DOAÇÃO
SIMULAÇÃO
NULIDADE
Sumário

I - Sem prova de que o donatário tem conhecimento da existência de credores não se pode concluir pela intenção dele em enganar esses credores em conluio com os doadores.
II – Não há nenhuma regra da experiência comum das coisas que, sem mais, diga que uma filha tem conhecimento de que os pais, quando lhe fazem a doação de muitos imóveis, têm dívidas para com terceiros e que, por isso, ela quer enganar esses terceiros ao aceitar tal doação e depois ao fazer uma outra ao seu filho.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

Em 20/02/2020, a Massa insolvente de M e M, representada pela Administradora Judicial nomeada veio intentar uma acção comum contra os insolventes (1.ºs réus) e ainda contra a filha destes (2.ª ré) e o filho desta (3.º réu), pedindo, na parte que ainda importa, a declaração de nulidade de uns contratos de doação [que identifica], por simulação, considerando-se os mesmos sem efeito, e que seja ordenado o cancelamento dos registos de aquisição a favor da 2ª e 3º réus, bem como de outra qualquer inscrição que se venha a efectuar, relativamente aos imóveis identificados […]
Alega para tanto, em síntese, que o 1º réu era sócio gerente de uma sociedade que veio a ser declarada insolvente, por sentença transitada em julgado, proferida em 13/05/2015; ele e a mulher, no âmbito da actividade dessa sociedade, tinham subscrito avais e livranças que não foram satisfeitos; em 31/07/2019, os 1.ºs réus apresentaram-se em insolvência que veio a ser decretada em 27/08/2019, por sentença já transitada em julgado; o valor dos créditos, reclamados em tal insolvência, totaliza 1.346.925,69€; os 1ºs réus são pai e mãe da 2ª ré, que por sua vez é mãe do 3º réu; os 1ºs réus realizaram a 25/02/2014 doação à sua filha de vários bens (3 prédios rústicos, 3 prédios urbanos (fracções autónomas), 1 deles com 2 garagens (também fracções autónomas), 3 fracções indivisas de 3 prédios rústicos, 2 prédios urbanos), pelo valor atribuído de 165.440€ e, apenas alguns dias depois, a 2ª ré fez doação, pelo mesmo valor, daqueles bens (menos um) a favor do 3º réu, seu filho que tinha apenas dias de vida à data; as doações são simuladas e portanto nulas (art.º 240 do Código Civil); na data da primeira doação já se encontravam pendentes várias execuções contra os 1.ºs réus, ou as mesmas estavam iminentes de dar entrada, sendo mais do que previsível que eles não pudessem cumprir com as garantias que tinham prestado; com as doações os 1.ºs réus e 2ª ré decidiram, por isso, conluiados entre si, colocar os seus bens mais valiosos a salvo dos credores, nunca tendo sido intenção deles transmitir ao 3.º réu o que quer que seja; em virtude dos créditos de que é titular, a autora tem interesse na declaração de nulidade do negócio; por conseguinte, verificam-se os pressupostos previstos nos artigos 240 e 605 do CC.
Os 1.ºs réus contestaram; na parte que ainda importa, impugnaram, negando a existência da simulação, apontando outras razões para a doação. 
A 2.ª réu, por si, e em representação do 3.º réu, também contestou; na parte que ainda importa, impugnaram os factos relativos às simulações e também os efeitos de direito que a autora deles pretendia retirar. Mais tarde, depois do que se relata a seguir, foi regularizada a representação do réu menor, mediante a intervenção do seu pai, igualmente seu representante legal, que veio ratificar a contestação apresentada.
Sintetizou-se a petição e as contestações, estas apenas com referência às impugnações, porque, entretanto, a acção já foi objecto de um saneador-sentença a julgar procedente a ilegitimidade processual da autora excepcionada pelos réus e a absolver os réus da instância, entretanto revogado pelo Tribunal da Relação de Lisboa que determinou o prosseguimento da acção com vista à declaração da nulidade das doações, por simulação, para a qual a autora tinha legitimidade.
Acabou por ser realizada a audiência final e depois dela foi proferida sentença a julgar a acção improcedente e a absolver os réus dos pedidos.
A autora recorreu desta decisão, dizendo que as regras da experiência comum das coisas eram suficientes para prova dos requisitos da simulação das doações, pelo que a acção devia ser julgada procedente.
Os 1.ºs réus contra-alegaram, no essencial com adesão à fundamentação da sentença recorrida.
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Questão a decidir: se se verificam os requisitos da simulação das doações.
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Estão dados como provados os seguintes factos:
1\ O 1.º réu marido e a 1.ª ré mulher são casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens.
2\ Os 1.ºs réus são progenitores da 2.ª ré, tendo ainda outro filho, sendo ambos maiores.
3\ Por sua vez, a 2.ª ré é progenitora do 3.º réu, nascido em 01/03/2014.
4\ O 1.º réu marido foi sócio gerente da L-Lda.
5\ Esta sociedade foi declarada insolvente por sentença de Maio/2015, já transitada em julgado, proferida num processo que correu termos […], sob o n.º […].
6\ No âmbito da actividade dessa empresa, foram, nomeadamente, subscritas livranças pela sociedade que foram avalizadas pelo 1.º réu marido, as quais não foram pagas no prazo acordado.
7\ Os 1.ºs réus, em 31/07/2019, apresentaram-se à insolvência, tendo esta sido decretada por sentença proferida em Agosto/2019, já transitada em julgado, num processo que correu termos […], sob o n.º […] no qual foi nomeada Administradora de Insolvência […] a Sr.ª Dr.ª […].
8\ Consta do relatório da Administradora de Insolvência apresentado na insolvência dos 1.ºs réus que o valor dos créditos reclamados em tal insolvência totaliza 1.346.925,69€, distribuídos da seguinte forma:

CredorValor reclamadoTítulo / observaçõesVencimento / observações
A-Lda65.078,98€Livrança subscrita por R-Lda, avalizada pelos devedores05/12/2018
B-SA100.789,49€contratos de abertura de crédito celebrados com a L-Lda, livranças avalizadas pelos devedores
Ba-SA52.991,57€2 livranças subscritas pela L-Lda avalizadas pelos devedores06/11/2014
BII21.577,27€Créditos sob condição, contrato que está a ser cumprido, resultante de fiança prestada pelos devedores, empréstimo com hipoteca feito a R, para aquisição de imóvel fracção D sito na freguesia de […] descrito na CRP sob o número 5Escritura celebrada em 27/08/1998
C-Limited77.563,83€Livrança subscrita por L-Lda, avalizada pelos devedoresPagamento foi interrompido em 16/07/2014
C-IFC SA Créditos de livrança avalizada pelos devedores, subscrita por L-Lda
CDSISS, IP95.546,87€Referente à reversão concluída por dívidas de contribuições e quotizações da L-Lda
H167.801,62€Contrato de cessão de créditos feito pelo BP, num financiamento contraído pela L-Lda
LC-SARL547.106,87€4 livranças subscrita pela L-Lda, avalizadas pelos devedoresOutubro de 2014
L 2 garantias bancárias prestadas à empresa avalizados pelos devedores
LII-SARL160.156,62€Contrato de cessão de créditos do NB-S.A, contrato celebrado com os devedoresEncontra-se em dívida desde 20/11/2014

9\ No requerimento inicial de apresentação de insolvência dos 1.ºs réus, estes juntaram a seguinte relação de processos executivos contra si pendentes:

n.º de processo e juízo de execução Valor
12153/14  44.980,32€
35497/15    2.335,71€
5381/15  81.379,52€
2558/15167.608,03€
18/19  63.225,77€
5627/14148.143,51€
5624/14  76.270,92€
2951/14182.436,32€

10\ No que se refere a parte das referidas execuções, resulta terem estas sido instauradas contra aos 1.ºs réus, entre outros devedores, e terem dado entrada em juízo e sido estes citados nas seguintes datas:

ProcessoData de entradaCitação ocorreu em
12153/1428/11/201424/03/2016 e 22/06/2015
5381/1519/02/201526/07/2016
2558/1523/01/201509/04/2015 e 14/04/2015
2951/1421/10/201416/03/2015

11\ Consta, ainda, do relatório apresentado pela Administradora de Insolvência como causas da insolvência dos 1.ºs réus, ter o 1.º réu marido sido avalista em vários financiamentos da L-Lda, que não foram pagos quer pela subscritora quer pelos avalistas, e que as execuções intentadas contra os insolventes advém de avais e livranças em consequência de garantias prestadas por este como sócio gerente desta sociedade.
12\ Por escritura de doação realizada em 25/02/2014 num Cartório Notarial, compareceram os 1.ºs réus que, por si, e a 1.ª ré mulher na qualidade de procuradora da sua filha 2.ª ré, declararam ser proprietários dos seguintes imóveis e direitos: [descrevem-se 13 verbas, entre elas 3 prédios rústicos, 5 fracções autónomas de prédios urbanos e 2 prédios urbanos; para a melhor discrição delas, remete-se para a matéria de facto da sentença recorrida, já que não houve recurso da matéria de facto, ao abrigo do art.º 663/6 do CPC].
13. Mais declararam os 1.ºs réus que, através dessa escritura, e por conta das suas quotas disponíveis, doam à 2.ª ré, os referidos imóveis e direitos, a que atribuíram o valor global de 165.440€, tendo a 2.ª ré declarado aceitar essa doação.
14\ O irmão da 2.ª ré, por escrito datado de 17/02/2014, deu o seu acordo e comunicou à notária nada ter a opor à referida doação.
15\ Por escritura de doação realizada em 05/04/2014, no mesmo cartório notarial, compareceu a 2.ª ré que declarou ser proprietária dos mesmos bens identificados na escritura referida em 12, apenas com a diferença das verbas n.º 9 e 10 terem sido agregadas numa verba única n.º 9.
16\ Mais declarou a 2.ª ré que, por conta da sua quota disponível, doava ao seu filho, 3.º réu, menor, consigo residente, pelo valor global de 165.440€, os referidos imóveis e direitos.
17\ Na data da doação realizada em 05/04/2014, o 3.º réu era o único e universal herdeiro da 2.ª ré.
18\ Os 1.ºs réus não têm em seu nome nenhum bem ou direito livre e desonerado, que sirva para pagamento dos créditos reclamados na insolvência.
19\ Entre os réus, devido à relação familiar existente entre todos, havia e há uma grande relação de solidariedade e cumplicidade pessoal entre todos.
20\ A 2.ª ré foi representa na doação pela 1.ª ré mulher, pois estava à data nos últimos dias de gravidez, não se podendo deslocar ao Cartório.
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Do recurso
A autora diz o seguinte [transcreve-se do corpo das alegações, na íntegra]:
A sentença recorrida violou, entre outras, as disposições contidas nos artigos art.º 240 do CC.
[A autora, a seguir transcreve, na íntegra, os factos provados e os factos não provados e faz uma síntese da fundamentação da sentença recorrida e prossegue:]
Dos factos dados como provados, pode-se extrair de que: A 1ª escritura de doação foi realizada em 25/02/2014 e que em relação ao credor C-Limited este reclamou o valor total de 77.563,83€ de livrança subscrita por L-Lda, avalizada pelos devedores 1ºs réus, cujo o pagamento foi interrompido em 16/07/2014. Ou seja, apenas 5 meses após a referida escritura. E de que, os 1ºs réus, no âmbito do processo executivo sob o n.º 2951/14 foram citados em 16/03/2015, tendo tal a acção executiva dado entrada em 21/10/2014. Ou seja, que o aludido incumprimento se verificou meses antes de 10/2024.
E fazer crer o tribunal a quo que o 1º réu marido, sócio gerente da sociedade avalizada, não tivesse conhecimento das dificultadas da sociedade é tentar ‘tapar o sol com a peneira’.
Ora, a sociedade avalizada, tendo em consideração o valor dos créditos reclamados no processo de insolvência dos 1ºs réus, que ascendiam várias centenas de milhares de euros, era uma sociedade de “algum volume financeiro”, de média dimensão.
Pelo que, vir afirmar de que, 5 meses antes, desconhecida as dificuldades da sociedade de que era sócio e gerente, referindo que desconhecida a sua situação económica, é inverosímil.
Mais inverosímil, foi a justificação dada para justificar o injustificável, mormente de que ‘… a primeira doação com o facto da 2.ª ré ser quem mais apoio sempre deu aos 1.ºs réus, pessoas com diversos problemas de saúde e de parca instrução, tendo tal sido feito com o acordo do restante filhos dos 1.ºs réus e irmão da 2.ª ré, o qual já havia recebido um imóvel dos pais.’
Ora, os 1ºs réus ao doarem todo o seu património, 5 meses antes do primeiro incumprimento dado como provado, mas que atendendo às regras de experiência comum, a sociedade garante já há muito que estaria em incumprimento ou mora, e que tal teria que ser do conhecimento do 1º réu marido, pois era sócio e gerente da aludida sociedade, teve apenas e só o único fito de esvaziar o seu património, para que os seus credores não conseguissem apreender algo.
Pois, era mais do que previsível que os mesmos não pudessem cumprir com os avais que tinham prestado, o que inevitavelmente terminaria, como terminou com a sua insolvência pessoal.
Os 1ºs réus conluiados com a 2ª ré, pretenderam, dolosamente retirar da sua esfera jurídica os seus bens mais valiosos que sabiam que a curto prazo os credores iriam tentar penhorar para cobrança das avultadas dívidas que os 1ºs réus tinham perante eles, nomeadamente, a autora. E por seu lado, o 3º réu não teve vontade de receber a qualquer título fosse o que fosse da 2ª ré - mais não seja que apenas nem um mês de vida tinha.
A transmissão de propriedade dos imóveis foi pura e simplesmente feita com o intuito de enganar e prejudicar os credores dos 1ºs réus de não verem satisfeito os seus créditos.
Ou seja, os réus agiram como acima se alega com propósito de impedir a satisfação do crédito dos credores reclamantes.
Os réus tinham perfeita consciência de que não transmitiam algo que pretendessem transmitir, mas que apenas estavam a emitir declarações negociais susceptíveis de criar a aparência de um negócio jurídico.
 ‘Salta aos olhos’ que no negócio em causa houve divergência total entre as vontades reais e as declaradas pelos outorgantes. Que essa divergência teve o intuito de enganar terceiros. E que quanto a essa divergência existiu acordo.”
Apreciando
Nesta acção está em causa uma arguição de nulidade por simulação das doações identificadas e em que participou a filha (2ª ré) dos devedores como donatária da primeira doação e doadora da segunda.
A simulação tem como requisitos uma divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, com base num acordo entre declarante e declaratário, no intuito de enganar terceiros (art.º 240 do CC). 
Para a procedência da pretensão da nulidade das doações teria, pois, entre o mais, de se poder concluir que a 2.ª ré tinha acordado com os pais a simulação da doação, no intuito de enganar os credores (e na sequência disto, e com o mesmo fim, feito a segunda doação).
Nada disto consta dos factos provados.
A autora, no entanto, pretende que as regras da experiência comum das coisas permitem extrair por ilação os requisitos da simulação.
Mas não há qualquer regra da experiência comum das coisas que diga que uma filha tem necessariamente conhecimento da existência de credores dos pais quando estes lhes fazem a doação de muitos imóveis e que essa doação é feita para enganar esses credores de que não há prova de que ela tenha conhecimento da existência.
A doação de muitos imóveis e a aceitação da doação pela filha, seriam um bom ponto de partida para se averiguar o conhecimento, pela filha, das dívidas dos pais e, a partir daí, pelo intuito também dela de enganar esses credores, mas não para, sem essa averiguação, se poder concluir por esse conhecimento.
Não sendo impugnada a decisão da matéria de facto, nem sendo indicados quaisquer elementos de prova do conhecimento, por parte da filha, dos credores que ela quisesse enganar, nunca se poderá chegar à conclusão da verificação dos requisitos da simulação com base numa regra da experiência comum das coisas que não existe, o que implica, sem mais, a improcedência da acção.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Sem custas porque a autora está delas dispensada por apoio judiciário.

Lisboa, 12/09/2024
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas