CONTRATO DE ARRENDAMENTO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
INDEMNIZAÇÃO
RESTITUIÇÃO
Sumário

O pedido de pagamento de uma quantia de 100€ por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção é o pedido de uma sanção compulsória (artigo 829-A do CC), diverso do pedido de pagamento de uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa arrendada (artigo 1045 do CC), pelo que, se o tribunal tivesse condenado no último quando tinha sido pedido o primeiro, incorreria em violação da norma do artigo 609/1 do CPC.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

I intentou a presente acção comum contra S-Lda pedindo que seja reconhecido e declarado que:
(i) o contrato de arrendamento outorgado a 19/11/1974 transitou para o regime do NRAU pelo menos desde 01/08/2023 nos termos e para os efeitos do artigo 54/6-b do NRAU, vigorando até 31/07/2028, ficando sujeito a esse regime, bem como ser em consequência, declarada a eficácia das comunicações de transição para o NRAU efectuadas pela autora, com todas as demais consequências;
i) findo o referido prazo de 31/07/2028, o contrato cessa os seus efeitos, e em consequência seja o mesmo julgado resolvido, e a ré condenada a entregar os imóveis, livres de pessoas e bens, e a abster-se de continuar nos locados, com as demais consequências;
iii) […] consequentemente, seja a ré condenada a desocupar os imóveis locados no dia 31/07/2028, devendo os mesmos ser entregues livres de pessoas e bens, pagando a ré 100€ por cada dia de atraso até à entrega efectiva dos imóveis em apreço.
Alegou, para o efeito, uma série de factos.
A ré foi regularmente citada e não contestou, pelo que, nos termos do art.º 567/1 do CPC, foram considerados confessados os factos articulados na petição inicial, para além de dois deles se considerarem plenamente provados por não impugnados (cf. art.º 376/1 do CC, 568/-d do CPC).
E a seguir foi preferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e, em consequência:
(i) Declara-se que: o contrato de arrendamento que vincula a autora e a ré transitou para o NRAU desde 01/08/2023, vigorando o regime contratual plasmado na comunicação da autora de 19/05/2023; sem prejuízo de causas de cessação supervenientes, o contrato cessará os seus efeitos, por caducidade, em 01/08/2028;
(ii) Condena-se a ré a, no dia 01/08/2028, restituir o locado, no estado em que o recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato;
(iii) Absolve-se a ré do demais peticionado.
A autora recorre da sentença para que seja revogada no que à absolvição da ré respeita, quanto ao pagamento de valor a liquidar à autora, pelo atraso na entrega dos imóveis, e alterando-se a referida sentença, apenas quanto a essa parte, estabelecendo a obrigação da ré indemnizar a autora em caso de atraso na entrega dos imóveis, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
[…]
B\ A autora vem recorrer da sentença apenas no que se refere à absolvição da ré em relação ao pagamento referente ao atraso na restituição dos imóveis, considerando-a ilegal e injusta, tendo o tribunal a quo incorrido em erro na aplicação do Direito em relação a este pedido.
C\ O tribunal a quo, na aludida sentença, ordena que a ré proceda à entrega dos imóveis à autora, no dia 01/08/2028 […]
D\ A autora peticionou um valor indemnizatório pelo atraso na entrega efectiva dos imóveis, isto é, caso a ré não cumpra o prazo agora fixado pelo tribunal a quo para a entrega dos referidos imóveis. O referido pedido mais não é do que um pedido indemnizatório pelo atraso na entrega dos imóveis em questão.
E\ O tribunal a quo, na sua sentença, converte, de forma incorrecta, o pedido da autora num pedido de aplicação de sanção pecuniária compulsória, sem analisar qualquer outro regime abstractamente aplicável e, concretamente, sem analisar o regime especialmente previsto para os casos de atraso na entrega de locados (isto é, a norma jurídica constante do artigo 1045 do CC).
F\ Não tendo a autora pedido qualquer aplicação da figura jurídica da sanção pecuniária compulsória, mas sim o pagamento de um valor monetário pelo atraso na entrega efectiva dos imóveis em questão, conforme resulta da lei e da jurisprudência aplicáveis in casu.
G\ Considerando o tribunal a quo que a restituição do locado é devida a partir do dia 01/08/2028, parecem estar reunidos os elementos necessários para que seja aplicada uma indemnização que será devida no caso de a ré entrar em mora, quanto à obrigação de entrega dos imóveis, que agora resulta da sentença.
H\ Tendo a autora peticionado que esse valor indemnizatório fosse fixado em 100€ por cada dia de atraso, o tribunal a quo, ainda que possa não concordar com o valor peticionado, não poderá restringir a análise deste pedido ao regime da sanção pecuniária compulsória, absolvendo a ré de qualquer pagamento pelo atraso na restituição do locado.
I\ A autora nunca peticionou ou defendeu a aplicação de um qualquer valor compulsório. Decorrendo, aliás, da lei, o seu direito de crédito em relação ao atraso na restituição dos locados, ou seja, um valor indemnizatório e não compulsório, cf. artigo 1045 do CC.
J\ Pelo que, a autora não se pode conformar com a restrição – unilateral e sem base na petição inicial - do seu pedido na figura jurídica da sanção pecuniária compulsória, devendo o tribunal a quo proceder à aplicação das normas jurídicas abstractamente aplicáveis ao caso concreto. […]
K\ Apurando-se, a existência de um regime especial no que ao arrendamento diz respeito e, concretamente, a norma jurídica constante do artigo 1045 do CC, deveria o tribunal a quo ter-se pronunciado, igualmente, sobre o referido regime, como o fez em relação à sanção pecuniária compulsória, concluindo pela aplicação do mesmo, porquanto se trata de um regime especial que versa, precisamente, sobre o atraso na entrega dos imóveis em questão: “IV - A restituição da coisa locada, findo o contrato constitui uma obrigação do locatário, visto cessar o seu direito de gozo. V - O artigo 1045.º do CC cria para o locatário o dever de indemnizar, assistindo ao locador o direito à indemnização independentemente da prova da efectiva perda de valor locativo. VI - Esta indemnização assenta na subsistência da utilização da coisa pelo locatário, com prejuízo do locador. VII - A indemnização corresponde ao equivalente do montante da renda que se presume ser a compensação adequada para o atraso na restituição da coisa, salvo incorrendo o locatário em mora, em que a indemnização passa a ser o dobro desta.” (acórdão do TRP de 13/11/2023, proc. 6887/21.6T8VNG.P1).
L\ O que nunca teria a virtualidade de se consubstanciar em excesso de pronúncia, pela circunstância de, ao tribunal a quo, não ter sido pedido nada mais do que um valor pelo atraso na entrega dos imóveis: “Só se pode afirmar que corre excesso de pronúncia quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso.” (ac. do STJ de 16/11/2021, proc. 1436/15.8T8PVZ.P1.S1).
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A sentença recorrida tem, nesta parte, a seguinte fundamentação:
Prevê o art.º 829.º-A do CC que “1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.”
A sanção pecuniária compulsória constitui um mecanismo que favorece o cumprimento da obrigação aí onde a prestação devida seja infungível. A fungibilidade é característica da prestação que, nos termos do art.º 767º, n.º 2 do CC, «pode ser feita tanto pelo devedor como por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação».
Salvaguardando o n.º 2 que «o credor não pode, todavia, ser constrangido a receber de terceiro a prestação, quando se tenha acordado expressamente em que esta deve ser feita pelo devedor, ou quando a substituição o prejudique».
Nada tendo sido alegado no sentido da infungibilidade da prestação, falha um pressuposto da previsão normativa que atribui ao julgador a faculdade de condenar em sanção pecuniária compulsória. Por outro lado, conforme decorre do ac. do STJ de 01/07/2021, proc. 931/14.0T8LOU.P2-A.S1, posição que subscrevemos, «a sanção pecuniária compulsória prevista no nº 1 do artigo 829º-A do CC, na medida em que se destina a compelir o devedor ao cumprimento em espécie de uma prestação de facto infungível, não contempla as situações de mera falta de cumprimento atempado ou integral de prestação de entrega da coisa, cuja sanção deverá ser obtida por via de indemnização complementar, como decorre do artigo 867 do CPC”.
Face ao exposto, improcede, nesta parte, o pedido da autora.
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Questão a decidir: se a sentença recorrida devia ter estabelecido a obrigação da ré indemnizar a autora em caso de atraso na entrega dos imóveis.
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Os factos: visto que a decisão da matéria de facto não foi impugnada, nem há lugar a qualquer alteração da matéria de facto, este acórdão limita-se a remeter para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria, deixando nota, por interessar para a decisão da questão colocada, que a renda mensal que consta do regime declarado pela decisão recorrida é de 1.005€.
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Apreciação:
Diz a autora que não pediu a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, que pediu, sim, um valor indemnizatório pelo atraso na entrega efectiva dos imóveis, que podia ser aplicado ao abrigo do art.º 1045 do CC.
Mas o que a autora pediu foi, realmente, a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, com a única diferença de não lhe ter dado esse nome.
Lembre-se o que ela pediu: “consequentemente, seja a ré condenada a desocupar os imóveis locados no dia 31/07/2028, devendo os mesmos ser entregues livres de pessoas e bens, pagando a ré 100€ por cada dia de atraso até à entrega efectiva dos imóveis em apreço.”
O art.º 829-A do CC prevê a possibilidade da condenação do devedor no pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
É a isto que a lei chama uma sanção pecuniária compulsória e foi isto que a autora pediu.
Não interessa, formalmente, que a autora não chame às coisas os nomes que elas têm; o que importa, substancialmente, é o que ela pretende e, portanto, a sentença recorrida apreciou, adequadamente, a pretensão da autora.
O pedido de um valor de 100€ por cada dia de atraso até à entrega efectiva dos imóveis em apreço, não tem nada a ver com um pedido indemnizatório (de danos) não concretizado, quer em valor quer em dias, agora invocado pela autora.
Se a sentença recorrida tivesse condenado a ré a pagar um valor indemnizatório a liquidar à autora pelo atraso na entrega dos imóveis, ao abrigo do art.º 1045 do CC, estaria a condenar num objecto diverso (uma indemnização) do que tinha sido pedido (uma sanção pecuniária compulsória, ao abrigo do art.º 829-A do CC).
E ao fazê-lo estaria em violação do art.º 609/1 do CPC.
E a sentença recorrida não absolveu, ao contrário do que a autora diz, a ré do pagamento de um valor indemnizatório a liquidar à autora pelo atraso na entrega dos imóveis, pedido que não foi feito, mas sim de um valor de 100€ por cada dia de atraso na entrega.
Se a autora sabe que há um regime específico para o atraso no cumprimento da obrigação de restituição da coisa arrendada, é a pretensão correspondente que tinha de pedir (art.º 1045 do CC), em vez de fazer o pedido de pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso na entrega (art.º 829-A do CC), sem lhe chamar o nome que ela tem, o que, para além do mais (diferença de valores), lhe poderia vir a conceder ainda o benefício ilegítimo de receber toda essa quantia sem a ela ter direito, pois que metade caberia ao Estado (art.º 829-A/3 do CC).
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
A autora perde as suas custas de parte (não há outras, porque a ré não contra-alegou).

Lisboa, 12/09/2024
Pedro Martins
Arlindo Crua
Paulo Fernandes da Silva