sem disso sequer dar conta.

           22. Descurando os encargos e despesas básicas que tem regularmente de cumprir.

           23. A requerida tem e assumiu responsabilidades de crédito.

           24. A. requerida adquiriu um aspirador no valor de 2.995,00€, tendo para tanto se endividado.

           25. A requerida contraiu um crédito pessoal ao consumo junto do Banco 1..., SA, o qual já se mostra em incumprimento, conforme se vê da comunicação da referida instituição de 26 de abril de 2022.

           26. E bem assim contrato de crédito, na modalidade de facilidade de descoberto, em que a requerida esgota repetidamente o seu plafond.

           27. O que resultou também numa dívida com a Banco 2..., SA, tendo agora de realizar pagamentos de 50,56€ mensais.         

            28. A requerida possui ainda um cartão de crédito com período de free-float, cuja utilização habitual e desregrada resultou em dívida para com a Banco 2..., tendo de realizar pagamentos de 178,56€ mensais.

            29. A requerida gasta todos os seus rendimentos, incorrendo na falta de pagamento das suas responsabilidades de crédito e bem assim das despesas básicas com os serviços de água, eletricidade, MEO comunicações.

           30. A requerida aufere rendimentos no valor total de €1.061,67.

           31. É a filha aqui requerente é que vem acompanhando e tratando da sua mãe, no que pode e no que está ao seu alcance, inclusivamente, controlando o montante auferido por reforma e procedendo ao pagamento das despesas.

           32. Tentando controlar o consumo de álcool e evitar episódios graves de embriaguez.

            33. Acompanhando a requerida ao médico e bem assim em tudo o que está relacionado com a sua saúde.

           34. Aguardando presentemente por vaga no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra – Unidade Sobral Cid, sendo necessário também garantir o seu devido acompanhamento.

            35. A requerida sabe ler, escrever e fazer contas.

            36. A requerida veste-se e toma banho sozinha.

            37. A requerida orienta-se espácio-temporalmente.

           38. O discurso é espontâneo, fluente e coerente, apresenta humor eutímico, não se objetivando alterações dos afetos ou sintomatologia psicótica (sob a forma de alucinações, alterações formais do pensamento ou delírios).    

           39. Clinicamente não foram objetivados défices mnésicos significativos, incluindo na capacidade de compreensão de conceitos de complexidade variável, reconhecimento de objetos e pessoas e pensamento abstrato.

          40. Do ponto de vista psicométrico apuraram-se défices em funções cognitivas específicas, nomeadamente processos de capacidade visuoespacial (na evocação imediata de natureza visual) e processos atencionais, com dificuldades na exploração visual, velocidade de processamento, sequenciação e flexibilidade cognitiva.

            41. Não se verificou o comprometimento da atenção, orientação, retenção e cálculo, de processos mnésicos verbais específicos (evocação imediata e diferida de informação verbal não estruturada, capacidade de aprendizagem e retenção de material conceptual).

           42. A requerida reconhece o dinheiro e a sua aplicação, admitindo, contudo, que a sua conta bancária é presentemente gerida por uma das suas filhas por ter realizado gastos excessivos. Refere não fazer habitualmente compras (como, por exemplo, de bens alimentares) e pagamentos de utilidades domésticas “porque houve sempre quem fizesse por mim”.

           43. É totalmente autónoma nas atividades de vida diária como deslocações, higiene e cuidados pessoais (conta apenas com uma empregada para auxílio nas tarefas domésticas e na preparação de refeições, como foi habitual ao longo da sua vida), escolha e uso de vestuário, assim como para as atividades instrumentais de vida diárias de utilização de meios de comunicação e de transporte, estando relegada para a filha, como já acima referido, a tarefa de gestão dos seus rendimentos.

           44. Apreciados alguns défices, ligeiros, em algumas funções cognitivas, o quadro em presença não condiciona ainda, mesmo na presença de alterações imagiológicas, uma interferência significativa na realização independente das atividades de vida diárias ou nas atividades instrumentais de vida diárias da requerida, ou uma limitação na sua capacidade de expressão de vontade.

           45. O alcoolismo da requerida inscrito numa perturbação de personalidade, com limitações ligeiras de algumas funções cognitivas específicas não impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

            46. As atuais dificuldades da requerida na gestão financeira (que, tanto quanto nos foi dado perceber, são longitudinais, desde longa data, e não um evento recente) encontram-se desde há algum tempo a ser supridas pela cooperação e assistência de familiares.

           47. A requerida evidencia, para além de uma perturbação de personalidade (6D10.Z da CID-11), um padrão de uso e abuso de álcool (6C40.2 da CID-11) e episódios depressivos recorrentes (6A71 da CID-11).  48. Do ponto de vista estritamente psiquiátrico-forense, este contexto não impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.


***

2.2. Factos não provados.


           Pelo Tribunal a quo foram considerados não provados os seguintes factos:

           - Os episódios de embriaguez chegaram a colocar em perigo a vida da requerida ( art.º 13.º da PI).

           - No passado mês de fevereiro de 2023, a requerida recebeu a sua reforma e no final desse mesmo dia logo apresentou situação bancária negativa (art.º 42,º da PI).

           -A requerida tem sérios défices de memória e demência ( art.º 59.ºda PI).

           - A requerida não tem autonomia, sendo incapaz de reger condignamente a sua pessoa e bens, mercê da doença deque padece (art.º 61.º da PI).


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2.3. Impugnação da matéria de facto.


            Sustenta a apelante, em primeiro lugar, que a sentença recorrida padece de nulidade, de acordo com o disposto no art.º 615º, n.º 1, alínea d), do C.P.C., em virtude de ter sido requerida e não produzida prova por declarações de parte e prova testemunhal, elementos estes que a recorrente considera essenciais para a decisão da causa.

            Estabelece a referida norma que “É nula a sentença quando: (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;”.

            No que ao caso diz respeito, não se afigura, após compulsarmos a decisão recorrida e toda a tramitação que a antecedeu, que ocorra o vício a que o apelante faz referência, uma vez que o mesmo diz respeito a questões de facto ou de direito oportunamente suscitadas nos autos e sobre as quais o Tribunal tenha deixado de se pronunciar.

           Com efeito, o Tribunal a quo emitiu um juízo crítico acerca da factualidade que foi carreada para o presente litígio, tendo analisado os meios probatórios que considerou relevantes e concluído no sentido de que não se verificavam os pressupostos que poderiam determinar a aplicação da medida ou medidas de acompanhamento requeridas pela ora apelante.     

           A problemática relativa aos meios probatórios situa-se noutro plano, ou seja, poderia ter sido cometida uma nulidade, prevista, em termos genéricos, no art. 195º, nº1, do C.P.C. [3], atenta a circunstância de se omitir um acto susceptível de influir na decisão da causa.

            No entanto, considerando a matéria que se discutia nos autos, o facto de estarmos perante um processo que tem um regime especial que se se afasta, nalguns aspectos, das regras gerais que regulam os processos de natureza cível e, ainda, o facto de o Tribunal recorrido ter considerado, após análise dos elementos carreados para o processo, que não se justificava a inquirição das testemunhas arroladas pela requerente, julga-se que não ocorre a referida nulidade.

            Vejamos porquê.

           O processo de acompanhamento de maior, face ao disposto no art. 891º, nº1, do C.P.C., tem um conjunto de características que o aproximam dos processos de jurisdição voluntária, designadamente no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.[4]

            São, deste modo, aplicáveis as disposições dos arts. 986º, nº2 [5], 987º [6] e 988º [7], todos do C.P.C..

            Do art. 986º, nº2, resulta que só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias [8], sendo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes [9].

            Ora, na sentença recorrida, o Tribunal a quo, de forma expressa [10], considerou desnecessária a produção dos meios de prova que o apelante indicou no requerimento inicial, entendimento que se baseou em relatórios periciais elaborados pelo INMLCF [11], conjugado com os esclarecimentos que os Srs. Peritos prestaram [12] na sequência de despacho proferido a 23/10/2023.

            O referido despacho apresenta o seguinte teor: “Nos termos do disposto no art.º 138.º do CC (na redação atual) “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código

           “O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença”. – cfr. art.º 140, n.º 1 do CC.

            Trata-se de uma medida supletiva, na medida em que “não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.” – cfr. n.º 2 do art.º 140 do CC.

            No caso em apreço, dos relatório pericial resulta, conforme suas conclusões que “ 1. A requerida evidencia, para além de uma perturbação de personalidade (6D10.Z da CID-11), um padrão de uso e abuso de álcool (6C40.2 da CID-11) e episódios depressivos recorrentes (6A71 da CID-11)” e que “, e “Do ponto de vista estritamente psiquiátrico-forense, este contexto não impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”, necessitando, de “ (…)face ao historial de abuso de álcool, que a requerida possa beneficiar de um regular e adequado acompanhamento médico, tendente a promover, se conseguida a necessária e indispensável colaboração para tal, abstinência futura dos consumos de álcool”.

           Todavia, no relatório psicológico a é relatado que própria requerida que: “ (…) mostrando-se conformada com a necessidade de estar a ser submetida a este tipo de avaliação, concordando em que esteja a necessitar da ajuda das filhas, por não se sentir capaz para lidar da melhor forma com alguns aspetos da sua vida, nomeadamente os que envolvem a gestão do património financeiro”.

           Assim, face ao teor dos relatórios, notifique o INLM para, em 10 dias, esclarecer se a requerida necessita que lhe seja nomeada – ainda que transitoriamente- acompanhante a fim de ser submetida a acompanhamento regular para tratamento dos consumos de álcool e lidar com a gestão do seu património.”.

           Por sua vez, na peça processual que integra os esclarecimentos prestados pelos Srs. Peritos, consta o seguinte:

           “A requerida, conforme constante no nosso Relatório pericial, evidencia, para além de uma perturbação de personalidade, um padrão de uso e abuso de álcool e episódios depressivos recorrentes.

           Do Relatório da Perícia Médico-Legal de Psicologia (Processo n.º 20..., apenso ao nosso Relatório Pericial Psiquiátrico), a que a requerida foi submetida a nosso pedido para melhor esclarecimento de eventuais défices do funcionamento cognitivo que pudessem interferir com o exercício de direitos e cumprimento de deveres, relevamos a presença, psicometricamente aferida, de características específicas de personalidade (como, entre outras, instabilidade emocional, ansiedade, pessimismo e rigidez) e início de perda de funções específicas cognitivas, com atingimento ligeiro de capacidade visuo-espacial e fluência/funções executivas, encontrando-se todos os restantes parâmetros dentro dos valores normativos, não se verificando ainda repercussão clínica que configure um quadro de deterioração cognitiva patológica (ou demência).

           Do ponto de vista estritamente psiquiátrico forense tal contexto (perturbação de personalidade e alcoolismo), ainda que tenha contribuído (e venha a contribuir futuramente) para dificuldades nos relacionamentos interpessoais da requerida a nível pessoal, familiar e laboral (como, aliás, é evidente nas peças processuais, pela história pessoal recolhida e documentada) não impossibilita formalmente a requerida do exercício pleno, pessoal e consciente dos seus direitos ou do cumprimento dos seus deveres.

           As perturbações devido ao uso de álcool caracterizam-se pelos padrões de consequências da utilização da substância, podendo implicar variadas alterações ao nível de órgãos e sistemas de órgãos do corpo, alterações comportamentais (podendo condicionar danos e lesões a terceiros, para além do próprio), sendo importante o seu reconhecimento e tratamento.

           Tratamentos que, de acordo com as recomendações nacionais e internacionais, devem ser centrados em intervenções de natureza psicoterapêutica e, quando necessário, desabituação com apoio farmacológico, implicando necessariamente a colaboração e investimento ativo dos pacientes no processo terapêutico.

           As dificuldades reportadas pela requerida na gestão financeira, em relação às quais é descrito que se mostra “conformada com a necessidade de ser submetida a este tipo de avaliação, concordando em que esteja a necessitar de ajuda das filhas”, são, tanto quanto nos foi dado perceber, longitudinais. Correspondem, portanto, a uma competência que a requerida não treinou habitualmente ao longo dos anos (porque foi relegada para terceiros, nomeadamente para o ex-marido no passado e para as filhas no presente) e não apenas atualmente de forma decorrente de uma qualquer deterioração, ligeira, de funções cognitivas específicas, ou em consequência exclusiva do uso e abuso de uma substância (como, no caso em apreço, o álcool).

           Face à conservação da maioria das funções cognitivas da requerida (com afetação apenas ligeira de dois domínios) e preservada a capacidade de expressão de vontade, mantemos respeitosamente a nossa conclusão de que inexistem, presentemente, razões de natureza estritamente de saúde (psiquiátricas) que nos permitam recomendar a nomeação judicial de acompanhante.”.

           Dos esclarecimentos supra transcritos resulta claro o motivo pelo qual o Tribunal recorrido entendeu não se justificar a inquirição das testemunhas arroladas pela recorrente [13].

           Estaríamos perante um acto inútil, considerando o juízo pericial que foi emitido em sede própria.

           Deste modo, e atento o regime previsto no art. 986º, nº2, do C.P.C., não foi cometida qualquer nulidade, pelo que cabe apreciar as seguintes questões suscitadas pela apelante.


**

           Defende o recorrente que a 1ª instância não poderia ter considerado provada a matéria vertida no ponto 48 dos factos provados [14], sustentando, a este propósito, que ocorre a nulidade prevista no art. 615º, nº1, alínea b), do C.P.C., e que a matéria em causa é contraditória com os factualidade constante nos pontos 8, 15, 19 a 22, 40, 42 e 45 da sentença impugnada.

            Prescreve o art. 615º, nº1, alínea b), do C.P.C., que “É nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;”.

           A sentença recorrida, como resulta do respectivo teor, integra, do ponto de vista factual e normativo, os fundamentos que conduziram à decisão de não decretar o acompanhamento da beneficiária.

           A circunstância de a recorrente não concordar com tais fundamentos situa-se num plano diverso, que não se confunde com a invocada nulidade da decisão.

           Não padecendo a sentença do vício que a apelante lhe imputa, poderá entender-se que a matéria constante no ponto 48 é contraditória com o acervo que vem plasmado nos pontos 8 [15], 15 [16], 19 a 22 [17], 40 [18], 42 [19] e 45 [20] ?

           Não cremos, uma vez que o que vem descrito no ponto 48 reporta-se a uma realidade que se localiza no domínio psiquiátrico-forense, tendo os Srs. Peritos do INMLCF, em sede de esclarecimentos, detalhado os motivos pelos quais chegaram à conclusão que o Tribunal a quo incorporou na sentença recorrida.

          Aliás, acrescente-se, não pode faze-se uma leitura descontextualizada dos factos a que a recorrente faz alusão, dado que existe outro acervo factual, em particular o que vem descrito nos pontos 35 a 39 [21], 41 [22], 43 [23], 44 [24] e 46 [25], que permite compreender, na íntegra, a situação da beneficiária.

           Pelos motivos expostos, não sendo a decisão recorrida nula, improcede o recurso em análise, devendo decidir-se em conformidade.


****

III – DECISÃO.


           Nestes termos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, manter a sentença recorrida.

            Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.


Coimbra, 10 de Julho de 2024

(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo (relator)

(1ª adjunto)

Maria Teresa Albuquerque

(2ª adjunta)



SUMÁRIO.

(…).



[1] Tendo sido requerido que fosse aplicada a a medida de acompanhamento de representação geral ou, caso assim seja entendido, a medida de representação especial ou autorização prévia para a prática dos seguintes actos:
 deslocações ao médico, cumprimento de prescrição médica, alimentação e fazer face às despesas correntes e necessidades básicas da vida da requerida.
 pagamento pontual e atempado das despesas correntes da requerida (rendas, eletricidade, água, gás, telecomunicações, responsabilidades de crédito, entre outras).
 administração das contas bancárias, prevendo-se a entrega de quantia monetária semanal à requerida, de valor a fixar pelo tribunal e para que esta bem utilize, sem prejuízo de despesas de valor superior justificáveis.
 autorização para guarda de cartões de crédito ou de débito da requerida, para evitar a sua utilização sem acompanhamento ou supervisão.
 autorização prévia para a requerida celebrar e se obrigar em contratos de mútuo ou outros de recurso similar ao crédito.  autorização para que a requerida celebrar e se obrigar em negócios aquisitivos
de valor superior a 200,00€ ou de valor que Vª. Exª. melhor entenda por conveniente.
 autorização para celebrar e se obrigar em negócios de doação pela requerida sobre bens móveis e imóveis.
 autorização para aquisição de bebidas alcoólicas em estabelecimentos comerciais, sem acompanhamento ou supervisão.
[2] Nem da beneficiária nem do Ministério Público, este último citado nos termos previstos no art. 21º, nº1, do C.P.C..
[3] Art. 195º, nº1, do C.P.C.: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”.
[4] A redacção integral do art. 891º, nº1, do C.P.C. é a seguinte: “O processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.”.
[5] Art. 986º, nº2, do C.P.C.: “O tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.”.
[6] Art. 987º do C.P.C.: “Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.”.
[7] Art. 988º do C.P.C.: “1 - Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.
2 - Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.”.
[8] Do art. 897º, nº2, do C.P.C. resulta ainda que a única diligência obrigatória é a audição pessoal e directa do beneficiário.
[9] Relativamente a esta matéria, cf. o Acórdão da Relação de Guimarães de 18/3/2021 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/7eba8e626a2c7ead802586ae003b22d5?OpenDocument), onde, certeiramente, se observou o seguinte: “I- O processo especial de acompanhamento de maior caracteriza-se pela preponderância do princípio do inquisitório, com atribuição de poder reforçado ao juiz – poder orientado, vinculado pela prossecução da finalidade última do processo, no caso, apurar se um maior, por razões de saúde, está impossibilitado de plena, pessoal e conscientemente exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres e de adoptar, em caso afirmativo, medida que assegure o seu bem-estar, a sua recuperação e o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (arts. 138 e 140º do CC).
II- Nestes processos (sem que possa questionar-se vigorar o princípio do processo justo e equitativo – o direito à jurisdição e consequente direito a influenciar a decisão e, por isso, o direito à proposição de provas, ao controlo das provas oferecidas pela contraparte e à pronuncia sobre o valor e resultado das provas produzidas), o direito à prova reconhecido às partes tem uma limitação funcionalmente ordenada à célere e justa prossecução da finalidade do processo – a conveniência e necessidade do meio probatório para a demonstração dos factos pertinentes à boa decisão da causa (os meios probatórios admissíveis são os necessários à boa decisão da causa - arts. 897º, nº 1 e 986º, nº 2 do CPC).
III- Na jurisdição voluntária (e regimes processuais que comunguem das suas regras) impõe-se ao juiz que que assuma o controlo das provas a produzir, em atenção ao critério da sua necessidade em vista da demonstração dos factos pertinentes à decisão da causa.
IV- A necessidade (e, por contraponto, a desnecessidade) do meio probatório será aferida (julgada) por referência à finalidade do processo – as provas a produzir serão aquelas que, num juízo de racionalidade objectiva, se revelarem aptas, adequadas e necessárias à demonstração da materialidade pertinente à boa decisão da causa, considerando a concreta finalidade dos autos.”.
[10] Foi referido, após análise dos elementos probatórios carreados para os autos, que “Atenta prova já produzida, entende o tribunal ser desnecessário a audição das testemunhas arroladas pela requerente.” (o sublinhado é nosso).
[11] Juntos em 29/9/2023
[12] Esclarecimentos apresentados a 20/2/2024.
[13] E pelos mesmos motivos, acrescentamos nós, também não se justifica a prestação de declarações de parte.
[14] Ficou a constar no ponto 48 que “Do ponto de vista estritamente psiquiátrico-forense, este contexto não impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.”.
[15] 8. No início de 2009, a requerida desenvolveu problemas graves de alcoolismo, o que a vem afetando até ao presente.
[16] 15. A requerida é uma pessoa que sofre de défices amnésicos grosseiros, enfrenta enormes desafios no que toca à problemática social – tem dificuldade em expressar-se e perceber a comunicação dos outros - sofre de aplanamento dos afetos, de afasia semântica – tem défices na comunicação verbal e não-verbal, quer na lógica, quer na gramática - com prejuízo de funções executivas, com ausência de crítica face a comportamentos socialmente desadequados.
[17] 19. A requerida mantém hábitos graves de alcoolismo, consumindo exageradamente bebidas alcoólicas.
20. A requerida consume e faz gastos diários desnecessários, celebra negócios e faz compras absolutamente inúteis.
21. A. requerida não tem autocontrolo sobre a sua situação patrimonial, gasta o que tem e o que não tem, sem disso sequer dar conta.
22. Descurando os encargos e despesas básicas que tem regularmente de cumprir.
[18] 40. Do ponto de vista psicométrico apuraram-se défices em funções cognitivas específicas, nomeadamente processos de capacidade visuoespacial (na evocação imediata de natureza visual) e processos atencionais, com dificuldades na exploração visual, velocidade de processamento, sequenciação e flexibilidade cognitiva.
[19] 42. A requerida reconhece o dinheiro e a sua aplicação, admitindo, contudo, que a sua conta bancária é presentemente gerida por uma das suas filhas por ter realizado gastos excessivos. Refere não fazer habitualmente compras (como, por exemplo, de bens alimentares) e pagamentos de utilidades domésticas “porque houve sempre quem fizesse por mim”.
[20] 45. O alcoolismo da requerida inscrito numa perturbação de personalidade, com limitações ligeiras de algumas funções cognitivas específicas não impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.
[21] 35. A requerida sabe ler, escrever e fazer contas.
36. A requerida veste-se e toma banho sozinha.
37. A requerida orienta-se espácio-temporalmente.
38. O discurso é espontâneo, fluente e coerente, apresenta humor eutímico, não se objetivando alterações dos afetos ou sintomatologia psicótica (sob a forma de alucinações, alterações formais do pensamento ou delírios).
39. Clinicamente não foram objetivados défices mnésicos significativos, incluindo na capacidade de compreensão de conceitos de complexidade variável, reconhecimento de objetos e pessoas e pensamento abstrato.
[22] 41. Não se verificou o comprometimento da atenção, orientação, retenção e cálculo, de processos mnésicos verbais específicos (evocação imediata e diferida de informação verbal não estruturada, capacidade de aprendizagem e retenção de material conceptual).
[23] 43. É totalmente autónoma nas atividades de vida diária como deslocações, higiene e cuidados pessoais (conta apenas com uma empregada para auxílio nas tarefas domésticas e na preparação de refeições, como foi habitual ao longo da sua vida), escolha e uso de vestuário, assim como para as atividades instrumentais de vida diárias de utilização de meios de comunicação e de transporte, estando relegada para a filha, como já acima referido, a tarefa de gestão dos seus rendimentos.
[24] 44. Apreciados alguns défices, ligeiros, em algumas funções cognitivas, o quadro em presença não condiciona ainda, mesmo na presença de alterações imagiológicas, uma interferência significativa na realização independente das atividades de vida diárias ou nas atividades instrumentais de vida diárias da requerida, ou uma limitação na sua capacidade de expressão de vontade.
[25] seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.
46. As atuais dificuldades da requerida na gestão financeira (que, tanto quanto nos foi dado perceber, são longitudinais, desde longa data, e não um evento recente) encontram-se desde há algum tempo a ser supridas pela cooperação e assistência de familiares.