PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
RECUSA DE HOMOLOGAÇÃO DO PLANO
AVALISTA
POSIÇÃO MENOS FAVORÁVEL PARA O CREDOR
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário

I – Na ausência de outros elementos, a previsão, no plano de pagamentos respeitante ao devedor/avalista, de que “apenas em caso de incumprimento (do plano de revitalização respeitante à sociedade subscritora das livranças) e posterior insolvência e liquidação de tal sociedade (avalizada), é que as responsabilidades por aval/fiança são devidas nas condições agora propostas”, coloca o credor em posição menos favorável do que a que lhe adviria na ausência de um plano.
II – A decisão de homologação do plano de pagamentos vincula todos os credores, quer tenham, ou não, reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, e independentemente da posição que venham a assumir relativamente ao plano sujeito a votação.
III – Formulado pedido de não homologação por um dos credores, com um dos fundamentos previstos no art. 216º, nº1, als. a) e b), do CIRE, o tribunal não se pode limitar a declarar tal plano ineficaz relativamente ao credor discordante, sob pena de violação do princípio da igualdade, encontrando-se vinculado à recusa de homologação do plano.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Catarina Gonçalves

2º Adjunto: Arlindo Oliveira

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA, veio, ao abrigo do disposto no artigo 222º-A, do CIRE, instaurar o presente processo especial para acordo de pagamento (PEAP).

Apresentado pelo devedor Plano para acordo de pagamento, o credor Banco 1..., S.A., veio requerer a não homologação de tal acordo, com os seguintes fundamentos:

 o plano contem uma violação das regras procedimentais, dele resultando para o requerente uma situação ao abrigo do plano previsivelmente menos favorável do que interviria na ausência de plano;

os créditos de que o Banco é titular decorrem de três contratos de locação financeira, no âmbito dos quais a Sociedade locatária A..., Lda., subscreveu três livranças que o devedor avalizou na qualidade de garante;

no plano submetido aos autos, prevê-se que os créditos emergentes de fianças ou avales das responsabilidades assumidas pelas sociedades onde foram formalizados os contratos:

- são regularizados nas condições que constavam do PER;

- prevê-se que, apenas em caso de incumprimento e posterior insolvência e liquidação das referidas sociedades, é que as responsabilidades por aval/fiança são devidas nas condições agora propostas, aplicando-se o disposto no artigo 218 do CIRE,

introduzindo, com tal condição, uma forma de excussão prévia dos bens da devedora principal, benefício que lhe está vedado pela lei atenta a natureza a da garantia prestada, e de contrariar o disposto no nº4 do artigo 217º do CIRE, que dispõe que as previdências previstas no plano com incidência do passivo não afetam a existências bem os montantes dos credores da insolvência contra os codevedores ou terceiros garantes;

esta condição, não só, configura a violação de normas legais, nomeadamente o disposto nos arts. 77º e 32º da LULL, como configura uma violação de uma norma procedimental, nomeadamente, a plasmada no nº4 do art. 217º do CIRE;

tal condição deixará a ora Requerente numa situação previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, porquanto, perante o incumprimento por parte da empresa avalizada, à ora Requerente bastará preencher as livranças pelos montantes que se encontrarem em divida e dar tais livranças à execução, sem ter de esperar pela declaração de insolvência e liquidação da devedora principal.

O devedor veio responder ao pedido de não homologação do plano, alegando, o seguinte:

 tal como está definido no plano, a dívida do requerente para com o credor terá de ser paga, em primeira instância, pelo devedor originário, de acordo com o plano de reembolso que foi definido;

caso se definisse um plano efetivo e solidário na esfera do aqui avalista, implicaria uma cobrança a duplicar (ou a triplicar uma vez que está em curso PEAP relativamente ao outro sócio), do valor que o credor iria receber;

dada a situação em que o devedor se encontra (há mais de um ano que não recebe salário), não há outra solução para a recuperação do devedor.


*

Submetido tal plano a votação, foi o mesmo considerado aprovado, com os votos favoráveis de 98,93 % dos votos emitidos e mais de metade dos votos corresponde a créditos não subordinados.

Pelo juiz a quo foi proferido o Despacho, de que agora se recorre, que, reconhecendo que o mesmo se mostra aprovado pela maioria legalmente necessária, recusou a homologação do Plano de Acordo de Pagamento apresentado pelo devedor.


*

Inconformado com tal decisão, o devedor dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

(…).


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. A situação do credor Banco 1... não é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.
2. Não foi violada qualquer norma não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, pois o plano não é vinculativo para o credor.
3. Se o tribunal deveria apenas ter declarado o acordo ineficaz contra este credor que requereu a não homologação.
4. Nulidade da decisão por não ter apreciado todas as questões e por não se encontrar fundamentada nem de facto, nem de direito.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Nulidade da decisão por violação do disposto nas als. b), c) e d) do artigo 615º do CPC
O Apelante invoca a nulidade da decisão, alegando que a decisão não fundamentou de facto e de direito a sua decisão, pelo que violou o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 615.º do CPC, uma vez que não apreciou a totalidade das questões como o deveria ter feito, sendo por esse facto nula; mais alega que, com tal falta de fundamentação, violou igualmente os artigos 13º, 20º, 202º e 204º da Constituição da Republica Portuguesa.

A nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito [al. b), do nº1 do artigo 615º CPC], só se verifica, em regra, quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, já não a constituindo e mera deficiência de fundamentação[1].

Ainda que adotemos o entendimento mais restritivo a tal respeito de Rui Pinto[2] – segundo o qual, a falta de fundamentação não tem de ser total, ocorrendo, ainda, falta de fundamentação quando falta em termos funcionais e efetivos a fundamentação exigida pelos ns. 3 e 4 do artigo 607º do CPC, tratando-se em ambos os casos de um erro grosseiro, grave e manifesto –, sempre concluiríamos que a decisão em apreço não padece de tal nulidade.

Com efeito, o juiz a quo fez constar da sentença recorrida os factos que considerou como assentes com relevo para a decisão e apreço e motivou, também em sede de direito, a sua recusa da homologação do plano.

De harmonia com o disposto no artigo 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil, é também nula a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608ºº, nº2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade[3].

No caso em apreço, o Apelante não refere qual, ou quais, as questões que deveriam ter sido apreciadas pelo tribunal e não o foram.

Por fim, o Apelante, no rol das nulidades que enumera indica também a al. c)” do nº1, do art. 615º – “os fundamentos em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” –, sem que nas suas alegações faça qualquer referência a uma eventual ambiguidade ou ininteligibilidade da decisão, ficando na dúvida se a indicação de tal alínea se deverá a um mero lapso de escrita.

Não se reconhece, assim, a verificação de qualquer uma das invocadas nulidades.


*
Para a decisão respeitante à homologação do plano aprovado, o tribunal recorrido teve em consideração os seguintes factos:
1º- O requerente é divorciado
2º- O requerente é pai de BB, nascido a ../../2012.
3º- O requerente aufere o valor liquido de €859,3, acrescido do subsidio de refeição no valor de €201,60.
4º- O requerente indica o seguinte património:
- Direito a metade indivisa no prédio urbano sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana com o artigo ...14, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...14, no valor patrimonial de 78.680,00 €;
- quota na sociedade B..., Lda, com o valor nominal de 130.000,00 €;
5º- O Banco 1..., SA celebrou com a sociedade A..., LDª. três contratos de locação financeira imobiliária.
6º- Para garantia das obrigações decorrentes de cada um dos contratos, a sociedade A..., LDª subscreveu 3 (três) livranças em branco, livranças essas que o devedor avalizou na qualidade de garante.
7º- A última prestação paga em cada um dos contratos data de 15.10.2023.
8º-A sociedade A..., LDª apresentou-se a processo especial de revitalização, o qual foi homologado por sentença de 16.01.2024.
9º- Consta do acordo de pagamentos, o seguinte:
9. PLANO DE PAGAMENTO PROPOSTO
9.1 RESPONSABILIDADES EFETIVAS PESSOAIS
(de acordo com o quadro da página 9)
9.1.1 Créditos Garantidos
9.1.1.1 Banco 2...
• Manutenção do contrato de empréstimo em curso.
9.1.2 Créditos Comuns
9.1.2.1. Banco 2... + Banco 3... + Banco 4... + Banco 5...
• Banco 2... + Banco 3...
o Manutenção dos contratos de empréstimo em curso.
• Banco 5...
o Contrato já liquidado
• Banco 4...
o Depois de proposta a manutenção do contrato, cujo términus ocorreria no final do ano (2024), foi-nos transmitido que não podiam aceitar uma vez que a Banco 4... com a aprovação e homologação do PEAP iria cancelar a conta e o respetivo contrato (deixando de ter as condições contratuais em curso), sendo então necessário um novo plano de reembolso.
o Nesse sentido, propõe-se o seguinte:
▪ Plano de reembolso para 100% do capital em dívida: € 1.128,65;
▪ (foram reclamados e reconhecidos € 1.953,98 de capital, no entanto, desde a data da reclamação as prestações foram pagas, tendo sido amortizados € 825,33);
▪ Perdão de 100% das despesas de contencioso reclamadas e reconhecidas (€ 386,24);
▪ Pagamento de juros vincendos à taxa Euribor1M média mensal, se positiva, acrescida de um spread de 1%;
▪ Na hipótese de a taxa de referência ser negativa ou igual a zero, para efeitos de cálculo da taxa, considera-se como sendo de valor igual a zero;
▪ Isenção de comissões na implementação dos planos e manutenção das restantes comissões contratuais;
▪ Sem Carência de capital e juros;
▪ Reembolso do capital em dívida à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano de Recuperação em 36 prestações mensais;
▪ O vencimento da primeira prestação de capital e juros ocorre 30 dias após a data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano de Recuperação.
9.2 RESPONSABILIDADES QUE DECORREM DE AVALES/FIANÇAS PRESTADOS
(de acordo com o quadro da página 9)
9.2.1 Créditos Garantidos e Comuns
• Responsabilidades decorrem enquanto avalistas/fiadores.
• Manutenção dos contratos nas empresas onde estão celebrados – A... e B...
• Os créditos emergentes dos avales/fianças das responsabilidades assumidas pelas sociedades onde foram formalizados os contratos, são regularizados nas exatas condições que constavam dos PER’s.
• Apenas em caso de incumprimento e posterior Insolvência e liquidação das referidas sociedades, é que as responsabilidades por aval/fiança são devidas nas condições agora propostas, aplicando-se o disposto no art.º 218º do CIRE.
• Plano a assumir, de acordo com o disposto no ponto anterior:
• Consolidação da totalidade da divida (correspondente ao capital, juros, comissões e outros encargos vencidos e não pagos) à data do transito em julgado da sentença homologatória do Plano de Recuperação;
• Pagamento de juros vincendos à taxa Euribor a 12 meses média mensal, se positiva, acrescida de um spread de 2%;
• Na hipótese de a taxa de referência ser negativa ou igual a zero, para efeitos de cálculo da taxa, considera-se como sendo de valor igual a zero.
• Isenção de comissões na implementação dos planos e manutenção das restantes comissões contratuais;
• Carência de capital de 24 meses e pagamento de juros à taxa indicada durante esse período;
• Pagamento de 100% do valor de capital em dívida e juros, pelo prazo de 15 anos, com o seguinte plano de amortização:
9.2.2 Créditos Subordinados
Reembolso a definir após o pagamento a todos os credores no âmbito do presente Plano de Recuperação.
*
O tribunal recorrido proferiu decisão a recusar a homologação do plano de pagamentos aprovado com os seguintes fundamentos:
1. a cláusula do acordo de pagamento altera a natureza do aval, eliminando a sua autonomia e tornando a vinculação do devedor própria das obrigações subsidiárias, violando as normas previstas nos artigos 30º, 32º e 47º da LULL, constituindo uma violação não negligenciável do conteúdo do acordo de pagamento do devedor.
2. a cláusula não pode ser entendida como uma forma de o devedor se desvincular das obrigações que assumiu, na medida em que impede o exercício dessa garantia, ou seja, o direito de exigir a prestação do avalista, enquanto não se verificar a condição, pelo que a situação do credor é, em face do património do devedor, previsivelmente, bem mais desfavorável caso ocorra a homologação do acordo de pagamento do que aquela que interviria na ausência dele (artigo 216º, nº1, al. a), do CIRE.
Insurge-se o devedor/Apelante contra ambos os fundamentos de recusa, nos termos que passamos a apreciar.
*
2. Se a situação do Banco 1... não é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano
Insurge-se o Apelante contra a decisão recorrida, sustentando que o plano de pagamentos aprovado pelos credores deve ser homologado, porquanto, a situação do Credor em causa (Banco 1..., S.A.), ao abrigo do plano, não é previsivelmente menos favorável, do que a que interviria na ausência de qualquer plano:
- é evidente que todos os credores ficarão numa situação mais favorável ao abrigo do plano de recuperação do que a que interviria na ausência de qualquer plano, pois a assegura o pagamento da integralidade da dívida a todas as categorias de créditos;
- a decisão recorrida é totalmente omissa quanto a “qualquer exercício intelectual de prognose”, pois em momento algum compara quanto o credor em causa recebe do plano e quanto auferiria na sua ausência.
Desde já adiantamos não ser de dar razão ao Apelante.

Não é verdade que a decisão recorrida seja totalmente omissa quanto a “qualquer juízo intelectual de prognose”, não comparando quanto o credor recebe do plano e quanto auferiria na sua ausência.

Após analisar a natureza e o regime do aval constante da LULL, a decisão recorrida conclui que a clausula do acordo de pagamento relativamente a estes credores “altera a natureza do aval, eliminando a sua autonomia e tornando a vinculação do devedor própria das obrigações subsidiárias”:

“A questão a resolver consiste em ponderar a validade da cláusula contida no acordo de pagamento apresentado pelo requerente, que estipula de forma clara e inequívoca como condição essencial, que a aprovação do acordo, por parte dos credores, implica o não accionamento do devedor, enquanto terceiro garante (avalista), a não ser em caso de incumprimento do plano de recuperação da sociedade A..., Lda, enquanto devedora originária, que também foi objecto de um plano de recuperação, e mesmo nestas situação, só após a insolvência e liquidação da referida sociedade e depois de um período de carência de capital de 24 meses. O capital em dívida e juros, após o período de carência, será pago num prazo de 15 anos.

(…) Com efeito, a clausula do acordo de pagamento, ao subordinar o exercício do direito do credor durante a vigência do acordo ao incumprimento do plano da devedora originária do crédito garantido e à insolvência e liquidação da referida sociedade, ou seja, ao impedir o exercício do direito do credor fora das circunstâncias previstas no plano de recuperação aprovado no processo especial de revitalização da sociedade, está a afectar os direitos do credor contra os terceiros garantes da obrigação, o aqui devedor, colidindo, dessa forma, com o princípio consagrado no nº 4 do artigo 217º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que refere “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”.

Por outro lado, ao condicionar o seu exercício ao incumprimento do plano de recuperação da devedora original e a declaração de insolvência da referida sociedade e liquidação, converteu em obrigação de natureza subsidiária, a obrigação do avalista, que reveste a natureza de obrigação solidária em relação à obrigação do avalizado.

Na verdade, o acordo ao prever a impossibilidade de o credor accionar as garantias pessoais que foram constituídas, aquando da celebração dos contratos de locação financeira, limitando a actuação do credor apenas e só em caso de incumprimento do plano de recuperação e declaração de insolvência e liquidação da subscritora da livrança, afasta o regime legal de responsabilização autónoma do avalista, limitando a sua responsabilidade apenas e só após a liquidação da sociedade, não obstante o aval ser um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma, sendo o dador de aval responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada.

(…) Acresce que, a cláusula não pode deixar de ser entendida como uma forma de o  devedor se desvincular das obrigações que assumiu, na medida em que impede o exercício dessa garantia, ou seja, o direito de exigir a prestação ao avalista, enquanto não se verificar a condição, pelo que a situação do credor é, em face do património do devedor, previsivelmente, bem mais desfavorável caso ocorra a homologação do acordo de pagamento, do que aquela que interviria na ausência dele (artigo 216º, nº 1, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas)”.

A decisão recorrida não diz “quanto” o credor irá receber pela via do plano e quanto receberia na sua ausência, mas afirma claramente que, pela via do plano aprovado, o credor se encontrará impedido de se socorrer da garantia do aval e, como tal, de receber seja o que for, até que se verifique uma condição – declaração de insolvência e liquidação total do património da avalizada A... –, condição esta que é incerta não só quanto à sua ocorrência, como ao momento em que a mesma possa vir a ocorrer;  já na ausência de um plano, o credor pode exercer os seus direitos contra o aqui devedor, de acordo com a natureza e as demais caraterísticas que a LULL confere ao aval.

Por outro lado, também não podemos acompanhar o Apelante quando sustenta que “todos os credores ficarão numa situação mais favorável ao abrigo do plano de recuperação do que a que interviria na ausência de qualquer plano, pois a assegura o pagamento da integralidade da dívida a todas as categorias de créditos”.

Se não, vejamos.

Segundo o artigo 216º, nº1, al. a), do CIRE) (aplicável ao PEAP por força do artigo 222-F, nº2, in fine), no caso de o credor ter manifestado nos autos a sua oposição anteriormente à aprovação do plano, para que o plano venha a ser recusado com tal fundamento, o requerente tem de demonstrar em termos plausíveis, que “A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante do acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas”.

Trata-se de uma hipótese em que é exigido um juízo de prognose, muitas vezes complexo, segundo qual se deve comparar o que o plano prevê para o reclamante com o que para ele resultaria se nenhum plano fosse aprovado, ou seja, se ocorresse a liquidação universal do património do devedor no âmbito de um processo de insolvência[4].

A demonstração exigida pelo artigo 216º, não se trata “de prova stricto sensu, mas de uma mera justificação, por isso o que se exige ao juiz não será a convicção séria e isenta de dúvida da verificação alegada pelo requerente, mas a conclusão por uma plausibilidade ou verosimilhança, ainda que séria[5]”.

Tal juízo de prognose pode afigurar-se mais simples ou mais complexo, em função da natureza das modificações introduzidas pelo plano, sendo que, no caso, em apreço, como é afirmado na decisão recorrida, depois de uma análise exaustiva ao regime do aval, “a aprovação do plano, por parte dos credores, implica o não acionamento do devedor enquanto terceiro garante (avalista), a não ser em caso de incumprimento do plano de recuperação da Sociedade A..., Lda., enquanto devedora originária, que também foi objeto de um plano de recuperação.

No caso em apreço, a comparação é simples e deriva do regime da autonomia do aval – regime este que se encontra devidamente explicitado na sentença recorrida e contra o qual o Apelante não se pronunciou – e do tratamento dado pelo CIRE aos condevedores e garantes, em caso de aprovação de planos de recuperação ou pagamento:

- na ausência de qualquer plano de pagamentos, o credor Banco 1... poderia instaurar execução imediata contra o aqui avalista devedor, pela totalidade da dívida e sem estar sujeito às eventuais restrições – perdões períodos de carência ou moratórias –, previstos no plano de revitalização aprovado relativamente à locatária/subscritora das livranças.

Na ausência de qualquer plano, o credor Banco 1... poderia, de imediato, preencher as livranças pelos montantes em dívida nas condições pré-existentes à aprovação daquele PER, ou seja, pela totalidade da dívida.

Passamos a explicar.

Os créditos de que o Banco 1... é titular decorrem de três contratos de locação financeira, no âmbito dos quais a Sociedade locatária A..., Lda., no âmbito dos quais esta subscreveu três livranças que o devedor avalizou na qualidade de garante;

A locatária A..., Lda., foi também ela, objeto de um plano de revitalização, no âmbito do qual o crédito do Banco 1... foi objeto das modificações previstas nesse plano.

Contudo, as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo, “não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores contra os codevedores ou terceiros garantes da obrigação (artigo 217º, nº4 do CIRE)[6]”.

Qualquer que seja a posição por si assumida no processo, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo deles exigir tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário[7].

A regra é a de que, ainda que o credor veja o seu crédito modificado pelas condições previstas num plano de recuperação, tal não altera o direito de ação que possua contra eventuais codevedores ou garantes, sendo “irrelevantes em sede de execução contra os avalistas as modificações introduzidas pelo plano nos créditos sobre a insolvência[8]”.

E, ainda que se trate de um aval prestado num título que ainda se encontra em branco, desde o incumprimento da relação fundamental tenha ocorrido antes da homologação de um plano de recuperação no âmbito do PER, pode o credor “preencher o título e demandar diretamente o avalista pelo valor que estiver em dívida aquando do incumprimento da obrigação fundamental, com observância pelo estipulado no acordo de preenchimento[9]”.

De qualquer modo, ainda que assim não fosse, logo que a subscritora da livrança entrasse em incumprimento do crédito nos termos aprovados no plano de revitalização, a moratória ou o perdão previstos no plano ficariam sem efeito – desde que o devedor se constitua em mora, ou se, finda a execução do plano, o devedor for declarado insolvente num outro processo, tal com se encontra previsto no artigo 218º, nº1, als. a) e b), do CIRE (aplicável ao PER, por força do nº13 do art. 17º-F, CIRE).

Como tal, face a tais disposições, sempre o credor poderia exercer livremente os seus direitos contra o aqui avalista do devedor e pela totalidade da dívida, sem esperar pela declaração de insolvência da empresa subscritora das livranças e, muito menos, pela respetiva liquidação.

Face ao conteúdo do plano de pagamentos aprovado nos autos:
• Os créditos emergentes dos avales/fianças das responsabilidades assumidas pelas sociedades onde foram formalizados os contratos, são regularizados nas exatas condições que constavam dos PER’s.
• Apenas em caso de incumprimento e posterior Insolvência e liquidação das referidas sociedades, é que as responsabilidades por aval/fiança são devidas nas condições agora propostas, aplicando-se o disposto no art.º 218º do CIRE.
• Plano a assumir, de acordo com o disposto no ponto anterior:
• Consolidação da totalidade da divida (correspondente ao capital, juros, comissões e outros encargos vencidos e não pagos) à data do transito em julgado da sentença homologatória do Plano de Recuperação;
• Pagamento de juros vincendos à taxa Euribor a 12 meses média mensal, se positiva, acrescida de um spread de 2%;
• Na hipótese de a taxa de referência ser negativa ou igual a zero, para efeitos de cálculo da taxa, considera-se como sendo de valor igual a zero.
• Isenção de comissões na implementação dos planos e manutenção das restantes comissões contratuais;
• Carência de capital de 24 meses e pagamento de juros à taxa indicada durante esse período;
• Pagamento de 100% do valor de capital em dívida e juros, pelo prazo de 15 anos, com o seguinte plano de amortização (…).

Em caso de homologação do plano, embora contemple “o pagamento do valor de capital em divida e juros, pelo prazo de 15 anos”, a previsão de “Apenas em caso de incumprimento e posterior Insolvência e liquidação das referidas sociedades, é que as responsabilidades por aval/fiança são devidas nas condições agora propostas”, retira aos avais prestados pelo devedor toda a sua força, retirando-lhe as suas caraterísticas de autonomia e de solidariedade.

Obrigando o credor a esperar pela declaração de insolvência e liquidação das sociedades avalizadas (o que pode levar anos) – o que significa que, até lá, o credor se encontraria impedido de acionar o avalista – equivaleria a suprimir a garantia pessoal de que o Banco 1... goza de se poder fazer pagar de imediato pelo património pessoal do avalista, correndo o risco, além do mais, de esvaziamento de tal património – o devedor/Avalista é uma pessoa individual cujo património atual se circunscreve a ½ indiviso de um prédio urbano e à quota que detém na sociedade B..., Lda. (sociedade esta que detém a 100% o capital da sociedade avalizada/A...).


*

3. Não houve uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano

Insurge-se o Apelante contra a decisão recorrida, por ter recusado a homologação do plano com fundamento em violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, com as seguintes ordens de razões:

- o Acordo de pagamento não prejudica em nada ao credor, porquanto não é vinculativo para ele, tanto mais que não votou favoravelmente relativamente ao mesmo – o banco pode exigir a dívida ao requerente com base no aval, não afetando o acordo os avais em causa, mantendo os mesmos a sua eficácia;

- pelo que o tribunal a quo deveria ter declarado ineficaz relativamente aos créditos do único credor descontente.

Não podemos dar razão ao Apelante.

O disposto no nº8 do artigo 222º-F do CIRE não deixa margem para dúvidas, prescrevendo que “A decisão de homologação vincula o devedor e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no nº4 do art. 222º-C”.

Não se suscitam dúvidas de que a decisão de homologação vincula todos os credores que tenham reclamado os seus créditos e participado nas negociações, independentemente do seu consentimento e da posição que venham a assumir relativamente ao plano sujeito a votação – abstenção, voto a favor ou contra, com dedução de oposição à homologação ou sem tal oposição)[10].

Quanto ao argumento de o tribunal poderia ter simplesmente declarado o plano ineficaz relativamente ao credor descontente também não colhe.

Desde logo, porque contrariaria o princípio da igualdade, porquanto, existindo outros credores com créditos derivados de avais/fianças prestadas pelo devedor, não poderiam ficar sujeitos a diferente tratamento, sob pena de violação do princípio da igualdade (artigo 194º do CIRE).

Por outro lado, o plano foi votado pelos credores nos exatos termos em que se apresenta, não sendo permitido ao tribunal introduzir no mesmo alterações que não tenham sido dadas a conhecer aos credores e sobre as quais não lhes foi dada a oportunidade de se pronunciaram.

Por fim, porque a opção plasmada pelo legislador no artigo 216º nº1 do CIRE foi, não a ineficácia do plano relativamente aos credores que se oponham à homologação do plano com base em qualquer um dos fundamentos previstos nas als. a) e b), mas a recusa pelo juiz da homologação do plano.

Caso tenha atempadamente manifestado a sua oposição nos autos e demonstrado em termos plausíveis que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que aquela que resultaria na ausência de qualquer plano, (artigo 216º, nº1, al. a)), o juiz está rigorosamente vinculado à não homologação do plano[11].

Como afirmam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação ao artigo 216º, “atentos os termos perentórios da primeira parte do nº1, deduzido tempestivamente o requerimento e provados o pressuposto e requisitos legais, o tribunal está vinculado na decisão a proferir, devendo recusar a homologação[12]”.

A Apelação é de improceder.


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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo Apelante.       

                                               Coimbra, 10 de julho de 2024

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

(…).


[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, pp. 735-736.
[2] “Manual do Recurso Civil”, Vol. I, AAFDL Editora, p.81 e, nomeadamente nota 336.
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, Almedina, p. 737.
[4] Maria do Rosário Epifânio, “Manual do Direito da Insolvência”, 7ª ed., Almedina, p. 369.
[5] Santos Júnior, “O Plano de Insolvência. Algumas notas”, “O Direito”, nº 138, pp.585.
[6] Sobre a aplicabilidade desta norma ao processo de revitalização (PER) e ao PEAP, se tem pronunciado maioritariamente a doutrina (neste sentido, Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência, Almedina, p. 449-450, Nuno Ferreira Lousa, “Os Créditos Garantidos e a posição dos garantes nos processos recuperatórios”, Revista de Direito da Insolvência, Nº0, 2016, Almedina, p. 165-167, Bertha Parente Esteves, “Da aplicação das normas relativas ao plano de insolvência ao plano de recuperação conducente à revitalização”, II Congresso de Direito da Insolvência, Coord. Catarina Serra, 2014, Almedina, pp. 275-276.
[7] Luís A Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., QUID JURIS, p. 838.
[8] Carolina Cunha, “Aval e Insolvência”, Almedina, p. 114.
[9] Carolina Cunha, obra citada, pp. 131-132, e 166-167.
[10] Cfr., Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, p. 449.
[11] Catarina Serra, Obra citada, p. 476.
[12] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris, pp. 834, nota 14.