LUCRO TRIBUTÁVEL PARA EFEITOS DE TRIBUTAÇÃO EM IRC
INSTITUTO DO CASO JULGADO
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
CRIME DE FRAUDE FISCAL
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO CONDICIONADA AO PAGAMENTO
OMISSÃO DE PRONUNCIA
Sumário

I - O prazo de 10 dias, estabelecido no n.º 1 do artigo 105.º do C.P.P., para a elaboração do parecer referido no artigo 416.º, é um prazo indicativo.
II - « … os custos ou perdas da empresa constituem elementos negativos da conta de resultados e são dedutíveis fiscalmente quando, estando devidamente comprovados, forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtiva da empresa em causa … O juízo de comprovada indispensabilidade é um juízo casuístico …».
III - Para que os custos referidos no artigo 23.º do CIRC sejam considerados dedutíveis para efeitos fiscais é necessário que tenham sido efectivamente suportados pelo sujeito passivo, que tenham sido inscritos na contabilidade do sujeito passivo, que sejam comprovados através de documentos emitidos nos termos legais e que sejam indispensáveis para a realização dos proveitos.
IV - Custos indispensáveis são «aqueles que correspondam a gastos realizados no interesse da sociedade, sendo excluídos os que não se insiram no interesse da sociedade, isto é, que foram incorridos para outros fins».
V - No caso das denominadas «faturas falsas» cabe à Administração Tributária o ónus de colocar em causa a presunção de veracidade da declaração do imposto e dos respetivos documentos de suporte, atento o princípio da declaração constante no artigo 75.º da LGT, cabendo, depois, ao contribuinte o ónus de provar a veracidade do declarado.
VI - O princípio do ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, «comporta duas dimensões: a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto».
VII - A expressão “mesmo crime”, que resume o princípio do ne bis in idem, tem que ser entendida como um facto ou conjunto de factos, uma certa conduta ou comportamento, um acontecimento histórico, delimitados no tempo e no espaço, pois é a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado que se quer evitar.
VIII - Sendo os factos distintos não se verifica caso julgado material e não ocorre violação do princípio constitucional “ne bis in idem”, mesmo que, ao nível da qualificação jurídica, fosse de concluir que todos os factos, se apreciados em conjunto, eram susceptíveis de configurar um único crime, por terem subjacente a mesma resolução criminosa.
IX - Os conceitos de caso julgado e ne bis in idem não são coincidentes: o caso julgado refere-se essencialmente à força da decisão/sentença em si mesma, dentro do processo ou fora dele, sendo razões de ordem pública, intimamente relacionadas com a segurança jurídica e judiciária que justificam, de forma imediata, a protecção do caso julgado, aparecendo a protecção individual como derivada daquela; a protecção do ne bis in idem dirige-se em primeira linha à pessoa, à protecção da sua dignidade, corolário indispensável do Estado de Direito.
X - O disposto no artigo 47.º, n.º 1, do RGIT consagra um desvio ao princípio da suficiência da acção penal, consagrado no artigo 7.º do C.P.P.
XI - O bem jurídico protegido no crime de fraude fiscal é «a ofensa à Conta do Estado na rubrica que inclui as receitas fiscais destinadas à realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social», bem como «a pretensão do Estado de contar com uma colaboração leal dos cidadãos na determinação dos factos tributáveis».
XII - Para a verificação do tipo objetivo do crime de fraude fiscal é necessário o atentado à verdade ou transparência corporizado nas diferentes modalidades de falsificação previstas no n.º 1 do artigo 103.º do RGIT.
XIII - No crime de fraude fiscal punem-se os actos preparatórios destinados a obter uma vantagem patrimonial indevida nas relações entre o obrigado tributário e o Estado, quer a esses actos se siga o resultado lesivo para o património fiscal ou não, pois o dano/enriquecimento indevido não é elemento típico do crime.
XIV - O artigo 14.º do RGIT aplica-se a todos os crimes tributários.
XV - A obrigatoriedade da condição constante do artigo 14.º do RGIT não afasta a aplicação do AUJ 8/2012, no sentido da necessidade de o tribunal averiguar a situação económico-financeira do arguido para efeitos de ser ponderada a eventual suspensão da execução da pena.
XVI - É nula, por omissão de pronúncia, a decisão que, considerando a situação económica concreta do arguido, não pondera a sua real situação e a sua capacidade para proceder ao pagamento da quantia em causa.
XVII - O pressuposto formal da condenação na pena acessória de proibição do exercício de funções, do artigo 66.º, n.º 1, alínea a), e n,º 2, do Código Penal, é a condenação em pena de prisão superior a 3 anos, independentemente da sua execução ser ou não suspensa.
XVIII - O juízo a fazer para a suspensão da execução da pena de prisão é distinto daquele outro para a aplicação da pena acessória: no primeiro o juízo traduz-se numa prognose favorável ao comportamento futuro do arguido e no segundo estão em causa as necessidades de prevenção geral e especial, mas também a culpa do agente.
XIX - A profissão de revisor oficial de contas está abrangida pelo n.º 2 do artigo 66.º do Código Penal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

      A – Relatório

1. Pela Comarca de Leiria (Juízo Central Criminal de Leiria - Juiz ...), foram submetidos a julgamento, em processo comum e com intervenção do tribunal colectivo, os arguidos

“A... S.A.”, sociedade anónima, com o NIPC ...82, com sede no ..., ..., legalmente representada em audiência pelo arguido AA,

AA, filho de EE e de FF, natural da Freguesia ..., Concelho ..., nascido em ../../1956, separado judicialmente de pessoas e bens, vendedor (atualmente desempregado), residente na Rua ..., ...,

BB, filho de GG e de HH, natural da Freguesia ..., Concelho ..., nascido em ../../1956, divorciado, mecânico (atualmente reformado), residente na E.N. ...50, ..., Cortes, ...,

CC, filho de II e de JJ, natural da Freguesia ..., Concelho ..., nascido em ../../1956, casado, técnico oficial de contas, residente na Rua ..., ..., ..., e

DD, filho de DD e de KK, natural da Freguesia ..., Concelho ..., nascido em ../../1956, casado, revisor oficial de contas, residente na Rua ..., ..., ..., ...,

sob acusação do Ministério Público, pelos seguintes crimes:

- os arguidos A..., AA e BB, em coautoria material e na forma consumada:

um crime de fraude qualificada, previsto e punido pela disposição conjugada dos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 1 – no que respeita à sociedade arguida –, 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias (doravante designado por RGIT), na redação originária dada pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, e artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal;

- os arguidos A..., AA, BB (estes em concurso efetivo com o crime supra indicado), CC e DD, todos em coautoria material e na forma consumada:

um crime de fraude qualificada, previsto e punido pela disposição conjugada dos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 1 – no que respeita à sociedade arguida –, 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 1, als. a), d) e e), n.º 3, ambos do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, este no que respeita aos arguidos CC e DD;

- os arguidos CC e DD encontram-se ainda incursos na pena acessória de proibição do exercício de função, prevista e punida pelo artigo 66.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal.

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferido acórdão, a 18.12.2023, decidindo-se nos seguintes termos:

“Em face do exposto, decide este Tribunal Coletivo julgar procedente, por provada, a acusação pública deduzida, e, em consequência:

SOCIEDADE ARGUIDA A..., SA:

CONDENAR a sociedade arguida, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 2, do RGIT, na redação originária dada pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, e artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa;

CONDENAR a sociedade arguida, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 1, alíneas a), d) e e) e n.º 3, ambos do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1000 (mil) dias de multa;

Em cúmulo jurídico das penas referidas, CONDENAR a sociedade arguida A..., SA, pela prática dos referidos crimes, na pena única de 1.200 (mil e duzentos) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 6.000,00 (seis mil euros).

ARGUIDO AA:

CONDENAR o arguido, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 2, do RGIT, na redação originária dada pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, e artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

CONDENAR o arguido, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 1, alíneas a), d) e e) e n.º 3, ambos do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

Em cúmulo jurídico das penas referidas, CONDENAR o arguido AA, pela prática dos referidos crimes, na pena única de 5 (CINCO) ANOS E 9 (NOVE) MESES DE PRISÃO.

ARGUIDO BB:

CONDENAR o arguido, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 2, do RGIT, na redação originária dada pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, e artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;

CONDENAR o arguido, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 1, alíneas a), d) e e) e n.º 3, ambos do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

Em cúmulo jurídico das penas referidas, CONDENAR o arguido BB, pela prática dos referidos crimes, na pena única de 4 (QUATRO) ANOS E 9 (NOVE) MESES DE PRISÃO.

SUSPENDER a execução da referida pena pelo período de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses, sujeita ao pagamento pelo arguido ao Estado, no referido período, do montante total de € 1.799.063,54 (um milhão setecentos e noventa e nove mil e sessenta e três euros e cinquenta a quatro cêntimos), sendo € 773.389,46 de forma solidária com os arguidos CC e DD.

ARGUIDO CC:

CONDENAR o arguido CC, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 1, alíneas a), d) e e) e n.º 3, ambos do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

SUSPENDER a execução da referida pena pelo período de 4 (quatro) anos, sujeita ao pagamento pelo arguido ao Estado, no referido período, de forma solidária com os arguidos BB e DD, do montante de € 773.389,46 (setecentos e setenta e três mil trezentos e oitenta e nove euros e quarenta e seis cêntimos);

CONDENAR, ainda, o arguido CC, pela prática do referido crime, na pena acessória de proibição do exercício de profissão de contabilista certificado pelo período de 4 (quatro) anos.

ARGUIDO DD:

CONDENAR o arguido DD, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 1, alíneas a), d) e e) e n.º 3, ambos do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

SUSPENDER a execução da referida pena pelo período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses, sujeita ao pagamento pelo arguido ao Estado, no referido período, de forma solidária com os arguidos BB e CC, do montante de € 773.389,46 (setecentos e setenta e três mil trezentos e oitenta e nove euros e quarenta e seis cêntimos);

CONDENAR, ainda, o arguido DD, pela prática do referido crime, na pena acessória de proibição do exercício de profissão de revisor oficial de contas pelo período de 4 (quatro) anos.

TODOS OS ARGUIDOS

DECLARAR, para os devidos efeitos, que não tem aplicação in casu o regime do perdão e da amnistia previsto na Lei 38-A/2023, de 02.08.

CONDENAR, ainda, a sociedade arguida e todos os arguidos no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça criminal devida por cada um em 3 (três) UC (artigo 513º e 514º do CPP e artigo 8º, nº 5 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao referido diploma), e nas demais custas”.

 

3. Inconformado com o douto acórdão, veio o arguido AA interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“…

Quanto à determinação da medida da pena impõe o art. 375.º, n.º 1, do CPP, que a sentença condenatória especifique os fundamentos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada (artigos 40.º; 70.º; 71.º e 77.º, todos do CP), traduzindo tal imposição o dever de fundamentação das sentenças (art. 374.º, n.º 2, do CPP), sob pena de nulidade (art. 379.º do CPP) que pode ser invocada em sede de recurso (artigos 379.º, n.º 3 e 410.º, n.ºs 1 e 3, ambos do CPP), o que expressamente se invoca.

O Tribunal a quo fundamentou a escolha e determinação (sobretudo esta última) da medida em formulações meramente genéricas ou tabelares e com diminuta ponderação dos elementos juntos aos autos relevantes para a determinação da situação pessoal do Arguido Recorrente.

Tudo quanto se afigura consubstanciar o vício de nulidade do Acórdão previsto no artigo 379.º, n.º 1, do CPP, por ausência de verdadeiro e material cumprimento do ónus de fundamentação quanto à medida das penas parcelares e, seguidamente, àquela aplicada em cúmulo jurídico, vício que expressamente se argui para todos os devidos e legais efeitos.

Verificando-se igualmente tal vício quando se constata apenas o uso de fórmulas genéricas e tabelares, sem explanação do raciocínio desenvolvido e especificação dos concretos factos ponderados, para a determinação das penas parcelares e, em particular, da operação de cúmulo jurídico (art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP), nomeadamente quais os factos relevantes constantes do relatório social (sobre o qual se entende que existe uma falta de pronúncia total, com aplicação ao caso do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, conjugado com o disposto no art. 71.º, n.º 2, al. d) do mesmo Código).

Quanto ao crime de fraude fiscal qualificada - relativo aos factos praticados nos anos de 2008 e 2009 (IRC) - e à pena parcelar de 3 (três) anos e 6 (seis) meses aplicada:

Os factos dados como provados e potencialmente relevantes (pontos 3.; 6.; 7.; 15.; 16.; 17.; 18.; 19; e 20. - quanto aos factos 2.; 5.; 6.; 8.; 10. a 12.; 19. e 20.; e 22. quanto à situação pessoal) não suportam um juízo de razoabilidade sobre a pena parcelar aplicada. Porquanto:

A determinação da pena não é um exercício puramente discricionário do Julgador, conformando-se a operação às finalidades das penas e medidas de segurança (art. 40.º do CP), em especial o fim de tutela dos bens jurídicos em causa e a reintegração do agente na sociedade com o limite máximo resultante da medida da culpa do agente (art. 40.º, n.º 2, do CP) e com obediência das regras de determinação da pena e ao conjunto de elementos exemplificativos a ponderar aquando da mesma (art. 71.º do CP) em concretização do constante do art. 40.º do CP.

As normas constantes do art. 40.º e 71.º, do CP foram violadas, porquanto, na determinação da medida da pena, não se ponderou: 1) o período de 15 anos decorrido desde a data da prática dos factos e a prolação da decisão – com consequência ao nível das exigências de prevenção geral e especial; 2) o meio simples e básico, facilmente detetável de execução da conduta; 3) a ausência de qualquer enriquecimento ilegítimo do Recorrente mas tão só um benefício para a própria Sociedade Arguida; 4) o valor do tributo não declarado em cada um dos crimes, especificadamente ; 5) que os factos foram praticados no contexto de uma atividade do Recorrente que já não se verifica, estando declarada a insolvência da Sociedade Arguida (2017), com a consequente diminuição ou totalmente afastamento da necessidade de tutela de qualquer fim de prevenção especial; 6) a idade do Arguido, a sua situação de desemprego e proximidade da idade da reforma e, especialmente, a sua situação de saúde (que não se coaduna com o cumprimento de pena privativa da liberdade em estabelecimento prisional).

A correta (e fundamentada) aplicação do disposto no artigo 40.º e no artigo 71.º, ambos do CP, aos factos dados como provados (ocorridos nos exercícios de 2008 e 2009), não se afigura permitir outra pena parcelar que não seja muito próxima do limite mínimo de um ano de prisão, mas nunca superando os dois anos.

Quanto ao crime de fraude fiscal qualificada, relativo aos factos praticados no ano de 2012, e à pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses aplicada:

10º O Tribunal a quo incorreu em errada interpretação e aplicação das normas constantes dos artigos 40.º e 71.º do CP aquando da determinação da medida da segunda pena parcelar, pelos mesmos motivos e com os mesmos efeitos que se invocaram quanto à primeira das penas.

11º Acrescendo que, da matéria de facto dada como provada sob. 27.; 28.; 29.; 30.; 33.; 34.; 35.; 36.; 50.; e 53., resulta que a conduta do Recorrente – ou demais Arguidos –, entre março e 31 de julho de 2012, não teve, nem podia ter tido, qualquer consequência sobre a liquidação de IRS (relativo a 2009).

12º Tudo quanto deveria ter sido considerado para a avaliação do grau de ilicitude e da culpa do agente, nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, do CP e, consequentemente, para determinação da concreta pena (no caso, em sentido mais favorável ao Recorrente), o que não ocorreu e determinou a aplicação de uma pena excessiva e injusta (4 anos e 6 meses de prisão).

13º Pelo que se têm por violadas as regras de determinação da medida da pena previstas no artigo 71.º do CP e por mal aplicado o Direito aos factos, o que deve merecer correção, aplicando-se no caso do segundo crime de fraude fiscal qualificada (factos de 2012) uma pena muito próxima do limite mínimo, mas, sob pena de se incorrer em grave excesso, nunca superior a 3 (três) anos de prisão.

14º Após a concreta reparação da Decisão condenatória das penas parcelares aplicadas, bem como daquela resultante da operação de cúmulo a realizar nos termos do disposto no art. 77.º do CP, reduzindo-as, a pena única concretamente aplicada seria inferior a cinco anos de prisão, com a consequente possibilidade de ser a mesma suspensa na sua execução nos termos e para os efeitos do disposto no art. 14.º, n.º 1, do RGIT, o que desde já se requer.

15º O Acórdão recorrido não contém qualquer determinação do concreto prejuízo sofrido pelo Estado, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 13.º do RGIT, apuramento esse essencial para a determinação da pena concreta a aplicar, quer nos termos da dita norma, quer nos termos do disposto no art. 71.º do CP, o que consubstancia erro na aplicação do Direito, que expressamente se invoca e pretende ver corrigido.

16º Da existência de uma tal norma (art. 13.º do RGIT), resulta a imposição, ao Julgador, de um critério adicional que este terá de ponderar para a operação de determinação da medida da pena, o apuramento, sempre que possível, de um concreto prejuízo causado pela conduta tipificada no art. 103.º e 104.º do RGIT (que prevê apenas o apuramento de um montante da vantagem visada), articulando-se a mesma com o disposto nos artigos 40.º e 71.º do CP.

17º O artigo 13.º do RGIT é tradução do princípio do inquisitório, nos termos e para os efeitos da determinação da concreta medida da pena a aplicar.

18º Entender que a norma do artigo 13.º do RGIT nenhum ónus acrescenta ao Julgador quando este escolha aplicar pena de prisão, não se promovendo a sua aplicação conjugada e articulada como as normas constantes dos 103.º, n.º 1, alíneas a) a c) do RGIT; e dos artigos 40.º e 71.º do CP, traduz interpretação inconstitucional dos princípios constitucionais da:

1) Proporcionalidade, na vertente da adequação (que impõe uma congruência entre a relevância do bem jurídico protegido pela norma incriminadora e a pena aplicável), decorrente do art. 18.º, n.º 2, da CRP; e

2) Proporcionalidade, enquanto proibição do excesso, traduzido, no caso, na imposição da aplicação do princípio da culpa, expressão dos 1.º; 13.º e 25.º, n.º 1, da CRP, assim se salvaguardando o princípio da dignidade da pessoa humana.

19º O Tribunal a quo, ao não demonstrar a impossibilidade de obediência ao comando que consta da norma do art. 13.º do RGIT, violou o dever de fundamentação a que está obrigado (cfr. art. 374.º e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP) e o princípio do inquisitório reforçado em tal norma, tudo quanto consubstancia errada aplicação do Direito que se pretende ver reparada. Sem prejuízo,

20º A possibilidade de dar cumprimento ao disposto no art. 13.º do RGIT resulta de ser conhecida pelo Tribunal a existência de processos de execução fiscal (relativos aos créditos fiscais que se relevaram para o preenchimento das fraudes fiscais qualificadas pelas quais o Arguido Recorrente foi condenado) e dos autos de insolvência da Sociedade Arguida (no Acórdão indicando-se, inclusivamente, que, até dezembro de 2014, nada havia sido pago - cfr. matéria de facto dada como provada sob pontos 3. e 53.).

21º Ao não o relevar – e sem prejuízo da inconstitucionalidade da interpretação que torne irrelevante a aplicação do art. 13.º do RGIT, nos termos acima já afirmados –, o Tribunal incorreu, igualmente, em omissão de decisão sobre matéria da qual deve conhecer (art. 13.º do RGIT), com a consequente nulidade da decisão condenatória (cfr. art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP), a qual expressamente se argui nos termos e para os efeitos do disposto no art. 379.º, n.º 2, do CPP).

22º Do cumprimento do art. 13.º do RGIT resultaria a constatação, pelo Tribunal a quo, que os montantes apurados (IRC e IRS, de 2008 e 2009) se encontram garantidos por hipoteca, constituída em maio de 2012 (antes da conclusão do inquérito) e que, no decurso dos autos de insolvência, tais bens onerados a favor da AT foram adjudicados por mais de um milhão e duzentos mil euros (dos quais mais de setecentos mil euros foram entregues à massa insolvente em 2022), o que se traduz no potencial ressarcimento da AT em mais de 2/3 dos montantes tributários apurados em falta.

23º O que sempre teria relevância nos termos do disposto no art. 71.º do CP e especialmente do art. 13.º do RGIT, bem como evitaria a aplicação de pena injusta e excessiva ao Recorrente(!), que expressamente se pretende ver reparada, se necessário com a remessa dos autos à 1.ª Instância para que se corrija a decisão nessa parte, reabrindo-se a produção de prova necessária à obtenção das informações relevantes.

Do erro da decisão da matéria de facto provada – erro na apreciação da prova e na aplicação do Direito

24º O Tribunal a quo entendeu que os factos dados como provados sob 36. a 52., ao traduzirem a falsificação e adulteração de elementos contabilísticos, criando-se novos, consubstanciariam o preenchimento do tipo penal previsto nas normas do RGIT acima melhor identificadas e fundamentariam a aplicação da pena (única) de prisão pelo período de 4 anos e 6 meses.

25º O Tribunal a quo fê-lo desconsiderando os factos provados de 1. a 35., incorrendo, consequentemente, na errada interpretação das referidas disposições punitivas (art. 103.º e 104.º do RGIT, nomeadamente a data do facto tributário e a ausência de consequência da conduta de 2012 para qualquer crime, bem como a verdadeira inaptidão da mesma para produzir qualquer lesão tributária (Cfr. acórdãos da jurisdição tributária juntos aos autos).

26º O Tribunal a quo incorreu na errada aplicação do princípio da livre apreciação da prova – art. 127.º do CPP – porquanto essa liberdade na ponderação dos elementos probatórios não afasta a necessidade de um raciocínio lógico, expresso de forma coerente e consistente com os ditos elementos probatórios.

29º Tudo quanto resulta em errada aplicação da norma constante do artigo 127.º do CPP, que expressamente se invoca, o que impõe a alteração da decisão da matéria de facto sob 36. a 52..retirando quaisquer referências a adulteração ou falsificação de documentos e / ou declarações fiscais.

30º Além de se afigurar consubstanciar erro notório na apreciação da prova, que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. Ainda que assim não fosse,

31º Não se podendo, consequentemente, dar como preenchido o tipo de fraude fiscal qualificada do art. 104.º, n.ºs 1, al. a); d); e e) e n.º 3, do RGIT, desde logo por não se encontrar preenchida a conduta típica prevista no art. 103.º, n.º 1, al. a), do RGIT, devendo o Recorrente ser absolvido da prática do referido crime.

32º E, em conformidade (além demais invocado neste Recurso), apenas se mantendo a condenação a 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão do RGIT, ser apreciada a possibilidade (e ordenada a final) a suspensão da mesma, nos termos e condições  constantes do art. 14.º do RGIT.

Da aplicação da Lei n.º 28-A/2023, de 02.08

33º O Tribunal a quo considerou que, “face à idade dos arguidos à data dos factos (superior a 30 anos de idade)”, a Lei 38-A/2023 não tem aplicação ao caso dos autos.

34º Não existe qualquer limitação, no caso, à fiscalização da constitucionalidade das normas contidas na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, quando sejam os tribunais chamados à sua interpretação e aplicação e surjam dúvidas sobre a conformidade das mesmas com o escalão constitucional, o que sucede nos presentes autos, como se demonstrou nas Motivações.

35º O critério etário que é feito constar da norma do artigo 2.º, n.º 1, ao limitar a aplicação da Lei aos casos em que “as pessoas” tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do ilícito, tem efeito restritivo do âmbito de aplicação do diploma em apreço e implica um tratamento desigual entre as pessoas que tivessem até 30 anos à data da prática dos factos ilícitos (referidos nos artigos 3.º e 4.º do mesmo diploma) e aquelas que tivessem mais.

39º No caso do critério etário fixado no art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, facilmente se constata que não existe qualquer tipo de fundamento avançado pelo legislador para introduzir uma tal norma restritiva de aplicação do diploma legal em apreço,

40º Pelo que terá de concluir pela inconstitucionalidade da norma constante do art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, por violação do princípio da igualdade e do princípio da legalidade democrática.

41º Nos termos do disposto no artigo 18.º da Constituição da República:

42º A Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, considerando a matéria, é uma lei que incide sobre direitos, liberdades e garantias, estando claramente abrangida pelo que se postula no artigo 18.º da CRP, que se entende ser violado uma vez que não se alcança existir qualquer necessidade de restrição do campo subjetivo de aplicação do diploma em causa e, menos, a adequação de um critério etário ao cumprimento de uma tal necessidade (não revelada, por inexistente) .

43º Passando a interpretar-se e aplicar-se a norma constante do art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, no seguinte sentido:

Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.

44º Interpretação que permitirá o aproveitamento da norma (por via da referida interpretação) constante do artigo 2.º, n.º 1, e da qual resultará a aplicação do regime previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, no caso dos autos, o que expressamente se requer!

45º Acresce que, a aplicação do perdão de um ano à pena única e não a cada uma das penas parcelares fixadas implica, igualmente, um juízo de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 3.º, n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08.

46º Uma vez que a mesma representa interpretação de tal norma que permite um tratamento desigual – mais desfavorável – a quem tenha sido condenado em concurso de crimes no mesmo processo do que àqueles que o tenham sido em vários processos sem possibilidade de realização superveniente cúmulo jurídico, sem qualquer fundamentação da restrição que a torne compatível com o disposto no art. 18.º da Constituição.

47º E implicando uma desconformidade e incongruência com as normas gerais (art. 70.º; 71.º e 78.º do CP) relativas à fixação das penas, tudo sem fundamento bastante.

48º Sendo a interpretação do art. 3.º, n.º 4, que melhor se conforma à Lei Fundamental aquela que determine “a aplicação do perdão de um ano a cada uma das penas parcelares aplicadas, com o mínimo de um ano na pena única a aplicar após a operação de cúmulo jurídico, o que expressamente sem requer.

4. Também o arguido BB, inconformado com o douto acórdão, veio interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“1. Entendem os ora recorrentes que a decisão merece reparo e que não foi correta a apreciação da prova feita pela Meritíssima Juiz

4. O princípio in dúbio pro reu coloca-se precisamente ao nível da valoração da prova. Aquele constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

5. Estando em análise a prática de 2 crimes de fraude fiscal importa aferir da autoria material dos mesmos, já que o simples fato do arguido BB constar da certidão comercial, como gerente da arguida A... S.A. não é, nem pode ser, suficiente para determinar a autoria material.

6. A mera prova do exercício da gerência de fato não é igualmente suficiente para determinar a autoria material dos referidos crimes tributários.

7. O autor material do crime tributário, tem de ter o domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais da empresa, pois se assim não for, estaremos a imputar ao mesmo uma responsabilidade objetiva, sem culpa. Cada um responde pela sua culpa e não por culpa alheia, e não independentemente de qual foi a forma da sua intervenção

8. O mero conhecimento da situação financeira da empresa não permite por si só imputar culpa ao arguido/gerente na prática do crime fiscal,

9. Exige-se pois o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal

10. O autor material será aquele que decide a sua prática, que o executa (por si ou interposta pessoa), que detém o poder de controlo sobre o processo causal que o determina;

11. Nenhum interveniente processual (arguidos e testemunhas) afirmou que o arguido BB tinha algum tipo de domínio (mínimo sequer) sobre as questões fiscais ou contabilistas da sociedade A..., ou que emanava ordens a quem quer que fosse sobre tal tema. Veja-se a este propósito as declarações dos arguidos AA, LL, DD, e das testemunhas MM e NN, transcritas na Motivação

12. Se alguma conclusão se pode retirar das declarações do arguido AA é que o arguido BB estava responsável pela oficina da sociedade A... e quem tinha o domínio decisório e executivo em matéria fiscal e contabilística era o diretor financeiro OO.

13. Não resulta destas declarações qualquer prova, ou de que o arguido BB tenha atuado ou se tenha conformado previamente com a lesão dos cofres do estado, por si ou por interposta pessoa.

14. Acresce que nem mesmo destas declarações resulta o indício de que o arguido BB “fazia parte das decisões financeiras da empresa” contrariamente ao que resulta da douta sentença

15. Por outro lado, não resultam daquelas declarações qualquer envolvimento do arguido BB nas decisões financeiras, fiscais ou contabilísticas da empresa

16. Recorrendo à sentença recorrida, resulta evidente que a autoria material do arguido BB foi sustentada nas declarações dos arguidos CC, DD e da testemunha MM, não se tendo a meritíssima Juiz a quo socorrido de qualquer outra prova.

17. Tendo em conta as declarações daqueles intervenientes processuais não se consegue alcançar como pode ser retirada das mesmas, a conclusão que o arguido BB tomava decisões financeiras na empresa, executadas pelo diretor financeiro da mesma, pelo técnico oficial de contas e pelo revisor oficial de contas.

18. E ainda que fosse interveniente nas decisões financeiras (questões bancárias, de tesouraria, pagamento de fornecedores, etc) daí não resultaria diretamente a autoria material dos crimes fiscais pois que fica por provar que aquele tinha efetivamente o domínio funcional dos factos, ou seja quem reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento das obrigações tributárias.

19. Ficou demonstrado que o arguido BB não tinha qualquer capacidade para elaborar um qualquer plano de evasão fiscal ou algum plano para aumento de capital social mediante alteração da contabilidade (como decorre da sentença),

20. A análise que é feita na douta sentença é simplista e demasiado redutora, não permitindo efetuar a prova da autoria material dos fatos e da culpa que lhe tem que estar subjacente.

21. Pode-se assim concluir da audição de todos os depoimentos que era ao Diretor Financeiro- OO - que cabia o domínio funcional dos fatos que integram os crimes de fraude fiscal em análise.

22. Dizer que é inverosímil que o mesmo tivesse sido o autor material de tais fatos, ou o “cérebro” por detrás de todas as operações descritas nos fatos provados, porque nada beneficiava com isso, é uma conclusão apressada e sem qualquer suporte fático.

23. Não tendo ficado demonstrado, para lá da dúvida razoável, que o arguido BB tinha domínio sobre as questões fiscais e contabilísticas, em obediência ao princípio in dúbio pro reu, os seguintes fatos deveria, ter sido dados como Não Provados: 9, 15, 16, 17, 22, 36, 37, 38, 40, 45, 51, 55, 56, 57, 58 e 61.

24. Quanto ao fato 47, não existiu resquício de prova, e o mesmo é até contrariado pelo documento de requisição de registo comercial de 29/8/2012 que se encontra nos autos do qual consta como requerente desse registo terceira pessoa pelo que, deve ser dado como não provado

25. O crime de fraude fiscal consuma-se quando o agente com a intenção de lesar patrimonialmente o fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidos pela relação tributaria através de qualquer das modalidades de falsificação prevista no art. 103º do RGIT, ainda que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar.

26. Não tendo que existir dano, tem que existir no mínimo a intenção de lesar patrimonialmente o fisco e com atuação do agente essa lesão tem que ser possível, embora possa não ser alcançada.

27. É necessário averiguar se os fatos praticados tinham a virtualidade de lesar patrimonialmente o fisco e se foram cometidos com essa intenção prévia.

28. A conta 31 e 32 não é uma conta de custos, mas sim uma conta de inventários e ativos. A conta de custos é uma conta da classe 61. (custo das mercadorias vendidas e das mercadorias consumidas – CMVMC)

29. Sendo a conta 31 e 32 uma conta de inventários, as faturas duplicadas e triplicadas ao serem contabilizadas nessas contas teriam de automaticamente afetar o inventários/existências.

30. Das declarações a Sra. Inspetora resultam 2 aspetos fundamentais e que não podem ser ignorados: - Que se as máquinas que constavam das faturas duplicadas e triplicadas, constassem do inventário final, então não “haverá um incremento de custos” e não existirá alteração ao nível do imposto de IRC e que a conclusão de que as máquinas que constava das faturas duplicadas e triplicadas Não constavam do inventário, só pode ser retirada com segurança verificando o documento do inventário

31. O documento do inventário da empresa A... não consta dos autos.

32. Dizer, como se diz na sentença que “as referidas faturas duplicadas e triplicadas na contabilidade foram feitas constar pela sociedade arguida como custo da empresa, para efeitos de declaração de IRC”, é uma falácia…

33. Só existirá lucro a tributar, quando uma máquina previamente comprada, for posteriormente vendida. Se a máquina nunca for vendida, não haverá lucro a tributar, ficando a constar obrigatoriamente das existências da empresa até que seja vendida. A cada venda existe um custo associado, apurando-se o lucro de cada venda

34. D relatório da Inspeção Tributaria e que serviu de sustentação à douta sentença, parte do pressuposto (errado) de que as faturas em duplicado provocaram um aumento da rubrica “custo de mercadorias vendidas das matérias consumidas - CMVMC (conta 61 do SNC), o que como decorre do fato provado 23, não se verificou.

35. Para se retirar esta conclusão teria que se ter provado que as máquinas dupla e triplamente faturadas tinham transitado da conta 31 e 32 para a conta 61 (CMVMC), o que não se provou. Tal conclusão tem que assentar forçosamente em prova documental, e nomeadamente do extrato da conta 61 (CMVMC), que não consta dos autos

36. O único documento existente nos autos é o extracto da conta 31 e 32 que como vimos não configura custo nem contabilístico, nem fiscal….

37. O IRC baseia-se no Custo das mercadorias Vendidas e Matérias consumidas (conta 61) e não na conta 31 e 32.

38. As faturas em duplicado e triplicado não podem ser consideradas custo sede de IRC, e não foram (e não se demonstra que o foram), porquanto não foram necessárias, indispensáveis à obtenção de rendimentos (vendas) da sociedade, já que tais máquinas não foram efetivamente vendidas, como se viu.

39. Não obstante a duplicação e triplicação de faturas, incorretamente introduzidas na contabilidade, tal ato por si só não tinha a virtualidade de diminuir o lucro tributável e assim de lesar as contas do estado, e não podendo tal ato ter essa possibilidade, não poderiam os arguidos ter atuado com essa intenção, ficando por provar um dos elementos do tipo do crime de fraude fiscal., e não podendo dar-se como provados os fatos 17, 18, 19 e 20.

40. Não se demonstrando que a A... se enriqueceu no montante global de € 1.025.674,08 a título de IRC, tal valor não poderá constar como condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido BB

41. Ao retirar da contabilidade as faturas duplicadas e triplicadas, consequentemente teve de se corrigir a saída dos meios financeiros para pagamento das mesmas. Porem, provou-se que aqueles valores nunca saíram das contas da sociedade, pelo que não foram colocados, na verdade, à disposição dos sócios.

42. Se efetivamente o aumento de capital não resultou da entrada em dinheiro dos sócios, mas resultou da disponibilidade de reservas da empresa (que nunca foram colocadas efetivamente na disponibilidade dos sócios) haveria que corrigir a forma de aumento de capital social, alterando a respetiva deliberação, e a respetiva ata e bem assim o subsequente registo comercial.

43. Não existiu nenhum artificio ou ocultação dos valores que determinaram o aumento do capital social por incorporação de reservas, porquanto as mesmas existiam, eram reais e na verdade encontravam-se mal contabilizadas.

44. A errada contabilização das reservas existentes, não determinava a alteração do lucro tributável e assim o pagamento de IRC, nem determinaria a tributação em sede de IRS, porquanto não tendo sido disponibilizados tais valores aos sócios, porque nunca saíram da esfera da sociedade, não é sujeito a pagamento de IRS, pelo que os fatos 31º e 32º deveriam ser considerados como Não Provados.

46. Admitindo, por hipótese de raciocínio, que efetivamente os arguidos BB e A... tinham efetivamente praticado os fatos descritos em 1 e 35 dos fatos provados, com a intenção e consequências aí descritas e que por consequência tinham cometido um crime de fraude fiscal qualificado, entendemos que carece de total fundamento a condenação por um segundo crime de fraude fiscal.

47. Todas as correções efetuadas a posteriori e relatadas nos fatos 36 a 52 resultam diretamente do que foi apurado pela inspeção tributária e que assim importava corrigir.

48. Apurados os factos ilícitos e com incidência fiscal pela inspeção tributária, no relatório de inspeção tributária, seria inócuo o tratamento posterior que os arguidos lhes dariam.

49. Em 2012, após a inspeção da AT, já se encontravam consumados os fatos ilícitos que conduziram e levaram à não liquidação ou pagamento da prestação tributaria conforme impõe o disposto no art. 103º nº 1 do RGIT

50. As condutas imputadas aos arguidos em 2012 incidiam sobre os mesmos fatos tributários de 2008 e 2009 (fatos 1 a 35), já detetados pela AT que corrigiu a matéria coletável e os impostos a pagar, efetuando as liquidações oficiosas.

51. Condenar os arguidos pelas condutas descritas nos fatos 36, 48 e 58 é condena-los duplamente pelo mesmo fato ilícito típico (violando-se o disposto no art. 29º nº 5 da CRP), pois que são fatos que se reconduzem a evitar a mesma tributação, que já se encontrava apurada e liquidada pelo relatório da inspeção tributária de 2011.

52. Os fatos atinentes a 2012 (fatos 36 a 52) não têm relevância penal autónoma, sendo apenas “atos de defesa frustrada, embora, mas não constitutivos de um novo crime de fraude fiscal”

53. Assim, e pelo supra exposto entende-se que os seguintes fatos não poderiam ser dados como provados: 36, 37, 48, 58 e 59.

54. Colocados em crise os fatos supra indicados, fica sem sustentação a conclusão de que os arguidos praticaram um segundo crime de fraude fiscal.

Nestes termos, e sobretudo, pelo que V. Exas. doutamente suprirão, se deve dar provimento ao presente recurso, devendo ser revogada a decisão recorrida e ser substituída por outra que absolva o recorrente dos crimes de que foi condenado.

5. Inconformado com o douto acórdão, veio igualmente o arguido CC interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

I

II

4- Os presentes autos estiveram suspensos durante a fase de inquérito, por despacho do Ministério Publico, de 06/02/2017, ao abrigo do artigo 47º do RGIT, em virtude da impugnação judicial deduzida pela sociedade coarguida A... Sa. contra a liquidação de retenções na fonte de IRS n.º ...37, do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46, que correu termos como Processo n.º 1022/12...., no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

5- Em ambos os processos o que está em causa é situação tributária em sede do IRS de 2009, decorrente da utilização pelos coarguidos AA e BB, então acionistas e administradores da A... Sa., de dinheiro proveniente desta, para subscreverem em nome deles, o aumento de capital social da mesma realizado em 2009 – de cuja definição dependia (e depende) a qualificação jurídico-criminal dos factos imputados aos coarguidos nos autos.

6- O Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, referente ao processo n.º 1022/12...., fixou nomeadamente:

a) a causa/origem do sobredito IRS (distribuição de dividendos, pela coarguida A... Sa., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem em dinheiro o aumento de capital dessa sociedade, então deliberado);

b) a data em que tal imposto nasceu (setembro de 2009); a não produção de efeitos retroativos da retificação do referido aumento de capital deliberada em assembleia geral daquela sociedade coarguida, de 30 de julho de 2012;

C) e a manutenção da liquidação do aludido imposto na esfera jurídica desta sociedade;

7- A decisão proferida no processo de impugnação judicial nº 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, sobre o IRS de 2009 decorrente da utilização pelos coarguidos AA e BB, então acionistas da coarguida A... Sa., de dinheiro proveniente desta, para subscreverem, em nome deles, o aumento de capital social da mesma realizado em 2009, é essencial para a boa decisão nos presentes autos, devendo ter sido conhecida e apreciada pelo Tribunal de 1ª instancia.

8- Contudo, o tribunal a quo, mão se pronunciou de tais questões dadas como provadas pelo Tribunal Central Administrativo do Sul na decisão proferida no processo nº 1022/12...., que, pela essencialidade, pertinência e relevância das mesmas para os presentes autos, deveriam ter sido apreciadas pelo tribunal de 1ª instância.

9- O acórdão objeto do presente recurso padece assim da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal, a qual aqui se invoca, devendo ser declarada com todas as consequências legais.

III

10- O Ministério Publico determinou a suspensão dos presentes autos em face da Impugnação Judicial correspondente ao Processo n.º 1022/12...., a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, porque entendeu que os fatos em discussão em sede do Processo de Impugnação Judicial estavam interligados e eram essenciais para a discussão e decisão dos presentes autos.

11- A decisão sobre os fatos em discussão no Processo de Impugnação Judicial, prejudicaria/influenciaria determinantemente a decisão sobre a matéria de fato em discussão nos presentes autos, que, por isso, foram suspensos.

12- Os efeitos da matéria de fato fundamentada e decidida em sede do Processo de Impugnação Judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, repercutem-se necessariamente na fundamentação e decisão da matéria de fato dos presentes autos.

13- A questão do caso julgado produzido no processo penal tributário pala decisão proferida no processo tributário pelo tribunal fiscal convoca sobretudo o instituto da autoridade do caso julgado, aliás, por forma a que não tenhamos duas justiças diferentes para a mesma situação!

14- A decisão final proferida pela jurisdição fiscal no processo tributário pre-judicial, possui autoridade de caso julgado no processo penal tributário, quer no que concerne ao respetivo dispositivo, quer quanto aos fundamentos de facto e de direito que “sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado”, e não apenas em relação ao arguido impugnante ou oponente, mas a todos os arguidos.

15- Mas ainda que assim não se entenda, por se sustentar o carácter individual e pessoal do processo tributário e daí se concluir que a decisão lá proferida apenas produz efeitos em relação a quem foi parte no mesmo, ou nele interveio, não pode deixar de se considerar que, sendo os efeitos de tal decisão favoráveis a arguido que não foi parte nem interveio naquele processo, essa decisão possui autoridade de caso julgado material no processo penal tributário.

16- Nos presentes autos, assume autoridade de caso julgado material, o Acórdão proferido no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, referente à liquidação do IRS do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46.

17- Este acórdão manteve essa liquidação do IRS do período de tributação de 2009, nomeadamente porque entendeu e decidiu que a retificação da modalidade de subscrição do aumento de capital social da coarguida A..., S.A., a que se reporta o ponto 42 dos “factos provados” do acórdão recorrido, aprovada em assembleia geral dessa coarguida de 30/7/2012, somente produz efeitos para o futuro, perante a sociedade e os sócios a partir de 30/7/2012 e relativamente a terceiros a partir de 29/8/2012.

18- Deve assumir-se nos presentes autos, a autoridade do caso julgado material formado pelo referido Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 07/05/2020, na medida em que o mesmo fixou e definiu questão prejudicial, maxime a causa/origem do sobredito IRS (distribuição de dividendos, pela coarguida A..., S. A., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem em dinheiro o aumento de capital dessa sociedade, então deliberado); a data em que tal imposto nasceu (setembro de 2009); a não produção de efeitos retroativos da retificação do referido aumento de capital, deliberada em assembleia geral da coarguida A..., S. A., de 30 de julho de 2012; e a manutenção da liquidação do aludido imposto na esfera jurídica desta sociedade.

19- A decisão da referida questão prejudicial no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., determina que os fatos que o tribunal a quo dá como provados e imputa ao recorrente (as alterações contabilísticas aí mencionadas), não só não importaram, como não eram aptos a determinar “a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias”.

20- Atento o disposto no nº 1 e nº 2, do artigo 103.º do RGIT, não se mostra representada a prática do crime pelo qual o recorrente foi condenado, ou pelo menos tal crime não é punível, devendo-se revogar o d. acórdão recorrido e absolver-se o recorrente.

IV

21- A prevalência da fundamentação das decisões judiciais é acolhida uniformemente pela doutrina e pela jurisprudência.

22- O d. acórdão recorrido é omisso no que concerne à indicação e ao exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal de 1ª instância.

23- O Tribunal a quo, no essencial, alicerçou a decisão quanto aos fatos provados imputados aos coarguidos, na seguinte prova:

a) depoimento da inspetora tributária;

b) relatório de inspeção tributária;

c) decisões proferidas pelas várias instâncias dos Tribunais Administrativos e Fiscais acerca das impugnações apresentadas pela sociedade arguida A... Sa.

24- O tribunal de 1ª instância limitou-se a acompanhar e reproduzir integralmente a d. acusação publica, à boleia dos elementos probatórios recolhidos em fase de inquérito e referentes ao procedimento tributário, em particular, o referido relatório de inspeção tributária e as decisões proferidas pelos Tribunais Administrativos e Fiscais, mas sem proceder a um exame critico dessas provas que serviram para formar a sua convicção!

25- A prova documental referente aos acórdãos proferidos pelos Tribunais Administrativos e Fiscais, em particular, ao processo acima identificado, diz respeito a instâncias e processos distintos dos presentes autos, pelo que, deveria o Tribunal a quo, ter feito uma análise critica dessa prova, ao invés de se limitar a remeter, sem mais, para tais processos e decisões.

26- As presunções que valeram para as decisões proferidas nos processos de impugnação judicial tramitados em instâncias Administrativas e Fiscais, não podem valer nem serem só por si suficientes para, sem mais, o Tribunal judicial de 1ª instância dar como provados os fatos imputados ao recorrente e com base nisso condená-lo.

27- Também quanto aos depoimentos das testemunhas de defesa indicadas pelos coarguidos, o tribunal a quo, adstringiu-se a fazer uma muito breve e acrítica referência meramente indicativa de tais depoimentos, sem fazer sequer um exame critico acerca dessa prova testemunhal.

28- O tribunal de 1ª instância, restringiu-se a mencionar a prova constante dos autos, fazendo um apanhado inteiramente genérico da prova produzida em audiência de julgamento, mas sem levar a cabo uma análise critica da mesma, relacionando-a de forma objetiva com os fatos provados imputados aos coarguidos, em particular, ao aqui recorrente.

29- O recurso às regras da normalidade e experiência comum, sendo legitimo, deverá assumir um papel subsidiário ou auxiliar em relação à demais prova, não substituindo a necessidade de examinar criticamente a prova constante dos presentes autos, quer seja testemunhal, quer seja documental.

30- Os critérios da livre convicção do tribunal e das regras da normalidade e experiência comum, usados pelo tribunal a quo no d. acórdão recorrido, teriam de estar estribados na análise critica das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o que não sucedeu.

31- A liberdade de apreciação da prova, que legitimamente assiste ao Tribunal, não exclui o imperativo legal e constitucional da fundamentação, mormente no que respeita ao exame critico da prova na qual o tribunal assentou a motivação para a decisão dos fatos.

32- Exigia-se ao Tribunal a quo, um exame critico e fundamentado acerca da prova documental dos autos e da prova produzida em audiência de julgamento, na qual assentou a sua decisão, o que, in casu, de fato não se verificou!

33- O d. acórdão recorrido padece de vicio formal da nulidade atinente à falta de fundamentação da decisão, no recorte pertinente à ausência de indicação particularizada e do exame crítico das provas.

34- O d. Acórdão recorrido é nulo, por omissão de indicação especificada das provas e por falta do respetivo exame crítico fundamentado, violando o Tribunal a quo o adjetivado no artigo 379º nº 1 al. a), por referência ao estatuído no artigo 374º, nº 2, com todas as consequências legais.

V

35- O tribunal de 1ª instância, no d. acórdão recorrido, esbarra em contradição quando refere e dá como provado que o recorrente atuou em colaboração e concluiu com os coarguidos AA e BB, e ao mesmo tempo que o recorrente agiu a mando e por indicação e sob orientação daqueles.

36- Existe contradição entre os fatos provados 37, 58 e 60, o d. acórdão recorrido, que apontam para a existência de concluiu, e entre os fatos provados 38, 40 e 51 do mesmo acórdão recorrido, que deitam por terra essa ideia de concluiu entre aqueles.

37- É substancialmente diferente e contraditório, saber se o recorrente agiu em concluiu com os coarguidos administradores da sociedade A... Sa., ou se, pelo contrário, atuou apenas a mando, por indicação e sob orientação daqueles, vinculado e no cumprimento da relação laboral existente.

38- Tendo o recorrente agido a mando, por indicação e sob orientação daqueles coarguidos, não se vislumbra de que forma se poderá dar como provado que o mesmo agiu sempre com intenção de obter para si e para os demais, vantagens patrimoniais indevidas.

39- O acórdão recorrido é nulo, por contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, violando o tribunal a quo o adjetivado no artigo 410, nº 2, al. b) do CPP, com todas as consequências legais.

VI

40- Impugnam-se os os “fatos provados” 37, 38, 39, 40, 44, 46, 50, 51. 58, 60 no d. acórdão recorrido, referentes à concreta participação/intervenção do coarguido CC nas alterações contabilísticas aí descritas pelo Tribunal a quo.

41- Quer da prova documental dos autos, quer das declarações dos coarguidos e da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, não resultam provados os fatos provados 37, 38, 39, 40, 44, 46, 50, 51. 58, 60, nem tão pouco, é possível concluir da prática de tais fatos pelo recorrente!

42- Considerar tais fatos como provados e imputar a conduta adstrita aos mesmos ao coarguido CC, é manifestamente um salto de fé, sem substrato probatório, e para o que as regras da experiência da experiência comum são manifestamente insuficientes!

43- É assente que o coarguido CC não teve qualquer participação na factualidade dada como provada de 15 a 35 do d. acórdão recorrido, referente à dupla e tripla faturação e ao aumento de capital ocorrido em 2009.

44- Os fatos dados como provados de 15 a 35, referentes ao período anterior à retificação da deliberação de subscrição do aumento de capital realizada em 2012, durante o qual foram lançadas as faturas em duplicado e triplicado, e onde em 2009 foi aprovado o aumento de capital realizado através de novas entradas em dinheiro, estão na génese das alterações contabilísticas que foram posteriormente realizadas, sem os quais essas alterações contabilísticas imputadas ao recorrente, nunca teriam sido necessárias, portanto, nunca teriam sido efetuadas!

45- Foram as primeiras operações contabilísticas desconformes (dupla e tripla faturação e o aumento de capital aprovado em 2009), nas quais é assente que o coarguido CC não teve qualquer participação, que ditaram as subsequentes alterações contabilísticas imputadas ao recorrente.

46- O coarguido AA, administrador da sociedade coarguida A... Sa., não imputa a iniciativa e autoria das alterações contabilísticas ao coarguido CC, mas sim ao então Diretor Financeiro dessa empresa, OO, que nas palavras deste coarguido, era o responsável pela contabilidade e fiscalidade daquela sociedade.

47- Não resulta das declarações prestadas pelo coarguido DD, Revisor Oficial de Contas e Fiscal Único da sociedade coarguida A... Sa., quer em 2009, quer em 2012, qualquer participação do coarguido CC nas alterações contabilísticas efetuadas.

48- O coarguido DD assume a participação e autoria nessas alterações contabilísticas, por indicação da administração daquela sociedade e do Diretor Financeiro, OO.

49- A testemunha MM, Técnico Oficial de Contas da sociedade coarguida A... Sa., até março de 2012, quando substituído pelo recorrente, não imputa a autoria de quaisquer alterações contabilísticas ao coarguido CC, pelo contrário, refere que quem procedia à contabilidade daquela sociedade eram os seus funcionários administrativos da empresa, e que quem tratava dos assuntos fiscais da sociedade era o dito Diretor Financeiro da empresa, OO.

50- A testemunha NN, que trabalhou como administrativa da sociedade A... Sa., desde setembro de 2001 e março de 2015/2016, declarou que durante todo esse tempo o recorrente exercia as funções de cobranças aos clientes, que nunca recebeu quaisquer instruções relativas a contabilidade por parte do mesmo, e que procedeu ao lançamento em duplicado de faturas a mando do Diretor Financeiro, OO.

51- Resulta inequivocamente das declarações dos coarguidos e dos depoimentos das testemunhas acima transcritos e constantes dos autos, que:

a) Quem mandava na sociedade A... Sa. em termos contabilísticos e fiscais era o Diretor Financeiro, OO;

b) O coarguido DD, admite ter sugerido a realização das alterações contabilísticas em causa, e que as terá efetuado a mando da Administração ou do Diretor Financeiro OO;

c) O coarguido CC, apenas exercia as funções de cobranças a clientes, não tendo ingerência na contabilidade e fiscalidade da empresa, quer antes, quer depois, de passar a figurar como TOC da mesma;

52- Da conjugação da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, não é possível concluir, com a certeza e rigor que se exige no processo penal, que o coarguido CC haja tido qualquer tipo de intervenção/participação nas alterações contabilísticas mencionadas nos fatos provados 37, 38, 39, 40, 44, 46, 50, 51, 58, 60, acima transcritos.

53- A factualidade trazida em sede de audiência de julgamento quer pelos coarguidos, quer pelas testemunhas, afasta o coarguido CC de quaisquer intervenções contabilísticas e/ou fiscais na sociedade A... Sa., empurrando esse ónus para o Diretor Financeiro daquela empresa, o OO!

54- Da prova documental junta aos autos, também não se pode concluir com a certeza e rigor exigidos, pela intervenção/participação do coarguido e recorrente, nas alterações contabilísticas mencionadas nos fatos provados 37, 38, 39, 40, 44, 46, 50, 51, 58, 60, acima transcritos.

55- Ao contrário do que é dito no fato provado 40 do d. acórdão recorrido, não é possível atribuir ao recorrente a autoria do documento interno com a designação “Listagem de movimento nº 12030”, com a descrição “Regularização de existências após contagem no valor de € 4.501.360,77”.

56- Documento esse que está na base e permitiu todas as alterações contabilísticas subsequentes imputadas nomeadamente ao coarguido CC!

57- Nos termos do d. acórdão recorrido, do relatório de inspeção tributária e do depoimento da testemunha PP (inspetora tributária), esse documento interno com a designação “Listagem de movimento nº 12030”, com a descrição “Regularização de existências após contagem no valor de € 4.501.360,77”, referido no fato provado 40, foi o que depois permitiu aprovar o Balanço referente à Ata 8ª (fato provado 45), que por sua vez, permitiu proceder à retificação da deliberação do aumento de capital conforme Ata nº 17 (fato provado 42 e 43).

58- Quer do teor desse documento, quer da demais prova constante dos autos e daquela produzida em julgamento, não é possível aferir da autoria do mesmo, muito menos que tenha sido elaborado pelo coarguido CC.

59- Trata-se de um documento que não está validado, que não está certificado, que não está assinado, não sendo possível atribuir a autoria do mesmo ao coarguido CC.

60- Não é possível atribuir ao coarguido CC, a adulteração do balanço anexo à Ata nº 17, conforme referido nos fatos provados 44 do d. acórdão recorrido.

61- O coarguido DD, Revisor Oficial de Contas e Fiscal Único da sociedade A... Sa., assume a sua participação na elaboração desse Balanço!

62- Tal documento contabilístico (balanço), teria sempre de ser validado pelo Revisor Oficial de Contas, à data o coarguido DD, que aprovou e certificou sem reservas essas contas.

63- Ao contrário do que o Tribunal a quo parece ter entendido, não se pode assim concluir, sem mais, que pelo fato do recorrente ter assinado manualmente esse Balanço, tal equivale necessariamente que o mesmo tenha sido responsável pela sua elaboração do mesmo e pela informação no mesmo inscrita, como de fato não o foi!

64- O recorrente limitou-se a assinar um documento (balanço) que tecnicamente estava correto, lhe fazia sentido, desconhecendo, sem a obrigação de conhecer, tudo o que estava por de trás do mesmo.

65- Um documento que conforme foi explicado pelo recorrente, encontra-se elaborado num programa que não era aquele utilizado por este coarguido.

66- No fato provado 50 do d. acórdão recorrido, o tribunal a quo dá como provado que o coarguido CC, aqui recorrente, procedeu à entrega das declarações anuais de substituição – IES (Informação Empresarial Simplificadas), adulteradas pelo mesmo.

67- Não é verdade que o coarguido CC tenha assumido ter entregado em 16.10.2012, as declarações anuais de substituição (IES) adulteradas, conforme erradamente é referido na “motivação da decisão de fato” do d. acórdão recorrido.

68- Em momento algum o recorrente assumiu ter entregado tais declarações anuais de substituição (IES), muito menos adulteradas!

69- O coarguido CC, foi perentório em afirmar que não entregou essas declarações anuais de substituição (IES), sendo absolutamente falso que o recorrente tenha de alguma forma assumido ter entregado essas declarações anuais de substituição (IES).

70- Sem conceder, ainda que se admitisse que o recorrente tivesse participado nessas alterações contabilísticas subsequentes, sempre se teria de concluir que o tivesse feito por força do vínculo laboral que mantinha com a sociedade A... Sa., portanto, subordinado e na dependência dos coarguidos administradores daquela sociedade, seus patrões, agindo a mando, por indicação e sob orientação daqueles, conforme anteriormente alegado e conforme resulta dos fatos provados 38, 40 e 51.

71- Os fatos provados 37, 38, 39, 40, 44, 46, 50, 51, 58 e 60 do d. acórdão recorrido, na medida em que atribuem ao recorrente a autoria das alterações contabilísticas subsequentes, não encontram aderência com a prova documental constante dos autos, nem com a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.

72- As presunções feitas no relatório da inspeção tributária e que terão chegado para os processos de impugnação judicial, não chegam nem valem para os presentes autos no que respeita à imputação de tais fatos ao recorrente e condenação do mesmo!

73- Devem os fatos provados 37, 38, 39, 40, 44, 46, 50, 51, 58 e 60, serem julgados por não provados!

VII

74- A factualidade dada como provada no d. acórdão recorrido e imputada ao coarguido CC, não integra o tipo de crime de fraude fiscal qualificada, p.p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. a), e 104.º, n.º 1, als. a), d) e e), e n.º 3, ambos do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, pelo qual o mesmo foi condenado.

75- Sem conceder, mas admitindo que o coarguido praticou tais fatos/condutas dados como provados no d. acórdão recorrido, e que com isso visou o não pagamento daquele IRS referente a 2009, tal pretensão seria ineficaz não passando de mera tentativa impossível por manifesta inaptidão do meio empregado e bem assim por inexistência do objeto essencial à consumação do crime de fraude fiscal.

76- Conforme consta do d. parecer do Exmo. Professor Doutor GERMANO MARQUES DA SILVA, junto aos presentes autos e acima transcrito.

77- Resulta do acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, referente ao processo de impugnação judicial nº 1022/12...., que os fatos provados e imputados ao recorrente no d. acórdão recorrido, nunca seriam aptos/preordenados à obtenção de qualquer vantagem, ou seja, nunca seriam suscetíveis de causarem diminuição da receita tributária em sede do IRS relativo a 2009.

78- De acordo com essa decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, as alterações contabilísticas imputadas ao recorrente, apenas produzem efeitos a partir do momento em que as mesmas são efetuadas, 2012 em diante, e nunca retroativamente por forma a poder prejudicar a liquidação desse IRS referente ao período de tributação de 2009.

79- As alterações contabilísticas imputadas ao recorrente, são inócuas quanto à liquidação desse IRS de 2009, e, consequentemente, quanto à receita tributária desse imposto nesse período, não sendo suscetíveis de obterem qualquer vantagem e diminuírem a receita tributária!

80- Conforme defendido pelo Professor Doutor GERMANO MARQUES DA SILVA no d. parecer acima transcrita, e conforme resulta expresso no acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, referente processo de impugnação judicial nº 1022/12...., in casu, os fatos provados concretamente imputados aos coarguidos CC e DD, reportados à deliberação de 2012 de retificação do aumento de capital por incorporação de reservas, e todos os atos atinentes a tal deliberação, nunca seriam aptos ou preordenados a constitui um perigo para o bem jurídico protegido, porquanto, não seriam nunca suscetíveis de causar qualquer prejuízo ou diminuição na liquidação do IRS referente a 2009 ou obstar a sua liquidação, não sendo, portanto, integradores do tipo de crime de fraude fiscal qualificada pelo qual aqueles foram condenados em 1ª instancia.

81- Não se encontra preenchido o elemento objetivo do crime de fraude fiscal qualificada pelo qual vem o recorrente condenado, devendo o d. acórdão recorrido ser revogado.

82 O crime de fraude fiscal qualificada pelo qual o recorrente vem condenado em 1ª instância, não é punível a título de negligência, mas apenas a título de dolo, que, in casu, não se encontra preenchido.

83- Da factualidade dada como provada no d. acórdão recorrido, não resulta a existência de qualquer acordo entre o coarguido CC e aqueles coarguidos AA e BB.

84- Pelo contrário, dos fatos provados 16, 16, 17 22 e 36 do d. acórdão recorrido, resulta sim que os coarguidos AA e BB agiram por si e em representação da sociedade arguida A...; atuaram por si e em nome e representação da mesma; por si e em representação da arguida A...

85- É o d. acórdão recorrido, que nos fatos provados 38, 40 e 51, dá como provado que o coarguido CC não agiu em concluiu com os coarguidos AA e BB, administradores da sociedade A... Sa., mas sim, a mando e por indicação daqueles, seus patrões, de quem dependia e a quem estava subordinado, em virtude da relação laboral existente.

86- Ainda que se admita que o recorrente atuou da forma retratada nos fatos provados do d. acórdão recorrido, sempre o tribunal a quo deveria ter tido em consideração que atuou no âmbito da relação laboral existente com a sociedade coarguida A... Sa., subordinado e na dependência daqueles coarguidos administradores dessa sociedade, portanto, seus patrões.

87- Não resulta demonstrada a intenção do coarguido CC em obter para si e para os demais, vantagens patrimoniais pela diminuição das receitas fiscais, conforme é dito no fato provado 60 do d. acórdão recorrido.

88- Está afastada a alegada intenção do recorrente em obter, para si e para os demais, quaisquer vantagens patrimoniais indevidas, visto que, se limitava a cumprir ordens da sua entidade empregadora.

89- A fundamentação da motivação da decisão de fato, é omissa quanto à efetiva intenção do recorrente em obter para si e para terceiros, vantagens patrimoniais, limitando-se a assumir por defeito, por princípio ou por crença, que existiu essa vontade consciente do recorrente em obter tais alegadas vantagens, sem fundamentar tal convicção.

90- Do d. acórdão recorrido, não se infere o elemento subjetivo do crime de fraude fiscal qualificada, porquanto, da fundamentação/motivação da decisão de fato, não é possível apurar que o recorrente tivesse consciência da alegada ilicitude da sua conduta, e que não tivesse agido sem intenção de obter qualquer vantagem para si e para terceiros, ou seja, que não tivesse agido sem dolo!

91- Se o Tribunal de 1ª instância dá como provado que o recorrente, agiu a mando, por indicação e sempre sob orientação dos coarguidos administradores da sociedade A... Sa., ter-se-á de admitir que não teve qualquer intenção de obter qualquer vantagem para si e para terceiros.

92- Não se verifica, in casu, o elemento intelectual e o elemento volitivo ou emocional do dolo na factualidade dada como provada e imputada ao coarguido CC, porquanto, o tribunal de 1ª instância fundamentadamente demonstra no d. acórdão recorrido, os fatos integrantes da consciência da ilicitude pelo recorrente.

95- Sem conceder, a manter-se a condenação do coarguido CC, deverá este ser condenado num crime de fraude fiscal (simples), p.p. no artigo 103º do RGIT, e não de fraude fiscal qualificada, p.p. no artigo 104º do mesmo diploma.

VIII

96- Em suma, o recorrente encontra-se familiar, profissional e socialmente inserido, o que permite indiciar fortemente que terá uma conduta conforme com o Direito, não reincidindo, nem tendo quaisquer antecedentes criminais.

97- Mesmo admitindo (sem conceder) a versão considerada provada no d. acórdão recorrido, o recorrente agiu a mando e sob direção dos coarguidos administradores da A... Sa., no âmbito da subordinação e dependência que mantinha com aqueles em virtude da relação laboral existente, o que diminui consideravelmente a sua culpa.

98- De acordo com o que é dado como provado no d. acórdão recorrido (fato 14), o coarguido recorrente, CC, foi Técnico Oficial de Contas da sociedade coarguida A... Sa., apenas entre Março de 2012 e Outubro de 2012, uns parcos sete meses, o que terá também de ser tido em conta para aferição do quanto da culpa.

99- A pena principal, stricto sensu, aplicada ao recorrente pelo Tribunal a quo, de 4 (quatro) anos de prisão, mostra-se manifestamente excessiva e desproporcional!

100- Admitindo-se que se mantenha a condenação do recorrente pela prática do crime de que vem acusado, hipótese que não se concede, a pena principal, em sentido restrito, a aplicar-lhe não deverá ultrapassar 1 ano de prisão!

IX

101- O recorrente não discute a suspensão da execução da pena, porem, discorda da condição imposta pelo Tribunal recorrido para essa suspensão.

102- Deverá colocar-se em crise não só o montante do pagamento ao Estado de que depende a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao coarguido CC, mas também o fato de nos termos do d. acórdão recorrido se tratar de uma exigência de pagamento na forma solidária com os coarguidos AA e BB, sem particularizar ou individualizar o quanto que é efetivamente diz respeito ao coarguido aqui recorrente.

103- Quanto à condição da suspensão da pena de prisão, remete-se para o d. parecer da Professora Doutora MARIA JOÃO ANTUNES, ora junto e acima transcrito, concluindo-se que:

a) O pagamento de € 773.389,46 ao Estado, a título de prestação tributária e acréscimos legais, não pode ser imposta como condição da suspensão da execução da pena de prisão, sem ajuizar se é razoável exigir ao arguido CC o cumprimento da condição, sob pena de violação do artigo 51.º, n.º 2, do CP;

(…) E não se diga que se esse juízo for negativo fica arredada a aplicação, no caso, da suspensão da execução da pena de prisão. Como bem aduz o Tribunal Constitucional, a conformidade constitucional do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT passa por a lei não excluir a possibilidade de suspensão da execução da pena, perante a impossibilidade de pagamento. Com efeito, subsistirá sempre o disposto nos artigos 40.º, n.º 1, e 70.º do CP: se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade – no caso, pena de prisão ou suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que foi determinada em concreto uma pena de 4 anos de prisão –, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de proteção de bens jurídicos e de reintegração do agente na sociedade. Subsistirá a exigência constitucional de aplicar a pena de prisão apenas se for necessária, devendo o tribunal fundamentar a inadequação e insuficiência da suspensão da execução da pena de prisão para realizar as finalidades da punição (artigos 27.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição).

b) O pagamento ao Estado do valor global de € 773.389,46 e de forma solidária não pode ser imposto ao arguido CC, sob pena de violação dos princípios constitucionais da culpa, da intransmissibilidade da responsabilidade penal e da legalidade criminal;

104- O Tribunal de 1ª instância não cumpriu as exigências quanto à condição de suspensão da pena de prisão aplicada ao coarguido CC, sendo, portanto, esse acórdão nulo, sob pena de na prática estarmos perante uma verdadeira situação de “prisão por dividas”, ao arrepio de todos e quaisquer preceitos legais e constitucionais.

X

105- No d. acórdão recorrido, não estão reunidos os pressupostos formais de aplicação da pena acessória do exercício de função a que o coarguido CC foi condenado por aplicação do artigo 66º, nº 1, al. a) e nº 2, do Código Penal, nos termos do qual esta pena acessória é aplicável quando o crime cometido for punido com pena de prisão superior a 3 anos e o facto for praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes.

106- Não estão reunidos os pressupostos formais de aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função ao aqui recorrente, conforme assim o considera a Professora Doutora MARIA JOÃO ANTUNES, no d. parecer acima mencionado:

a) Tendo sido condenado na pena de suspensão da execução da pena de prisão, não se verificam os pressupostos formais de aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função ao arguido CC, à luz do disposto no artigo 66.º do CP.

(…) é pressuposto da pena acessória de proibição do exercício de função a condenação em pena de prisão superior a 3 anos. No caso, o arguido foi condenado na pena de suspensão da execução da pena de prisão.

(…) A suspensão da execução da pena de prisão, prevista nos artigos 50.º a 57.º do CP e em legislação extravagante, nomeadamente no artigo 14.º do RGIT, é uma pena de substituição em sentido próprio [Por todos, FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, §§ 505 e 508.]. Aplica-se em vez da pena de prisão concretamente determinada, em medida não superior a 5 anos, sempre que realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigos 70.º e 40.º, n.º 1, do CP).

(…) Tendo sido condenado na pena de suspensão da execução da pena de prisão – e não na pena de 4 anos de prisão, cuja execução foi suspensa – ao arguido CC não é aplicável a pena acessória de proibição do exercício de função. O crime de burla qualificada não foi punido com pena de prisão superior a 3 anos. Foi punido com pena de suspensão da execução da pena de prisão.

XI

107- É inconstitucional, por violação do princípio da culpa, implicitamente consagrado nos artigos 1.º, 13.º e 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, no sentido de que, em caso de comparticipação, é imposto a cada um dos coarguidos, como condição da suspensão da execução da pena, o pagamento do valor global da prestação tributária e acréscimos legais.

108- É inconstitucional, por violação dos princípios da insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade penal e da legalidade criminal, consagrados nos artigos 30º, nº 3 e 29º da Constituição da República Portuguesa, da interpretação do artigo 14º, nº 1, do RGIT, no sentido de que, em caso de comparticipação, é imposto a cada um dos coarguidos, como condição da suspensão da execução da pena, o pagamento de forma solidária do valor global da prestação tributária e acréscimos legais.

109- É inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, da interpretação do artigo 66º, nº 1, do Código Penal, no sentido de que a proibição do exercício de função é aplicável quando o crime seja punido com pena de prisão superior a três anos suspensa na sua execução.

6. Inconformado com o douto acórdão, veio também o arguido DD interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“…

                *

3.ª- Conforme foi considerado no despacho de 6/2/2017, com a referência citius 84343620, que faz fls. 1250 a 1251, no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., que correu na jurisdição fiscal, discutiu-se situação tributária – a tributação, em sede de IRS, decorrente da utilização, pelos coarguidos AA e BB, então acionistas da coarguida A..., S. A., de dinheiro proveniente desta, para subscreverem, em nome deles, o aumento de capital social da mesma realizado em 2009 – de cuja definição dependia (e depende) a qualificação jurídico-criminal dos factos imputados aos arguidos nos presentes autos, tendo estes, em consequência, sido suspensos por tal despacho, nos termos do art. 47.º do RGIT, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no referido Processo n.º 1022/12.....

4.ª- Efetivamente, como consta da certidão judicial que faz fls. 1377 a 1402, remetida por ofício do Tribunal Central Administrativo Sul – Secção de Contencioso Tributário, de 20/7/2020, junto em 7/8/2020, com a referência citius 6985055, que faz fls. 1376, certidão essa que não foi impugnada, não tendo sido invocada a sua falsidade, pelo que, atento o disposto no art. 371.º, n.º 1, do Código Civil, faz prova plena dos factos nela vertidos, a coarguida A..., S. A., deduziu Impugnação Judicial contra a liquidação de retenções na fonte de IRS n.º ...37, do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46, ou seja, o IRS em referência nos presentes autos, bem como contra a liquidação dos correspondentes juros, tendo tal Impugnação dado lugar ao sobredito Processo n.º 1022/12...., no qual foi proferido Acórdão pelo Tribunal Central Administrativo do Sul em 7/5/2020, passado em julgado em 2/7/2020.

5.ª- Tal Aresto constitui caso julgado no presente processo, nos termos do art. 48.º do RGIT, como melhor se verá adiante.

- Mas ainda que assim não se entenda, esse Aresto mostra-se essencial para a decisão dos presentes autos, já que foi lá fixada a causa/origem do sobredito IRS (distribuição de dividendos, pela coarguida A..., S. A., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem, em dinheiro, o aumento de capital dessa sociedade, então deliberado), a data em que tal imposto nasceu (setembro de 2009), a não produção de efeitos retroativos da retificação do referido aumento de capital, deliberada em assembleia geral da A..., S. A., de 30/7/2012, e a manutenção da liquidação do aludido imposto na esfera jurídica desta sociedade.

7.ª- Deste modo, como melhor se verá à frente, perante o citado Aresto, os factos em que o recorrente participou não só não importaram, como não eram aptos a determinar «a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias», não se mostrando assim representada a prática do crime pelo qual o recorrente foi condenado, ou pelo menos tal crime não é punível.

8.ª- Destarte, no acórdão em crise devia ter sido dado como provado que no Processo n.º 1022/12.... o Tribunal Central Administrativo do Sul proferiu o aludido Aresto de 7/5/2020, transitado em 2/7/2020, e bem assim o conteúdo desse Aresto.

9.ª- Dado que o Tribunal a quo nada disse a esse respeito na decisão sobre a matéria de facto vertida no acórdão recorrido, deixou de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, pelo que tal acórdão padece da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, a qual aqui se invoca, devendo ser declarada com todas as consequências legais.

                 *

10.ª- Por mera cautela, sempre se aduz que, perante as normas dos arts. 47.º e 48.º do RGIT, a decisão final proferida no processo tributário prejudicial possui autoridade de caso julgado no processo penal tributário, quer no que concerne ao respetivo dispositivo, quer quanto aos fundamentos de facto e de direito que «sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado», e não apenas em relação aos arguidos intervenientes naquele processo, mas também, pelo menos se os beneficiar, relativamente aos demais arguidos.

11.ª- Destarte, deve considerar-se que nos presentes autos assume autoridade de caso julgado material o Acórdão proferido no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, em 7/5/2020, transitado em julgado em 2/7/2020, cuja certidão faz fls. 1377 a 1402, pelo qual foi negado provimento ao respetivo recurso e mantida a sentença aí recorrida, que havia sido proferida nesse Processo pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, em 20/6/2018, pela qual fora julgada improcedente a Impugnação Judicial da liquidação do IRS n.º ...37, do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46, bem como a liquidação dos juros correspondentes, imposto esse a que se refere o acórdão ora em crise, designadamente nos n.ºs 32, 35, 36, 48, 53 e 58 dos “Factos Provados”, tendo mantido as aludidas liquidações, nomeadamente porque a retificação da modalidade de subscrição do aumento de capital social da coarguida A..., S. A., a que se reporta o n.º 42 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido, aprovada em assembleia geral desta coarguida de 30/7/2012 e registada em 29/8/2012, somente produz efeitos para o futuro.

12.ª- Deve, assim, assumir-se nos presentes autos a autoridade do caso julgado material formado pelo referido Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 7/5/2020, na exata medida em que o mesmo fixou e definiu questão prejudicial, maxime a causa/origem do sobredito IRS (distribuição de dividendos, pela coarguida A..., S. A., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem, em dinheiro, o aumento de capital dessa sociedade, então deliberado), a data em que tal imposto nasceu (setembro de 2009), a não produção de efeitos retroativos da retificação do referido aumento de capital, deliberada em assembleia geral da coarguida A..., S. A., de 30 de julho de 2012, e a manutenção da liquidação do aludido imposto na esfera jurídica desta sociedade.

13.ª- Assim, como já se deixou dito e adiante, aquando do tratamento da qualificação jurídico-penal, se aprofundará, perante a referida definição da questão prejudicial no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., impõe-se a conclusão de que os factos nos quais o recorrente participou não só não causaram, como não eram aptos a provocar «a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias».

14.ª- Consequentemente, como melhor se verá infra, atento o disposto, tanto no n.º 1, como no n.º 2, do art. 103.º do RGIT, não se mostra representada a prática do crime pelo qual o recorrente foi condenado, ou pelo menos tal crime não é punível.

15.ª- Desta sorte, ainda que não se declare a nulidade anteriormente invocada e mesmo com a matéria de facto considerada assente pela 1ª instância, deve revogar-se o acórdão recorrido, absolvendo-se o recorrente.

               *

16.ª- Ainda por excesso de cautela, importa aduzir que a decisão de dar como provado o facto n.º 37 do item “Factos Provados” do acórdão recorrido, o qual se reporta aos alegados objetivos referidos no facto 36 desse item, assenta e plúrimos e substanciais equívocos e contradições, que esse mesmo acórdão evidencia, por si só e em conjugação com as regras da experiência comum, de entre os quais se destacam os seguintes:

17.ª- Verificam-se, assim, os vícios de contradição insanável da fundamentação (art. 410.º, n.º 2, al. b), primeiro segmento, do CPP), contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. b), segundo segmento, do CPP) e erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP), pelo que a decisão de dar como provado o facto n.º 37 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido deve ser revogada, devendo tal facto ser considerado não provado.

18.ª- De todo o modo, sempre se adianta que também não corresponde à realidade a afirmação, igualmente constante da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto vertida no acórdão recorrido, de que a fls. 1268 e ss (4º volume), fls. 1286 e ss (4º volume), fls. 1422 e ss (5º volume) e 1311 e ss (5º volume) se encontram decisões proferidas em «impugnações administrativa propostas pela sociedade arguida», uma vez que o que aí se encontram são decisão judiciais proferidas em Processos de Impugnação Judicial.

19.ª- Muito menos corresponde à realidade a afirmação, também formulada na referida fundamentação, de que a decisão de fls. 1268 e seguintes dos autos (4º volume) julgou procedente uma «impugnação administrativa» «por vício de forma, relativo ao IRS de 2008 liquidado», dado que tal decisão não só foi tirada num Processo de Impugnação Judicial, como se reporta a uma liquidação de IRC, não de IRS, conforme se verifica pela certidão judicial que faz fls. 1268 a 1274 vs.

20.ª- Por outro lado, nas declarações que prestou na sessão da audiência de 20/11/2023, com início pelas 11:54:08 horas e termo pelas 12:03:49 horas, tendo recomeçado pelas 12:32:08 e findado pelas 12:53:20 horas, «gravadas através do sistema informático em uso neste Tribunal [no Tribunal recorrido]», conforme consta da ata dessa diligência, com a referência 105493150, o ora recorrente, concretamente do minuto 00:00.50 ao minuto 00:02.59, do ficheiro [Diligencia_29-11.3IDLRA_2023-11-20_11-54-07], e do minuto 00:07.27 ao minuto 00:13.10, do ficheiro [Diligencia_29-11.3IDLRA_2023-11-20_12-32-06], refutou inequivocamente ter colaborado no plano a que se refere o facto n.º 36, tendo esclarecido exaustivamente, de forma clara, objetiva, precisa e coerente, …

21.ª- Relativamente às declarações do recorrente, na fundamentação da decisão da matéria de facto, o Tribual a quo aduziu que aquele «[r]eferiu ainda não ter falseado resultados da empresa, tendo-se limitado a corrigir as incorreções detetadas pela inspeção tributária, face à necessidade de reposição da verdade contabilística [nesta parte, foi amplamente explicado, em audiência, pela inspetora tributária que as correções contabilísticas não podem nunca ser efetuadas a contas aprovadas, encerradas e certificadas – o que decorre consentâneo com as regras da normalidade e experiência comum – e que, quando são detetadas falhas a corrigir, as correções são efetuadas no exercício em que se detetam, sendo que, no caso, haveriam de ser efetuadas por reporte ao exercício de 2011, onde foram detetadas].»

22.ª- Porém, na audiência, o Tribunal a quo não permitiu que a referida inspetora tributária, PP, cuja palavra que aí mais utilizou foi o advérbio «normalmente», identificasse qualquer norma que não permitisse que as referidas correções fossem reportadas a exercícios cujas contas já tivessem sido aprovadas, encerradas e certificadas, como se verifica pelo depoimento que essa testemunha prestou na sessão de 20/11/2023, com início pelas 14:53:37 horas e termo pelas 16:23:18 horas, gravado através da aplicação Media Studio, do programa Citius, conforme consta da ata dessa diligência, com a referência 105493150, concretamente do minuto 00:08.08 ao minuto 00:08.58 do ficheiro [Diligencia_29-11.3IDLRA_2023-11-20_16-05-55].

23.ª- No entanto, a 1.ª instância igualmente não deu essa resposta no acórdão em crise, não havendo identificado aí qualquer norma que estabelecesse a dita proibição, antes se tendo limitado a invocar lá pretensas «regras da normalidade e experiência comum», as quais, porém, não densificou minimamente.

24.ª- Mais: ao mesmo tempo que assumiu, sem qualquer justificação legal, «que, quando são detetadas falhas a corrigir, as correções são efetuadas no exercício em que se detetam, sendo que, no caso, haveriam de ser efetuadas por reporte ao exercício de 2011, onde foram detetadas», o Tribunal recorrido deu como provado (facto n.º 34) que a A..., S. A., somente em 2012 foi notificada do relatório da AT que identificou as sobreditas incorreções, pelo que então muito provavelmente já as contas do seu exercício de 2011 tinham sido «aprovadas, encerradas e certificadas», sendo, aliás, como resulta das regras da experiência comum, muito frequente esta situação – notificação ao contribuinte inspecionado do relatório da inspeção no ano subsequente àquele que foi sindicado, já depois de as respetivas contas «terem sido terem sido aprovadas, encerradas e certificadas»

25.ª- Por outro lado, no depoimento que prestou na sessão da audiência de 27/11/2023, com início pelas 10:42:05 horas e termo pelas 11:02:00 horas, gravado através da aplicação Media Studio, do programa Citius, conforme consta da ata dessa diligência, com a referência 105577068, a testemunha QQ, Revisor Oficial de Contas, concretamente do minuto 00:04.10 ao minuto 00:07.54, do Ficheiro [Diligencia_29-11.3IDLRA_2023-11-27_10-42-03], confirmou a correção técnica do procedimento em que o recorrente participou e a conformidade de tal procedimento com as leges artis dessa profissão, tendo assumido que realizou igual prática várias vezes.

26.ª- Disse, porém, o Tribunal a quo, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, para o desvalorizar, que «[o] depoimento da testemunha de defesa QQ não serviu a prova de qualquer facto da acusação, porquanto dos mesmos não revelou conhecimento direto – limitando-se a testemunha a opinar sobre procedimentos contabilísticos.»

27.ª- Ora, em processo penal, deve ser valorado como meio de prova o depoimento testemunhal de pessoa com conhecimentos técnico-científicos relativamente à correção ou não de práticas que se compreendam na respetiva área de formação e conhecimento, independentemente de essa pessoa ter tido ou não conhecimento direto dos factos, sendo justamente esse o caso da testemunha QQ, dado ser Revisor Oficial de Contas, tendo, portanto, conhecimentos técnico-científicos relativamente aos factos em apreço.

28.ª- Acresce que, se é certo que a testemunha QQ não tem conhecimento direto dos factos objeto dos presentes autos, a testemunha PP, inspetora tributária, igualmente não tem esse conhecimento relativamente a grande parte de tais factos, tendo por isso recorrido sistematicamente ao advérbio «normalmente».

29.ª- Assim, o depoimento da testemunha QQ, ao corroborar a conformidade técnica do sobredito procedimento em que o recorrente participou, concorre fortemente para que o facto n.º 37 seja considerado não provado.

30.ª- Por fim, também o Parecer Técnico emitido pelo Professor ABÍLIO SILVA, Consultor Fiscal e Professor Convidado do INDEG-ISCTE e da Porto Business School, que faz fls. 1815 a 1822, fundamentalmente a fls. 1815 vs.-1817 vs., pontos 8 a 14 da respetiva Parte I, igualmente corrobora que o procedimento em que o recorrente interveio foi tecnicamente correto e adequado às leges artis da profissão, pelo que também este Parecer concorre fortemente para que o facto em apreço seja dado por não provado.

31.ª- Pelo exposto, ao menos com base no princípio in dubio pro reo, deve a decisão que deu como provado o facto n.º 37 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido ser revogada, devendo esse facto ser considerado não provado.

                 *

32.ª- Pelo que se deixou dito nas conclusões 16.ª a 31.ª, que para o efeito aqui se dão por reproduzidas, impõe-se igualmente a conclusão de que o segmento inicial do facto n.º 38 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido – «Na prossecução do plano gizado (…)» – deve ser considerado não provado.

                *

33.ª- O teor do corpo do facto n.º 45 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido desde logo evidencia que o Tribunal a quo teve dúvidas, que não conseguiu dissipar, quer sobre a data em que a ata aí referida foi elaborada, quer mesmo sobre quem a elaborou – se os arguidos, se algum ou alguns deles e, neste caso, qual ou quais, se terceiros a mando de algum ou alguns dos arguidos e, nesta hipótese, quem e a mando de qual ou quais arguidos.

38.ª- Assim, no que concerne a este facto, deve ser considerado não provado que a Ata 8A, nele referida, tenha sido elaborada também pelo recorrente, ou por terceiro a seu mando, excluindo-se o mesmo do corpo desse facto.

               *

39.ª- Relativamente ao facto n.º 47 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido, o coarguido AA, nas declarações que prestou na sessão da audiência de 20/11/2023, com início pelas 10:57:21 horas e termo pelas 11:28:17 horas, tendo sido retomadas pelas 12:03:50 e terminado pelas 12:12:12, «gravadas através do sistema informático em uso neste Tribunal [no Tribunal recorrido]», conforme consta da ata dessa diligência, com a referência 105493150, concretamente do minuto 00:27.09 ao minuto 00:27.30 do ficheiro [Diligencia_29-11.3IDLRA_2023-11-20_10-57-19], declarou que não se recorda do mesmo.

40.ª- E nenhuma outra prova foi produzida nos autos relativamente a esse facto.

41.ª- Assim, deve ser considerado não provado que a inscrição registral a que se refere o facto n.º 47 tenha sido feita com conhecimento e vontade do recorrente, excluindo-se este do texto desse facto.

                *

42.ª- O facto n.º 48 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido consubstancia uma afirmação condicional, ao que acresce que nem na matéria de facto dada como provada nesse acórdão, nem na correspondente fundamentação aí aduzida é identificada a respetiva condição, muito menos se surpreende lá se tal condição(?) se concretizou ou não, o que só por si importa que esse facto seja considerado não provado.

43.ª- Porém, o certo é que, como já se evidenciou, segundo o Acórdão tirado pelo Tribunal Central Administrativo do Sul no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., em 7/5/2020, transitado em 2/7/2020, cuja certidão faz fls. 1377 a 1402, o IRS referido no facto n.º 48 teve por causa/origem a distribuição de dividendos, pela coarguida A..., S. A., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem, em dinheiro, o aumento de capital dessa sociedade, então deliberado, tendo esse imposto nascido em setembro de 2009, não produzindo a deliberação de retificação do mencionado aumento de capital, tomada em assembleia geral da referida sociedade de 30/7/2012, efeitos retroativos, mantendo-se assim a liquidação do aludido imposto, anteriormente efetuada pela AT, com referência a setembro de 2009, na esfera jurídica da A..., S. A.

44.ª- Destarte, o aumento de capital social da coarguida A..., S. A., por incorporação de reservas, rectius, a retificação nesse sentido, deliberada em 30/7/2012 – bem como, portanto, os factos que estiverem na sua origem, designadamente as correções contabilísticas em que o recorrente interveio – não “poderia ter”, como não teve, «como consequência a não tributação em sede de IRS e que estava na origem do dito processo de contraordenação».

45.ª- Desta sorte, deve o facto n.º 48 ser considerado não provado.

                 *

46.ª- O facto n.º 58 do item “Factos Provados” do acórdão recorrido reafirma, no essencial, o que consta dos factos conjugados vertidos nos n.ºs 37 e 36 desse item.

49.ª- Assim, também o facto n.º 58 dos “Factos Provados” do acórdão sob recurso deve ser considerado não provado.

                 *

50.ª- No que tange ao facto n.º 59 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido, igualmente se dá por reproduzido o que consta das conclusões 3ª a 8ª, 10ª a 15ª e 16ª a 31ª.

51.ª- Em síntese, novamente se reitera que os procedimentos em que o recorrente participou, para além de não terem representado uma “adulteração” de registos contabilísticos da A..., S. A., nem haverem “posto em causa a verdade da situação tributária desta”, seja lá isto o que for, não foram suscetíveis de pôr e, portanto, não “puseram em causa o património do Estado – administração fiscal”.

52.ª- Consequentemente, deve também ser considerado não provado o facto n.º 59 dos “Factos Provados” do acórdão em crise.

                 *

53.ª- No que respeita à segunda parte do facto n.º 60 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido – «(…) que violavam, e que assim atingiam de forma grave os deveres e obrigações decorrentes das suas funções de natureza pública e estatuto profissional, sempre com intenção de obterem, para si e para os demais, vantagens patrimoniais indevidas, pela diminuição das receitas fiscais» –, o recorrente dá igualmente por reproduzido o que consta das conclusões 3ª a 8ª, 10ª a 15ª e 16ª a 31ª, de onde resulta que o citado segmento daquele facto não tem sustentação.

54.ª- Assim, igualmente o referido segmento do facto n.º 60 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido deve ser considerado não provado.

                *

55.ª- No que concerne ao facto n.º 61 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido, é assumido na fundamentação consignada pelo Tribunal a quo que «[a] consciência da proibição por parte de todos os arguidos decorre da conjugação dos atos praticados pelos mesmos com as funções que cada um desempenhava na empresa e as mais elementares regras da normalidade e experiência comum, permitindo concluir, sem margem para dúvidas, por uma conduta livre, esclarecida e intencional por parte de todos os arguidos.»

58.ª- Destarte, também o facto n.º 61 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido deve ser considerado não provado.

                 *

59.ª- Igualmente por excesso de cautela, cumpre adiantar que a norma incriminadora do art. 103.º, n.º 1, do RGIT exige que as condutas tipificadas nas respetivas alíneas «visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias».

60.ª- Ora, ainda que a decisão sobre a matéria de facto não seja alterada nos termos anteriormente preconizados, certo é que os factos que envolveram a participação do recorrente, ocorridos em 2012, não se subsumem àquela norma, desde logo porque o meio foi manifestamente inapto para provocar a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, relativamente ao IRS devido pela coarguida A..., S. A., referente a setembro de 2009, o qual já havia sido liquidado pela AT antes daqueles factos, estando a correr uma execução fiscal para cobrança do mesmo, não possuindo os mencionados factos de 2012 a virtuosidade de alterar os pressupostos da referida liquidação e, por inerência, de determinar a sua anulação, como veio a ser decidido pela jurisdição fiscal, no sobredito Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., nem, portanto, obstar à cobrança do aludido imposto, não podendo assim o bem jurídico tutelado pela incriminação em apreço ser novamente ofendido ou posto em perigo, donde não poder consumar-se o crime de fraude fiscal com base nos factos em que o recorrente interveio.

61.ª- Para além disso, verifica-se a inexistência do objeto essencial à consumação do crime de fraude fiscal, uma vez que, por um lado, a AT já anteriormente tinha apurado os factos geradores do IRS devido em 2009 e efetuado a respetiva liquidação oficiosa, tendo aliás instaurado execução fiscal com base nessa liquidação, e, por outro lado, os sobreditos factos de 2012, designadamente a deliberação de 30/7/2012, não possuíam a virtuosidade de alterar os pressupostos dessa liquidação, obter a sua anulação e obstar à cobrança do imposto pela AT na execução fiscal pendente com base na mesma, não sendo suscetíveis de causar diminuição das recetas tributárias, para além de que aqueles factos não constituíam um novo ato passível de tributação autónoma, o que só ocorreria se tivessem a virtuosidade de alterar os pressupostos das liquidações relativas a 2019 e, consequentemente, importar a anulação das mesmas.

62ª- De todo o modo, sempre se aduz que, na versão da acusação, acolhida no acórdão em crise, os atos em que o recorrente participou tinham o objetivo de «eximirem ao pagamento da quantia devida a título de IRS», IRS já liquidado oficiosamente pela AT, pelo que não se tratou de um facto tributário novo, sobre o qual devia incidir um novo imposto, nem de uma nova conduta penal típica visando a não liquidação ou pagamento de imposto devido por novos factos tributários.

63.ª- Ainda perante a versão acolhida no acórdão recorrido, reportando-se as condutas de 2012 ao mesmo facto tributário e crime consumado em 2009, no limite, devem configurar-se tão-só como atos de defesa frustrada, mas não como constitutivos de um novo crime de fraude fiscal, sob pena de se estar perante uma dupla incriminação de fraude fiscal atinente a um só e mesmo comportamento típico descrito na al. a) do n.º 1 do art. 103.º do RGIT e cujo crime já se encontrava consumado desde 2009, o que seria inconstitucional, por violador do bis in eadem (art. 32.º, n.º 5, da CRP), sendo assim não puníveis os factos posteriores, ocorridos em 2012.

64.ª- Por excesso de cautela, sempre se aduz que, uma vez que os factos em que o recorrente interveio não geraram nem eram suscetíveis de gerar qualquer vantagem patrimonial, atento o disposto no n.º 2 do art. 103.º do RGIT, contenha este um elemento do tipo do crime de fraude ou uma condição objetiva de punibilidade, sempre esses factos não podem ser punidos.

65.ª- Em suma, ainda que não procedam as questões anteriormente suscitadas, inclusive a alteração da decisão sobre a matéria de facto, seguro é que o recorrente não praticou o crime de fraude qualificada, p. e p. pelos arts. 103.º, n.º 1, al. a), e 104º, nº 1, als. a), d) e e), e nº 3, ambos do RGIT, na redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, e art. 28.º, n.º 1, do CP, pelo que sempre o acórdão recorrido deve ser revogado no que concerne à sua condenação pela prática deste crime, devendo o mesmo ser absolvido.

               *

66.ª- Por outro lado, o que igualmente se aduz sem conceder, a ser mantida a condenação do recorrente pela prática do crime que lhe foi imputado, atento o disposto nos arts. 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º, nºs. 1 e 2, ambos do CP, e dado que não foi agredido um bem pessoal, os factos ocorreram há mais de 11 anos, aquele encontra-se familiar, profissional e socialmente inserido, não tem antecedentes criminais e, mesmo na versão considerada provada no acórdão em crise, era prestador de serviços à A..., S. A., tendo agido sob a direção e orientação dos administradores desta, a pena principal, stricto sensu, que lhe foi aplicada mostra-se excessiva, devendo ser reduzida a não mais de 3 anos de prisão.

             *

67.ª- Ainda na referida hipótese, seja ou não alterado o quantum da pena principal, em sentido restrito, o recorrente não discute a suspensão da respetiva execução, mas discorda da condição imposta pelo Tribunal a quo para essa suspensão.

68.ª- Desde logo, como se demonstrou, os factos nos quais o recorrente participou não inviabilizaram, nem eram suscetíveis de inviabilizar a liquidação ou cobrança de qualquer prestação tributária, ou a obtenção de quaisquer benefícios indevidos, pelo que não tem aplicabilidade in casu o disposto no art. 14.º, n.º 1, do RGIT, não podendo assim a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ou a aplicar ao recorrente ser condicionada ao pagamento do valor do sobredito IRS (€ 773.389,46).

69.ª- Mas ainda que assim não se entenda, o certo é que a interpretação do art. 14.º do RGIT tem de ser conjugada com o disposto no art. 51.º, n.º 2, do CP, importando assim a conclusão de que, igualmente nos crimes tributários, a subordinação da suspensão da execução da pena ao dever de pagamento da prestação tributária ou do benefício indevidamente obtido só poderá acontecer quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para o cumprimento dessa condição.

70.ª- Desta sorte, in casu, considerando os factos provados sobre a condição económica do recorrente, o qual se encontra reformado há 3 anos, auferindo como tal um rendimento anual bruto de € 14.000,00, a que acresce um rendimento anual bruto de € 50.000,00 decorrente da sua atividade como contabilista, que continua a exercer, mas seguramente não por muito mais tempo, dado que completa 68 anos de idade no corrente ano, pelo que os seus rendimentos serão cada vez mais reduzidos, a condição estabelecida no acórdão recorrido para a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada – pagamento ao Estado, no período de tal suspensão, solidariamente com os coarguidos BB e CC, de € 773.389,46 – mostra-se manifestamente irrazoável e irrealizável.

71.ª- Assim, na hipótese académica de o recorrente vir a ser condenado em pena de prisão, perante o referido circunstancialismo, a execução dessa pena deverá ser suspensa pelo período da mesma, com a condição de aquele pagar ao Estado, nesse período, quantia não superior a € 20.000,00.

                  *

72.ª- Já quanto à pena acessória aplicada ao recorrente – proibição do exercício de profissão de revisor oficial de contas pelo período de 4 anos –, impõe-se uma interpretação “fortemente restritiva” do n.º 2 do art. 66.º do CP, reconduzindo-o aos casos de exercício de função “fortemente ligada ao interesse público”, não devendo a profissão de revisor oficial de contas considerar-se compreendida no âmbito dessa norma.

73.ª- Seja como for, seguro é que a referida pena acessória apenas é aplicável se o agente for efetivamente punido com pena de prisão superior a 3 anos – a norma do n.º 2 do art. 66.º do CP reporta-se à pena concretamente aplicada.

74.ª- Ora, a pena aplicada ao recorrente foi suspensa na sua execução, tendo assim adquirido autonomia como pena de substituição, em sentido próprio, pelo que não pode considerar-se que o mesmo foi punido com pena de prisão.

75.ª- Acresce que o juízo subjacente à suspensão da execução da pena de prisão não é adequado a coexistir com uma pena acessória tão grave como é a proibição do exercício de profissão, para mais por 4 anos.

76.ª- Ademais, in casu, a referida suspensão foi condicionada ao pagamento ao Estado de € 773.389,46, pelo que tal pena acessória iria inviabilizar totalmente essa suspensão.

77.ª- Destarte, não pode ser aplicada ao recorrente a pena acessória de proibição do exercício de profissão de revisor oficial de contas.

78.ª- Mas ainda que assim não se entenda, uma vez que, como se sustentou acima, a pena principal, stricto sensu, a aplicar ao recorrente não deve ultrapassar 3 anos de prisão, sempre será inaplicável in casu a referida pena acessória.

79.ª- Caso também assim não se entenda, perante o quadro supra descrito, o quantum da pena acessória de proibição do exercício de profissão de revisor oficial de contas fixado pelo Tribunal a quo mostra-se manifestamente excessivo, devendo ser reduzido para 2 anos e 6 meses.

             *

80ª- Por fim, o segmento normativo do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que restringe o perdão de penas previsto no art. 3.º desse diploma às «sanções penais relativas aos ilícitos praticados (…) por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (…)», na medida em que procede a uma discriminação em função da idade, que é simultaneamente positiva e negativa, a qual não possui «justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes», mostra-se materialmente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º da CRP, pelo que, caso venha a manter-se a condenação do recorrente em pena de prisão, o que apenas por excesso de cautela se aventa, deve a referida inconstitucionalidade ser declarada, não se aplicando implicitamente o mencionado segmento normativo do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sendo, em consequência, aplicado o perdão previsto no art. 3.º deste diploma”.

7. O Ministério Público respondeu aos recursos interpostos pelos arguidos AA, BB, CC e DD, pugnando pela improcedência de todos e confirmação do acórdão recorrido …

8. Os recursos foram remetidos para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser negado provimento aos recursos interpostos, excepto na parte relativa à nulidade do acórdão por ter condicionado a suspensão da execução de pena de prisão ao pagamento solidário de 773.389,46 € ao Estado, sem ter apreciado a razoabilidade da exigência do cumprimento dessa condição.

9. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo o arguido DD respondido ao douto parecer …

10. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência, face ao disposto no artigo 419º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

11. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.

               *

       

        B - Fundamentação

 

1. O âmbito dos recursos é dado pelas conclusões extraídas pelos recorrentes da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, …

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelos recorrentes, as questões a decidir são as seguintes:

 Do recurso do arguido AA

- se o acórdão recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova;

- se os factos provados dos pontos 36 a 53 foram incorrectamente julgados;

- consequentemente, se o recorrente deve ser absolvido do respectivo crime de fraude fiscal qualificada;

- se o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, na parte relativa à medida das penas parcelares e única, mormente por não ter atendido ao prejuízo causado pelos crimes, de acordo com o disposto no artigo 13º do RGIT;

- se as penas, parcelares e única, aplicadas ao arguido são excessivas e desproporcionais;

- se a pena única a aplicar ao arguido deve ser suspensa na sua execução;

- se deve ser aplicada ao arguido a Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto;

- se a previsão de um critério etário, nos termos em que o mesmo se encontra fixado para a determinação do âmbito subjetivo de aplicação do perdão de penas e amnistias previstos na Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, é manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade;

- se por aplicação da referida Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, deve ser descontado um ano a cada uma das penas parcelares, promovendo-se posteriormente o cúmulo jurídico, não podendo a final resultar da determinação da pena única um perdão inferior a um ano;

- se o disposto no artigo 3º, nº 4, da Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto é inconstitucional por violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da aplicação da lei penal mais favorável, devendo, por isso, ser rejeitada a sua aplicação.

   

Do recurso do arguido BB

- se os factos provados dos pontos 9, 15, 16, 17 a 20, 22, 31, 32, 36, 37, 38, 40, 45, 47, 48, 51, 55, 56, 57, 58, 59 e 61 foram incorrectamente julgados, devendo ser dados como não provados;

- se o acórdão recorrido violou o princípio in dubio pro reo;

- se o arguido deve ser absolvido dos crimes de fraude fiscal por que foi condenado;

- caso assim não se entenda, se o montante de € 1.025.674,08 não pode constar como condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, pelo facto de não se ter demonstrado que a A... se enriqueceu nesse montante.

 

Do recurso do arguido CC

- se o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, em concreto por dele não constarem os factos e questões tratadas no Processo nº 1022/12.... do Tribunal Central Administrativo do Sul;

- se se deverá considerar que assume autoridade de caso julgado material o Acórdão proferido no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, em 7/5/2020, transitado em julgado em 2/7/2020, referente à liquidação do IRS do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46;

- consequentemente, se não se encontram preenchidos os elementos típicos do crime de fraude, previsto e punido pelo artigo 103º, nºs 1 e 2, do RGIT ou, pelo menos, tal crime não é punível;

- se o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, em concreto, por falta de indicação e exame crítico das provas; 

- se o acórdão recorrido enferma do vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

- se os factos provados dos pontos 37, 38, 39, 40, 44, 46, 50, 51, 58 e 60 foram incorrectamente julgados no que respeita à participação/intervenção do arguido CC, devendo, nessa parte, serem julgados não provados; 

- se estão verificados os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de fraude fiscal qualificada por que foi condenado o arguido CC;

- se a pena aplicada ao arguido de 4 anos de prisão é manifestamente excessiva e desproporcional;

- se o acórdão recorrido é nulo, na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena ao referido pagamento, por não ter sido feito qualquer juízo sobre a razoabilidade de exigir ao recorrente o cumprimento da referida condição;

- se a suspensão da execução da pena não deve ser condicionada ao pagamento do montante de 773.389,46 euros, nos termos em que o foi;

- se estão, ou não, reunidos os pressupostos formais de aplicação da pena acessória aplicada de proibição do exercício de funções;

- se o artigo 14º, nº 1, do RGIT é inconstitucional, por violação do princípio da culpa, implicitamente consagrado nos artigos 1º, 13º e 25º, nº 1 da Constituição da Republica Portuguesa;

 - se o artigo 14º, nº 1, do RGIT é inconstitucional, por violação dos princípios da insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade penal e da legalidade criminal, consagrados nos artigos 30º, nº 3 e 29º da Constituição da República Portuguesa;

- se o artigo 66º, nº 1, do Código Penal é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa.

Do recurso do arguido DD

- se o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, em concreto por dele não constar o conteúdo (factos e questões tratadas) do aresto de 7.5.2020, proferido no Processo nº 1022/12.... do Tribunal Central Administrativo do Sul;

- se se deverá considerar que assume autoridade de caso julgado material o Acórdão proferido no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, em 7/5/2020, transitado em julgado em 2/7/2020, referente à liquidação do IRS do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46;

- consequentemente, se não se encontram preenchidos os elementos típicos do crime de fraude, previsto e punido pelo artigo 103º, nºs 1 e 2, do RGIT ou, pelo menos, tal crime não é punível;

- se, ao dar como provado o facto do ponto 37, o acórdão recorrido padece dos vícios de contradição insanável da fundamentação (art. 410.º, n.º 2, al. b), primeiro segmento, do CPP), de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. b), segundo segmento, do CPP) e de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP).

- se os factos provados dos pontos 37, 38, 45, 47, 48, 58, 59, 60, 61 foram incorrectamente julgados, devendo, na parte impugnada, serem dados como não provados; 

- se estão verificados os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de fraude fiscal qualificada por que foi condenado o arguido DD;

- se a pena aplicada ao arguido de 4 anos e 6 meses de prisão é manifestamente excessiva;

- se a suspensão da execução da pena não deve ser condicionada ao pagamento do montante de 773.389,46 euros; quando muito se deve ser condicionada ao pagamento do Estado da quantia de 20.000,00 euros;

- se não estão reunidos os pressupostos de aplicação da pena acessória de proibição do exercício de funções; caso assim não se entenda, se deve ser reduzida para 2 anos e 6 meses;

- se o segmento normativo do nº 1 do artigo  2º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que restringe o perdão de penas previsto no artigo 3º desse diploma às «sanções penais relativas aos ilícitos praticados (…) por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (…)», enferma de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP;

- consequentemente, se deve ser aplicado o perdão previsto no artigo 3º do referido diploma legal.

             *

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a factualidade e motivação do acórdão recorrido.

FACTOS PROVADOS:

Discutida a causa, e com relevância para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos constantes da acusação:

A SOCIEDADE ARGUIDA E OS ARGUIDOS:

1. A arguida A... S.A. (em liquidação), doravante denominada por A..., é uma sociedade anónima, constituída em 26 de Fevereiro de 1992, com sede no ..., ..., coletada pelo exercício da atividade de “comércio por grosso de máquinas para indústria extrativa, construção e engenharia” (CAE: 46630).

2. A sociedade arguida obriga-se com a intervenção conjunta de dois administradores, de um administrador com poderes expressos delegados para o ato (ressalvados atos de mero expediente, em que é desnecessária tal delegação) ou de mandatários sociais.

3. A sociedade arguida A... foi declarada insolvente por sentença datada de 8 de Novembro de 2017, transitada em julgado em 27 de Novembro de 2017.

4. A sociedade A... encontra-se enquadrada no regime geral, para efeitos de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC).

5. A sociedade A... transformou-se em sociedade anónima em 2007.

6. Os arguidos AA e BB foram, desde a constituição da sociedade A..., enquanto sociedade por quotas, e até à sua transformação em sociedade anónima, sócios gerentes da mesma.

7. Desde a transformação da sociedade A... em sociedade anónima, é o arguido AA o presidente do Conselho de Administração da A....

8. Desde essa data e até 2013, o arguido BB foi vice-presidente do Conselho de Administração da sociedade A....

9. Nessa qualidade, entre 2007 e 2013, foram estes arguidos os administradores de direito e de facto da arguida A... e, nessa qualidade, quem tomava todas as decisões no domínio da gestão comercial e financeira da sociedade.

10. O arguido DD é revisor oficial de contas, inscrito na Ordem dos Revisores Oficiais de Contas com o n.º ...41.

11. O arguido DD é revisor oficial de contas da sociedade A... desde 2002 e fiscal único desde 2007, cabendo-lhe a verificação da regularidade dos livros, registos contabilísticos e documentos referentes à atividade societária, bem como da exatidão do balanço e da demonstração de resultados, e dar parecer sobre relatórios, contas e propostas apresentadas pela administração.

12. Como revisor oficial de contas compete-lhe, especialmente, o dever de proceder a todos os exames e verificações necessários a revisão e certificação legais das contas.

13. O arguido CC é Técnico Oficial de Contas (hoje Contabilista Certificado), inscrito na Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas sob o n.º ...28.

14. Entre Março de 2012 e Outubro de 2012, foi contratado pelos arguidos AA e BB, por si e na qualidade de legais representantes da A..., cabendo-lhe assegurar o tratamento de todas as questões relativas à contabilidade societária, o que incluía o cumprimento das obrigações fiscais da A....

I

15. Em data não concretamente apurada do início de 2008, os arguidos AA e BB, por si e em representação da sociedade arguida A..., delinearam um plano com o objetivo de, enquanto lhes fosse possível, de forma regular e reiterada, obterem à custa do Estado Português vantagens patrimoniais que sabiam não lhes serem devidas, para si e para a sociedade A..., através da simulação de fluxos, recorrendo a transações fictícias no âmbito de emissão de faturas sem que existisse na realidade o bem ou o serviço transacionado declarado através de faturação, sempre com o fim último de empolar custos e diminuir artificialmente os lucros com efeitos no IRC.

16. De acordo com o comum plano previamente delineado, a sociedade arguida A..., através dos arguidos AA e BB, que atuaram por si e em nome e representação da mesma, procedeu à contabilização de faturas, em duplicado ou em triplicado, que mais não eram do que cópias de faturas originais, já contabilizadas, ou de faturas diversas mas referentes à mesma operação/aquisição de faturas já contabilizadas, não tendo assim subjacente a prestação de qualquer serviço ou venda, as quais infra se referem como “duplicado/triplicado”, com as datas abaixo indicadas e pelos valores neles constantes:

Ano 2008:

Ainda no ano 2008, e por reporte fornecedor Power Curbers:

Ano 2009:

17. As referidas faturas foram utilizadas pelos arguidos AA e BB por si e em representação da arguida A..., como fidedignas e representativas da faturação da sociedade arguida A..., e de prestação de trabalhos e serviços no decurso dos anos de 2008 e 2009 para efeitos de contabilidade, a qual foi depois espelhada, em conformidade, nas declarações anuais de IRC emitidas por aqueles em nome da A....

18. Com a descrita conduta, a sociedade arguida A..., no ano de 2008, contabilizou em duplicado/triplicado faturas, com o objetivo de reduzir o lucro tributável, alcançando a seguinte vantagem patrimonial ilegítima no montante de €647.470,63:

i. Valor de compras inexistentes (correção lucro tributável): €2.488.336,40 [€1.259.758,80 + €1.228.577,60];

ii. Prejuízo para efeitos fiscais declarado: €17.074,43;

iii. IRC à taxa de 25% sobre ((€2.488.366,40-€17.074,43): €617.815,49;

iv. Derrama à taxa de 1,2%: €29.655,14;

v. Valor da vantagem patrimonial ilegítima: €647.470,63.

19. Com a descrita conduta, a sociedade arguida A..., no ano de 2009, contabilizou em duplicado/triplicado faturas, com o objetivo de reduzir o lucro tributável, alcançando a seguinte vantagem patrimonial ilegítima no montante de € 378.203,45:

i. Valor de compras inexistentes: € 1.443.524,62;

ii. IRC à taxa de 25% sobre €1.443.524,62: €360.881,16;

iii. Derrama à taxa de 1,2%: €17.322,30;

iv. Valor da vantagem patrimonial ilegítima: €378.203,45.

20. Em suma, fazendo uso das supraditas faturas, a sociedade arguida A... enriqueceu-se, em detrimento da Fazenda Nacional, no montante global de €1.025.674,08, sendo €647.470,63 respeitante ao exercício do ano de 2008, e €378.203,45 respeitante ao exercício do ano de 2009.

21. As faturas referidas, registadas em duplicado e triplicado nos exercícios de 2008 e 2009, nos montantes de €2.488.336,40 e €1.443.524,62, respetivamente, e que totalizam nos dois exercícios o montante de €3.931.861,02, deram origem à libertação de meios financeiros da A... que não foram feitos aos fornecedores identificados nas contas correntes.

22. Assim, de acordo com o comum plano previamente delineado, a sociedade arguida A..., através dos arguidos AA e BB, que atuaram por si e em nome e representação da mesma, ou de terceiro a seu mando, registaram contabilisticamente as saídas de meios financeiros relacionados com os “hipotéticos pagamentos das faturas”, que ocorreram no exercício de 2008 e 2009, no valor global de €3.866.947,30, associados a fornecimentos inexistentes, a que corresponderam também pagamentos inexistentes, tendo por consequência o depósito e/ou transferência do dinheiro de uma conta bancária da A... para outras contas bancárias da mesma.

23. Os movimentos contabilísticos efetuados na sequência das aquisições (compras) a que se reportam as faturas fictícias supra indicadas foram os seguintes:

No momento do registo da compra inexistente:

● 31233 (compras de mercadorias países terceiros) movimentada a débito, por contrapartida da conta;

● 2213 (fornecedor) movimentada a crédito;

E pelo registo efetuado pela utilização do sistema de inventário permanente:

● 3211 (Mercadorias - Máquinas) movimentada a débito;

● 31233 (compras de mercadorias países terceiros) movimentada a crédito.

No momento do suposto pagamento (saída de meios financeiros):

● 2213 (fornecedor) movimentada a débito;

●12 (bancos) movimentada a crédito pela saída dos meios financeiros das respetivas contas bancárias.

24. Deste modo, os movimentos financeiros correspondentes aos pretensos pagamentos a fornecedores de registos duplicados de operações, foram os seguintes:

Ano 2008 (excetuando os relativos ao fornecedor ‘Power Curbers’, que será adiante analisado):

Ano 2009 (excetuando os relativos ao fornecedor ‘Power Curbers’, que será adiante analisado):

Ano 2008 - fornecedor ‘Power Curbers’:

Ano 2009 - fornecedor ‘Power Curbers’:

25. Donde, as referidas saídas de meios financeiros relacionados com os “hipotéticos pagamentos das faturas”, que ocorreram no exercício de 2008 e 2009, totalizaram €3.866.947,30 [€1.082.686,80 + €1.207.870,00 + €116.662,65 + €1.459.727,92].

26. A sociedade arguida A... ficou com uma disponibilidade financeira, pela inexistência de pagamentos a fornecedores, nos exercícios de 2008 e 2009, no montante total de €3.866.947,30, o qual foi debitado na conta n.º 12 (Conta Bancos), pela entrada desses meios financeiros nas contas bancária da A....

27. No exercício de 2009, aquele montante foi creditado na conta n.º 12, pela saída dos meios financeiros das contas bancárias da A... e creditado nas contas nºs 2649 (Subscritores de Capital – Outras entidades) e 5117 (Capital – Ações), pela realização do aumento do capital social subscrito pelos arguidos AA e BB.

28. Com efeito, no dia 17 de Julho de 2009, em Assembleia Geral da sociedade arguida A..., na qual estiveram presentes os arguidos AA e BB, foi deliberado e aprovado, por proposta de AA, o aumento do correspondente capital social em €4.525.000,00, com a emissão de 452.500 ações, no valor de €10,00 cada, mediante a subscrição dessas ações pelos arguidos AA e BB, a ser realizada através de novas entradas em dinheiro até ao final do ano de 2009.

29. Na sequência da deliberação, foi efetuada a subscrição e realização do aumento do capital social da sociedade arguida A..., através da conta n.º 2649, em nome desses arguidos, sendo que, em 31 de Julho de 2009, foi registado um lançamento a débito no montante de €4.525.000,00, pela subscrição das ações pelos sócios, e, entre 1 de Janeiro de 2009 e 14 de Dezembro de 2009, foram registados vários lançamentos a crédito, no mesmo montante, pela realização do referido aumento do capital social.

30. No dia 9 de Setembro de 2009, foi registado o referido aumento do capital social da sociedade arguida.

31. Deste modo, os hipotéticos pagamentos efetuados aos fornecedores, embora contabilizados a débito na conta 22 (fornecedores respetivos), mais não foram do que quantias colocadas à disposição dos subscritores de capital/acionistas (os arguidos AA e BB), que por essa via realizaram na modalidade de entradas em dinheiro o aumento de capital, sem terem despendido os seus meios monetários e enriquecendo o seu património com a aquisição de ações.

32. Ainda no que tange à subscrição do aumento de capital, também a tributação dos rendimentos colocados à disposição do capital social devia ter sido efetuada pela A..., à taxa liberatória de 20% à data da subscrição, com retenção na fonte, do que resultou imposto em falta referente a IRS – Capitais – Outros Rendimentos, no valor de €773.389,46:

Período de impostoCódigoDescriçãoImposto não retido (Taxa Liberatória)
200909108IRS – Capitais – Outros Rendimentos€ 773 389,46

33. Na sequência dos factos descritos, em Maio de 2011, a administração fiscal realizou ação inspetiva à sociedade arguida A....

34. Finda a ação inspetiva, em Fevereiro de 2012, a administração fiscal notificou a sociedade arguida A... do projeto do relatório final, para, querendo, se pronunciar, o que não fez.

35. Por reporte ao montante de IRS em falta, veio a ser instaurado processo contraordenacional.

II

36. Em data não concretamente apurada, mas entre Março de 2012 e 30 de Julho de 2012, os arguidos AA e BB, por si e em representação da arguida A..., conhecedores da deteção pela administração fiscal dos factos indicados e bem assim da liquidação de IRS nos termos descritos, delinearam novo plano, agora com o objetivo de se eximirem ao pagamento da quantia devida a título de IRS, mediante a eliminação e adulteração de documentos contabilísticos que estiveram na génese de tal deteção, falseando os resultados, nomeadamente os lançamentos tendentes a diminuir os custos, sem qualquer apoio documental real, e alterando a modalidade de subscrição do referido aumento de capital.

37. Para a concretização dos objetivos supramencionados, os arguidos AA e BB, por si e na qualidade de representantes legais da sociedade arguida A..., contaram com a colaboração dos arguidos DD e CC, nas circunstâncias adiante descritas.

38. Na prossecução do plano gizado, e no período indicado, os arguidos DD e CC, por indicação e sob a orientação dos arguidos AA e BB, que atuaram por si e em representação da sociedade arguida A..., procederam à alteração dos registos contabilísticos da A..., quanto aos exercícios de 2007, 2008 e 2009.

39. Para tanto, eliminaram os registos contabilísticos informáticos que estiveram na origem das irregularidades detetadas durante a ação inspetiva e elaboraram novos registos contabilísticos, que anularam os registos de suporte das correções efetuadas pela administração fiscal na sequência da ação inspetiva, registos estes reportados às contas de Compras e bem assim às contas de Capital referentes aos anos de 2008 e 2009, mormente a conta de capital 5117- “Ações”, e ainda à conta 591 – “Resultados Transitados”.

40. Quanto à indicada conta 591, as alterações efetuadas estenderam-se até ao exercício de 2007, tendo por base um documento interno, elaborado pelos arguidos DD e CC, sempre sob a orientação dos arguidos AA e BB, com a designação “Listagem de movimento nº 12030”, respeitante ao ano 2007, com a descrição de “Regularização de existências após contagem no valor de € 4.501.360,77”, sem qualquer suporte documental, e que deu origem ao seguinte registo contabilístico por aqueles efetuado: Débito da conta 3211 – Mercadorias por contrapartida do registo a crédito na conta 591 – Resultados Transitados, no montante acima referido.

41. Nessa sequência, passou a constar nessa conta o valor necessário para a subscrição do aumento de capital, através de reservas, não passível de tributação como proveito/rendimento extraordinário, reportado ao ano de 2007, donde, à data (2012) não passível de tributação (caducidade).

42. Nessa senda, em Assembleia Geral da sociedade arguida A..., realizada em 30 de Julho de 2012, na sede societária, e na qual estiveram presentes todos os arguidos, apreciou-se (sob proposta do arguido AA), deliberou-se e aprovou-se a retificação da deliberação do aumento de capital na sequência da Assembleia Geral realizada em 16 de Julho de 2009, alterando a forma de subscrição do capital, que passaria ser em reservas.

43. Da ata respetiva – Ata n.º 17 – fez-se constar, além do mais, que: “(…) o Presidente do Conselho de Administração, Sr. AA, que recordou a assembleia da deliberação constante da ata número oito das assembleias gerais da sociedade, na qual ficou a constar que o aumento de capital social de € 2.175.000,00 (dois milhões cento e setenta e cinco mil euros) para € 6.700.000,00 (seis milhões e setecentos mil euros) tendo o aumento sido de € 4.525.000,00 ( quatro milhões quinhentos e vinte e cinco mil euros) o qual foi subscrito e realizado, em partes iguais, pelos acionistas AA e BB, em dinheiro e a realizar até ao final do ano de dois mil e nove. Ainda no uso da palavra informou os acionistas que do balanço da sociedade, à data de 30 de Junho de 2009, resulta que do capital próprio fazem parte resultados transitados no montante de € 4.939.447,76 (quatro milhões novecentos e trinta e nove mil quatrocentos e quarenta e sete euros e setenta e seis cêntimos) balanço este que fica a fazer parte integrante desta ata (…)”.

44. Sucede que também o balanço anexo a esta ata, como respeitante a 30 de Junho de 2009, foi alvo de adulteração pelo arguido CC, já em 2012, enquanto TOC da sociedade arguida A..., não tendo correspondência com a real contabilidade da sociedade, uma vez que do mesmo resulta a existência de resultados transitados no montante de € 4.939.447,75, divergentes dos reais (€ 438.086,98 e Reservas Livres de €0,00).

45. Ademais, em data não concretamente apurada, posterior a Março de 2012, foi ainda elaborada a Ata 8A, pelos arguidos, ou por terceiro a seu mando, como reportada a Assembleia Geral da sociedade arguida A..., alegadamente realizada em 30 de Julho de 2009, com intervenção de todos os arguidos, com o seguinte teor:

“Aos trinta dias de Julho de dois mil e nove, pelas dezoito horas, reuniu-se na sede social a Assembleia Geral da sociedade A..., S.A, com capital social 2.175.000,00 (dois milhões cento e setenta e cinco mil euros) para os efeitos previstos no artigo 376º do Código das Sociedades Comerciais, na sequência da convocatória efectuada nos termos legais, sob a presidência do Sr. Dr. RR, secretariado pelo Sr. CC na ausência do Dr. OO, secretário da referida mesa.

A ordem do dia constante na convocatória foi a seguinte:

Único: Apreciação e deliberação sobre a aprovação do balanço reportado a 30 de Junho do corrente ano.

Estiveram presentes os accionistas Sr. AA, e Sr. BB, que individualmente e em representação da sociedade, assim como da accionista A... SGPS,SA representam a totalidade do capital social.

Esteve também presente o Revisor Oficial de Contas da empresa.

Entrando no ponto único da ordem de trabalhos, tomou a palavra o Presidente do Conselho de Administração, Sr. AA, que fez uma breve explicação do balanço reportado a 30 de Junho do corrente ano, do qual resulta a existência de resultados transitados no montante de € 4.939.447,75 (quatro milhões novecentos e trinta e nove mil quatrocentos e quarenta e sete euros e setenta e cinco cêntimos). No uso da palavra propôs a todos os accionistas a aprovação do referido balanço e que dos referidos resultados seja transferida a verba de € 4.525.000,00 (quatro milhões quinhentos e vinte e cinco euros) para reservas livres, proposta esta que foi aprovada por unanimidade”.

46. Tal ata, na qual se deliberou e aprovou a transferência do montante de €4.525.000,00 para reservas livres, não foi lavrada na data indicada, mas já no decurso de 2012, e uma vez mais com referência ao balanço reportado a 30 de Junho de 2009, adulterado pelo arguido CC nos termos descritos.

47. Na posse de tais atas, no dia 29 de Agosto de 2012, foi inscrita pelos arguidos AA e BB, com conhecimento e vontade dos demais, no registo comercial, a retificação do aumento de capital quanto à modalidade e forma de subscrição, que passou a “incorporação de reservas”.

48. A subscrição do aumento de capital em reservas nos termos descritos, teria como consequência a não tributação em sede de IRS e que estava na origem do dito processo de contraordenação.

49. A retificação do aumento de capital teve consequências nos valores das participações sociais detidas pelos detentores do capital, mormente pelos arguidos AA e BB, nos seguintes termos:

50. Em 16 de Outubro de 2012, foram entregues pelo arguido LL as declarações anuais de substituição – IES (Informação Empresarial Simplificada), adulteradas pelo mesmo nos termos descritos, referentes aos exercícios de 2007, 2008, 2009 e 2010.

51. São as seguintes as alterações efetuadas pelo arguido CC, a mando e sob a orientação dos arguidos AA e BB, por si e enquanto legais representantes da sociedade arguida, nas ditas IES, por reporte às substituídas e correspondentes à real situação contabilística da A...:

1ª Declarações EntreguesDeclarações de Substituição
Existências Finais 2007     8.222.454,13    12.723.814,90
Resultados Transitados 2007    102.242,64     4.603.603,41
Existências Iniciais 2008  8.222.454,13     12.723.814,90
Compras 2008   17.614.722,36      14.556.886,21
Existência Final 200810.466.711,8311.910.236,45
Resultados Transitados 2008203.532,944.704.893,71
Existência Inicial 200910.466.711,8311.910.236,45
Compras 200913.889.470,8212.445.946,20
Existência Final 200911.875.077,9911.875.077,99
Resultados Transitados 2009438.086,98414.447,75
Capital Social6.700.000,00a)6.700.000,00b)

a. Resultante do aumento de capital no montante de 4.525.000,00 euros, subscrito em dinheiro e em partes iguais pelos arguidos AA e BB.

b. Resultante do aumento de capital no montante de 4.525.000,00 euros, subscrito em reservas, por todos os detentores do capital à excepção da própria sociedade arguida em montantes aproximadamente proporcionais às participações detidas antes do aumento de capital.

52. As referidas contas (2009 e 2010) foram sujeitas a certificação legal de contas pelo arguido DD, tendo sido as mesmas certificadas sem reservas e sem ênfases.

53. Pelos montantes devidos referentes a IRC e IRS, foram instaurados os processos de execução fiscal nºs ...50 (IRC de 2008), ...68 (IRC de 2009) e ...28 (IRS de 2009), sendo que, em Dezembro de 2014, não havia sido ainda efetuado qualquer pagamento.

54. Os arguidos agiram sempre por si e em representação da sociedade arguida, em nome desta e no interesse coletivo, de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão de esforços e intentos.

55. Os arguidos AA e BB receberam e utilizaram as faturas acima referidas de forma voluntária, livre e consciente, cada um sob a mesma resolução criminosa, cientes que tais faturas não correspondiam a quaisquer serviços prestados e/ou materiais fornecidos por quem nelas constava como emitente, a favor dos mesmos, que as quiseram aceitar e lançar nas respetivas contabilidades.

56. Conheciam o funcionamento da incidência fiscal, nomeadamente que, em sede de IRC, a contabilização de faturas emitidas por um terceiro operador económico correspondia a um custo que tinha a virtualidade de diminuir a matéria coletável e, logo, a diminuição do pagamento do respetivo imposto.

57. Os arguidos AA e BB fizeram assim crer aos Serviços da Administração Tributária que as respetivas declarações periódicas de IRC apresentadas se baseavam em documentos que titulavam verdadeiras transações, induzindo-os em erro quanto à sua autenticidade, e, nessa sequência, locupletando-se com os montantes supra indicados.

58. As irregularidades acima referidas, realizadas pelos arguidos CC e DD, na sequência de plano gizado com os arguidos AA e BB, por si e na qualidade de legais representantes da sociedade arguida A..., e sob a orientação destes, que influenciaram os resultados líquidos da sociedade A..., foram feitas com o objetivo de falsear os resultados, nomeadamente os lançamentos tendentes a diminuir os custos, sem qualquer apoio documental real, com base apenas em mera nota interna, e a sobreavaliação das existências finais, com vista a refletir, nas contas dos exercícios de 2007 a 2009, uma situação que a sociedade arguida A... não tinha e possibilitar a alteração da subscrição de aumento do capital, de modo a isentar a sociedade A... do pagamento do IRS devido, o que não seria viável sem aqueles arranjos artificialmente conseguidos por via contabilística.

59. Os arguidos CC e DD, ao eliminarem e adulterarem os registos contabilísticos, utilizando-os nos termos e com os objetivos supra descritos, puseram em causa o património do Estado – administração fiscal – e a verdade da situação tributária relativa à sociedade arguida A....

60. Os arguidos CC e DD serviram-se das suas qualificações profissionais, enquanto técnico oficial de contas e revisor oficial de contas, respetivamente, e agiram no exercício das suas funções, sabendo que estavam sujeitos a obrigações acessórias especiais para efeitos de fiscalização tributária, que violavam, e que assim atingiam de forma grave os deveres e obrigações decorrentes das suas funções de natureza pública e estatuto profissional, sempre com intenção de obterem, para si e para os demais, vantagens patrimoniais indevidas, pela diminuição das receitas fiscais.

61. Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

              **

Mais se apurou:

Da Situação Pessoal da Sociedade Arguida A... (1):

1. O processo de insolvência da sociedade arguida encontra-se em fase de liquidação.

2. A sociedade arguida foi já condenada:

o Por decisão proferida em 23.10.2019 e transitada em julgado em 08.07.2020, no Processo Comum Singular nº 199/15...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em Junho de 2014, de um crime de abuso de confiança na forma continuada (p. e p. pelo artigo 205º, nº 1 e nº 5 do Código Penal) e de um crime de abuso de confiança fiscal (p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, nº 4, alínea b) e nº 5 do RGIT), na pena única de 500 dias de multa, à razão diária de € 5,00, num total de € 2.500,00;

o Por decisão proferida em 02.03.2020 e transitada em julgado em 03.07.2020, no Processo Comum Singular nº 10/19...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 02.01.2015, de um crime de fraude fiscal qualificada (p. e p. pelos artigos 103º, nº 1 e 104º do RGIT), na pena de 300 dias de multa, à razão diária de € 5,00, num total de € 1.500,00;

o Por decisão proferida em 15.12.2020 e transitada em julgado em 28.10.2021, no Processo Comum Singular nº 293/19...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 2015, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (p. e p. pelo artigo 107º do RGIT), na pena de 300 dias de multa, à razão diária de € 5,00, num total de € 1.500,00.

Da Situação Pessoal do Arguido AA (2):

3. O arguido cresceu numa família convencional, sem eventos relevantes até ao falecimento do progenitor, quando o arguido contava 18 anos de idade.

4. A perda do pai reforçou a intenção do arguido de integrar o mercado de trabalho, sendo que possuía apenas o curso comercial (com equivalência ao atual 9º ano de escolaridade).

5. O seu percurso profissional foi iniciado em Lisboa, como vendedor em empresa de máquinas agrícolas e adubos, onde permaneceu cerca de 4 anos.

6. As sequentes experiências foram sempre como vendedor, com estadias mais ou menos prolongadas em empresas mais próximas da sua localidade de origem.

7. As mudanças de empresa ocorreram pela perspetiva de melhoria das condições de trabalho e de condições remuneratórias, decidindo, mais tarde, constituir empresa própria, a sociedade arguida.

8. A sociedade arguida foi a primeira e única experiência profissional do arguido por conta própria.

9. Entre 2018 e 2020, o arguido colaborou com empresa de máquinas e equipamentos industriais, sedeada em Leiria, saindo em situação de litígio.

10. Atualmente, o arguido encontra-se desempregado.

11. O arguido encontra-se inscrito no IEFP, como candidato a emprego, desde Fevereiro de 2021.

12. A procura de emprego é dificultada face à sua idade próxima da reforma, sendo-lhe difícil a inatividade prolongada.

13. Em 2010, o arguido separou-se judicialmente de pessoas de bens, vivendo na casa de morada de família, num quarto cedido pela ex-mulher há mais de 6 anos.

14. O arguido tem dois filhos, maiores de idade, sendo que o mais novo integra ainda o agregado de origem.

15. O arguido manifesta distanciamento afetivo da família e amigos, apresentando um humor deprimido e perturbação do sono.

16. O convívio social extrafamiliar é também reduzido.

17. Mantém contacto regular à distância com o seu único irmão, mais novo, residente em Angola.

18. Não se encontra envolvido em atividades estruturadas.

19. O arguido necessita de medicação para dormir.

20. Tem sido acompanhado por médico de família, sendo dependente de insulina.

21. O presente processo judicial não é do conhecimento da família e amigos.

22. O arguido AA foi já condenado:

o Por decisão proferida em 20.12.2013 e transitada em julgado em 29.09.2014, no Processo Comum Singular nº 1470/11...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 10.11.2011, de um crime de abuso de confiança fiscal (p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, nº 2, nº 4 e nº 5 do RGIT), na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano (declarada extinta, pelo cumprimento);

o Por decisão proferida em 24.06.2015 e transitada em julgado em 11.02.2016, no Processo Comum Singular nº 233/14...., do Juízo Local Criminal ..., pela prática, em Janeiro de 2014, de um crime de desobediência qualificada (p. e p. pelo 348, nº 2 do CPP e 375º do CPC), na pena de 100 dias de multa à razão diária de € 7,00, num total de € 700,00 (declarada extinta, pelo pagamento);

o Por decisão proferida em 23.10.2019 e transitada em julgado em 08.07.2020, no Processo Comum Singular nº 199/15...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 2014, de um crime de abuso de confiança na forma continuada (p. e p. pelo artigo 205º, nº 1 do Código Penal) e de um crime de abuso de confiança fiscal (p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, nº 4, alínea b) e nº 5 do RGIT), na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período (declarada extinta, pelo cumprimento);

o Por decisão proferida em 02.03.2020 e transitada em julgado em 03.07.2020, no Processo Comum Singular nº 10/19...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 02.01.2015, de um crime de fraude fiscal qualificada (p. e p. pelos artigos 103º, nº 1 e 104º do RGIT), na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período (declarada extinta, pelo cumprimento);

o Por decisão proferida em 15.12.2020 e transitada em julgado em 28.10.2021, no Processo Comum Singular nº 293/19...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 2015, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (p. e p. pelo artigo 107º do RGIT), na pena de 180 dias de multa, à razão diária de € 6,00, num total de € 1.080,00 (declarada extinta, pelo pagamento).

Da Situação Pessoal do Arguido BB (3):

Da Situação Pessoal do Arguido CC (4):

Da Situação Pessoal do Arguido DD (5):

                *

FACTOS NÃO PROVADOS:

Não ficou por provar qualquer facto com relevo para a boa decisão da causa.

             *

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

              *

             *

4. Cumpre agora apreciar e decidir.

         Questão prévia

Na resposta ao Parecer do Ministério Público, defende o arguido DD que este parecer não deve ser admitido, devendo ser desentranhado, uma vez que o M.P. demorou 68 dias a proferi-lo e o arguido apenas tem 10 dias para responder.

Se o arguido leu atentamente o dito parecer, constatou que o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto esteve de baixa médica de 22.5.2024 a 7.6.2024 (ITT nesse período).

De qualquer forma, o prazo geral de 10 dias (artigo 105º, nº1, do Código de Processo Penal) para a elaboração do parecer não pode deixar de ser um prazo indicativo.

Quando o processo chega ao Tribunal da Relação a posição do Ministério Público e do arguido não são idênticas. Aquele está a tomar conhecimento do processo pela primeira vez e este há muito que tem conhecimento do mesmo.

Como refere Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado de Henriques Gaspar e outros, pág. 1425, “O Ministério Público como sujeito processual e titular da acção penal tem vista obrigatória do processo antes de o mesmo ser presente ao relator. Nos tribunais superiores, o visto tem por função primária assegurar que o agente respectivo tome conhecimento do processo e, em tempo, possa suscitar as questões prévias ou incidentais que, a seu ver, obstem ao conhecimento do recurso”.

Naturalmente que esse parecer do Ministério Público deve ser notificado ao arguido para responder, querendo.

Como refere igualmente Pereira Madeira, obra supra citada, pág. 1426, “a posição assumida pelo Ministério Público junto do tribunal de recurso, que vá para além de aposição de simples visto no processo não é indiferente à sorte do arguido, recorrente ou não, pelo que o elementar respeito pelos direitos constitucionais do arguido, mormente o de igualdade de armas e defesa contraditória, impõem que essa posição alargada assumida na vista seja dada a conhecer àquele sujeito processual, não apenas por dever de informação, mas para que, sendo caso disso, possa assumir no processo o posicionamento que melhor defenda a sua posição. Enfim, assegurar convenientemente o exercício do seu direito de contradição e defesa e, de algum modo a igualdade de armas processuais. Daí o disposto no artigo 417º, nº 2”.

O que foi cumprido.

Inconstitucionalidade haveria se não fosse dada a oportunidade ao arguido de responder ao parecer do Ministério Público.

Em suma, não se encontram violadas as mencionadas normas da nossa Lei Fundamental, nem as mencionadas da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).

Por não assistir razão ao arguido, improcede a sua pretensão, devendo manter-se nos autos o parecer do Ministério Público.

              *

As questões a decidir serão apreciadas seguindo uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras.

A primeira questão a apreciar é a de saber se o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, em concreto por dele não constarem os factos e questões tratadas no aresto de 7.5.2020, proferido no Processo nº 1022/12.... do Tribunal Central Administrativo do Sul (questão dos recursos dos arguidos CC e DD).

Alega o arguido CC que os presentes autos estiveram suspensos durante a fase de inquérito, ao abrigo do disposto no artigo 47º do RGIT, por despacho do Ministério Publico, de 06/02/2017, em consequência da impugnação judicial deduzida pela sociedade coarguida A... Sa., nomeadamente, quanto ao processo executivo para cobrança coerciva nº ...28, referente a IRS do ano de 2009, no valor de € 994.754,11, que correu termos como processo nº 1022/12...., no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

Consta da certidão judicial em fls. 1377 a 1402, remetida pelo Tribunal Central Administrativo Sul, de 20/7/2020, junta em 7/8/2020, que a coarguida A... SA. deduziu Impugnação Judicial contra a liquidação de retenções na fonte de IRS n.º ...37, do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46, tendo tal Impugnação dado lugar ao sobredito Processo n.º 1022/12.....

Ora, atendendo-se ao teor quer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, quer do respetivo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, percebe-se que o objeto do litígio em discussão nesse processo de impugnação judicial n.º 1022/12...., está intimamente e substancialmente ligado ao presente processo nº 29/11...., de cujo acórdão ora se recorre.

Em ambos os processos o que está em causa é a situação tributária em sede do IRS de 2009, decorrente da utilização pelos coarguidos AA e BB, então acionistas e administradores da A... Sa., de dinheiro proveniente desta, para subscreverem em nome deles, o aumento de capital social da mesma realizado em 2009 – de cuja definição dependia (e depende) a qualificação jurídico-criminal dos factos imputados aos coarguidos nos autos.

Tanto assim o é que, como referido, foi determinada a suspensão dos presentes autos (na fase de inquérito), nos termos do artigo 47.º do RGIT, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12.....

Assim, a decisão final proferida no referido processo de impugnação judicial nº 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, cuja certidão/documento consta dos presentes autos, não podia deixar de ser considerada nos “factos provados” e/ou na “motivação da decisão de facto” do d. acórdão recorrido proferido pelo Tribunal a quo.

A decisão proferida no processo de impugnação judicial nº 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, sobre o IRS decorrente da utilização pelos coarguidos AA e BB, então acionistas da coarguida A... Sa., de dinheiro proveniente desta, para subscreverem, em nome deles, o aumento de capital social da mesma realizado em 2009, é, portanto, essencial para a boa decisão nos presentes autos, devendo ter sido conhecida e apreciada pelo Tribunal de 1ª instancia.

O referido Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, fixou nomeadamente:

• a causa/origem do sobredito IRS (distribuição de dividendos, pela coarguida A... Sa., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem em dinheiro o aumento de capital dessa sociedade, então deliberado);

• a data em que tal imposto nasceu (setembro de 2009); a não produção de efeitos retroativos da retificação do referido aumento de capital deliberada em assembleia geral daquela sociedade coarguida, de 30 de julho de 2012;

• e a manutenção da liquidação do aludido imposto na esfera jurídica desta sociedade.

Tudo questões essenciais para a discussão e boa decisão dos presentes autos, mas sobre as quais o d. acórdão recorrido proferido pelo tribunal a quo não se pronunciou!

Limitando-se depois a dar como “factos provados” que:

• 35. “Por reporte ao montante de IRS em falta, veio a ser instaurado processo contraordenacional”;

• 53. “Pelos montantes devidos referentes a IRC e IRS, foram instaurados os processos de execução fiscal nºs (…) e ...28 (IRS de 2009), sendo que, em Dezembro de 2014, não havia sido ainda efetuado qualquer pagamento.”;

Assim, o d. acórdão proferido pelo tribunal de 1.ª instância, deixou de se pronunciar sobre questões que lhe cabia conhecer e apreciar.

Pelo que, o acórdão objeto do presente recurso padece da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal.

Por sua vez, o arguido DD alegou no mesmo sentido. Em síntese, afirmou que:

Assim, como foi considerado – e bem – no despacho proferido nos presentes autos em 6/2/2017, no mencionado Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12.... discutiu-se situação tributária – a tributação, em sede de IRS, decorrente da utilização, pelos coarguidos AA e BB, então acionistas da coarguida A..., S. A., de dinheiro proveniente desta, para subscreverem, em nome deles, o aumento de capital social da mesma realizado em 2009 – de cuja definição dependia (e depende) a qualificação jurídico-criminal dos factos aqui imputados aos arguidos.

Em consequência, no citado despacho de 6/2/2017, foi determinada a suspensão dos presentes autos, nos termos do art. 47.º do RGIT, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12.....

Assim, a decisão final proferida nesse processo pelo Tribunal Central Administrativo do Sul deve ser levada aos “factos provados” do acórdão ora sob recurso.

Desde logo porque, como melhor se verá mais à frente, constitui caso julgado no presente processo, nos termos do art. 48.º do RGIT.

Mas ainda que assim não se entenda, o que apenas por mera cautela se aventa, por ser essencial para a decisão dos presentes autos.

Com efeito, o Acórdão tirado pelo Tribunal Central Administrativo do Sul no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., em 7/5/2020, transitado em 2/7/2020, fixou a causa/origem do sobredito IRS (distribuição de dividendos, pela coarguida A..., S. A., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem em dinheiro o aumento de capital dessa sociedade, então deliberado), a data em que tal imposto nasceu (setembro de 2009), a não produção de efeitos retroativos da retificação do referido aumento de capital, deliberada em assembleia geral da coarguida A..., S. A., de 30 de julho de 2012, e a manutenção da liquidação do aludido imposto na esfera jurídica desta sociedade.

Deste modo, como se aprofundará adiante, o citado Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul impõe a conclusão de que os factos nos quais in casu foi considerado provado que o recorrente participou não só não importaram, como não eram suscetíveis de importar qualquer prejuízo fiscal para o Estado ou vantagem fiscal alguma para a coarguida A..., S. A., ou para outrem.

Dito de outro modo, perante tal Acórdão, esses factos não só não determinaram, como não eram aptos a determinar «a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias».

Ao que acresce, adiante-se já, que foi considerado provado no acórdão aqui sob recurso que:

- «35. Por reporte ao montante de IRS em falta, veio a ser instaurado processo contraordenacional»;

- «53. Pelos montantes devidos referentes a IRC e IRS, foram instaurados os processos de execução fiscal nºs (…) e ...28 (IRS de 2009), sendo que, em Dezembro de 2014, não havia sido ainda efetuado qualquer pagamento».

Por conseguinte, reitere-se, no acórdão em crise devia ter sido dado como provado que no Processo n.º 1022/12...., o Tribunal Central Administrativo do Sul proferiu o citado Aresto de 7/5/2020, transitado em 2/7/2020, e bem assim o conteúdo desse Aresto.

Todavia, na decisão sobre a matéria de facto vertida no acórdão recorrido o Tribunal a quo nada disse a esse respeito.

Assim, a 1.ª instância deixou de se pronunciar sobre uma questão que devia ter apreciado.

Desta sorte, o acórdão objeto do presente recurso padece da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal (CPP), a qual aqui se invoca, devendo ser declarada com todas as consequências legais.

Vejamos, então.

Nos termos do artigo 379º, nº 1, do Código de Processo Penal, “é nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Assim, a omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre uma questão que deveria ter apreciado, o que conduz à nulidade da sentença impugnada, conforme estabelece a alínea c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal – cfr. Ac. da RP de 8.5.2019, in www.dgsi.pt.

Como refere Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado de Henriques Gaspar, Et al., pág. 1182, “a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do CPP. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado nº 2 do artigo 660º do Código de Processo Civil. A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidas pela parte em defesa da sua pretensão”.

No mesmo sentido veja-se o Ac. do STJ de 9.2.2012, in www.dgsi.pt.

Ora, da alegação dos recorrentes supra aludida, não se vislumbra a omissão de qualquer questão que o tribunal devesse apreciar. O que perpassa é a falta de factos no elenco da factualidade que, segundo os arguidos, são relevantes para a boa decisão.

Assim, a nulidade, a existir, enquadra-se no artigo 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal.

Estipula o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Em face do disposto no artigo 368º, nº 2, do Código de Processo Penal, a enumeração dos factos provados e não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua aprecia­ção e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização, e ainda sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa.
                Dispõe expressamente o nº 4 do artigo 339º do mesmo diploma legal que “… a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência …”.

Assim, na enumeração dos factos provados e não provados relevam aqueles que foram efetivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova.

Neste sentido veja-se o Ac. da RC de 24.4.2019, in www.dgsi.pt, segundo o qual “a enumeração dos factos provados e não provados a integrar a fundamentação que obrigatoriamente deve constar na sentença traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá de incidir, incluindo os que, embora não fazendo parte da acusação ou da pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização e da contestação a este, tenham resultado da discussão da causa e revestem relevância para a decisão”.

Pode ler-se no mesmo aresto que “quanto ao âmbito material desse enunciado, diz-nos o artigo 339.º, n.º 4 do CPP que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da prova produzida em audiência, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º (questão da culpabilidade) e 369.º (questão da determinação da sanção). … No fundo, a enumeração dos factos provados e não provados a integrar a fundamentação que obrigatoriamente deve constar na sentença, em conformidade com os artigos 374º, nº 2, 339º, nº 4, 368º, nº 2 e 369º, traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá de incidir, incluindo os que, embora não fazendo parte da acusação ou da pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização e da contestação a este, tenham resultado da discussão da causa e revestem relevância para a decisão”.

Como afirma Sérgio Poças, “Da Sentença Penal – Fundamentação de Facto”, in Julgar, nº 3, 2007: “a fundamentação é uma exigência constitucional. De facto, dispõe o artigo 205º da Constituição da República Portuguesa que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Continua o mesmo autor afirmando que “o tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339º, nº 4, 368º, nº 2, e 374º, nº 2, do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação — o que pressupõe a sua indagação — se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível. É que em impugnação por via de recurso pode vir a ser considerado pelo tribunal ad quem que o facto sobre o qual o tribunal a quo especificadamente não se pronunciou por entender ser irrelevante, é afinal relevante para a decisão, o que determinará a necessidade de novo julgamento, ainda que parcial, com todas as maléficas consequências consabidas. Sejamos claros: indagam-se os factos que são interessantes de acordo com o direito plausível aplicável ao caso; dão-se como provados ou não provados os factos conforme a prova produzida. … Também os factos circunstanciais ou instrumentais — inequivocamente relevantes para a prova dos factos probandos — devem ser objecto de pronúncia por parte do tribunal”.

Voltando ao caso concreto, no âmbito do inquérito, a 6.2.2017, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:

“Nos termos do disposto no artigo 47.º do RGIT, 1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças. 2 - Se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie.

Verifica-se nos autos que os montantes em dívida, são os seguintes:

▪ De IRC, nos montantes de € 831.686,85, relativo ao ano de 2008 e € 480.737,53, referente ao ano de 2009, que deram respectivamente origem aos processos executivos, para cobrança coerciva n.º ...50 e ...68,

▪ De IRS, no valor de € 994.754,11, referente ao ano de 2009, que deu origem ao processo executivo para cobrança coerciva n.º ...28,

A sociedade não procedeu ao pagamento das referidas importâncias, antes deduziu impugnação judicial a cada uma das referidas liquidações, que correm sob os processos n.ºs 1028/12...., 1032/12.... e 1022/12.... no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

Assim sendo, ao abrigo do disposto no artigo 47.º, n.º 1 do RGIT, determino a suspensão dos presentes autos até ao trânsito em julgado das decisões proferidas nos processos supra indicados.

Comunique aos processos, com cópia deste despacho e para os termos e efeitos do n.º 2 do referido artigo.

               *

Comunique aos arguidos”.

O inquérito aguardou então nos termos ordenados.

O acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, referente ao Proc. 1022/12.... deu entrada nos autos a 7.8.2020.

Nesse acórdão pode ler-se que:

“A..., S.A.” deduziu impugnação judicial contra a liquidação de retenções na fonte de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) nº …, do período de tributação de 2009, no valor de 773.389,46 euros, e a correspondente liquidação de juros compensatórios, com o nº …, no valor de 73.228,32 euros, o que perfaz o valor total a pagar de 846.617,78 euros.

Vem a recorrente invocar que os accionistas AA e BB não foram beneficiários efectivos da quantia correspondente ao aumento do capital social porque para assim ser teria que ficar provado qua a partir dessa data – 17.7.2009 – os subscritores do aumento obtiveram algum tipo de rendimentos provenientes dessas participações aumentadas.

Mas não tem razão.

Nos termos do disposto no artigo 5º, nº 2, alínea h), do CIRS, devem ser qualificados como rendimentos de capitais, de entre outros, os rendimentos derivados de lucros distribuídos por sociedades e os adiantamentos por conta desses lucros a favor dos respectivos sócios que sejam pessoas singulares.

Por sua vez, o artigo 6º, nº 4, do CIRS estabelece uma presunção, no sentido de que as quantias lançadas a favor dos sócios, em quaisquer contas correntes de sócios de sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial e que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício do cargo social, correspondem a lucros ou a adiantamento por conta de lucros, devendo, por isso, ser sujeitas a tributação, nos termos do artigo 5º, nº1 e 2, alínea h) do CIRS.

A referida presunção é ilidível, mediante prova em contrário, nos termos do nº 5 da mesma norma.

Pelo que tendo a AT demonstrado a legalidade do seu agir, incumbia à recorrente o ónus de demonstrar que o dinheiro não pertencia aos associados mas sim à sociedade recorrente tal como invoca, ónus que não cumpriu de todo, limitando-se a alegar que teria de ficar provado que os subscritores do aumento obtiveram algum tipo de rendimento, bem como, que a aludida deliberação social veio a ser rectificada em 30.7.2012 dando forma legal ao que já existia em 2009.

Quanto ao primeiro argumento – que teria de ficar provado que os subscritores do aumento obtiveram algum tipo de rendimento – mais não é que uma tentativa de inverter o ónus da prova sem qualquer base legal para tal, tendo em conta a necessidade de ilidir a presunção, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 5, do CIRS e do artigo 73º da LGT.

Quanto ao 2º argumento – que a deliberação social veio a ser rectificada em 30.7.2012 dando forma legal ao que já existia em 2009, como a recorrente bem sabe, tal rectificação só produz efeitos para o futuro, e que desde que a Assembleia Geral da impugnante deliberou – dia 17.7.2009 – o aumento do capital social, esse aumento foi subscrito e realizado pelos sócios AA e BB, que foi objeto de registo comercial, e que por isso, esses sócios ficaram investidos num conjunto de direitos e deveres associados ao aumento da sua participação no capital social da sociedade, os quais vigoraram até à data da rectificação da deliberação que só aconteceu em 30.7.2012.

Face ao exposto, forçoso é concluir que a impugnante/recorrente não logrou ilidir a presunção constante do artigo 6º, nº 4, do CIRS”.

Juntas aos autos as pretendidas decisões judiciais, o inquérito prosseguiu os seus trâmites, tendo sido proferido despacho de acusação a 14.9.2021.

Como resulta da leitura dessa peça processual, consta em Nota prévia o seguinte:

“No que concerne ao montante devido a título de IRS de 2009, per se, temos que integra ilícito contraordenacional (artigo 114.º do RGIT), conforme assumido pela própria Autoridade Tributária, na sequência do que foi instaurado o respectivo procedimento contraordenacional, razão pela qual não será o mesmo logicamente considerado, para efeito de consequência jurídico-criminal, na acusação infra”.

Assim, a acusação levou em considerou as situações relativas a duplicação e triplicação de facturas nos exercícios de 2008 e 2009, que deram origem à libertação de meios financeiros da A... que não foram feitos aos respectivos fornecedores. Segundo a acusação, a A... ficou com uma disponibilidade financeira, pela inexistência de pagamentos a fornecedores, nos exercícios de 2008 e 2009, no montante total de €3.866.947,30.

Nos termos da acusação:

Deste modo, os hipotéticos pagamentos efectuados aos fornecedores, embora contabilizados a débito na conta 22 (fornecedores respectivos), mais não foram do que quantias colocadas à disposição dos subscritores de capital/accionistas (os arguidos AA e BB), que por essa via realizaram na modalidade de entradas em dinheiro o aumento de capital, sem terem despendido os seus meios monetários e enriquecendo o seu património com a aquisição de acções.

Ainda no que tange à subscrição do aumento de capital, também a tributação dos rendimentos colocados à disposição do capital social devia ter sido efectuada pela A..., à taxa liberatória de 20% à data da subscrição, com retenção na fonte, do que resultou imposto em falta referente a IRS – Capitais – Outros Rendimentos, no valor de €773.389,46.

A acusação levou ainda em consideração a situação ocorrida em 2012:

AA e BB, por si e em representação da arguida A..., conhecedores da detecção pela administração fiscal dos factos indicados e bem assim da liquidação de IRS nos termos descritos, delinearam novo plano, agora com o objectivo de se eximirem ao pagamento da quantia devida a título de IRS, mediante a eliminação e adulteração de documentos contabilísticos que estiveram na génese de tal detecção, falseando os resultados, nomeadamente os lançamentos tendentes a diminuir os custos, sem qualquer apoio documental real, e alterando a modalidade de subscrição do referido aumento de capital.

Para a concretização dos objectivos supramencionados, os arguidos AA e BB, por si e na qualidade de representantes legais da A..., contaram com a colaboração dos arguidos DD e CC, nas circunstâncias adiante descritas.

Na prossecução do plano gizado, e no período indicado, os arguidos DD e CC, por indicação e sob a orientação dos arguidos AA e BB, que actuaram por si e em representação da A..., procederam à alteração dos registos contabilísticos da A..., quanto aos exercícios de 2007, 2008 e 2009.

Para tanto, eliminaram os registos contabilísticos informáticos que estiveram na origem das irregularidades detectadas durante a acção inspectiva e elaboraram novos registos contabilísticos que anularam os registos de suporte das correcções efectuadas pela administração fiscal na sequência da acção inspectiva, registos estes reportados às contas de  Compras e bem assim às contas de Capital referentes aos anos de 2008 e 2009, mormente a conta de capital 5117- “Acções”, e ainda à conta 591 – “Resultados Transitados”.

Em data não concretamente apurada, posterior a Março de 2012, foi ainda elaborada a Acta 8A, pelos arguidos, ou por terceiro a seu mando, como reportada a Assembleia Geral da A..., alegadamente realizada em 30 de Julho de 2009, com intervenção de todos os arguidos. Tal acta, na qual se deliberou e aprovou a transferência do montante de €4.525.000,00 para reservas livres, não foi lavrada na data indicada, mas já no decurso de 2012, e uma vez mais com referência ao balanço reportado a 30 de Junho de 2009, adulterado pelo arguido CC nos termos descritos.

Na posse de tais actas, no dia 29 de Agosto de 2012, foi inscrita pelos arguidos AA e/ou BB, com conhecimento e vontade dos demais, no registo comercial, a rectificação do aumento de capital quanto à modalidade e forma de subscrição, que passou a “incorporação de reservas”.

Pelos montantes devidos referentes a IRC e IRS, foram instaurados os processos de execução fiscal nºs ...50 (IRC de 2008), ...68 (IRC de 2009) e ...28 (IRS de 2009), sendo que, em Dezembro de 2014 não havia sido ainda efectuado qualquer pagamento.

O acórdão recorrido conheceu de todos estes e dos demais factos vertidos na acusação.

Como resulta da motivação da decisão de facto, o colectivo julgador levou em consideração as decisões das impugnações administrativas propostas pela sociedade arguida, mormente a de fls. 1311 e ss (5º volume), confirmada pela decisão de fls. 1377 e ss (5º volume) – julgada improcedente, e na qual se concluiu ser devido o valor de retenção na fonte de IRS relativa ao aumento de capital social, no montante de € 773.389,46, acrescido de juros.

Em termos de factualidade, consta dos factos provados que:

28. Com efeito, no dia 17 de Julho de 2009, em Assembleia Geral da sociedade arguida A..., na qual estiveram presentes os arguidos AA e BB, foi deliberado e aprovado, por proposta de AA, o aumento do correspondente capital social em €4.525.000,00, com a emissão de 452.500 ações, no valor de €10,00 cada, mediante a subscrição dessas ações pelos arguidos AA e BB, a ser realizada através de novas entradas em dinheiro até ao final do ano de 2009.

29. Na sequência da deliberação, foi efetuada a subscrição e realização do aumento do capital social da sociedade arguida A..., através da conta n.º 2649, em nome desses arguidos, sendo que, em 31 de Julho de 2009, foi registado um lançamento a débito no montante de €4.525.000,00, pela subscrição das ações pelos sócios, e, entre 1 de Janeiro de 2009 e 14 de Dezembro de 2009, foram registados vários lançamentos a crédito, no mesmo montante, pela realização do referido aumento do capital social.

30. No dia 9 de Setembro de 2009, foi registado o referido aumento do capital social da sociedade arguida.

31. Deste modo, os hipotéticos pagamentos efetuados aos fornecedores, embora contabilizados a débito na conta 22 (fornecedores respetivos), mais não foram do que quantias colocadas à disposição dos subscritores de capital/acionistas (os arguidos AA e BB), que por essa via realizaram na modalidade de entradas em dinheiro o aumento de capital, sem terem despendido os seus meios monetários e enriquecendo o seu património com a aquisição de ações.

32. Ainda no que tange à subscrição do aumento de capital, também a tributação dos rendimentos colocados à disposição do capital social devia ter sido efetuada pela A..., à taxa liberatória de 20% à data da subscrição, com retenção na fonte, do que resultou imposto em falta referente a IRS – Capitais – Outros Rendimentos, no valor de €773.389,46.

33. Na sequência dos factos descritos, em Maio de 2011, a administração fiscal realizou ação inspetiva à sociedade arguida A....

35. Por reporte ao montante de IRS em falta, veio a ser instaurado processo contraordenacional.

48. A subscrição do aumento de capital em reservas nos termos descritos, teria como consequência a não tributação em sede de IRS e que estava na origem do dito processo de contraordenação

53. Pelos montantes devidos referentes a IRC e IRS, foram instaurados os processos de execução fiscal nºs ...50 (IRC de 2008), ...68 (IRC de 2009) e ...28 (IRS de 2009), sendo que, em Dezembro de 2014, não havia sido ainda efetuado qualquer pagamento.

Ora, de todo o supra exposto, conclui-se que os factos que resultaram provados revelam-se suficientes para a decisão a proferir, tendo o acórdão prolatado no âmbito do Processo nº 1022/12.... do Tribunal Central Administrativo do Sul ajudado a formar convicção.

Assim, por não assistir razão aos arguidos CC e DD neste particular, indefere-se a requerida nulidade do acórdão.

            

                *

Passa-se agora a conhecer se o acórdão recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova (questão do recurso do arguido AA).

Alega o arguido AA que no caso dos autos se identifica não só uma violação do princípio da livre apreciação da prova como, até, percebendo-se na decisão recorrida a existência de um erro notório na apreciação da prova, o qual afeta matéria relevante para o preenchimento do tipo penal de fraude fiscal qualificada em 2012. …

A circunstância de se mencionar que a decisão tem como fundamento a globalidade da prova produzida é, desde logo, sintomática da dificuldade que o Tribunal a quo terá sentido (porque se presume que tenha tentado, como era seu dever) quando tentou fazer corresponder os elementos de prova aos factos que considerou provados.

Sem prejuízo, podemos localizar na motivação da decisão a referência às declarações dos vários arguidos e uma abordagem ao teor da prova testemunhal produzida.

No caso dos presentes autos, o Tribunal a quo afirma ter ponderado a prova no sentido que faz constar de fls. … do Acórdão. No entanto esta afirmação não tem, salvo o devido respeito, adesão à realidade dos autos. Desde logo identificar-se uma inspetora tributária como perita é incorreto, não só porque a noção de perito consta da lei, como a intervenção da dita inspetora foi realizada no contexto da atividade profissional desta, como funcionária da AT, e eventualmente com competências ao nível do inquérito nos presentes autos. Nem mais, nem menos.

Já para não referir que a dita testemunha, pelas funções desenvolvidas no contexto da ação inspetiva, é passível de ter um viés interpretativo da realidade e uma necessidade de defender as conclusões então alcançadas. Algo que o Tribunal a quo deveria ter considerado e não fez. …

Pelo contrário, valorizou, como insofismável se bem se entende, a afirmação desta testemunha no sentido de que a contabilidade da empresa, relativa aos anos de 2008 e 2009, estando encerrada, não podia ser alterada (existindo elementos documentais nos autos que atestam em sentido diferente).

Ora, tal conclusão, sendo jurídica, jamais poderia ser aceite sem outro tipo de fundamentação e não corresponde a depoimento sobre factos (que é isso que se visa com a prova testemunhal - e não a busca por interpretações jurídicas).

Por outro lado, ao contrário do que se afirma, não existe – salvo erro de interpretação – qualquer afirmação no mesmo sentido por parte dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em particular do TCA Sul, nomeadamente (porque é o que aqui está em causa) em sede de decisão sobre a matéria tributária de IRS de 2009 (a fls. 1311 e seguintes dos autos).

De facto, se algo resulta dessa tramitação e da decisão do TCA Sul é que: a bondade das alterações / correções introduzidas aos registos contabilísticos não é apreciada por não ter implicação na legalidade das liquidações promovidas pela AT, as quais se devem manter. Nunca se afirmando, em tais decisões, que tais alterações são impossíveis ou sequer suportadas em documentos falsos.

E, por esse motivo, qualquer decisão sobre a matéria de facto, no sentido de terem sido adulterados documentos relevantes, criando novos, sem qualquer correspondência com a realidade, com fundamento no referido depoimento e nas ditas decisões judiciais traduz-se em erro notório na apreciação da prova, que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.

Pois bem.

Como estipula o artigo 428º do Código de Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de revista alargada; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

Na chamada revista alargada, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.

Na impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Assim, enquanto os vícios previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal, são vícios da decisão, evidenciados pelo próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada – cfr. Ac. da RL de 9.5.2017, in www.dgsi.pt.

Vejamos em que consiste o alegado vício.

Nos termos do artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

A letra da lei revela, desde logo, que tais vícios têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e, para o seu conhecimento, como se disse, não é admissível o recurso a elementos externos à decisão como declarações, depoimentos ou documentos constantes do processo – cfr. neste sentido o Ac. da RG de 12.7.2006, in www.jusnet.pt.

Como referem Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos Penais, 8ª ed. 2011, págs. 80-81, o erro notório na apreciação da prova é um erro que traduz uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis. 

Erro notório, no fundo, é, pois, a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido).

Assim, não poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no artigo 127º”.

Também no Ac. da RC de 10.7.2018, in www.dgsi.pt, consta que o “erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum. Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum”.

No mesmo sentido encontra-se o Ac. da RC de 4.2.2015, in www.dgsi.pt, segundo o qual “trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, pois as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada”.

De igual modo, o STJ, no Acórdão de 2.2.2011, in www.dgsi.pt, afirmou que “o erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito”.

“Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. O seu regime legal não prevê a reapreciação da prova – contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto –, limitando-se a actuação do tribunal de recurso à detecção do defeito presente na sentença e, não podendo saná-lo, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal)” – cfr. Ac. da RC de 12.6.2019, in www.dgsi.pt.

Revertendo ao caso concreto, pela análise da peça recursória e natureza da alegação do recorrente, facilmente se conclui que nada foi alegado que pudesse fundamentar o mencionado vício.

As questões colocadas não resultam do texto do acórdão recorrido, mas sim do confronto deste com a prova produzida.

Em suma, discorda que o depoimento da inspectora tributária e as referidas decisões judiciais possam conduzir à convicção formada pelo colectivo julgador.

A pretensão do recorrente é impugnar amplamente determinada matéria de facto, não argumentando de forma a fundamentar o vício de erro notório na apreciação da prova. O recorrente mais não fez do que manifestar a sua discordância pela forma como foi julgada determinada factualidade com a prova produzida.

O que resulta claro, por exemplo, da alegação de que “qualquer decisão sobre a matéria de facto, no sentido de terem sido adulterados documentos relevantes, criando novos, sem qualquer correspondência com a realidade, com fundamento no referido depoimento e nas ditas decisões judiciais traduz-se em erro notório na apreciação da prova, que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP”.

Acresce que, da análise do acórdão recorrido, na parte referenciada pelo recorrente, não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova, que sempre seria de conhecimento oficioso, independentemente da correcta ou incorreta alegação do arguido. Isto é, da leitura da decisão, não se vislumbra a existência de qualquer vício de raciocínio na apreciação das provas, nem mesmo qualquer erro evidente. Não se vê que exista qualquer falha grosseira e ostensiva na análise da prova, que o julgador tenha retirado conclusões ilógicas, arbitrárias, contraditórias ou inaceitáveis ou violado as regras da experiência.

Em suma, pelo que fica dito, facilmente se conclui pela inexistência do alegado vício de erro notório na apreciação da prova.

             *

A próxima questão é a de saber se o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, em concreto, por falta de indicação e exame crítico das provas (questão do recurso do arguido CC).

Alega o arguido CC que o acórdão recorrido proferido pelo tribunal de 1ª instância, é omisso no que concerne à indicação e ao exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal de 1ª instância.

Vejamos se lhe assiste razão.

Nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, “é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F”.

Por sua vez, estipula o artigo 374º, nº 2, do mesmo diploma legal, que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Como se refere no Ac. da RC de 27.9.2017, in www.dgsi.pt, “através da fundamentação da matéria de facto da sentença deverá ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal. O exame crítico das provas tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo”.

“Da leitura da sentença não devem restar quaisquer dúvidas aos sujeitos processuais e à comunidade sobre o que se decidiu e por que desse modo se decidiu…. Como é evidente, do que estamos a falar é da fundamentação … que é uma exigência constitucional. De facto, dispõe o artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa que: «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei». … Este cumprimento do dever de motivação visa, em primeiro lugar, o juiz assegurar-se da legalidade e da justiça da apreciação da prova que faz — um salutar auto controlo. Em segundo lugar, só com a motivação os destinatários poderão saber se o Tribunal apreciou as provas que podia e devia apreciar e se essa apreciação foi efectuada de modo objectivo, de acordo com as regras da ciência, da lógica e da experiência. Realce-se que o conhecimento pelo destinatário das razões reais da decisão é fundamental para o exercício efectivo do direito ao recurso, isto por um lado; pelo outro, tal conhecimento possibilita uma melhor ponderação sobre a intenção de impugnar aquela decisão. À incompreensão e inconformismo imediatos da condenação, uma vez analisadas as razões, poder-se-á seguir a aceitação da decisão. Em terceiro lugar, em sede de recurso, o tribunal superior para apreciar bem as razões da discordância da decisão sobre a matéria de facto necessita de conhecer bem as razões desta decisão. Em quarto lugar, a comunidade tem o direito de saber as razões que sustentam uma decisão judicial, concretamente saber do modo como foi apreciada a prova — questão essencial para a realização da justiça. Por último, mas não o menos importante, e como já afirmámos, o juiz deve proceder sempre no respeito pelo outro, e isto materializa-se também quando com a verdade toda fala das provas, das que lhe mereceram crédito e porquê, das que lhe não mereceram e porquê. …

Em nosso entendimento, na motivação não têm que ser reproduzidos os depoimentos das testemunhas. Se, por um lado, a reprodução dos depoimentos, por si só, não cumpre a norma do artigo 374.º, n.º 2, do CPP; pelo outro, não é necessária àquele cumprimento.

De facto, quando o juiz apenas diz o que testemunha disse, ainda pouco diz sobre a credibilidade do depoimento. Ao reproduzir acriticamente o depoimento, o juiz não está a fazer nenhum juízo sobre o depoimento — está apenas a dizer o que a testemunha disse.

Conforme for o caso, o tribunal está obrigado a explicitar as razões pelas quais o depoimento lhe mereceu credibilidade ou não, nos termos que temos vindo a expor.

É este juízo crítico objectivado que a lei exige ao juiz.

Na verdade, com a simples reprodução dos depoimentos fica-se sem saber qual a convicção do tribunal, mas ainda que se pudesse deduzir qual fosse, o que seguramente não se fica a saber são as razões da referida convicção.

Concluindo: com a simples reprodução dos depoimentos o tribunal não faz o exame crítico das provas que está previsto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP.

Pese embora o acabado de expor, entendemos que não é correcto afirmar que o juiz não tem que dizer nada do que a testemunha disse. As coisas não são assim ou pelo menos não são sempre assim. Por vezes, a explicitação das razões pelas quais se dá ou não credibilidade a um depoimento impõe que o juiz diga algo do que a testemunha disse. Não pode esquecer-se que quando juiz motiva — é de um discurso argumentativo que se trata — pretende convencer com razões objectivas as razões do seu convencimento.

Ora, neste discurso muitas das vezes a citação de uma expressão utilizada pela testemunha constitui matéria fundamental para o convencimento do auditório.

Em alguns casos, pelas regras da experiência, só uma pessoa que esteve presente podia ter proferido aquela expressão” - cfr. Sérgio Poças, “Da sentença Penal — Fundamentação de facto”, in Julgar nº 3, consultável em Julgar.pt.

Assim, os motivos de facto fundamentadores da decisão não são nem os factos provados, thema decidendum, nem os meios de prova, thema probandum, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituam o substractum racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – cfr. Simas Santos, Leal Henriques e outro, in Noções de Processo Penal, 3ª ed. pág. 511.

“A indicação na sentença das provas utilizadas para a formação da convicção do tribunal não se basta com uma mera enunciação, pois a Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, veio acrescentar a obrigatoriedade de, à indicação das provas, se seguir o respectivo exame crítico, traduzido na enunciação das razões de ciência extraídas dessas provas, ou seja, “o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” – cfr. obra supra citada, pág. 513.

O julgador deve dar a conhecer, com suficiência bastante, de forma clara e transparente, o percurso lógico e racional que efectuou, em sede de apreciação e valoração da prova, e que conduziu à demonstração da factualidade objecto da decisão recorrida.

Revertendo ao caso sub judice, vejamos algumas passagens da motivação da decisão de facto do acórdão recorrido:

“A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e a livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma. …

A motivação do Tribunal, no que respeita à matéria fáctica considerada provada e não provada, assentou na conjugação das declarações prestadas pelos arguidos em audiência com a prova testemunhal ali produzida e os elementos constantes dos autos, uns e outros analisados à luz das regras da normalidade e experiência comum.

Referiu o arguido AA … que depois da primeira inspeção das Finanças, o diretor financeiro da empresa mandou efetuar retificações, presumindo que pediu ajuda ao pessoal do escritório, de entre o qual se incluía o arguido CC

A versão narrada pelo arguido AA relativa ao desconhecimento dos procedimentos encetados pelo diretor financeiro da empresa para aumento do capital social não resultou credível, atentas as funções de administrador que sempre desempenhou na empresa, e resulta mesmo contrariada pelas declarações prestadas pelos arguidos CC e DD e pelo depoimento da testemunha SS, técnico oficial de contas da empresa durante vários anos – resultando evidente ao Tribunal, face às funções desempenhadas desde sempre na empresa pelo arguido AA (de administrador de facto e de direito da empresa, desde a sua constituição) e aos procedimentos adotados, que este não só sabia, como ordenou, os procedimentos contabilísticos, com reflexos fiscais, realizados na sociedade arguida. …

A versão narrada pelo arguido BB, de que desconhecia e não fazia parte das decisões financeiras tomadas na empresa e de que estas eram tomadas em exclusivo pelo diretor financeiro da mesma, não mereceu credibilidade, porque contrariada pelas declarações prestadas pelo arguido CC, pelo arguido DD e pela testemunha SS.

Antes decorre, da conjugação das funções de administrador que tinha na empresa com as declarações prestadas pelos referidos coarguidos e testemunha, que o arguido BB, à semelhança do arguido AA, tomava decisões financeiras na empresa, executadas pelo diretor financeiro da mesma, pelo técnico oficial de contas e pelo revisor oficial de contas, nos moldes que se deixam descritos. …

Disse o arguido CC que reportou os assuntos da empresa, decorrentes da ação inspetiva realizada, ao diretor financeiro da mesma (o Dr. OO) e à Administração da empresa – aos arguidos BB e AA

Ora, resulta evidente ao Tribunal que, não só o arguido CC reportou tais assuntos ao diretor financeiro da empresa e aos arguidos AA e BB, administradores da empresa, como todas as questões da empresa (em especial as financeiras, atentas as dificuldades que, desde 2008, a empresa vivenciava) eram reportadas aos arguidos AA e BB e decididas pelos mesmos

Assumiu o arguido CC ter entregue, em 16.10.2012, as declarações anuais de substituição (IES) adulteradas, a mando dos arguidos AA e BB – e reportadas aos anos de 2007, 2008, 2009 e 2010.

Disse ainda que, em Março de 2012, foi informado, pelo arguido DD, da necessidade de correção de faturas em duplicado e em triplicado, e que forneceu a sua senha ao arguido DD, que a utilizou em seu nome (o que foi negado por este).

Negou ter falado com o arguido BB a propósito das retificações contabilísticas, e negou tê-las feito, limitando-se a proceder ao envio das declarações de substituição. Disse desconhecer quem efetuou as correções contabilísticas enunciadas na acusação.

Disse que o Balanço constante da Ata 8A foi efetuado pelo arguido DD (assumindo este ter tido participação na elaboração do referido Balanço) e por si manualmente assinado.

Negou ter efetuado o documento interno mencionado na acusação.

Disse que, tanto quanto sabe, não houve na empresa nenhuma Assembleia Geral de aumento do capital social.

Da conjugação das declarações prestadas pelo arguido CC com as declarações prestadas pelo arguido DD e dos atos por um e outro realizados (ainda que alguns dos quais não assumidos), decorre evidente ao Tribunal a prática, por ambos os arguidos, dos factos, do modo supra descrito – não merecendo credibilidade (porque contrariada pelos documentos constantes dos autos e pelo próprio arguido DD) a versão narrada pelo arguido CC de que não teve participação nas correções contabilísticas efetuadas, limitando-se a assinar e enviar os documentos contabilísticos, sem conhecimento do seu conteúdo. …

O depoimento da inspetora tributária PP, conjugado com o relatório de inspeção tributária pela mesma realizado (Apenso V) e as certidões das decisões proferidas pelas várias instâncias dos Tribunais Administrativos e Fiscais acerca das impugnações apresentadas pela sociedade arguida, e a análise dos referidos elementos à luz das regras da normalidade e experiência comum, permitem concluir, sem margem para dúvidas, pela prática, pelos arguidos, dos factos do modo que se deixa descrito”.

Estas são apenas algumas passagens reveladoras da forma como o tribunal formou a sua convicção.

O julgador, na motivação da decisão de facto, deixou bem claro porque razão se convenceu dos factos que deu como provados, expondo de forma clara o seu raciocínio numa análise do conjunto da prova.

Para além de fazer referência à prova produzida, destacando partes das declarações dos arguidos e dos depoimentos prestados por algumas testemunhas em sede de julgamento, que considerou importantes para a formação da sua convicção, e indicando igualmente a prova documental relevante, o julgador fez o exame crítico da mesma, não se vislumbrando qualquer falta ou deficiência da fundamentação.

Através da motivação da decisão de facto o tribunal dá a conhecer perfeitamente a sua convicção e de que forma a adquiriu. O julgador procedeu a um correcto exame crítico, explanando o porquê da sua opção, através de um percurso lógico e racional que o conduziu à factualidade provada, nada impondo que motivasse facto por facto indicando a prova produzida para cada um dos factos.

Assim, não assiste razão ao recorrente quando afirma que o acórdão é nulo por falta de fundamentação, em concreto, por falta de exame crítico das provas que serviram para formar convicção, mormente face à prova que apresentou.

Questão diversa é a do arguido não concordar com a posição tomada pelo tribunal a quo. Porém, esta questão nada tem a ver com a falta de fundamentação do acórdão recorrido.

Em suma, o que fica dito revela-se bastante para se concluir que, neste particular, não assiste razão ao arguido.

             *

Cumpre agora conhecer se o acórdão recorrido enferma do vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (questão do recurso do arguido CC).

Alega o arguido que “no que concerne à factualidade imputada ao coarguido CC, os factos provados no d. acórdão recorrido, deambulam entre este ter agido em concluiu e colaboração com os coarguidos AA e BB, administradores da A... Sa., ou, ter agido por indicação e sob orientação daqueles.

O tribunal de 1ª instância, no d. acórdão recorrido, esbarra em contradição quando refere e dá como provado que o recorrente atuou em colaboração e concluiu com os coarguidos AA e BB, e ao mesmo tempo que o recorrente agiu a mando e por indicação e sob orientação daqueles.

Quando, é distinto e contraditório, o fato do recorrente ter atuado em concluiu com aqueles coarguidos, ou ter agido a MANDO daqueles, cumprindo as ordens emanadas por aqueles, por força da relação laboral existente.

E é precisamente quanto a esta questão, que reside a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”.

Do que se consegue perceber, quando o arguido refere concluiu deve querer dizer conluio.  

É nessa perpectiva que se vai apreciar a questão.

Concretiza o recorrente afirmando que, por um lado, nos factos provados 37, 58 e 60, o acórdão recorrido aponta para a existência de concluiu entre o recorrente e os coarguidos AA e BB, administradores da sociedade A... Sa..

Mas por outro lado, ao mesmo tempo e em sentido contrário, nos factos provados 38, 40 e 51, o d. acórdão parece desconstruir essa tese de concluiu, referindo que:

38. “(…) os arguidos DD e CC, por indicação e sob a orientação dos arguidos AA e BB (…)”

40. “(…) elaborado pelos arguidos DD e CC, sempre sob a orientação dos arguidos AA e BB (…)

51. “(…) São as seguintes as alterações efetuadas pelo arguido CC, a mando e sob a orientação dos arguidos AA e BB (…)”.

Ou seja, existe contradição entre os fatos provados 37, 58 e 60, o d. acórdão recorrido, que apontam para a existência de concluiu, e entre os fatos provados 38, 40 e 51 do mesmo acórdão recorrido, que deitam por terra essa ideia de concluiu entre aqueles.

Vejamos em que consiste o alegado vício.

O vício a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não podem ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.

Como referem Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos Penais”, 8ª ed., 2011, pág. 77, “a contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, traduz-se numa incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”.

Como se refere no Ac. da RC de 13.5.2020, in www.dgsi.pt, “a alínea b), do n.º 2, do artigo 410.º do CPP abrange dois vícios distintos, que são:

- a contradição insanável da fundamentação; e a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado.

Quanto à segunda situação, abrange as circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas”.

Como também já se disse, “os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. … Limitando-se a actuação do tribunal de recurso à detecção do defeito presente na sentença, e, não podendo saná-lo, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal)” – cfr. Ac. da RC de 12.6.2019, in www.dgsi.pt.

Vejamos, então, a seguinte factualidade:

36. Em data não concretamente apurada, mas entre Março de 2012 e 30 de Julho de 2012, os arguidos AA e BB, por si e em representação da arguida A..., conhecedores da deteção pela administração fiscal dos factos indicados e bem assim da liquidação de IRS nos termos descritos, delinearam novo plano, agora com o objetivo de se eximirem ao pagamento da quantia devida a título de IRS, mediante a eliminação e adulteração de documentos contabilísticos que estiveram na génese de tal deteção, falseando os resultados, nomeadamente os lançamentos tendentes a diminuir os custos, sem qualquer apoio documental real, e alterando a modalidade de subscrição do referido aumento de capital.

37. Para a concretização dos objetivos supramencionados, os arguidos AA e BB, por si e na qualidade de representantes legais da sociedade arguida A..., contaram com a colaboração dos arguidos DD e CC, nas circunstâncias adiante descritas.

58. As irregularidades acima referidas, realizadas pelos arguidos CC e DD, na sequência de plano gizado com os arguidos AA e BB, por si e na qualidade de legais representantes da sociedade arguida A..., e sob a orientação destes, que influenciaram os resultados líquidos da sociedade A..., foram feitas com o objetivo de falsear os resultados, nomeadamente os lançamentos tendentes a diminuir os custos, sem qualquer apoio documental real, com base apenas em mera nota interna, e a sobreavaliação das existências finais, com vista a refletir, nas contas dos exercícios de 2007 a 2009, uma situação que a sociedade arguida A... não tinha e possibilitar a alteração da subscrição de aumento do capital, de modo a isentar a sociedade A... do pagamento do IRS devido, o que não seria viável sem aqueles arranjos artificialmente conseguidos por via contabilística.

60. Os arguidos CC e DD serviram-se das suas qualificações profissionais, enquanto técnico oficial de contas e revisor oficial de contas, respetivamente, e agiram no exercício das suas funções, sabendo que estavam sujeitos a obrigações acessórias especiais para efeitos de fiscalização tributária, que violavam, e que assim atingiam de forma grave os deveres e obrigações decorrentes das suas funções de natureza pública e estatuto profissional, sempre com intenção de obterem, para si e para os demais, vantagens patrimoniais indevidas, pela diminuição das receitas fiscais.

Isto é, foram os arguidos AA e BB que delinearam um novo plano, agora com o objetivo de se eximirem ao pagamento da quantia devida a título de IRS.

Para tanto seria necessário proceder à eliminação e adulteração de documentos contabilísticos que estiveram na génese de tal deteção, falseando os resultados.

Então os arguidos AA e BB, para a concretização de tal objectivo, contaram com a colaboração e qualificações profissionais dos arguidos DD e CC, nas circunstâncias adiante descritas.

Daí o teor dos factos provados dos pontos 58 e 60. As irregularidades foram realizadas pelos arguidos CC e DD, na sequência de plano gizado com os arguidos AA e BB.

Ora, esta matéria não está, de forma alguma, em contradição com os factos dos pontos 38, 40 e 51 onde se diz que:

38. Na prossecução do plano gizado, e no período indicado, os arguidos DD e CC, por indicação e sob a orientação dos arguidos AA e BB, que atuaram por si e em representação da sociedade arguida A..., procederam à alteração dos registos contabilísticos da A..., quanto aos exercícios de 2007, 2008 e 2009.

40. Quanto à indicada conta 591, as alterações efetuadas estenderam-se até ao exercício de 2007, tendo por base um documento interno, elaborado pelos arguidos DD e CC, sempre sob a orientação dos arguidos AA e BB, com a designação “Listagem de movimento nº 12030”, respeitante ao ano 2007, com a descrição de “Regularização de existências após contagem no valor de € 4.501.360,77”, sem qualquer suporte documental, e que deu origem ao seguinte registo contabilístico por aqueles efetuado: Débito da conta 3211 – Mercadorias por contrapartida do registo a crédito na conta 591 – Resultados Transitados, no montante acima referido.

51. São as seguintes as alterações efetuadas pelo arguido CC, a mando e sob a orientação dos arguidos AA e BB, por si e enquanto legais representantes da sociedade arguida, nas ditas IES, por reporte às substituídas e correspondentes à real situação contabilística da A....

Isto é, foram os arguidos AA e BB que delinearam o plano, contaram com a colaboração e conhecimentos profissionais dos arguidos DD e CC, tendo estes agido sob indicação e orientação dos primeiros. De qualquer forma, os técnicos eram os arguidos DD e CC. Daí terem sido estes a elaborar o documento interno mencionado no ponto 40, sob a orientação dos primeiros.

Em suma, resulta da factualidade que os quatro arguidos estiveram envolvidos na prática dos referidos factos. A iniciativa foi dos arguidos AA e BB mas os conhecimentos técnicos advinham dos arguidos DD e CC. Foram estes que actuaram mas sempre sob a orientação, a mando e concertadamente com os primeiros.

Ora, da análise da referida factualidade, facilmente se conclui que inexistem as alegadas contradições, pelo que improcede esta questão suscitada pelo recorrente.

             *

Próxima questão: se, ao dar como provado o facto do ponto 37, o acórdão recorrido padece dos vícios de contradição insanável da fundamentação (artigo 410º, nº 2, alínea b), primeiro segmento, do CPP), de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (artigo 410º, nº 2, alínea b), segundo segmento, do CPP) e de erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP) (questão do recurso do arguido DD).

Alega o arguido que a decisão de dar como provado o facto nº 37 do acórdão recorrido padece dos vícios de contradição insanável da fundamentação (art. 410.º, n.º 2, al. b), primeiro segmento, do CPP), de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. b), segundo segmento, do CPP) e de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP).

O facto 37 apresenta o seguinte teor:

37. Para a concretização dos objetivos supramencionados, os arguidos AA e BB, por si e na qualidade de representantes legais da sociedade arguida A..., contaram com a colaboração dos arguidos DD e CC, nas circunstâncias adiante descritas.

O recorrente chega à referida conclusão, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, depois de apreciar a prova que terá levado à convicção do tribunal relativamente a esse facto.

Afirma ainda o arguido que, “concomitantemente, é de todo inverosímil, à luz das regras da experiência comum, que um Revisor Oficial de Contas e um Técnico Oficial de Contas, licenciados em áreas científicas relativas à fiscalidade das empresas e profissionais dessas áreas, como era o caso do ora recorrente e do coarguido CC, tenham procedido às aludidas «correções contabilísticas» em 2012, por reporte a 2007, pretendendo que não fosse pago «o IRC devido por tal aumento de capital»!

Igualmente grave é a afirmação de que:

«Ao fazê-lo [ao fazerem as referidas «correções contabilísticas»] em 2012, por reporte ao ano de 2007, pretenderam os arguidos (…) não ter de proceder ao pagamento da taxa liberatória de IRS entretanto liquidada, no montante de € 773.389,46 (…)».

Como já se deixou dito, as mencionadas «correções» eram legalmente insuscetíveis de obstar ao pagamento do referido IRS, já liquidado pela AT com referência a 2009”.

Ora, em relação ao ponto 37 e relativamente ao vício de contradição insanável da fundamentação, o arguido não identifica propriamente qualquer contradição. O que perpassa da peça recursória nesse particular é a impugnação ampla da referida matéria, por entender ter existido erro de julgamento.

Como também não se vislumbra a alegação de qualquer erro notório na apreciação da prova que resulte do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos externos à decisão como declarações, depoimentos ou documentos constantes do processo.

A pretensão do recorrente é impugnar amplamente a referida matéria de facto, não argumentando de forma a fundamentar o vício de erro notório na apreciação da prova. O recorrente mais não fez do que manifestar a sua discordância pela forma como foi julgada determinada factualidade com a prova produzida.

De qualquer forma, como estes vícios são de conhecimento oficioso, sempre se diz que, da leitura do acórdão recorrido, não se vislumbra a sua existência.

Isto é, não se vislumbram conclusões antagónicas na matéria de facto, ou qualquer contradição na motivação da decisão de facto ou entre esta e o elenco dos factos provados. Não se verifica, igualmente, qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão.

Assim como não se vislumbra a existência de qualquer vício de raciocínio na apreciação das provas, nem mesmo qualquer erro evidente. Não se vê que exista qualquer falha grosseira e ostensiva na análise da prova, que o julgador tenha retirado conclusões ilógicas, arbitrárias, contraditórias ou inaceitáveis ou violado as regras da experiência.

Alega ainda o recorrente que o acórdão recorrido evidencia vários outros equívocos e contradições substanciais, que afetam irremediavelmente a decisão de dar como provado o facto em apreço.

De entre os mais evidentes, comecemos por notar a já referida afirmação de que:

«Num segundo momento, (…) os arguidos (…), procederam a correções contabilísticas na empresa, reportadas aos anos de 2007 a 2010, criando documentos e fazendo crer que existiam na empresa reservas (existências ou bens) no valor de € 4.525.000,00 (…)».

Desde logo, compulsados todos os factos dados como provados no acórdão recorrido, neles, concretamente nos identificados sob os n.ºs 38, 39, 40, 46, 51 e 58, apenas são referenciadas «correções contabilísticas» relativamente aos anos de 2007 a 2009.

O ano de 2010 somente é referido no facto n.º 50, segundo o qual:

«Em 16 de Outubro de 2012, foram entregues pelo arguido LL as declarações anuais de substituição – IES (Informação Empresarial Simplificada), adulteradas pelo mesmo nos termos descritos, referentes aos exercícios de 2007, 2008, 2009 e 2010».

Porém, em momento algum dos factos considerados provados se encontra descrita/identificada qualquer “adulteração” de documentos, nomeadamente “IES”, referentes ao exercício de 2010 da coarguida A..., S. A.

Por conseguinte, a afirmação de que os arguidos «procederam a correções contabilísticas na empresa, reportadas aos anos de 2007 a 2010, criando documentos e fazendo crer que existiam na empresa reservas (existências ou bens) no valor de € 4.525.000,00 (…)», contraria os factos dados como provados no acórdão recorrido, designadamente os aí identificados sob os n.ºs 38, 39, 40, 46, 51 e 58, os quais referenciam tão-só «correções contabilísticas» relativamente aos anos de 2007 a 2009.

Ora, uma vez que resultou provado no ponto 50 que “em 16 de Outubro de 2012, foram entregues pelo arguido LL as declarações anuais de substituição – IES (Informação Empresarial Simplificada), adulteradas pelo mesmo nos termos descritos, referentes aos exercícios de 2007,2008, 2009 e 2010”, não se vê que exista qualquer contradição insanável da fundamentação quando o tribunal recorrido afirma que “num segundo momento, (…) os arguidos (…), procederam a correções contabilísticas na empresa, reportadas aos anos de 2007 a 2010, criando documentos e fazendo crer que existiam na empresa reservas (existências ou bens) no valor de € 4.525.000,00 (…)”.

Percebe-se perfeitamente que em relação ao ano de 2010 o que está em causa são as declarações anuais de substituição adulteradas, entregues pelo arguido CC.

Neste ponto, não assiste razão ao recorrente.

Afirma ainda o arguido que, “pior é a afirmação de que “num segundo momento, (…) os arguidos (…) procederam (…) a novo aumento de capital social, desta vez não em dinheiro, mas em reservas”.

Tal afirmação contraria frontalmente os factos considerados provados no acórdão recorrido sob os n.ºs 42, 47 e 49, segundo os quais inexistiu um «novo aumento de capital», mas antes uma «retificação da deliberação do aumento de capital na sequência da Assembleia Geral realizada em 16 de Julho de 2009, alterando a forma de subscrição do capital, que passaria ser em reservas».

Ora, também neste ponto não se vê que exista qualquer contradição insanável. Quando o tribunal a quo afirma que procederam a novo aumento de capital refere-se, naturalmente, a nova modalidade de aumento de capital.

É o que resulta da argumentação do julgador, mormente quando se refere às correções contabilísticas e criação de documentos para fazer crer que existiam reservas na empresa. Os arguidos pretendiam criar ficticiamente uma nova situação e com base nessa surgiria um novo aumento de capital. Novo, no que respeita à sua modalidade. Desta vez não seria em dinheiro mas em reservas, como afirma expressamente o tribunal recorrido.

 Da leitura da motivação não fica qualquer dúvida, a não ser que se leia uma ou duas palavrinhas desgarradas do seu contexto.

Não assiste razão ao arguido.

Diz ainda o arguido que “não menos grave é a afirmação de que: «Ao fazê-lo [ao fazerem as referidas «correções contabilísticas»] em 2012, por reporte ao ano de 2007, pretenderam os arguidos não pagar o IRC devido por tal aumento de capital, face ao prazo de caducidade do mesmo (…)»

Com efeito, um aumento de capital social, seja qual for a modalidade que assuma, não está sujeito a IRC!

Nenhuma norma do Código do IRC, ou de outro qualquer diploma, tributa esse facto em sede de IRC!

É, portanto, errado afirmar-se o contrário”.

Vejamos.

A expressão do tribunal a quo ao fazê-lo em 2012, por reporte ao ano de 2007, pretenderam os arguidos não pagar o IRC devido por tal aumento de capital, face ao prazo de caducidade do mesmo, vem na sequência daquela outra:

procederam a correções contabilísticas na empresa, reportadas aos anos de 2007 a 2010, criando documentos e fazendo crer que existiam na empresa reservas (existências ou bens) no valor de € 4.525.000,00, procedendo a novo aumento de capital social, desta vez não em dinheiro, mas em reservas.

Isto é, procederam a correções contabilísticas e criaram documentos para fazer crer que existiam reservas na empresa, com as quais iriam fazer novo aumento de capital, ou melhor, iriam alterar a modalidade do aumento de capital.

Porém, fizeram-no por reporte ao ano de 2007, tendo em vista não pagar o correspondente IRC, por caducidade do mesmo. IRC de quê? IRC das existências que constituíam as referidas reservas que iriam permitir o aumento de capital através de reservas.

É isto que o tribunal a quo quer dizer quando afirma que:

Ao fazê-lo em 2012, por reporte ao ano de 2007, pretenderam os arguidos não pagar o IRC devido por tal aumento de capital, face ao prazo de caducidade do mesmo.

O que seria tributado em IRC eram as reservas, as existências que constituíam as reservas, que conduziriam ao aumento de capital.

A expressão do tribunal, mais uma vez, tem que ser interpretada no seu contexto, não se vislumbrando, mais uma vez, qualquer contradição insanável da fundamentação.

Em suma, pelo que fica dito, facilmente se conclui pela inexistência dos alegados vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Improcede, pois, esta questão suscitada pelo recorrente.

               *

              

Em concreto, não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova. Inexiste qualquer vício de raciocínio na apreciação das provas ou qualquer erro evidente. Não se vê que exista qualquer falha grosseira e ostensiva na análise da prova, que o julgador tenha retirado conclusões ilógicas, arbitrárias, contraditórias ou inaceitáveis ou violado as regras da experiência.

Como também não se vislumbra qualquer carência de factos que suportem a decisão de direito, qualquer impossibilidade de decidir como se decidiu por falta de factos e que o tribunal não tenha indagado toda a matéria relevante para a decisão. Pelo contrário, da análise da factualidade provada, conclui-se que os factos que resultaram provados revelam-se suficientes para a decisão proferida pelo julgador.

Não se detectam igualmente conclusões antagónicas e insanáveis na matéria de facto, ou qualquer contradição insanável na motivação da decisão de facto ou entre esta e o elenco dos factos provados e não provados. Como não se verifica qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão.

             *

Passa-se agora a conhecer se os factos provados dos pontos 36 a 53 foram incorrectamente julgados (questão do recurso do arguido AA).

Como ressalta do que fica dito, o fundamento de tal pretensão prende-se com a prova produzida que, no entender do recorrente, impõe decisão diversa.

O que o arguido pretende é discutir a matéria de facto vertida nos pontos 36 a 53 por entender que foi incorretamente julgada pelo tribunal a quo, que foi cometido um erro de julgamento por errónea apreciação da prova.

Estamos, assim, no domínio dos artigos 412º, nº 3, e 431º, ambos do Código de Processo Penal.

Estipula o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal que, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

No caso sub judice a questão não se prende com a alínea c) mas sim com as alíneas a) e b).

A especificação dos concretos pontos de facto traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida.

Nos termos do nº 4 da mesma norma legal “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação”.

Não basta, pois, a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos.

Respeitados os pressupostos referidos, o Tribunal da Relação deve então averiguar se, relativamente aos factos indicados pelo recorrente, o Tribunal de 1ª instância julgou bem.

Revertendo ao caso concreto, vejamos se foram respeitados pelo recorrente os requisitos supra mencionados do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal.

O arguido indicou os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgada. Porém, não indicou qualquer prova concreta que impusesse decisão diversa da recorrida, com respeito pelo disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.

Para fundamentar a sua pretensão, o arguido sempre teria que indicar prova concreta que impusesse uma decisão diversa e explicar porque razão tal prova imporia uma decisão diversa da tomada pelo julgador, tanto mais que este motivou suficientemente a sua convicção.

O pretendido pelo recorrente é que o tribunal ad quem faça um novo julgamento relativamente à matéria impugnada, com a análise da prova produzida, e decida em conformidade, ou melhor, deferindo a sua pretensão.

A ser assim, o pretendido pelo arguido, bem como a forma como o mesmo é explanado na peça recursória, não preenche de forma alguma os pressupostos do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal.

A pretensão do arguido é que esta Relação se substitua ao tribunal de 1ª Instância, em completo arrepio do princípio da livre apreciação da prova.

Na apreciação da matéria de facto pelas Relações não se repetem as audiências, visando-se apenas a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento.

Como se afirma no Ac. do STJ de 14.3.2017, in www.dgsi.pt, “o julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar”.

Os ónus de especificação tal como foram concebidos pelo legislador de 2007 têm por objectivo impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera erradamente julgado.

Acresce que os elementos em falta inexistem quer nas conclusões quer na motivação propriamente dita. 

Poder-se-ia dizer que esta Relação deveria mandar corrigir a peça recursória, de forma a respeitar os referidos ditames legais.

Porém, neste ponto, é de atentar ao disposto no artigo 417º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.

Dispõe o nº 3 que “se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada. Se a motivação do recurso não contiver as conclusões e não tiver sido formulado o convite a que se refere o nº 2 do artigo 414º, o relator convida o recorrente a apresentá-las em 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado”.

Por sua vez, o nº 4 estipula que “o aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação”.

O texto da motivação do recurso, reservado aos respectivos fundamentos, é imodificável e, como tal, insusceptível de ser aperfeiçoado.

O convite ao aperfeiçoamento previsto no artigo 417º, nº 3, do Código de Processo Penal, reporta-se apenas à parte da motivação respeitante à formulação de conclusões – cfr. Ac. a RC de 5.12.2012, in www.dgsi.pt.

Se assim não fosse, permitia-se uma nova motivação de recurso fora do prazo de interposição deste, sendo que a faculdade de convidar ao aperfeiçoamento do recurso, prevista no artigo 417º, nº 3, do Código de Processo Penal, não tem por finalidade permitir ao recorrente a extensão do prazo de recurso através de “aperfeiçoamento” voluntário extemporâneo – cfr. Ac. da RE de 30.6.2015, in www.dgsi.pt.

Isto é, se assim não fosse, estava descoberta a via para o alargamento, ou alargamentos, do prazo de recurso.

Como defende Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed. actualizada, 1155, posição com a qual se concorda, “a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do nº 3 do artigo 412º, não é motivo para rejeição liminar do recurso, mas apenas motivo para convite a “apresentar” ou “completar” as conclusões, nos termos do mesmo artigo 417º, nº 3, conjugado com o artigo 412º, nº 3 (Ac.do TC nº 529/2003). … Ao invés, se o recorrente também não fez constar da própria motivação os elementos necessários ao cumprimento do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, há motivo legal de rejeição ou de improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir vício dessa falta. … Isto é, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a aperfeiçoar a própria motivação do recurso quanto à matéria de facto”.

Neste sentido veja-se também o Acórdão da RC de 13.12.2017, in www.dgsi.pt, segundo o qual “é verdade que o artigo 417º, nº 3, do CPP estipula que se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada. No entanto, o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (artigo 417º, nº 4, do CPP). Ou seja, só é possível o convite para a correcção quando essa correcção se processa dentro dos termos da própria motivação e não constitua uma substituição, mesmo que parcial da motivação”.

Continua o mesmo aresto dizendo que “Como vem referido no Ac. desta Relação de 2 de Abril de 2008 no processo 604/05.5PBVIS.C1, quando o recorrente expõe consistentemente as razões concretas da sua discordância, mas depois, por lapso, não as assinala devidamente nas conclusões, existem razões que se fundamentam na proibição de excesso, no princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado no artigo 18º, nº 2, da CRP, que justificam o convite e a consequente possibilidade de correcção. Porém, quando o recorrente no corpo da motivação do recurso não enunciou as especificações, o convite à correcção não se justifica porque para se obter a harmonização entre as conclusões, o corpo da motivação e a obrigação legal de especificação seria necessária uma reformulação substancial das motivações e das conclusões, o que significaria a concessão da possibilidade de um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade de prazo de apresentação do recurso”.

Pelo que fica dito e em jeito de conclusão, uma vez que os elementos em falta não constam das conclusões nem da motivação propriamente dita, não tem lugar o convite ao aperfeiçoamento.

A ser assim, ficamos com um recurso em que se impugna matéria de facto, sem as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

“O incumprimento das formalidades impostas pelo artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.

Este incumprimento das especificações prejudica o conhecimento do recurso em matéria de facto, deteriora a exequibilidade da sindicância da decisão de facto a um nível mais alargado, como se disse, pois o ónus de impugnação “concretos factos, concretas provas” visa viabilizar o próprio recurso de facto” – cfr. Ac. da RE, de 9.1.2018, in www.dgsi.pt.

No mesmo sentido também esta Relação de Coimbra, no Ac. de 8.2.2017, in www.dgsi.pt, afirmou que “na impugnação da matéria de facto, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412.º, n.º 3, al. a) e b), do CPP, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Não basta impugnar a matéria de facto com base em erro de julgamento de uma forma genérica e apontar o sentido que deve ser dado à prova”.

Ora, o que fica dito revela-se suficiente para se concluir que está este Tribunal da Relação impossibilitado de conhecer da matéria de facto, nos termos pretendidos pelo recorrente, por este não ter dado cumprimento aos ónus que a lei lhe impõe para se que se possa reapreciar a matéria de facto por via dos erros de julgamento e nos termos do artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, nesta parte não se conhece do recurso do arguido AA.

             *

A próxima questão é a de saber se os factos provados dos pontos 9, 15, 16, 17 a 20, 22, 31, 32, 36, 37, 38, 40, 45, 47, 48, 51, 55, 56, 57, 58, 59 e 61 foram incorrectamente julgados, devendo ser dados como não provados (questão do recurso do arguido BB).

Assim, o que o recorrente pretende é discutir a matéria de facto provada vertida nos pontos 9, 15, 16, 17 a 20, 22, 31, 32, 36, 37, 38, 40, 45, 47, 48, 51, 55, 56, 57, 58, 59 e 61, por entender que foi incorretamente julgada pelo tribunal a quo, que foi cometido um erro de julgamento por errónea apreciação da prova.

Estamos, assim, no domínio dos artigos 412º, nº 3, e 431º, ambos do Código de Processo Penal.

Estipula o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal que, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

No caso sub judice as questões não se prendem com a alínea c), mas sim com as alíneas a) e b).

No que respeita às demais considerações teóricas relativas ao conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto, dá-se por reproduzido o que ficou dito supra a propósito do recurso do arguido AA.

O recorrente BB respeitou os requisitos necessários, já que especificou os factos concretos que considera incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com as quais fundamenta a impugnação.

Assim, por se verificarem todos os pressupostos, esta Relação deve averiguar se, relativamente aos factos indicados pelo recorrente, o Tribunal de 1ª instância julgou bem.

Para o efeito, face às questões suscitadas, aos argumentos invocados quanto aos meios de prova e ainda à convicção formada pelo julgador vertida na motivação da decisão de facto, este Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no nº6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, ouviu integralmente as declarações dos arguidos AA, BB, CC e DD, bem como os depoimentos das testemunhas SS, NN e PP.

No mais, levou-se em conta a restante prova considerada pelo tribunal a quo, tal como foi indicada e examinada na sentença recorrida.

O recurso não visa a reapreciação de toda a prova produzida, mas apenas aquela com base na qual se pretende infirmar a convicção do julgador. Para o efeito, torna-se, pois, imprescindível que na motivação do recurso a mesma surja como fundamento da pretensão do recorrente e que respeite os pressupostos legais. Caso contrário, não existem razões para ser reapreciada.

Passa-se agora à análise dos factos impugnados.

A questão fulcral é a de saber se o arguido BB tinha algum tipo de domínio sobre as questões fiscais ou contabilísticas da empresa e/ou se emanava ordens a quem quer que fosse sobre tais questões. Em suma, se tomava ou não decisões financeiras.

Ora, a prova acabada de referir, indicada pelo recorrente, não impõe, de forma alguma uma decisão diversa.

Relacionado com o princípio in dubio pro reo, estipula o artigo 32º, nºs 1 e 2, da CRP que:

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

É a consagração constitucional do princípio da presunção de inocência que se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.

Por sua vez, o princípio in dubio pro reo é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos – cfr. neste sentido o Ac. da RC de 12.8.2018, in www.dgsi.pt.

Assim, “o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa” – cfr. Ac. do STJ de 12.3.2009, in dgsi.pt.

No mesmo sentido encontra-se o Ac. da RL de 14.2.2010, in www.dgsi.pt, segundo o qual “o princípio in dubio pro reo não é mais que uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável”.

Continua o mesmo aresto dizendo que “um non liquet sobre um facto da acusação recai materialmente sobre o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, pois que sobre o arguido não impende qualquer dever de colaboração na descoberta da verdade. O “in dubio pro reo” só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa. Não se trata, porém, de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio…” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dubio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto”.

Revertendo ao caso concreto, o tribunal a quo deixou bem claro na motivação da decisão de facto, já supra referida, que não teve quaisquer dúvidas de que o arguido BB praticou os factos sub judice.

Depois da apreciação da prova, o tribunal faz uma síntese dos factos que decorrem, à evidência, do conjunto da prova produzida, onde se inclui o recorrente BB.

Assim, da motivação da decisão de facto do acórdão recorrido perpassa que o julgador convenceu-se firmemente da factualidade que deu como provada.

A dúvida relevante é a dúvida do julgador após produção da prova e não a dúvida do recorrente ou mesmo a dúvida que o recorrente entende que o tribunal deveria ter tido.

Da análise da sentença recorrida, conclui-se que o julgador ficou firmemente convencido da matéria que deu como provada, não lhe restando qualquer dúvida sobre a mesma. Resulta da sentença recorrida um estado de certeza e não de incerteza.

Acresce que não se vislumbra que o julgador não tivesse demonstrado dúvidas porque não quis ou porque não as quis considerar relevantes. Simplesmente, convenceu-se firmemente da matéria que deu como provada.

Assim sendo, não existe fundamento para o pretendido recurso ao princípio “in dubio pro reo”, ficando afastada a sua violação pelo tribunal recorrido.

Também neste particular não assiste razão ao recorrente.

                *

Cumpre agora conhecer se os factos provados dos pontos 37, 38, 39, 40, 44, 46, 50, 51, 58 e 60 foram incorrectamente julgados no que respeita à participação/intervenção do arguido CC, devendo, nessa parte, serem julgados não provados (questão do arguido CC).

  Estamos, novamente, no domínio dos artigos 412º, nº 3, e 431º, ambos do Código de Processo Penal.

O recorrente CC respeitou os requisitos necessários, já que especificou os factos concretos que considera incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com as quais fundamenta a impugnação.

Assim, por se verificarem todos os pressupostos, esta Relação deve averiguar se, relativamente aos factos indicados pelo recorrente, o Tribunal de 1ª instância julgou bem.

A questão fulcral é a de saber se o arguido CC teve alguma participação ou intervenção nos factos impugnados.

Vejamos, então.

Não se vê como a prova indicada por este arguido possa impor uma decisão diversa da tomada pelo colectivo julgador.

Assim, bem andou o tribunal a quo ao dar como provada a factualidade impugnada.

Do que fica dito conclui-se que, do conjunto da prova produzida, a que foi analisada por esta Relação e a restante apreciada pelo tribunal a quo, tal como consta da motivação da decisão de facto, bem andou o julgador ao dar como provada a factualidade dos pontos 37, 38, 39, 40, 44, 46, 50, 51, 58 e 60 na parte aqui impugnada.

Reafirma-se que a prova indicada pelo recorrente não impõe, de forma alguma, uma decisão diversa.

 

Pelo exposto, improcede esta questão suscitada pelo recorrente.

             *

A próxima questão é a de saber se os factos provados dos pontos 37, 38, 45, 47, 48, 58, 59, 60, 61 foram incorrectamente julgados, devendo, na parte impugnada, serem dados como não provados (questão do recurso do arguido DD). 

Alega o arguido que, face à prova produzida, a referida factualidade terá que ser julgada não provada no que a si diz respeito, indicando em relação a cada facto a a prova que, no seu entender, impõe decisão diversa.

Estamos, assim, no domínio dos artigos 412º, nº 3, e 431º, ambos do Código de Processo Penal.

O recorrente DD respeitou os requisitos necessários, já que especificou os factos concretos que considera incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com as quais fundamenta a impugnação.

Assim, por se verificarem todos os pressupostos, esta Relação deve averiguar se, relativamente aos factos indicados pelo recorrente, o Tribunal de 1ª instância julgou bem.

Para o efeito, face às questões suscitadas, aos argumentos invocados quanto aos meios de prova e ainda à convicção formada pelo julgador vertida na motivação da decisão de facto, este Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no nº6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, ouviu integralmente as declarações dos arguidos AA, DD e CC, bem como os depoimentos das testemunhas PP e QQ.

Analisou ainda o indicado Parecer Técnico emitido pelo Professor Abílio Silva (cfr. fls. 1815 e seguintes), bem como o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul proferido no Processo de Impugnação Judicial nº 1022/12...., de 7.5.2020, transitado em 2.7.2020.

No mais, levou-se em conta a restante prova considerada pelo tribunal a quo, tal como foi indicada e examinada na sentença recorrida.

Passa-se agora à análise dos factos impugnados.

Ora, como se refere no Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul de 24.6.2021, in www.dgsi.pt, “os custos ou perdas da empresa constituem elementos negativos da conta de resultados, e são dedutíveis fiscalmente quando, estando devidamente comprovados, forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtiva da empresa em causa (cfr. artigo 23, do CIRC).

O juízo de comprovada indispensabilidade é um juízo casuístico, pois só analisando em concreto cada custo poder-se-á aferir da respectiva indispensabilidade de um gasto para «(…) a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora» (cfr. artigo 23.º do CIRC)”.

Lê-se ainda no mesmo aresto que “como é sabido, o lucro tributável para efeitos de tributação em IRC tem como suporte o resultado apurado na contabilidade (cfr. artigo 17º, nº1, do CIRC), a qual deverá, designadamente, estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade e reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo.

E é certo, também, que quando a contabilidade esteja assim organizada, «presume-se a veracidade dos dados e apuramentos decorrentes, salvo se se verificarem erros, inexactidões ou outros indícios fundados de que ela não reflecte a matéria tributável efectiva do contribuinte» (cfr. artigo 75º da LGT).

Nos termos do disposto no artigo 23° do CIRC consideram-se como custos fiscais ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

Assim, para que os custos tipificados no mencionado preceito legal sejam considerados dedutíveis para efeitos fiscais é necessário, que se verifique, dois tipos de requisitos, uns de natureza prévia à análise da dedubilidade fiscal, a saber:

1. Que o custo foi efectivamente suportado pelo SP e não por terceiros, na medida em que o custo só poderá relevar fiscalmente e contabilisticamente se efectivamente incorrido pelo SP;

2. Inscrição do custo na contabilidade do SP.

E, a segunda categoria de requisitos, também de verificação cumulativa, respeitam:

1. Que sejam comprovados através de documentos emitidos nos termos legais;

2. Que sejam indispensáveis para a realização dos proveitos.

Sobre a questão da indispensabilidade dos gastos/custos, têm vindo a ser apontadas três interpretações possíveis a saber: indispensabilidade como sinónimo de absoluta necessidade ou de conveniência, ou identificando-se com a noção de interesse societário.

As duas primeiras linhas de entendimento, não merecem acolhimento, pois que a formulação dos juízos de necessidade e oportunidade dos gastos competem à empresa.

Acresce, que pese embora se tratar de uma despesa com um fim empresarial não significa que tenha desde logo um fim imediato e directamente lucrativo.

Com efeito, se a empresa decide fazer uma despesa de modo a prosseguir a sua actividade, não deixa por essa razão de ser um custo fiscal. Com efeito, artigo 23.º do CIRC não refere que a despesa se apresente como condição sine qua non dos proveitos, no que respeita à segunda, a admitir-se, estaremos, sem dúvida a permitir à Administração Tributária intrometer-se na gestão das empresas.

Defende-se, assim, que os custos indispensáveis serão aqueles que correspondam a gastos realizados no interesse da sociedade, sendo excluídos os que não se insiram no interesse da sociedade, isto é, que foram incorridos para outros fins”.

Por sua vez, como consta no Ac. do Tribunal Central Administrativo Norte, de 13.4.2023, in www.dgsi.pt, “não podem ser admitidos custos ou perdas do exercício contabilizados (ao abrigo do artigo 23.º do CIRC) com faturas que não titulam operações reais, por não ser possível que a empresa tenha incorrido efetivamente nos respetivos custos ou despesas.

No caso das denominadas «faturas falsas», compete à Administração Tributária fazer a prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua atuação corretiva e, só caso o faça, passa a recair sobre o contribuinte o ónus da prova da existência e dimensão dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito à dedução do imposto.

Por isso, cabe à Administração Tributária o ónus de colocar em causa a presunção de veracidade da declaração do imposto e dos respetivos documentos de suporte, atento o princípio da declaração vigente no nosso direito (artigo 75.º da LGT), sendo que só depois cabe ao contribuinte o ónus de provar a veracidade do declarado.

Tal prova não tem de ser direta e dogmática, no sentido de evidente e intocável, antes pode resultar de circunstâncias colaterais e indiretas que, atentas a idoneidade dos respetivos meios de suporte e as regras da experiência comum, indiciem, segundo padrões de avaliação e aferição pautados por critérios de razoabilidade e normalidade, um determinado resultado como o mais legitimamente atendível”.

Jurisprudência que se acompanha.

No caso concreto estamos perante uma empresa que tem como actividade o comércio por grosso de máquinas para indústria extrativa, construção e engenharia.

A compra efectiva de uma máquina é, sem dúvida, um custo do exercício para efeitos do artigo 23º do CIRC, já que foi um gasto realizado no interesse da sociedade.

O custo com a aquisição das máquinas vai, sem dúvida, diminuir o lucro tributável.

Porém, se duas ou três dessas facturas não titulam operações reais, naturalmente que o respectivo valor não pode ser considerado como custo, uma vez que a empresa não incorreu efectivamente nesses gastos.

Como consta da factualidade provada por factos agora não impugnados, a sociedade arguida A..., através dos arguidos AA e BB, que atuaram por si e em nome e representação da mesma, procedeu à contabilização de faturas, em duplicado ou em triplicado, que mais não eram do que cópias de faturas originais, já contabilizadas, ou de faturas diversas mas referentes à mesma operação/aquisição de faturas já contabilizadas, não tendo assim subjacente a prestação de qualquer serviço ou venda, as quais infra se referem como “duplicado/triplicado” (facto 16).

As referidas faturas foram utilizadas pelos arguidos AA e BB por si e em representação da arguida A..., como fidedignas e representativas da faturação da sociedade arguida A..., e de prestação de trabalhos e serviços no decurso dos anos de 2008 e 2009 para efeitos de contabilidade, a qual foi depois espelhada, em conformidade, nas declarações anuais de IRC emitidas por aqueles em nome da A... (facto 17).

Com a descrita conduta, a sociedade arguida A..., no ano de 2008, contabilizou em duplicado/triplicado faturas, com o objetivo de reduzir o lucro tributável, alcançando a seguinte vantagem patrimonial ilegítima no montante de €647.470,63 (facto 18).

Com a descrita conduta, a sociedade arguida A..., no ano de 2009, contabilizou em duplicado/triplicado faturas, com o objetivo de reduzir o lucro tributável, alcançando a seguinte vantagem patrimonial ilegítima no montante de € 378.203,45 (facto 19).

Em suma, fazendo uso das supraditas faturas, a sociedade arguida A... enriqueceu-se, em detrimento da Fazenda Nacional, no montante global de €1.025.674,08, sendo €647.470,63 respeitante ao exercício do ano de 2008, e €378.203,45 respeitante ao exercício do ano de 2009 (facto 20).

As faturas referidas, registadas em duplicado e triplicado nos exercícios de 2008 e 2009, nos montantes de €2.488.336,40 e €1.443.524,62, respetivamente, e que totalizam nos dois exercícios o montante de €3.931.861,02, deram origem à libertação de meios financeiros da A... que não foram feitos aos fornecedores identificados nas contas correntes (facto 21).

Assim, de acordo com o comum plano previamente delineado, a sociedade arguida A..., através dos arguidos AA e BB, que atuaram por si e em nome e representação da mesma, ou de terceiro a seu mando, registaram contabilisticamente as saídas de meios financeiros relacionados com os “hipotéticos pagamentos das faturas”, que ocorreram no exercício de 2008 e 2009, no valor global de €3.866.947,30, associados a fornecimentos inexistentes, a que corresponderam também pagamentos inexistentes, tendo por consequência o depósito e/ou transferência do dinheiro de uma conta bancária da A... para outras contas bancárias da mesma (facto 22).

Pelo que fica dito, acompanha-se integralmente a posição da testemunha PP quando refere que:

 - aumentaram os gastos e diminuiu o valor do lucro tributável, porque o mesmo valor era contabilizado mais do que uma vez. Diminuiu o resultado líquido da sociedade porque o gasto aumentou. Se o valor das compras for registado mais do que uma vez, isso tem influência no custo das mercadorias vendidas e consumidas, porque o valor das compras aumenta, então tem influência no custo, a não ser que essas máquinas também estivessem descritas no inventário final. O que eu não detectei e nem poderiam estar porque não existiam.

Em suma, do conjunto da prova produzida, entende-se que bem andou o tribunal a quo ao dar como provado o facto do ponto 37. A prova indicada pelo recorrente não impõe, de forma alguma, uma decisão diversa.

Nem mesmo pelo princípio in dubio pro reo deve tal facto ser julgado como não provado. O tribunal recorrido deixou bem claro na motivação da decisão de facto, já supra referida, que não teve quaisquer dúvidas de que o arguido praticou os factos sub judice. O julgador convenceu-se firmemente da factualidade que deu como provada. Não existindo fundamento para o pretendido recurso ao princípio “in dubio pro reo”, fica afastada a sua violação pelo tribunal recorrido.

Assim, mantém-se como provado o facto do ponto 37.

O ponto 38 apresenta o seguinte teor:

Relativamente a este ponto, o arguido remeteu para o alegado em relação ao ponto 37.

Dando como reproduzido o que já ficou dito supra, mantém-se como integralmente provado o facto do ponto 38.

O ponto 45 apresenta a seguinte redacção:

No ponto 46 provou-se que, tal ata, na qual se deliberou e aprovou a transferência do montante de €4.525.000,00 para reservas livres, não foi lavrada na data indicada, mas já no decurso de 2012, e uma vez mais com referência ao balanço reportado a 30 de Junho de 2009, adulterado pelo arguido CC nos termos descritos.

Alega o arguido que não foi produzida prova sobre o facto do ponto 45.

Pois bem.

O arguido DD, como já referido, assumiu ter feito as rectificações em causa.

Disse explicitamente que não esteve na Assembleia correspondente à Acta 8-A.

Porém, na factualidade provada, também não se afirma que ele estivesse presente nessa Assembleia, nem mesmo que ela tivesse sido, de facto, realizada.

O que se diz é que foi mandada fazer a Acta 8-A, pelos arguidos ou por terceiro a seu mando, como reportada a Assembleia Geral da sociedade arguida A..., alegadamente realizada em 30 de Julho de 2009, com intervenção de todos os arguidos.

Aqui chegados, concorda-se inteiramente com a matéria provada do ponto 45. Face aos conhecimentos técnicos que constam da referida Acta 8-A e ao teor das declarações prestadas pelo arguido DD, não existem dúvidas de que este ou elaborou ou mandou elaborar a referida acta.

Assim, mantém-se como integralmente provado o facto do ponto 45.

O ponto 47 apresenta a seguinte redacção:

Afirma o arguido que, quanto a si, não foi feita prova deste facto.

Mantém-se como integralmente provado o facto do ponto 47.

O ponto 48 apresenta o seguinte teor:

Relembra-se que os factos ocorreram em 2012 e o referido Ac. do Tribunal Central Administrativo do Sul no Processo de Impugnação Judicial nº 1022/12...., data de 7.5.2020, transitado em 2.7.2020.

O facto 48 tem que ser interpretado com os demais. Não se afirma neste facto que a subscrição do aumento de capital em reservas nos termos descritos, teve como consequência a não tributação em sede de IRS. Afirma-se que teria como consequência a não tributação em sede de IRS, já que era essa a pretensão dos arguidos.

Sem necessidade de outras considerações, mantém-se como provado o facto do ponto 48.

O ponto 58 apresenta a seguinte redacção:

Dando igualmente como reproduzido o que já ficou dito supra, mantém-se como provado o ponto 58.

O ponto 59 apresenta o seguinte teor:

Dando igualmente como reproduzido o que já ficou dito supra, mantém-se como provado o ponto 59.

O ponto 60 apresenta o seguinte teor:

Mantém-se como provado o ponto 60.

O ponto 61 apresenta a seguinte redacção:

61. Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Ora, atendendo à demais matéria que resultou provada e às qualificações profissionais do recorrente, naturalmente que este sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Também este facto 61 deve manter-se como provado.

Assim, bem andou o tribunal a quo ao dar como provada a factualidade impugnada pelo arguido DD.

Do que fica dito conclui-se que, do conjunto da prova produzida, a que foi analisada por esta Relação e a restante apreciada pelo tribunal a quo, tal como consta da motivação da decisão de facto, bem andou o julgador ao dar como provada a factualidade dos pontos 37, 38, 45, 47, 48, 58, 59, 60, 61 na parte aqui impugnada.

Reafirma-se que a prova indicada pelo arguido não impõe, de forma alguma, uma decisão diversa.

 

Pelo exposto, improcede esta questão suscitada pelo recorrente DD.

             *

Acresce que, relativamente à fixação da matéria de facto, o tribunal a quo foi quem beneficiou da imediação e oralidade na recolha da prova, sempre valiosas na formação da convicção do julgador.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, “sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova”.

Por sua vez, o Ac. da RC de 28.1.2015, in www.dgsi.pt, refere que “o julgamento da matéria de facto é feito pelo tribunal de 1ª instância. É na audiência de julgamento que o facto é revelado, de forma e em circunstâncias que não mais poderão ser repetidas, e é este tribunal o único que beneficia plenamente da imediação e oralidade da prova. O recurso da matéria de facto é sempre um remédio para sarar o que é tido por excepcional naquele julgamento, o cometimento de erro na definição do facto, não podendo nem devendo ser perspectivado como um novo julgamento, tudo se passando como se o realizado na 1.ª instância pura e simplesmente não tivesse existido”.

Também o Ac. da RE de 19.5.2015, in www.dgsi.pt, afirma que “o recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância. Se, perante determinada situação, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o Juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que opte por ela”.

Ora, não se verifica que tenha sido cometido qualquer erro de julgamento na primeira instância, muito menos qualquer erro clamoroso, evidente e/ou óbvio, na apreciação dos factos impugnados.

Pelo contrário, a conclusão probatória a que o tribunal a quo chegou encontra-se correcta.

Pelo exposto, reafirma-se que improcede a pretensão dos recorrentes, devendo manter-se como provados os factos impugnados.

             *

Passa-se agora a conhecer se se deverá considerar que assume autoridade de caso julgado material o Acórdão proferido no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, em 7/5/2020, transitado em julgado em 2/7/2020, referente à liquidação do IRS do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46 (questão dos recursos dos arguidos CC e DD).

Alega o arguido CC que o Ministério Publico determinou a suspensão dos presentes autos durante a fase de inquérito, ao abrigo do artigo 47.º do RGIT, até ao trânsito da decisão a proferir no sobredito Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

O Ministério Publico determinou a suspensão dos presentes autos em face da Impugnação Judicial correspondente ao Processo n.º 1022/12...., a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, porque entendeu que os factos em discussão em sede do Processo de Impugnação Judicial estavam interligados e eram essenciais para a discussão e decisão dos presentes autos.

Os efeitos da matéria de facto fundamentada e decidida em sede do Processo de Impugnação Judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, repercutem-se necessariamente na fundamentação e decisão da matéria de facto dos presentes autos.

Neste sentido, veja-se o artigo 48º do RGIT: “A sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram”.

Assim, a decisão final proferida pela jurisdição fiscal no processo tributário prejudicial possui autoridade de caso julgado no processo penal tributário, quer no que concerne ao respetivo dispositivo, quer quanto aos fundamentos de facto e de direito que “sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado”, e não apenas em relação ao arguido impugnante ou oponente, mas a todos os arguidos.

Mas ainda que assim não se entenda, por se sustentar o carácter individual e pessoal do processo tributário e daí se concluir que a decisão lá proferida apenas produz efeitos em relação a quem foi parte no mesmo, ou nele interveio, não pode deixar de se considerar que, sendo os efeitos de tal decisão favoráveis a arguido que não foi parte nem interveio naquele processo, essa decisão possui autoridade de caso julgado material no processo penal tributário.

Nos presentes autos, sempre se deverá considerar que assume autoridade de caso julgado material, o Acórdão proferido no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, em 7/5/2020, transitado em julgado em 2/7/2020, com certidão em fls. 1377 a 1402, referente à liquidação do IRS do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46.

Sendo que, quanto ao imposto em discussão nos presentes autos (IRS 2009), expresso nos factos provados 32, 35, 36, 48, 53 e 58, o referido acórdão proferido no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, manteve as aludidas liquidações, nomeadamente porque a retificação da modalidade de subscrição do aumento de capital social da coarguida A..., S.A., a que se reporta o ponto 42 dos “factos provados” do acórdão recorrido, aprovada em assembleia geral dessa coarguida de 30/7/2012 e registada em 29/8/2012, somente produz efeitos para o futuro, perante a sociedade e os sócios a partir de 30/7/2012 e relativamente a terceiros a partir de 29/8/2012.

Assim, deve assumir-se nos presentes autos, a autoridade do caso julgado material formado pelo referido Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 07/05/2020, na medida em que o mesmo fixou e definiu questão prejudicial, maxime a causa/origem do sobredito IRS (distribuição de dividendos, pela coarguida A..., S. A., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem em dinheiro o aumento de capital dessa sociedade, então deliberado); a data em que tal imposto nasceu (setembro de 2009); a não produção de efeitos retroativos da retificação do referido aumento de capital, deliberada em assembleia geral da coarguida A..., S. A., de 30 de julho de 2012; e a manutenção da liquidação do aludido imposto na esfera jurídica desta sociedade.

O arguido DD alega no mesmo sentido, concluindo igualmente que a decisão final proferida pela jurisdição fiscal no processo tributário prejudicial possui autoridade de caso julgado no processo penal tributário, quer no que concerne ao respetivo dispositivo, quer quanto aos fundamentos de facto e de direito que «sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado».

E mesmo que se sustente o carácter pessoal do processo tributário e daí se conclua que a decisão lá proferida apenas produz efeitos em relação a quem nele foi interveniente, não pode deixar de se considerar que, sendo os efeitos de tal decisão favoráveis a arguido que não interveio nesse processo, essa decisão possui autoridade de caso julgado no processo penal tributário também relativamente a esse arguido.

É, pois, neste sentido que se devem compreender as normas dos arts. 47.º e 48.º do RGIT.

Destarte, deve considerar-se que nos presentes autos assume autoridade de caso julgado material o Acórdão proferido no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, em 7/5/2020, transitado em 2/7/2020, cuja certidão faz fls. 1377 a 1402, pelo qual foi negado provimento ao respetivo recurso e mantida a sentença aí recorrida, que havia sido proferida nesse Processo pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria em 20/6/2018, pela qual fora julgada improcedente a Impugnação Judicial da liquidação do IRS n.º ...37, do período de tributação de 2009, no valor de € 773.389,46, bem como a liquidação dos juros correspondentes, imposto esse a que se refere o acórdão ora em crise, designadamente nos n.ºs 32, 35, 36, 48, 53 e 58 dos “Factos Provados”, tendo mantido as aludidas liquidações, nomeadamente porque a retificação da modalidade de subscrição do aumento de capital social da coarguida A..., S. A., a que se reporta o n.º 42 dos “Factos Provados” do acórdão recorrido, aprovada em assembleia geral dessa coarguida de 30/7/2012 e registada em 29/8/2012, somente produz efeitos para o futuro, perante a sociedade e os sócios a partir de 30/7/2012 e relativamente a terceiros a partir de 29/8/2012.

Deve, assim, assumir-se nos presentes autos, a autoridade do caso julgado material formado pelo referido Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 7/5/2020, na exata medida em que o mesmo fixou e definiu questão prejudicial, maxime a causa/origem do sobredito IRS (distribuição de dividendos, pela coarguida A..., S. A., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem em dinheiro o aumento de capital dessa sociedade, então deliberado), a data em que tal imposto nasceu (setembro de 2009), a não produção de efeitos retroativos da retificação do referido aumento de capital, deliberada em assembleia geral da coarguida A..., S. A., de 30 de julho de 2012, e a manutenção da liquidação do aludido imposto na esfera jurídica desta sociedade.

Vejamos, então.

O actual Código de Processo Penal não contém uma regulamentação autónoma sobre o instituto do caso julgado.

No entanto, estipula o artigo 29º, nº 5, da CRP que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

É a consagração constitucional do princípio “ne bis in idem”, que “proíbe o duplo julgamento penal e constitui uma garantia do cidadão contra arbitrárias  repetições de julgamentos e de punições” – cfr. Ac. da RE de 24.5.2018.

Este princípio constitucional “comporta duas dimensões: a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto” – cfr. Ac. da RL de 28.11.2018, in www.dgsi.pt.

O que deve então entender-se por mesmo crime?

A expressão crime tem que ser entendida como um facto ou conjunto de factos, uma certa conduta ou comportamento, um acontecimento histórico.

“Ao falar de factos temos em vista acontecimentos, circunstâncias, relações, objectos e estados, todos eles situados no passado, espácio-temporalmente determinados, pertencentes ao domínio da percepção externa ou interna e ordenados segundo leis naturais." - Karl Engish, in Introdução ao Pensamento Jurídico, tradução de J. Baptista Machado, Lisboa, 1965.

Segundo Frederico Isasca, in Alteração Substancial dos Factos e sua relevância no Processo Penal Português, “o facto só pode assim ser entendido porque relacionado com outros dois conceitos de natureza eminentemente abstracta, quais sejam: tempo e espaço. Só com referência a eles o facto adquire a sua própria dimensão, isto é, se individualiza, permitindo identificação dos restantes, por referência. Facto, nesse sentido, será todo o acontecimento do mundo objectivo que captado pelos sentidos se deixa perceber e conhecer pelo sujeito, independentemente de este, enquanto parte desse mesmo real, lhe imprimir ou não a sua inerente qualidade de sujeito actuante”.

Ainda relativamente à noção de “crime, afirma Frederico Isasca, ob. citada, págs. 220 e 221, que "crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou decisão que se lhe equipare”.

Não se pode, pois, entender a expressão crime do artigo 29º, nº 5, da CRP como sendo um determinado tipo penal. Pelo contrário, deve ser entendida como um conjunto de factos delimitados no tempo e no espaço. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado - e não tanto de um crime - que se quer evitar.

Tratando-se de factos distintos, não se verifica caso julgado material, ou seja, violação do princípio constitucional “ne bis in idem”: mesmo que, ao nível da qualificação jurídica, fosse de concluir que todos os factos, se apreciados em conjunto, seriam susceptíveis de configurar um único crime, por terem subjacente a mesma resolução criminosa.

Neste sentido veja-se o Ac. da RC de 22.3.2023, in www.dgsi.pt, segundo o qual “o ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a julgamento por um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida já objeto de sentença ou decisão que se lhe equipare, independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado.

Para este efeito o crime considera-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico.

Apesar de a Constituição da República Portuguesa apenas proibir expressamente o duplo julgamento pelo mesmo facto – ne bis in idem na vertente processual -, a proibição abrange ainda a aplicação de novas sanções penais pela prática do mesmo crime – ne bis in idem na vertente penal -, daqui resultando que o princípio tem o duplo sentido de proibição de duplo julgamento de uma infracção penal e de proibição de dupla punição”.

Também no Ac. de 26.2.2020 da Relação de Guimarães, in www.dgsi.pt, se pode ler que “o princípio ne bis in idem, embora não sistematicamente regulado no actual CPP, afirma-se à luz dos preceitos conjugados dos arts. 29º/5 e 18º/1, da CRP, deve ser entendido como garantia para o arguido de não ser submetido duas vezes a um julgamento pelos mesmos “factos” e anda de mãos dadas com as razões que subjazem à eficácia do caso julgado de uma decisão anteriormente produzida, que se harmonizam, inteiramente, com o processo penal, em cuja especificidade tem todo o cabimento a imposição de efectivar a certeza do direito e a prevenção do risco da decisão inútil, impedindo que se reproduza ou contradiga uma decisão já tornada definitiva, e, por essa via, garantir também o prestígio dos tribunais, valores que colhem o seu fundamento nos princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídicas, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2º também da CRP.

Na delimitação do conceito «mesmo crime», a que alude o citado preceito constitucional, estão em causa, não os factos abstractos configurados na lei, mera categoria legal, mas sim os factos concretos a que a lei atribui determinados efeitos jurídicos e que sejam invocados como fundamento da pretensão punitiva formulada em relação ao arguido”.

Assim, os conceitos de caso julgado e ne bis in idem não são precisamente coincidentes. Porém, andam de mãos dadas, como se disse, harmonizando-se. O caso julgado refere-se essencialmente à força da decisão/sentença em si mesma, dentro do processo ou fora dele, subjacendo-lhe razões de segurança jurídica e confiança no poder judicial, porquanto um dos fundamentos deste instituto é a de evitar a existência de julgamentos contraditórios sobre o mesmo pedido, com a mesma causa de pedir e envolvendo as mesmas pessoas. São, assim, razões de ordem pública intimamente relacionadas com a segurança jurídica e judiciária as que justificam, de forma imediata, a protecção do caso julgado aparecendo a protecção individual como derivada daquela.

Ao invés, a protecção do ne bis in idem dirige-se em primeira linha à pessoa, enquanto necessário à protecção da sua dignidade, corolário indispensável do Estado de Direito.

Como se refere no Ac. da RC de 13.10.2021, in www.dgsi.pt, “todo o comportamento espácio-temporalmente determinado, traduzido num facto naturalístico concreto ou “pedaço de vida” de um indivíduo, que tenha sido já objecto de uma decisão, independentemente do “nomem iuris” que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído num determinado processo, fica abrangido pelo efeito de “caso julgado” ou, na ausência de julgamento propriamente dito, de caso decidido”.

Vejamos agora o que nos diz o Regime Geral das Infracções Tributárias.

Estipula o artigo 47º, nº 1, do RGIT que “se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças”.

Por sua vez, com a epígrafe Caso julgado das sentenças de impugnação e oposição, o artigo 48º do mesmo diploma legal dispõe que “a sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram”.

Como tem salientado a jurisprudência e a doutrina, o disposto no artigo 47º, nº 1, do RGIT consagra um desvio ao princípio da suficiência da acção penal, que está consagrado no artigo 7º do Código de Processo Penal, onde se estipula, no seu nº 1, que “o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”.

Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente (nº 2).

Como se pode ler no Ac. da RP de 24.11.2021, in www.dgsi.pt, “A referida necessidade de devolução aos tribunais tributários justifica-se por razões emergentes, desde logo, da distinta natureza dos tribunais tributários e como forma de evitar a usurpação de jurisdição de tribunais de ordem diversa da dos tribunais judiciais e por não haver no processo-crime os elementos disponíveis que permitam uma eficaz clarificação da situação tributária de cuja definição dependa a qualificação jurídico-penal dos factos.

Como referem Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos (In Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado, 2008, pág. 404) “Infere-se do regime previsto neste artigo uma opção legislativa no sentido da primazia da jurisdição fiscal para apreciação de questões tributárias, o que tem plena justificação no carácter especializado das questões desta natureza, que está subjacente à atribuição constitucional de competência para o seu conhecimento a uma jurisdição especializada (artº 212º nº 3 da CRP) e não à jurisdição comum, em que se inserem os tribunais criminais."

Contudo, não basta a existência de um qualquer processo tributário para dar lugar à suspensão do processo penal fiscal ou tributário. É ainda necessário que a questão nele suscitada seja "prejudicial" em relação ao objeto desse processo. Isso mesmo se extrai do artº 47º nº 1 do RGIT quando alude à "situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados".

É sabido que, em geral, se entende que «uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial se esteja a apreciar uma questão cuja resolução por si só possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito»[Cfr. Ac. do STJ de 26.05.1994, CJAcs.STJ, ano de 1994, tomo II, pág. 116.].

A definição do que seja “questão prejudicial” em processo penal não é fornecida pela lei, mas tem sido considerada na doutrina como a questão que «(...) possuindo objeto - ou até natureza - diferente da questão principal do processo em que surge, e sendo suscetível de constituir objeto de um processo autónomo, é de resolução prévia indispensável para se conhecer em definitivo da questão principal, dependendo o sentido deste conhecimento da solução que lhe for dada»[Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I, Coimbra Editora, 1981, pág. 164.5].

Também no Ac. da RG de 8.5.2017, in www.dgsi.pt, pode ler-se que “o artº 48º do RGIT - que estabelece que a sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição do executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Penal Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário -, não pode ser lido isoladamente.

Com efeito, a disposição normativa em causa articula-se com a previsão do antecedente artº 47º, no qual se prescreve que, se estiver a correr termos processo de qualquer uma das indicadas espécies, a respetiva pendência só determina a suspensão do processo penal tributário, quando nelas se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.

Não é, por conseguinte, qualquer impugnação judicial ou qualquer oposição à execução que determina, ou deve, determinar a suspensão do processo penal tributário. É necessário que, por alguma dessas formas de reação processual, seja posta em causa situação tributária de cuja definição dependa, por seu turno, a verificação do delito penal.

Do mesmo modo que assim é, decisão, proferida no âmbito de impugnação judicial ou de oposição, que tenha esse alcance pode ter como efeito, em caso de procedência, a formação de caso julgado, que constitui exceção que obsta à apreciação do mérito do processo penal tributário.

Para além disso, o artº 48º do RGIT estabelece, ainda, que essa eficácia de caso julgado abrange apenas as questões decididas e nos precisos termos em que o foram”.

Voltando agora ao caso concreto, relembra-se, como já se disse supra, que:

No âmbito do inquérito, a 6.2.2017, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:

“Nos termos do disposto no artigo 47.º do RGIT, 1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças. 2 - Se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie.

Verifica-se nos autos que os montantes em dívida, são os seguintes:

▪ De IRC, nos montantes de € 831.686,85, relativo ao ano de 2008 e € 480.737,53, referente ao ano de 2009, que deram respectivamente origem aos processos executivos, para cobrança coerciva n.º ...50 e ...68,

▪ De IRS, no valor de € 994.754,11, referente ao ano de 2009, que deu origem ao processo executivo para cobrança coerciva n.º ...28,

A sociedade não procedeu ao pagamento das referidas importâncias, antes deduziu impugnação judicial a cada uma das referidas liquidações, que correm sob os processos n.ºs 1028/12...., 1032/12.... e 1022/12.... no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

Assim sendo, ao abrigo do disposto no artigo 47.º, n.º 1 do RGIT, determino a suspensão dos presentes autos até ao trânsito em julgado das decisões proferidas nos processos supra indicados.

Comunique aos processos, com cópia deste despacho e para os termos e efeitos do n.º 2 do referido artigo.

               *

Comunique aos arguidos”.

O inquérito aguardou então nos termos ordenados.

O acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, referente ao Proc. 1022/12.... deu entrada nos autos a 7.8.2020.

Nesse acórdão pode ler-se que:

“A..., S.A.” deduziu impugnação judicial contra a liquidação de retenções na fonte de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) nº …, do período de tributação de 2009, no valor de 773.389,46 euros, e a correspondente liquidação de juros compensatórios, com o nº …, no valor de 73.228,32 euros, o que perfaz o valor total a pagar de 846.617,78 euros.

Vem a recorrente invocar que os accionistas AA e BB não foram beneficiários efectivos da quantia correspondente ao aumento do capital social porque para assim ser teria que ficar provado qua a partir dessa data – 17.7.2009 – os subscritores do aumento obtiveram algum tipo de rendimentos provenientes dessas participações aumentadas.

Mas não tem razão.

Nos termos do disposto no artigo 5º, nº 2, alínea h), do CIRS, devem ser qualificados como rendimentos de capitais, de entre outros, os rendimentos derivados de lucros distribuídos por sociedades e os adiantamentos por conta desses lucros a favor dos respectivos sócios que sejam pessoas singulares.

Por sua vez, o artigo 6º, nº 4, do CIRS estabelece uma presunção, no sentido de que as quantias lançadas a favor dos sócios, em quaisquer contas correntes de sócios de sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial e que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício do cargo social, correspondem a lucros ou a adiantamento por conta de lucros, devendo, por isso, ser sujeitas a tributação, nos termos do artigo 5º, nº1 e 2, alínea h) do CIRS.

A referida presunção é ilidível, mediante prova em contrário, nos termos do nº 5 da mesma norma.

Pelo que tendo a AT demonstrado a legalidade do seu agir, incumbia à recorrente o ónus de demonstrar que o dinheiro não pertencia aos associados mas sim à sociedade recorrente tal como invoca, ónus que não cumpriu de todo, limitando-se a alegar que teria de ficar provado que os subscritores do aumento obtiveram algum tipo de rendimento, bem como, que a aludida deliberação social veio a ser rectificada em 30.7.2012 dando forma legal ao que já existia em 2009.

Quanto ao primeiro argumento – que teria de ficar provado que os subscritores do aumento obtiveram algum tipo de rendimento – mais não é que uma tentativa de inverter o ónus da prova sem qualquer base legal para tal, tendo em conta a necessidade de ilidir a presunção, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 5, do CIRS e do artigo 73º da LGT.

Quanto ao 2º argumento – que a deliberação social veio a ser rectificada em 30.7.2012 dando forma legal ao que já existia em 2009, como a recorrente bem sabe, tal rectificação só produz efeitos para o futuro, e que desde que a Assembleia Geral da impugnante deliberou – dia 17.7.2009 – o aumento do capital social, esse aumento foi subscrito e realizado pelos sócios AA e BB, que foi objeto de registo comercial, e que por isso, esses sócios ficaram investidos num conjunto de direitos e deveres associados ao aumento da sua participação no capital social da sociedade, os quais vigoraram até à data da rectificação da deliberação que só aconteceu em 30.7.2012.

Face ao exposto, forçoso é concluir que a impugnante/recorrente não logrou ilidir a presunção constante do artigo 6º, nº 4, do CIRS”.

Juntas aos autos as pretendidas decisões judiciais, o inquérito prosseguiu os seus trâmites, tendo sido proferido despacho de acusação a 14.9.2021.

Como resulta da leitura dessa peça processual, consta em Nota prévia o seguinte:

“No que concerne ao montante devido a título de IRS de 2009, per se, temos que integra ilícito contraordenacional (artigo 114.º do RGIT), conforme assumido pela própria Autoridade Tributária, na sequência do que foi instaurado o respectivo procedimento contraordenacional, razão pela qual não será o mesmo logicamente considerado, para efeito de consequência jurídico-criminal, na acusação infra”.

Assim, frisa-se que a impugnação judicial foi julgada improcedente, a acusação levou em considerou as situações relativas a duplicação e triplicação de facturas nos exercícios de 2008 e 2009, que deram origem à libertação de meios financeiros da A... que não foram feitos aos respectivos fornecedores. Segundo a acusação, a A... ficou com uma disponibilidade financeira, pela inexistência de pagamentos a fornecedores, nos exercícios de 2008 e 2009, no montante total de €3.866.947,30.

Nos termos da acusação:

Deste modo, os hipotéticos pagamentos efectuados aos fornecedores, embora contabilizados a débito na conta 22 (fornecedores respectivos), mais não foram do que quantias colocadas à disposição dos subscritores de capital/accionistas (os arguidos AA e BB), que por essa via realizaram na modalidade de entradas em dinheiro o aumento de capital, sem terem despendido os seus meios monetários e enriquecendo o seu património com a aquisição de acções.

Ainda no que tange à subscrição do aumento de capital, também a tributação dos rendimentos colocados à disposição do capital social devia ter sido efectuada pela A..., à taxa liberatória de 20% à data da subscrição, com retenção na fonte, do que resultou imposto em falta referente a IRS – Capitais – Outros Rendimentos, no valor de €773.389,46.

A acusação levou ainda em consideração a situação ocorrida em 2012:

AA e BB, por si e em representação da arguida A..., conhecedores da detecção pela administração fiscal dos factos indicados e bem assim da liquidação de IRS nos termos descritos, delinearam novo plano, agora com o objectivo de se eximirem ao pagamento da quantia devida a título de IRS, mediante a eliminação e adulteração de documentos contabilísticos que estiveram na génese de tal detecção, falseando os resultados, nomeadamente os lançamentos tendentes a diminuir os custos, sem qualquer apoio documental real, e alterando a modalidade de subscrição do referido aumento de capital.

Para a concretização dos objectivos supramencionados, os arguidos AA e BB, por si e na qualidade de representantes legais da A..., contaram com a colaboração dos arguidos DD e CC, nas circunstâncias adiante descritas.

Na prossecução do plano gizado, e no período indicado, os arguidos DD e CC, por indicação e sob a orientação dos arguidos AA e BB, que actuaram por si e em representação da A..., procederam à alteração dos registos contabilísticos da A..., quanto aos exercícios de 2007, 2008 e 2009.

Para tanto, eliminaram os registos contabilísticos informáticos que estiveram na origem das irregularidades detectadas durante a acção inspectiva e elaboraram novos registos contabilísticos que anularam os registos de suporte das correcções efectuadas pela administração fiscal na sequência da acção inspectiva, registos estes reportados às contas de  Compras e bem assim às contas de Capital referentes aos anos de 2008 e 2009, mormente a conta de capital 5117- “Acções”, e ainda à conta 591 – “Resultados Transitados”.

Em data não concretamente apurada, posterior a Março de 2012, foi ainda elaborada a Acta 8A, pelos arguidos, ou por terceiro a seu mando, como reportada a Assembleia Geral da A..., alegadamente realizada em 30 de Julho de 2009, com intervenção de todos os arguidos. Tal acta, na qual se deliberou e aprovou a transferência do montante de €4.525.000,00 para reservas livres, não foi lavrada na data indicada, mas já no decurso de 2012, e uma vez mais com referência ao balanço reportado a 30 de Junho de 2009, adulterado pelo arguido CC nos termos descritos.

Na posse de tais actas, no dia 29 de Agosto de 2012, foi inscrita pelos arguidos AA e/ou BB, com conhecimento e vontade dos demais, no registo comercial, a rectificação do aumento de capital quanto à modalidade e forma de subscrição, que passou a “incorporação de reservas”.

Pelos montantes devidos referentes a IRC e IRS, foram instaurados os processos de execução fiscal nºs ...50 (IRC de 2008), ...68 (IRC de 2009) e ...28 (IRS de 2009), sendo que, em Dezembro de 2014 não havia sido ainda efectuado qualquer pagamento.

O acórdão recorrido conheceu de todos estes e dos demais factos vertidos na acusação.

Ora, os factos objecto da impugnação judicial não são os mesmos dos imputados aos arguidos CC e DD no presente processo crime.

A impugnação judicial dirigiu-se contra a liquidação de retenção na fonte de IRS, do período de tributação de 2009. Foi aí invocado que os accionistas AA e BB não foram beneficiários efectivos da quantia correspondente ao aumento do capital social e que a deliberação social veio a ser rectificada em 30.7.2012, dando forma legal ao que já existia em 2009.

Aliás, esses factos relativos ao montante devido a título de IRS de 2009 deram origem a ilícito contra-ordenacional.

Os factos agora imputados aos arguidos CC e DD, ocorridos em 2012, prendem-se com a eliminação e adulteração de documentos contabilísticos que estiveram na génese da liquidação do IRS, falseando os resultados, nomeadamente os lançamentos tendentes a diminuir os custos, sem qualquer apoio documental real, e alterando a modalidade de subscrição do referido aumento de capital, tudo como resulta da factualidade provada e já supra mencionada.

Assim, frisa-se que a referida impugnação judicial foi julgada improcedente, a decisão proferida no âmbito dessa impugnação foi tida em consideração quer na acusação quer no acórdão recorrido; no entanto, não se pode afirmar que constitua caso julgado em relação aos presentes autos por nela se julgarem factos diversos dos ora imputados aos arguidos CC e DD.

Também nesta parte não assiste razão aos arguidos, improcedendo esta questão por si suscitada.

Questão esta que se prende intimamente com a seguinte: a de saber se consequentemente (isto é, em consequência da autoridade do referido caso julgado), não se encontram preenchidos os elementos típicos do crime de fraude, previsto e punido pelo artigo 103º, nºs 1 e 2, do RGIT ou, pelo menos, tal crime não é punível (questão dos recursos dos arguidos CC e DD).

Alega o arguido CC que a decisão da referida questão prejudicial no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., determina que os factos que o tribunal a quo dá como provados e imputa ao recorrente (as alterações contabilísticas aí mencionadas), não só não importaram, como não eram aptos a determinar “a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias”.

Consequentemente, atento o disposto no nº 1 e nº 2, do artigo 103.º do RGIT, não se mostra representada a prática do crime pelo qual o recorrente foi condenado, ou pelo menos tal crime não é punível. Com a matéria de facto considerada assente pela 1ª instância, deve revogar-se o acórdão recorrido, absolvendo-se o recorrente.

No mesmo sentido alega o arguido DD.

Afirma ele que perante a referida definição da questão prejudicial no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., impõe-se a conclusão de que os factos nos quais o Tribunal a quo considerou que o recorrente participou não só não importaram, como não eram aptos a determinar «a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias».

Ora, como resulta da factualidade provada, os arguidos CC e DD procederam à alteração dos registos contabilísticos da A..., quanto aos exercícios de 2007, 2008 e 2009. Eliminaram os registos contabilísticos informáticos que estiveram na origem das irregularidades detetadas durante a ação inspetiva e elaboraram novos registos contabilísticos, que anularam os registos de suporte das correções efetuadas pela administração fiscal na sequência da ação inspetiva, registos estes reportados às contas de Compras e bem assim às contas de Capital referentes aos anos de 2008 e 2009, mormente a conta de capital 5117- “Ações”, e ainda à conta 591 – “Resultados Transitados”.

Quanto à indicada conta 591, as alterações efetuadas estenderam-se até ao exercício de 2007, tendo por base um documento interno, elaborado pelos arguidos DD e CC, sempre sob a orientação dos arguidos AA e BB, com a designação “Listagem de movimento nº 12030”, respeitante ao ano 2007, com a descrição de “Regularização de existências após contagem no valor de € 4.501.360,77”, sem qualquer suporte documental, e que deu origem ao seguinte registo contabilístico por aqueles efetuado: Débito da conta 3211 – Mercadorias por contrapartida do registo a crédito na conta 591 – Resultados Transitados, no montante acima referido.

Nessa sequência, passou a constar nessa conta o valor necessário para a subscrição do aumento de capital, através de reservas, não passível de tributação como proveito/rendimento extraordinário, reportado ao ano de 2007, donde, à data (2012) não passível de tributação (caducidade).

Nessa senda, em Assembleia Geral da sociedade arguida A..., realizada em 30 de Julho de 2012, na sede societária, e na qual estiveram presentes todos os arguidos, apreciou-se (sob proposta do arguido AA), deliberou-se e aprovou-se a retificação da deliberação do aumento de capital na sequência da Assembleia Geral realizada em 16 de Julho de 2009, alterando a forma de subscrição do capital, que passaria ser em reservas.

Passando o aumento de capital a ser feito em reservas, deixaria de fazer sentido a liquidação do IRS que advinha da modalidade de aumento de capital em dinheiro.

Do que fica dito, facilmente se conclui que a actuação dos arguidos era, sem dúvida, apta a determinar a não liquidação e posterior pagamento do IRS.

Não é o facto de não terem atingido o seu desiderato que abala o que fica dito. De facto, como infra se explicitará aquando da subsunção jurídica, em relação ao tipo objetivo do crime de fraude fiscal revela-se necessário, mas suficiente, o atentado à verdade ou transparência corporizado nas diferentes modalidades de falsificação previstas no nº 1 do artigo 103º do RGIT. Uma infração que se consumará mesmo que nenhum dano ou enriquecimento indevido venha a ter lugar.

Por isso, no crime de fraude fiscal punem-se, desde logo, os actos preparatórios destinados a obter uma vantagem patrimonial indevida nas relações entre o obrigado tributário e o Estado, quer a esses actos se siga o resultado lesivo para o património fiscal ou não.

Como se afirma no Ac. da RP de 16.11.2022, in www.dgsi.pt. “A fraude fiscal consiste em levar a cabo os comportamentos típicos taxativamente elencados nas alíneas do nº 1, do art.º 103º do RGIT, que traduzem a violação de deveres fiscais de colaboração com a administração fiscal, de lealdade e de informação.

Mas o carácter insidioso da fraude fiscal não se resume à mera violação desses deveres. Tal carácter manifesta-se na idoneidade que tais comportamentos têm para provocar a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.

Portanto, o tipo não exige que o bem jurídico seja lesado, mas contém uma cláusula de idoneidade: os comportamentos proibidos têm de ser aptos a atingir um determinado resultado lesivo, sem que este tenha efetivamente de se verificar”.

O que no caso concreto se verifica. A alteração da modalidade de aumento de capital social (de dinheiro para reservas) era apta a atingir o resultado lesivo, ou seja, a não liquidação e posterior pagamento do IRS.

Sem necessidade de outras considerações, neste particular, indefere-se a pretensão dos recorrentes.

 

              *

Próxima questão: se o arguido BB deve ser absolvido dos crimes de fraude fiscal por que foi condenado.

Alega o recorrente que o crime de fraude fiscal estrutura-se como um delito de falsidade preordenada expressamente à produção do dano ou prejuízo patrimonial do fisco. Este dano enquanto tal, porém não é elemento do tipo.

A Jurisprudência é unanime ao concluir que a fraude fiscal se consuma quando o agente com a intenção de lesar patrimonialmente o fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidos pela relação tributaria através de qualquer das modalidades de falsificação prevista no art. 103º do RGIT, ainda que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar.

Assim, não tendo que existir dano, enriquecimento efetivo por parte do sujeito passivo/autor, tem que existir no mínimo a intenção de lesar patrimonialmente o fisco e com atuação do agente essa lesão tem que ser possível, embora possa não ser alcançada.

Neste sentido vai o PARECER do Dr. Germano Marques da Silva que se debruça sobre o presente caso e que ora se junta. Efetivamente “não basta a mera intenção para integrar o tipo de crime de fraude fiscal, sendo necessário que da conduta resulte efetivamente o perigo de diminuição da receita tributária” Desta forma, julgamos que será importante averiguar se os factos praticados tinham a virtualidade de lesar patrimonialmente o fisco e se foram cometidos com essa intenção prévia.

E parece-nos desde logo que não se pode concluir dessa forma.

É um facto incontestável que foram incluídas na contabilidade faturas em duplicado e triplicado relativas a compras de máquinas, fazendo com que a mesma máquina se encontrasse registada mais do que uma vez.

Concluindo-se de imediato que por tal facto “a sociedade aumentou gastos e diminuiu o lucro tributável “obviando ao pagamento do imposto correspondente à declaração do valor real de lucro, o que conseguiram deixando de pagar ao estado de IRC” um total de € 1.025.674,08.

Ora, sucede que tal raciocínio está desde logo errado. Como se refere a contabilização das máquinas em duplicado foi efetuada na conta 31 e 32 (cfr. 23 dos fatos provados)

Ora a conta 31 e 32 não é uma conta de custos, mas sim uma conta de inventários e ativos.

A conta de custos é uma conta da classe 61. (custo das mercadorias vendidas e das mercadorias consumidas – CMVMC).

É que sendo a conta 31 e 32 uma conta de inventários, as faturas duplicadas e triplicadas ao serem contabilizadas nessas contas teriam de automaticamente afetar o inventários/existências.

Dizer, como se diz na sentença que “as referidas faturas duplicadas e triplicadas na contabilidade foram feitas constar pela sociedade arguida como custo da empresa, para efeitos de declaração de IRC”, é uma falácia…

É um facto que o aumento de capital registado em 9/9/2009 não ocorreu por entrada de dinheiro dos sócios, sendo nosso entendimento que resultou efetivamente de reservas existentes na sociedade no montante de € 4.525.000,00.

E se efetivamente o aumento de capital não resultou da entrada em dinheiro dos sócios, mas resultou da disponibilidade de reservas da empresa (que nunca foram colocadas efetivamente na disponibilidade dos sócios) haveria que corrigir a forma de aumento de capital social, alterando a respetiva deliberação, e a respetiva ata e bem assim o subsequente registo comercial.

E não determinaria a tributação em sede de IRS, porquanto não tendo sido disponibilizados tais valores aos sócios, porque nunca entraram efetivamente na sua disponibilidade (já que nunca saíram da esfera da sociedade) não é sujeito a pagamento de IRS. É que o aumento de capital social mediante incorporação de reservas, como efetivamente era o caso, não é sujeito ao pagamento de IRS.

Concluindo, e colocados em crise os factos supra indicados, fica sem sustentação a conclusão de que o arguido praticou um crime de fraude fiscal.

A condenação quanto ao segundo crime de fraude fiscal, carece de total fundamento.

Todas as correções efetuadas a posteriori e relatadas nos factos 36 a 52 resultam diretamente do que foi apurado pela inspeção tributária e que assim importava corrigir.

Apurados os factos ilícitos e com incidência fiscal pela inspeção tributária, naquele relatório, seria inócuo o tratamento posterior que os arguidos lhes dariam. É neste sentido que vai também o disposto no artigo 59º do CPPT quando dispõe que a entrega de declarações de substituição ou a correção do erro não isenta ou altera a responsabilidade tributária e contraordenacional que couber pelo erro cometido, pelo que também não alteraria a responsabilidade criminal.

Pelo que não se alcança como pode a actuação dos arguidos descrita nos fatos 36 a 52 ter a virtualidade ou a possibilidade de colocar em causa as contas do estado e assim dar lugar a prática do crime de fraude fiscal.

Assim detetado o erro pela AT, a correção dos mesmos pelos arguidos, ou qualquer alteração ou simulação subsequente, era inócua, uma vez que os impostos a liquidar pela arguida A... tinham sido já liquidados pela AT.

É também neste sentido que vai o douto PARECER que ora se junta e que se debruço sobre o caso sub judice.

Na verdade, como é aí relatado “ocorreu manifesta inaptidão do meio, porquanto tendo sido liquidado o IRC e IRS devidos pelas operações reportadas a 2009,” as posteriores correções e a deliberação constante da ata 17, “posterior ao ato de liquidação efetuado pela Direção de Finanças ..., não possuía a virtuosidade de alterar os pressupostos dessas liquidações, e por inerência, de determinar a respetiva anulação” (…) “ Com efeito, a deliberação da assembleia geral de 30 de julho de 2012 e atos subsequentes pertinentes à sua execução não eram subjetiveis de causarem diminuição das receitas tributárias, mesmo que por mera hipótese, tivesse sido esse o propósito dos accionistas” (…) “ a liquidação dos impostos em causa tinha sido feita em data anterior à deliberação da assembleia em 2012 e por isso essa deliberação era absolutamente ineficaz quanto à anulação das anteriores liquidações feitas nos termos legais, como aliás, veio a ser posteriormente confirmado pelas decisões dos tribunais administrativos”.

Assim, não se alcança como pode ser imputado aos arguidos a prática de um segundo crime de fraude fiscal, quando efetivamente já se encontravam consumados os factos ilícitos que conduziram e levaram a não liquidação ou pagamento da prestação tributaria conforme impõe o disposto no art. 103º nº 1 do RGIT

É que as condutas imputadas aos arguidos em 2012 incidiam sobre os mesmos factos tributários de 2008 e 2009 (fatos 1 a 35), já detetados pela AT que corrigiu a matéria coletável e os impostos a pagar, efetuando as liquidações oficiosas.

Dito de outro modo:

“Os atos praticados em 2009 e 2012 tiveram a mesma finalidade qual fora a não liquidação dos impostos quer pela angariação dos meios monetários necessários ao aumento do capital quer da sua atribuição as acionistas da sociedade. Em 2009 a angariação dos meios monetários para o aumento teria sido feita pela contabilização repetida das mesmas faturas ou de faturas inexistentes enquanto em 2012 teria sido pela reavaliação dos ativos e o aumento do capital da sociedade por incorporação de reservas”.

(…)

Não ocorre do comportamento dos arguidos uma atuação com o fim de dupla fuga aos impostos em causa, mas apenas uma, embora em duas tentativas: uma em 2009 e outra em 2012. Tratando-se da fuga aos mesmo impostos relativos aos mesmos pressupostos tributários não pode haver lugar a 2 crimes, um reportado a 2009 e outro reportado 2012”.

Condenar os arguidos pelas condutas descritas nos fatos 36, 48 e 58 é condená-los duplamente pelo mesmo facto ilícito típico, (violando-se o disposto no art. 29º nº 5 da CRP) pois que são factos que se reconduzem a evitar a mesma tributação, que já se encontrava apurada e liquidada pelo relatório da inspeção tributária de 2011.

Vejamos, então.

Nos termos do artigo 103º, nº 1, alínea a) do RGIT, na redação originária dada pela Lei nº 15/2001, de 05.06, “constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável”.

Por sua vez, nos termos do artigo 104º, nº 1, do RGIT, na redação originária dada pela Lei nº 15/2001, de 05.06, os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares … quando se verificar a acumulação de mais de uma das circunstâncias descritas nas várias alíneas dessa norma.

Dispõe o artigo 104º, nº 2, do RGIT, que “a mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente”.

Com a redacção que lhe foi dada Lei nº 64-B/2011, de 30.12, o artigo 104º, nº 1, alíneas a), d) e e) e nº 3, ambos do RGIT, estipula que:

1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:

a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;

d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;

e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro.

3 - Se a vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 200 000, a pena é a de prisão de 2 a 8 anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas colectivas.

No que respeita ao bem jurídico protegido no crime de fraude fiscal, aponta a jurisprudência para a ofensa à Conta do Estado na rubrica que inclui as receitas fiscais destinadas à realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social (cfr. Ac. da RC de 2.10.2013, in www.dgsi.pt), mas também para a pretensão do Estado de contar com uma colaboração leal dos cidadãos na determinação dos factos tributáveis, ou seja, a pretensão do Estado à revelação dos factos fiscalmente relevantes, construindo-se a ilicitude na base da violação de deveres de colaboração com a administração financeira e, portanto, do desvalor de acção (cfr. Ac. da RP de 16.11.2022, in www.dgsi.pt - citando Figueiredo Dias e Costa Andrade, no Estudo publicado na RPCC (Revista Portuguesa de Ciência Criminal).

Como se afirma no Ac. da RC de 2.10.2013, in www.dgsi.pt, “a fraude fiscal abrange todas as condutas ilegítimas que tenham em vista a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causar a diminuição das receitas tributárias. Tal pode processar-se por ocultação ou alteração dos factos ou valores que devam constar das declarações apresentadas ou prestadas, a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria tributável, a ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração fiscal e a celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.

O crime de fraude fiscal é um crime comum, na medida em que pode ser praticado por qualquer pessoa e é um crime de perigo em que o bem jurídico protegido é a ofensa à Conta do Estado na rubrica que inclui as receitas fiscais destinadas à realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social.

Como referem António Tolda Pinto e Jorge Manuel Bravo, in Regime Geral das Infrações Tributárias, anotado, em anotação ao art. 103, e relativamente ao crime de fraude fiscal, «este crime classificado doutrinalmente como um crime de resultado cortado ou de tendência interna transcendente, o mesmo consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efetivamente, bastando-se a lei com a circunstância de “as condutas ilegítimas tipificadas” visem ou sejam preordenadas à obtenção de vantagens patrimoniais “suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias”. Isto é, será suficiente que a conduta seja preordenada a tal fim, sendo a eventual verificação do resultado lesivo apenas relevante em sede de aplicação concreta e medida da pena».

Neste sentido, Ac. desta Relação de 09-05-2007, proc. 11/04.7IDCBR.C1, que refere, “o crime de fraude fiscal, previsto no art. 103 do RGIT, consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial venha a ocorrer efetivamente”.
“Para a punição do agente basta comprovar que este quis as respetivas (ações ou) omissões e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à consequente diminuição das receitas tributárias”.

Também no já citado Ac. da RP de 16.11.2022, in www.dgsi.pt, se pode ler “no que ao tipo objetivo do crime de fraude fiscal concerne, necessário – e suficiente – ao preenchimento da factualidade típica é apenas o atentado à verdade ou transparência corporizado nas diferentes modalidades de falsificação previstas no nº 1 do art.º 103º do RGIT. Uma infração que se consumará mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar.

Por isso, … no crime de fraude fiscal punem-se desde logo os atos preparatórios destinados a obter uma vantagem patrimonial indevida nas relações entre o obrigado tributário e o Estado, quer a esses atos se siga o resultado lesivo para o património fiscal ou não. …

Os comportamentos que são objeto de reprovação jurídico-penal pelo crime de fraude fiscal têm em comum visarem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.

Deste modo, o tipo de ilícito põe em paralelo, sem distinção em matéria de punição, as vantagens patrimoniais ilegítimas obtidas mediante o cálculo do montante do imposto inferior ao efetivamente devido, o recebimento indevido de uma quantia pecuniária resultante da aplicação das normas fiscais e a não tributação, total ou parcial, de determinado rendimento que à partida seria tributado.

A fraude fiscal consiste em levar a cabo os comportamentos típicos taxativamente elencados nas alíneas do nº 1, do art.º 103º do RGIT, que traduzem a violação de deveres fiscais de colaboração com a administração fiscal, de lealdade e de informação.

Mas o carácter insidioso da fraude fiscal não se resume à mera violação desses deveres. Tal carácter manifesta-se na idoneidade que tais comportamentos têm para provocar a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.

Portanto, o tipo não exige que o bem jurídico seja lesado, mas contém uma cláusula de idoneidade: os comportamentos proibidos têm de ser aptos a atingir um determinado resultado lesivo, sem que este tenha efetivamente de se verificar. Deste modo, no que respeita à sua estrutura típica, o crime de fraude fiscal consubstancia um crime de perigo abstrato-concreto: o tipo não exige que o perigo venha efetivamente a verificar-se.

Não sendo um crime de resultado, o desvalor de resultado, caso se verifique, pode assumir relevância, designadamente para efeito de determinação da medida da pena.

Em resumo, o crime de fraude fiscal é um crime específico: o sujeito ativo deste crime tem de ser o sujeito passivo daquela relação tributária – isto é, o contribuinte ou o substituto do contribuinte, “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável” (art.º 18º, nº 3, da LGT).

Tal não invalida, no entanto, que o círculo dos sujeitos que podem cometer o crime de fraude fiscal possa, em concreto, ser alargado por força da aplicação das regras legais de comparticipação criminosa, das regras legais da atuação em nome de outrem e das regras legais da responsabilidade das pessoas coletivas.

Quanto à comparticipação criminosa, não existe especialidade face às normas do direito penal comum. A questão encontra resposta na norma do art.º 28.º do Código Penal.

Como salienta Henrique Salinas Monteiro (“A Comparticipação em Crimes Especiais no Código Penal”, 1999, pág. 336), a solução adotada no Código Penal, para resolver as hipóteses de comparticipação em crimes especiais, consiste num alargamento do âmbito de aplicação pessoal dos tipos respetivos. Este resultado é alcançado mediante uma norma da parte geral, que permite a punição do extranei a título de autoria nestes crimes, ao estabelecer que basta que intervenha um comparticipante (punível como autor ou cúmplice) intraneus, para que todos respondam pelo crime especial.

No que concerne ao tipo subjetivo de ilícito, o crime de fraude fiscal configura-se como um crime doloso (sendo punível sob qualquer categoria de dolo – direto, necessário ou eventual), não se afigurando a exigência de verificação de um dolo específico”.

Voltando ao caso concreto, atendendo à factualidade provada, mormente que:

- Os arguidos AA e BB, por si e em representação da sociedade arguida A..., delinearam um plano com o objetivo de, enquanto lhes fosse possível, de forma regular e reiterada, obterem à custa do Estado Português vantagens patrimoniais que sabiam não lhes serem devidas, para si e para a sociedade A..., através da simulação de fluxos, recorrendo a transações fictícias no âmbito de emissão de faturas sem que existisse na realidade o bem ou o serviço transacionado declarado através de faturação, sempre com o fim último de empolar custos e diminuir artificialmente os lucros com efeitos no IRC.

- a sociedade arguida A..., através dos arguidos AA e BB, que atuaram por si e em nome e representação da mesma, procedeu à contabilização de faturas, em duplicado ou em triplicado, que mais não eram do que cópias de faturas originais, já contabilizadas, ou de faturas diversas mas referentes à mesma operação/aquisição de faturas já contabilizadas, não tendo assim subjacente a prestação de qualquer serviço ou venda, as quais infra se referem como “duplicado/triplicado”.

- Com a descrita conduta, a sociedade arguida A..., no ano de 2008, contabilizou em duplicado/triplicado faturas, com o objetivo de reduzir o lucro tributável, alcançando a seguinte vantagem patrimonial ilegítima no montante de €647.470,63.

- Com a descrita conduta, a sociedade arguida A..., no ano de 2009, contabilizou em duplicado/triplicado faturas, com o objetivo de reduzir o lucro tributável, alcançando a seguinte vantagem patrimonial ilegítima no montante de € 378.203,45.

- Em suma, fazendo uso das supraditas faturas, a sociedade arguida A... enriqueceu-se, em detrimento da Fazenda Nacional, no montante global de €1.025.674,08, sendo €647.470,63 respeitante ao exercício do ano de 2008, e €378.203,45 respeitante ao exercício do ano de 2009.

- As faturas referidas, registadas em duplicado e triplicado nos exercícios de 2008 e 2009, nos montantes de €2.488.336,40 e €1.443.524,62, respetivamente, e que totalizam nos dois exercícios o montante de €3.931.861,02, deram origem à libertação de meios financeiros da A... que não foram feitos aos fornecedores identificados nas contas correntes.

- Assim, de acordo com o comum plano previamente delineado, a sociedade arguida A..., através dos arguidos AA e BB, que atuaram por si e em nome e representação da mesma, ou de terceiro a seu mando, registaram contabilisticamente as saídas de meios financeiros relacionados com os “hipotéticos pagamentos das faturas”, que ocorreram no exercício de 2008 e 2009, no valor global de €3.866.947,30, associados a fornecimentos inexistentes, a que corresponderam também pagamentos inexistentes, tendo por consequência o depósito e/ou transferência do dinheiro de uma conta bancária da A... para outras contas bancárias da mesma.

- A sociedade arguida A... ficou com uma disponibilidade financeira, pela inexistência de pagamentos a fornecedores, nos exercícios de 2008 e 2009, no montante total de €3.866.947,30, o qual foi debitado na conta n.º 12 (Conta Bancos), pela entrada desses meios financeiros nas contas bancária da A....

- Com efeito, no dia 17 de Julho de 2009, em Assembleia Geral da sociedade arguida A..., na qual estiveram presentes os arguidos AA e BB, foi deliberado e aprovado, por proposta de AA, o aumento do correspondente capital social em €4.525.000,00, com a emissão de 452.500 ações, no valor de €10,00 cada, mediante a subscrição dessas ações pelos arguidos AA e BB, a ser realizada através de novas entradas em dinheiro até ao final do ano de 2009.

- Na sequência da deliberação, foi efetuada a subscrição e realização do aumento do capital social da sociedade arguida A..., através da conta n.º 2649, em nome desses arguidos, sendo que, em 31 de Julho de 2009, foi registado um lançamento a débito no montante de €4.525.000,00, pela subscrição das ações pelos sócios, e, entre 1 de Janeiro de 2009 e 14 de Dezembro de 2009, foram registados vários lançamentos a crédito, no mesmo montante, pela realização do referido aumento do capital social.

- Deste modo, os hipotéticos pagamentos efetuados aos fornecedores, embora contabilizados a débito na conta 22 (fornecedores respetivos), mais não foram do que quantias colocadas à disposição dos subscritores de capital/acionistas (os arguidos AA e BB), que por essa via realizaram na modalidade de entradas em dinheiro o aumento de capital, sem terem despendido os seus meios monetários e enriquecendo o seu património com a aquisição de ações.

- Ainda no que tange à subscrição do aumento de capital, também a tributação dos rendimentos colocados à disposição do capital social devia ter sido efetuada pela A..., à taxa liberatória de 20% à data da subscrição, com retenção na fonte, do que resultou imposto em falta referente a IRS – Capitais – Outros Rendimentos, no valor de €773.389,46.

- Os arguidos agiram sempre por si e em representação da sociedade arguida, em nome desta e no interesse coletivo, de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão de esforços e intentos.

Os arguidos AA e BB receberam e utilizaram as faturas acima referidas de forma voluntária, livre e consciente, cada um sob a mesma resolução criminosa, cientes que tais faturas não correspondiam a quaisquer serviços prestados e/ou materiais fornecidos por quem nelas constava como emitente, a favor dos mesmos, que as quiseram aceitar e lançar nas respetivas contabilidades.

Conheciam o funcionamento da incidência fiscal, nomeadamente que, em sede de IRC, a contabilização de faturas emitidas por um terceiro operador económico correspondia a um custo que tinha a virtualidade de diminuir a matéria coletável e, logo, a diminuição do pagamento do respetivo imposto.

Os arguidos AA e BB fizeram assim crer aos Serviços da Administração Tributária que as respetivas declarações periódicas de IRC apresentadas se baseavam em documentos que titulavam verdadeiras transações, induzindo-os em erro quanto à sua autenticidade, e, nessa sequência, locupletando-se com os montantes supra indicados.

Ora, no que respeita ao primeiro crime de fraude fiscal sub judice, perante tal factualidade provada, inexistem quaisquer dúvidas de que estão verificados todos os elementos objectivos e subjectivos.

No que respeita ao segundo crime, não se pode afirmar que os factos sejam os mesmos.

Resultou provado, em suma, que:

- Entre Março de 2012 e 30 de Julho de 2012, os arguidos AA e BB, por si e em representação da arguida A..., conhecedores da deteção pela administração fiscal dos factos indicados e bem assim da liquidação de IRS nos termos descritos, delinearam novo plano, agora com o objetivo de se eximirem ao pagamento da quantia devida a título de IRS, mediante a eliminação e adulteração de documentos contabilísticos que estiveram na génese de tal deteção, falseando os resultados, nomeadamente os lançamentos tendentes a diminuir os custos, sem qualquer apoio documental real, e alterando a modalidade de subscrição do referido aumento de capital.

- Na prossecução do plano gizado, e no período indicado, os arguidos DD e CC, por indicação e sob a orientação dos arguidos AA e BB, que atuaram por si e em representação da sociedade arguida A..., procederam à alteração dos registos contabilísticos da A..., quanto aos exercícios de 2007, 2008 e 2009.

- Para tanto, eliminaram os registos contabilísticos informáticos que estiveram na origem das irregularidades detetadas durante a ação inspetiva e elaboraram novos registos contabilísticos, que anularam os registos de suporte das correções efetuadas pela administração fiscal na sequência da ação inspetiva, registos estes reportados às contas de Compras e bem assim às contas de Capital referentes aos anos de 2008 e 2009, mormente a conta de capital 5117- “Ações”, e ainda à conta 591 – “Resultados Transitados”.

- Quanto à indicada conta 591, as alterações efetuadas estenderam-se até ao exercício de 2007, tendo por base um documento interno, elaborado pelos arguidos DD e CC, sempre sob a orientação dos arguidos AA e BB, com a designação “Listagem de movimento nº 12030”, respeitante ao ano 2007, com a descrição de “Regularização de existências após contagem no valor de € 4.501.360,77”, sem qualquer suporte documental, e que deu origem ao seguinte registo contabilístico por aqueles efetuado: Débito da conta 3211 – Mercadorias por contrapartida do registo a crédito na conta 591 – Resultados Transitados, no montante acima referido.

41. Nessa sequência, passou a constar nessa conta o valor necessário para a subscrição do aumento de capital, através de reservas, não passível de tributação como proveito/rendimento extraordinário, reportado ao ano de 2007, donde, à data (2012) não passível de tributação (caducidade).

42. Nessa senda, em Assembleia Geral da sociedade arguida A..., realizada em 30 de Julho de 2012, na sede societária, e na qual estiveram presentes todos os arguidos, apreciou-se (sob proposta do arguido AA), deliberou-se e aprovou-se a retificação da deliberação do aumento de capital na sequência da Assembleia Geral realizada em 16 de Julho de 2009, alterando a forma de subscrição do capital, que passaria ser em reservas.

- Sucede que também o balanço anexo a esta ata, como respeitante a 30 de Junho de 2009, foi alvo de adulteração pelo arguido CC, já em 2012, enquanto TOC da sociedade arguida A..., não tendo correspondência com a real contabilidade da sociedade, uma vez que do mesmo resulta a existência de resultados transitados no montante de € 4.939.447,75, divergentes dos reais (€ 438.086,98 e Reservas Livres de €0,00).

- Ademais, em data não concretamente apurada, posterior a Março de 2012, foi ainda elaborada a Ata 8A, pelos arguidos, ou por terceiro a seu mando, como reportada a Assembleia Geral da sociedade arguida A..., alegadamente realizada em 30 de Julho de 2009, com intervenção de todos os arguidos, com o seguinte teor:

“Aos trinta dias de Julho de dois mil e nove, pelas dezoito horas, reuniu-se na sede social a Assembleia Geral da sociedade A..., S.A, com capital social 2.175.000,00 (dois milhões cento e setenta e cinco mil euros) para os efeitos previstos no artigo 376º do Código das Sociedades Comerciais, na sequência da convocatória efectuada nos termos legais, sob a presidência do Sr. Dr. RR, secretariado pelo Sr. CC na ausência do Dr. OO, secretário da referida mesa.

A ordem do dia constante na convocatória foi a seguinte:

Único: Apreciação e deliberação sobre a aprovação do balanço reportado a 30 de Junho do corrente ano.

Estiveram presentes os accionistas Sr. AA, e Sr. BB, que individualmente e em representação da sociedade, assim como da accionista A... SGPS,SA representam a totalidade do capital social.

Esteve também presente o Revisor Oficial de Contas da empresa.

Entrando no ponto único da ordem de trabalhos, tomou a palavra o Presidente do Conselho de Administração, Sr. AA, que fez uma breve explicação do balanço reportado a 30 de Junho do corrente ano, do qual resulta a existência de resultados transitados no montante de € 4.939.447,75 (quatro milhões novecentos e trinta e nove mil quatrocentos e quarenta e sete euros e setenta e cinco cêntimos). No uso da palavra propôs a todos os accionistas a aprovação do referido balanço e que dos referidos resultados seja transferida a verba de € 4.525.000,00 (quatro milhões quinhentos e vinte e cinco euros) para reservas livres, proposta esta que foi aprovada por unanimidade”.

Tal ata, na qual se deliberou e aprovou a transferência do montante de €4.525.000,00 para reservas livres, não foi lavrada na data indicada, mas já no decurso de 2012, e uma vez mais com referência ao balanço reportado a 30 de Junho de 2009, adulterado pelo arguido CC nos termos descritos.

A subscrição do aumento de capital em reservas nos termos descritos, teria como consequência a não tributação em sede de IRS e que estava na origem do dito processo de contraordenação.

Relativamente a este último facto, atendendo à alegação do recorrente, cumpre reafirmar que a actuação dos arguidos era apta a atingir os objectivos pretendidos, a não tributação em sede de IRS, já que esta tributação dizia respeito ao aumento de capital por dinheiro. Passando este a ser efectuado através de reservas, deixaria de existir causa para a retenção do IRS.

É claro que tudo isso foi levado a cabo, nomeadamente, com a eliminação e adulteração de documentos contabilísticos, com a elaboração do referido documento referente à Regularização de existências, sem qualquer suporte documental, bem como com a elaboração da acta 8-A.

Nada disto se pode assemelhar a qualquer erro mencionado no artigo 59º do CPPT.

Não é pelo facto da justiça tributária não ter dado procedência à respectiva impugnação judicial que infirma o que acaba de se expôr.

Como se disse, punem-se, desde logo, os actos preparatórios destinados a obter uma vantagem patrimonial indevida nas relações entre o obrigado tributário e o Estado, quer a esses actos se siga o resultado lesivo para o património fiscal ou não.

Os actos levados a cabo pelos arguidos eram idóneos a provocar a não entrega ou pagamento da prestação tributária.

Pelo que fica dito e atendendo à demais factualidade que resultou provada, conclui-se que também em relação ao segundo crime de fraude fiscal sub judice estão verificados todos os elementos objectivos e subjectivos.

Improcede, igualmente, esta questão colocada pelo arguido BB.

             *

Cumpre agora apreciar se o arguido AA deve ser absolvido do crime de fraude fiscal qualificada, correspondente aos factos provados dos pontos 36 a 53, por que foi condenado.

Alega o arguido que o Tribunal a quo extraiu conclusões quanto à matéria de facto – nomeadamente quanto à correspondência das declarações corrigidas à realidade da empresa – que não são suportadas pela prova produzida, seja ela testemunhal, seja ela a relativa à situação tributária apurada pelo TCA Sul, que se tem por fixada quanto ao valor, natureza do tributário e data do facto tributária e nada mais.

Sendo o raciocínio seguido para tais conclusões ilógico e inconsistente, por traduzir a afirmação de que tudo quanto não é provado ser verdadeiro então apenas pode ser falso…

O que, além de uma inversão inadmissível e ilegal do ónus da prova – que recai sobre a Acusação – quanto à verificação dos elementos típicos do crime (nomeadamente aqueles relativos à adulteração de registos e o propósito de tal adulteração visar impedir a AT de realizar as suas tarefas),

Traduz uma errada interpretação e aplicação do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), o que, correspondendo a uma errada aplicação do Direito, pode e deve ser invocado em sede de recurso, com manifesto impacto na decisão da matéria de facto, a qual não se pode manter por não suportada em qualquer elemento probatório bastante.

Com a consequente revogação parcial da decisão da matéria de facto dada como provada sob 36. a 53., retirando-se da mesma qualquer referência como estando provada a:

i.

a adulteração contabilística; e/ou

ii.

a falta de correspondência entre a realidade e os elementos contabilísticos (nomeadamente o balanco a 30.06.2012) e, consequentemente, entre a realidade e as declarações corrigidas.

Não se podendo, consequentemente, dar como preenchido o tipo de fraude fiscal qualificada do art. 104.º, n.ºs 1, al. a); d); e e) e n.º 3, do RGIT, desde logo por não se encontrar preenchida a conduta típica prevista no art. 103.º, n.º 1, al. a), do RGIT ou falsidade dos documentos e recurso ao mesmos a que se refere o n.º 1 do art. 104.º do mesmo Regime.

Devendo o Recorrente ser absolvido da prática do referido crime.

E, em conformidade (em caso de improcedência do demais invocado neste Recurso), apenas se mantendo a condenação a 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão do RGIT (a primeira das duas penas aplicadas), ser apreciada a possibilidade de suspensão da pena (e ordenada a final), nos termos e condições constantes do art. 14.º do RGIT.

Ora, face à improcedência da impugnação da matéria de facto, cai por terra o fundamento de tal pretensão.

Assim, sem necessidade de outras considerações, conclui-se, como fez o tribunal a quo, que estão verificados todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de fraude qualificada correspondente aos factos provados dos pontos 36 a 53, o que conduz necessariamente à condenação do arguido.

Com a factualidade provada do acórdão recorrido, a subsunção jurídica efectuada neste particular não merece qualquer censura.

Improcede esta questão suscitada pelo arguido AA.

             *

A próxima questão é a de saber se estão verificados os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de fraude fiscal qualificada por que foi condenado o arguido CC.

Alega o recorrente que admitindo que os coarguidos praticaram tais factos/condutas dados como provados no d. acórdão recorrido, e que com isso visassem o não pagamento daquele IRS referente a 2009, tal pretensão seria ineficaz não passando de mera tentativa impossível por manifesta inaptidão do meio empregado e bem assim por inexistência do objeto essencial à consumação do crime de fraude fiscal.

Em harmonia com o d. acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, referente ao processo de impugnação judicial nº 1022/12.... deduzido pela sociedade coarguida A... Sa., do qual resulta que os factos provados e imputados ao coarguido CC no d. acórdão recorrido, nunca seriam aptos/preordenados à obtenção de qualquer vantagem, ou seja, nunca seriam suscetíveis de causarem diminuição da receita tributária em sede do IRS relativo a 2009.

Com efeito,

Resulta da decisão do referido acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, que as alterações contabilísticas imputadas ao recorrente, apenas produzem efeitos a partir do momento em que as mesmas são efetuadas, 2012 em diante, e nunca retroativamente por forma a poder prejudicar a liquidação desse IRS referente ao período de tributação de 2009.

Portanto, as alterações contabilísticas imputadas ao recorrente, são inócuas quanto à liquidação desse IRS de 2009, e, consequentemente, quanto à receita tributária desse imposto nesse período, não sendo suscetíveis de obterem qualquer vantagem e diminuírem a receita tributária!         

No sentido que, não chegou sequer a existir um perigo para o património do estado referido no fato 59, desde logo porque tal conduta nunca seria apta a tal, nos termos da decisão do acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, referente ao processo de impugnação judicial nº 1022/12.....

Dão-se aqui por reproduzidas as considerações teóricas já tecidas acerca dos elementos típicos do crime sub judice, bem como todas as demais proferidas aquando da subsunção da conduta do arguido BB.

Acrescenta-se apenas que, face à factualidade provada, não estamos perante qualquer tentativa impossível, estamos sim perante a prática de actos subsumíveis nos artigos 103º, nº 1, alínea a) e 104º, nº 1, alíneas a), d) e e) e nº 3, ambos do RGIT.

Foram levados a cabo os comportamentos típicos elencados nas referidas normas, que traduzem a violação de deveres fiscais de colaboração com a administração fiscal, de lealdade e de informação.

É certo que os arguidos não conseguiram atingir os seus objectivos relativamente ao não pagamento do IRS; porém, como se disse, o dano/enriquecimento indevido não é elemento típico do crime em causa.

O facto de não haver dano, não transmuta a conduta ilícita numa tentativa impossível.

Reafirma-se, punem-se desde logo os atos preparatórios destinados a obter uma vantagem patrimonial indevida nas relações entre o obrigado tributário e o Estado, quer a esses actos se siga o resultado lesivo para o património fiscal ou não.

A idoneidade do comportamento dos arguidos para provocar o não pagamento do IRS prende-se com a alteração, de forma fraudulenta, da modalidade de aumento de capital, de dinheiro para reservas.

Apesar da impugnação judicial, apenas não conseguiram atingir tal desiderato face à decisão da justiça tributária.

Também relativamente ao arguido CC estão verificados todos os elementos objectivos e subjectivos do crime por que foi condenado.

Improcede esta questão por si suscitada.

             *

Próxima questão: se estão verificados os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de fraude fiscal qualificada por que foi condenado o arguido DD.

Alega o recorrente que, como foi profusamente evidenciado e decidido no Acórdão tirado pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, no Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., em 7/5/2020, transitado em 2/7/2020, cuja certidão faz fls. 1377 a 1402, o IRS a que se refere o acórdão sob recurso teve por causa/origem a distribuição de dividendos, pela coarguida A..., S. A., em 2009, aos coarguidos AA e BB, seus acionistas, para estes subscreverem em dinheiro o aumento de capital dessa sociedade então deliberado, tendo esse imposto nascido em setembro de 2009, não produzindo a deliberação de retificação daquele aumento de capital, tomada em assembleia geral da referida sociedade de 30/7/2012, efeitos retroativos, mantendo-se assim a liquidação do aludido imposto, anteriormente efetuada pela AT, com referência a setembro de 2009, na esfera jurídica da A..., S. A.

Por conseguinte, a referida deliberação de 30/7/2012, bem como os demais factos ocorridos nesse ano que estiveram na génese da mesma, designadamente as correções contabilísticas em que o recorrente interveio, manifestamente, não eram suscetíveis/aptos/idóneos a «eximirem [qualquer dos arguidos] ao pagamento da quantia devida a título de IRS», «a isentar a sociedade A... do pagamento do IRS devido», em suma, a «causarem diminuição das receitas tributárias».

Na realidade, os factos ocorridos em 2012, que envolveram a participação do recorrente, constituíram um meio manifestamente inapto para provocar a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, relativamente ao IRS devido pela coarguida A..., S. A., referente a setembro de 2009, o qual já havia sido liquidado pela AT antes daqueles factos, estando a correr uma execução fiscal para cobrança do mesmo, não possuindo os mencionados factos de 2012 a virtuosidade de alterarem os pressupostos da referida liquidação e, por inerência, de determinar a sua anulação, como veio a ser decidido pela jurisdição fiscal, no sobredito Processo de Impugnação Judicial n.º 1022/12...., nem, portanto, obstar à cobrança do aludido imposto.

Deste modo, o bem jurídico tutelado pelos arts. 103.º e 104.º do RGIT podia ser novamente ofendido ou posto em perigo, donde não poder consumar-se o crime de fraude fiscal com base nos factos em que o recorrente interveio.

Acresce que, compulsados os factos ocorridos em 2012 em que o recorrente interveio, verifica-se que inexiste o objeto essencial à consumação do crime de fraude fiscal.

Com efeito, por um lado, a AT já anteriormente tinha apurado os factos geradores do IRS devido em 2009 e efetuado a respetiva liquidação oficiosa, tendo aliás instaurado execução fiscal com base nessa liquidação.

E, por outro lado, como já se disse, os mencionados factos de 2012, designadamente a deliberação de 30/7/2012, não possuíam a virtuosidade de alterar os pressupostos daquela liquidação de IRS, obter a sua anulação e obstar à cobrança desse imposto pela AT na execução fiscal pendente com base na mesma, não sendo suscetíveis de causarem diminuição das recetas tributárias.

Para além de que aqueles factos não constituíam um novo ato passível de tributação autónoma, o que só ocorreria se tivessem a virtuosidade de alterar os pressupostos das liquidações relativas a 2019 e, consequentemente, importar a anulação das mesmas.

Atendendo à factualidade provada e a todas as considerações já supra tecidas, que aqui se dão por reproduzidas, também em relação a este arguido se encontram verificados todos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime sub judice.

Acresce que não assiste razão ao recorrente quando afirma que, reportando-se as condutas de 2012 ao mesmo facto tributário e crime consumado em 2009, no limite, devem configurar-se tão-só como atos de defesa frustrada, mas não como constitutivos de um novo crime de fraude fiscal.

A não se entender assim, estar-se-ia perante uma dupla incriminação de fraude fiscal atinente a um só e mesmo comportamento típico descrito na al. a) do n.º 1 do art. 103.º do RGIT cujo crime se encontrava consumado desde 2009, o que seria inconstitucional por violador do bis in eadem (art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), sendo assim não puníveis os factos posteriores, ocorridos em 2012”.

Como já se deixou dito supra, os factos ocorridos nas duas situações subsumidas nos crimes de fraude fiscal são bem distintos, não se verificando a violação do princípio ne bis in idem.

A vantagem patrimonial ilegítima que se pretendia conseguir com as condutas relativas ao segundo crime de fraude fiscal, corresponde ao montante do referido IRS, no valor de €773.389,46.

Como se diz no ponto 58 da factualidade provada:

58. As irregularidades acima referidas, realizadas pelos arguidos CC e DD, na sequência de plano gizado com os arguidos AA e BB, por si e na qualidade de legais representantes da sociedade arguida A..., e sob a orientação destes, que influenciaram os resultados líquidos da sociedade A..., foram feitas com o objetivo de falsear os resultados, nomeadamente os lançamentos tendentes a diminuir os custos, sem qualquer apoio documental real, com base apenas em mera nota interna, e a sobreavaliação das existências finais, com vista a refletir, nas contas dos exercícios de 2007 a 2009, uma situação que a sociedade arguida A... não tinha e possibilitar a alteração da subscrição de aumento do capital, de modo a isentar a sociedade A... do pagamento do IRS devido, o que não seria viável sem aqueles arranjos artificialmente conseguidos por via contabilística.

Assim, não tem cabimento afirmar que tais factos nunca seriam puníveis face ao disposto no artigo 103º, nº2, do RGIT, nos termos do qual “os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000”.

Neste particular, não assiste razão ao recorrente, improcedendo as questões suscitadas.

             *

Cumpre agora apreciar se o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, na parte relativa à medida das penas parcelares e única, mormente por não ter atendido ao prejuízo causado pelos crimes, de acordo com o disposto no artigo 13º do RGIT (questão do recurso do arguido AA).

Alega o arguido que existe um segmento decisório relativo à determinação das penas (e respetiva medida), o que se traduz no (aparente) cumprimento do disposto no artigo 375º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Em clara concretização do dever fundamentação, de facto e de direito, das sentenças judiciais (art. 374.º, n.º 2, do CPP), sob pena da verificação de vício de nulidade nos termos do disposto no artigo 379.º do CPP, vício esse invocável em sede de recurso (cfr. artigos 379.º, n.º 3 e 410.º, n.ºs 1 e 3, todos do CPP).

No entanto, compulsado o douto Acórdão na parte relativa a tais operações de determinação das penas (parcelares e única), constata-se que o Tribunal a quo se socorreu de formulações meramente genéricas ou tabelares como sejam:

i. o modo de prática dos factos e a gravidade dos mesmos, assim como as circunstâncias em que ocorreram e a sua duração, que permitem concluir por um grau de ilicitude e de culpa bastante elevados” – não se reportando sequer individualmente a cada um dos crimes imputados e cuja prática se considerou demonstrada, muito menos qual o “modo” e “circunstâncias” em causa e o concreto motivo pelo qual se entende que as mesmas permitem concluir por um grau de ilicitude bastante elevado, assim se dificultando uma apreciação crítica e a fundamentação tão objetiva quanto possível das razões de discordância de tal juízo em sede de recurso;

ii. o grau de participação nos factos” – que se afigura não suficientemente relevado na fundamentação do Acórdão (na matéria da determinação da pena) e, consequentemente, não permite concluir, por exemplo, se é um eventual diferente grau de participação (ou também isso) que permite a aplicação de penas diferentes a cada um dos arguidos em situações comparáveis; e, já em sede de cúmulo jurídico das penas aplicadas,

                     iii.Ora, no que respeita às penas únicas a aplicar, considerando os factos na sua globalidade, os bens jurídicos violados, o período temporal dos mesmos, as suas circunstâncias e a personalidade dos arguidos revelada nos factos, considera-se adequada a punição dos arguidos nos seguintes termos” – fórmula claramente tabelar e tão genérica que nenhum controlo permite sobre o raciocínio subjacente à operação de cúmulo realizada. Tanto mais difícil de aceitar quanto no caso do Recorrente, o mínimo da pena única corresponderia a 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (pena mais elevada das duas fixadas) e, a final, vem a ser condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão.

Utilização de fórmulas genéricas e tabelares confirmada e a que acresce, ainda, a circunstância de, no Acórdão recorrido, se afirmar apenas, quanto à situação pessoal dos arguidos, o seguinte:

“A convicção do Tribunal assentou na conjugação das declarações prestadas pelos arguidos em audiência com o teor dos relatórios sociais e os certificados de registo criminal”.

Mas quais são os factos, por exemplo, referidos nos relatórios sociais, que contribuíram para a decisão relativamente à situação pessoal dos arguidos?

Em que medida tais factos (e quais) foram relevados para a determinação da medida da pena?

Aparentemente nenhuns, porquanto a páginas 45 do Acórdão sob “Determinação e Medida das Penas a Aplicar” nada consta sobre quaisquer relatórios sociais...

Tudo quanto se afigura consubstanciar o vício de nulidade do Acórdão previsto no artigo 379.º, n.º 1, do CPP, por ausência de verdadeiro e material cumprimento do ónus de fundamentação quanto à medida das penas parcelares e, seguidamente, em cúmulo jurídico aplicadas, vício que expressamente se argui para todos os devidos e legais efeitos.

Pois bem.

Nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, “é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F”.

Por sua vez, estipula o artigo 374º, nº 2, do mesmo diploma legal, que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Como refere Sérgio Poças, se o que está em causa é uma sentença condenatória, não devem restar quaisquer dúvidas sobre as razões de facto e de direito por que se condena e em que se condena.  Da leitura da sentença não devem restar quaisquer dúvidas aos sujeitos processuais e à comunidade sobre o que se decidiu e por que desse modo se decidiu. … Como é evidente, do que estamos a falar é da fundamentação, palavra ainda não dita, da sentença — fundamentação que é uma exigência constitucional.

De facto, dispõe o artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa:

«As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei». Com naturalidade, a importância da fundamentação das decisões judiciais no Estado de Direito Democrático é reconhecida pela generalidade da doutrina e jurisprudência. …

No mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira: «… o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado direito democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso…» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, págs. 798 e 799).

Germano Marques da Silva, sublinhando de igual modo a importância da fundamentação, na análise das suas finalidades, escreve: «A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias.

Permite o controlo da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando como meio de auto controlo» (Curso de Processo Penal, III, 1994, pág. 290).

Finalmente, a fundamentação enquanto factor de legitimação do poder judicial, é igualmente afirmada pela Juíza Fátima Mata-Mouros na Comunicação que apresentou no VI Congresso dos Juízes Portugueses, publicada na Edição Especial do Boletim da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.

Escreve na pág. 177: «É a motivação que confere um fundamento e uma justificação específica à legitimidade do poder judicial e à validade das suas decisões, a qual não reside nem no valor político do órgão judicial nem no valor intrínseco da justiça das suas decisões, mas na verdade que se contém na decisão» - “Da sentença Penal — Fundamentação de facto”, in Julgar nº 3, consultável em Julgar.pt.

Acresce que, nos termos do artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal:

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

Revertendo ao caso concreto, neste particular, consta do acórdão recorrido, o seguinte:

“O crime de fraude fiscal relativo aos factos praticados no ano de 2008 e 2009 é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos [I] – cfr. artigos 103º, nº 1, alínea a) e 104º, nº 2 do RGIT (na versão da Lei 15/2001, de 05.06).

O crime de fraude fiscal relativo aos factos praticados no ano de 2012 é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos [II] – cfr. artigos 103º, nº 1, alínea a) e 104º, nº 1, alíneas a), d) e e) e nº 3 do RGIT (na versão da Lei 64-B/2011, de 30.12).

No caso das pessoas coletivas, a pena de multa é de 240 a 1200 dias, nos casos do artigo 104º, nº 2 do RGIT (na versão da Lei 15/2001, de 05.06) e de 480 a 1920 dias, no caso do artigo 104º, nº 3 do referido diploma.

                *

Assim, tendo por base as molduras penais abstratas referidas, e considerando:

● o modo de prática dos factos e a gravidade dos mesmos, assim como as circunstâncias em que ocorreram e sua duração, que permitem concluir por um grau de ilicitude e de culpa bastante elevado;

● o grau de participação nos factos de cada um dos arguidos e os deveres inerentes às funções exercidas pelos arguidos CC e DD;

● o valor do prejuízo causado e não reparado (de € 1.025.674,08 e de € 773.389,46);

● o dolo direto;

● a personalidade dos arguidos revelada nos factos e em audiência (sendo que em audiência nada há a assinalar, uma vez que todos os arguidos mantiveram um comportamento educado e respeitador);

● a negação dos factos por banda dos arguidos e a falta de um juízo de autocensura pela prática dos mesmos e de assunção de responsabilidade pelos seus atos (que acentua as exigências de prevenção especial);

● o passado criminal de cada um dos arguidos (registando a sociedade arguida e o arguido AA condenações posteriores pela prática de factos de igual e semelhante natureza); 

considera-se justa e adequada a aplicação:

Ao arguido AA:

▫ da pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de fraude fiscal praticado nos anos de 2008 e 2009;

▫ da pena de 4 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de fraude fiscal praticado no ano de 2012.

DO CÚMULO JURÍDICO DAS PENAS APLICADAS:

Dispõe o artigo 77º, nº 1 do Código Penal que, quando alguém tenha praticado vários crimes sem que tenha ainda transitado em julgado a condenação por qualquer deles, será condenado numa única pena.

Na determinação desta pena única serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo que o respetivo limite máximo corresponderá à soma das penas concretamente aplicadas e o limite mínimo à mais elevada das penas concretamente aplicadas.

▪ no caso do arguido AA – entre 4 anos e 6 meses e 8 anos de prisão.

Ora, no que respeita às penas únicas a aplicar, considerando os factos na sua globalidade, os bens jurídicos violados, o período temporal dos mesmos, as suas circunstâncias e a personalidade dos arguidos revelada nos factos, considera-se adequada a punição dos arguidos nos seguintes termos:

Arguido AA – com a pena única de 5 anos e 9 meses de prisão”.

Como resulta do que fica dito, o tribunal a quo, na fixação da medida das penas parcelares atendeu e ponderou as circunstâncias do artigo 71º, nº 2, do Código Penal, fazendo tal ponderação em conjunto para ambos os crimes imputados ao recorrente.

É certo que não reproduziu novamente os factos provados, nem a isso estava obrigado.

No entanto, da análise que efectuou, pesou as várias circunstâncias que conduziram às penas aplicadas.

 Nos termos do artigo 13º do RGIT, na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime”.

Não é verdade que o colectivo julgador não tenha atendido ao valor dos prejuízos em causa tanto mais que os discriminou na referida ponderação.

O modo e as circunstâncias da prática dos factos, bem como a participação de cada um dos arguidos, encontram-se bem descritas na factualidade provada, não se exigindo que aqui sejam reproduzidas, tanto mais que o tribunal a quo tinha acabado de as reproduzir na subsunção jurídica.

Assim, não se pode concluir que o julgador não tenha ponderado a situação concreta do recorrente à luz das circunstâncias do artigo 71º, nº 2, do Código Penal na fixação das penas parcelares, tendo cumprido as exigências de fundamentação.

No que respeita à pena única, se bem que a fundamentação não se encontra grandemente desenvolvida, a verdade é resulta da mesma que o tribunal recorrido ponderou os factos na sua globalidade, os bens jurídicos violados, o período temporal dos mesmos, as suas circunstâncias e a personalidade dos arguidos revelada nos factos.

Entende-se que foram cumpridas as exigências mínimas de fundamentação. O tribunal dá a conhecer, minimamente, as razões que levaram ao quantum da pena única, não restando quaisquer dúvidas aos sujeitos processuais e à comunidade porque razão assim se decidiu.

Do que fica dito, resulta que não padece o acórdão recorrida da invocada nulidade, improcedendo esta questão suscitada pelo arguido AA.

             *

Passa-se agora a apreciar se as penas, parcelares e única, aplicadas ao arguido AA são excessivas e desproporcionais.

Alega, em síntese, o arguido que, quanto ao crime de fraude fiscal qualificada relativo aos factos praticados nos anos de 2008 e 2009 e à pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses aplicada, este compreende apenas a factualidade relativa ao IRC dos exercícios de 2008 e 2009, sendo que, no mesmo período, resultava devido o montante de mais de €700.000,00 (setecentos mil euros) relativo a IRS, mas quanto a este não foi deduzida acusação criminal, tendo sido instaurado processo contraordenacional.

Mesmo considerando a matéria de facto dada como provada, a conduta dos arguidos não visou, em primeira linha, qualquer prejuízo da Fazenda Pública, mas antes a libertação dos meios necessários à realização do aumento de capital de 2009.

A moldura penal abstratamente aplicável ao crime imputado (e considerado provado) é de um ano a cinco anos de prisão para as pessoas singulares.

O Tribunal a quo considerou que a pena parcelar a aplicar ao Recorrente seria de três anos e seis meses de prisão. Isto é, bem acima da metade da pena máxima aplicável. Os factos provados não suportam a fixação da medida da pena nos 3 anos e 6 meses de prisão. Pelos factos dados como provados a pena aplicada é manifestamente injusta por excessiva.

O arguido encontra-se desempregado e inscrito no IEFP, com reduzidas probabilidades de encontrar ocupação profissional que o coloque em circunstâncias semelhantes às que tinha no período da prática dos factos e, consequentemente, tornado praticamente impossível que reincida em quaisquer comportamentos da mesma natureza.

E a circunstância de apresentar registo criminal, com condenações posteriores por crimes diferentes (exceto num dos casos identificados) mas de natureza similar, não prejudica o que se afirma considerando que tais crimes terão sido praticados no contexto de exercício das funções de legal representante da Sociedade Arguida, que já não se verifica, sendo as penas então aplicadas relativamente baixas e já extintas por cumprimento (além de relativas a factos praticados há já bastante tempo).

Além do que acima se afirma importa ainda mencionar que o Recorrente é pessoa com uma idade próxima da reforma (nasceu em 1956), com cerca de 67 anos, o que faz diminuir a utilidade da aplicação da pena de prisão para efeitos da sua reintegração na comunidade e, ainda, para qualquer fim de prevenção especial.

Não tendo o Tribunal a quo considerado, aparentemente, que a circunstância de se tratar de pessoa que tem acompanhamento médico, precisando de medicação para dormir, além de ser dependente de insulina, releva para a fixação da medida da pena (parcelar).

Ora, considerando os factos, a situação pessoal do Arguido e o disposto nos artigos 40.º e 71.º do CP, afigura-se que a pena parcelar de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, corresponde a uma pena injusta e desproporcional, por excessiva.

Sendo que tal pena parcelar deveria situar-se, salvo o devido respeito, mais próxima do limite mínimo de um ano prevista no artigo 104.º, n.º 1, do RGIT (na versão à data aplicável) mas nunca superando os 2 (dois) anos.

Quanto ao crime de fraude fiscal qualificada, relativo aos factos praticados no ano de 2012, e à pena de 4 anos e 6 meses aplicada, valem os mesmos argumentos, concluindo-se pelo excesso da pena fixada em 4 anos e 6 meses, devendo esta aproximar-se do limite mínimo de 2 anos que a lei prevê.

Acrescenta que, dos referidos factos e elementos juntos ao processo resulta que a conduta do Recorrente, em 2012, (e dos demais arguidos) não teve como efeito qualquer impacto no apuramento dos montantes apurados quer de IRS – não retido em 2009 –, quer do montante de IRC nos anos de 2008 e 2009;

Tais montantes foram apurados em fevereiro de 2012 (aquando da conclusão da ação inspetiva e antes da conduta que se imputa sob 36. e ss. da matéria de facto), tendo sido emitidas as correspondentes notas de liquidação de imposto (duas de IRC e uma de IRS), as quais foram posteriormente dadas à execução.

Do que decorre que a conduta descrita nos factos provados 36. e seguintes em nada prejudicou a análise e apuramento de tributos em falta, sendo que tal análise e apuramento já se encontravam realizados.

Por outro lado, resulta dos autos – nomeadamente das certidões judiciais juntas – que a referida conduta não determinou qualquer alteração da situação tributária identificada pelos serviços de inspeção tributária, tendo sido mantidas as liquidações de IRS e IRC já existentes.

Isto é: a conduta descrita não criou, nem podia ter criado, qualquer prejuízo concreto à AT, sendo que o apuramento de imposto em falta (ainda que no caso do IRS se tenha concluído pela existência de ilícito contraordenacional e não criminal) decorreu da ponderação de condutas anteriores e não de quaisquer factos praticados entre março e 30 de julho de 2012.

Tudo quanto não só deveria ter sido (e não foi) considerado para a decisão da matéria de facto relevante para o preenchimento do tipo de crime em causa (artigo 103.º, n.º 1, al. a), do RGIT) como deveria ter sido considerado para a avaliação do grau de ilicitude e da culpa do agente nos termos do disposto no art. 70.º, n.º 1, do CP.

Circunstâncias que, cumuladas com aquelas que se referiram a propósito da excessiva pena parcelar aplicada ao Recorrente pela prática de fraude fiscal relativa a IRC e aos exercícios de 2008 e 2009, se afiguram permitir concluir que a aplicação de uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão pelos factos ocorridos em 2012 e relativos à falta de retenção de IRS, que deveria ter sido realizada e entregue em 2009, é claramente excessiva.

Considerando, além do que se afirmou quanto à primeira das penas parcelares e à situação pessoal do Recorrente:

i. a moldura de pena abstratamente aplicável ao caso, que é de dois a oito anos de prisão; ii. que a falta de entrega de um tal tributo (retenção de IRS, que deveria ter ocorrido em 2009, à taxa de liberatória de 20%) se entendeu preencher um ilícito de natureza meramente contraordenacional; iii. a ausência de ocultação da conduta; a sua superveniência face ao apuramento dos valores devidos (de acordo com a AT); v. a falta de apuramento do concreto impacto / dano da conduta; e vi. a diferença entre as penas parcelares fixadas, com a segunda a ser superior à primeira quando o prejuízo potencial de ambas as condutas foi diferente, com a primeira das condutas a ser geradora de um imposto em falta de pouco mais de um milhão de euros e a segunda a ser de nulo impacto ou (considerando, por mero dever de patrocínio que o facto tributário que, supostamente, se tentou afastar) no montante de cerca de setecentos e trinta mil euros.

Sempre teria, salvo o devido respeito, que se fixar a concreta medida da pena de prisão muito mais próxima do limite mínimo da moldura penal abstratamente aplicável, isto é, perto dos 2 (dois) anos de prisão, mas sempre sem ultrapassar (sob pena de claro excesso) os 3 (três) anos de prisão.

              *

Vejamos se lhe assiste razão.

Como se refere no acórdão recorrido,  o crime de fraude fiscal relativo aos factos praticados no ano de 2008 e 2009 é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos – cfr. artigos 103º, nº 1, alínea a) e 104º, nº 2 do RGIT (na versão da Lei 15/2001, de 05.06).

O crime de fraude fiscal relativo aos factos praticados no ano de 2012 é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos  – cfr. artigos 103º, nº 1, alínea a) e 104º, nº 1, alíneas a), d) e e) e nº 3 do RGIT (na versão da Lei 64-B/2011, de 30.12).

O arguido AA foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses em relação ao primeiro crime e na pena de 4 anos e 6 meses relativamente ao segundo crime.

 

No que respeita à determinação da medida concreta da pena, há que ter em conta, desde logo, o que dispõe o artigo 40º, nºs 1 e 2, do Código Penal.

Nos termos do nº 1 deste artigo, a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Por um lado, visa-se a confirmação da validade e actualidade da norma incriminadora, e da consequente tutela da confiança da comunidade na sua vigência, restabelecendo-se a paz jurídica que fora abalada pelo crime. Fala-se a este respeito de prevenção geral positiva ou prevenção geral de integração.

Por outro lado, visa-se a socialização do condenado, que se cumpre, naturalmente, na fase de execução da pena. Fala-se então de prevenção especial positiva.

Assim, a escolha da pena e a determinação da respectiva medida concreta são questões que devem ser resolvidas à luz das referidas finalidades.

No entanto, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, nos termos do nº 2 do artigo 40º do mesmo diploma legal.

A culpa surge, assim, como um limite inultrapassável da actuação punitiva do Estado, em nome da dignidade do indivíduo.

Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.

Como ensina Figueiredo Dias (Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121) e é citado no Ac. do STJ de 14.10.2015, in www.dgsi.pt:

“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais”.

Como se refere no mesmo aresto, “o ponto de partida das finalidades das penas com referência à tutela necessária dos bens jurídicos reclamada pelo caso concreto e com significado prospectivo, encontra-se nas exigências da prevenção geral positiva ou de integração, em que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal. As penas como instrumentos de prevenção geral são instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução, surgindo então a prevenção geral positiva ou de integração como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal; como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese todas as suas violações que tenham tido lugar”.

Por outro lado, como ensina igualmente Figueiredo Dias, “a pena também tem uma função de prevenção geral negativa ou de intimidação, como forma estadualmente acolhida de intimidação das outras pessoas pelo mal que com ela se faz sofrer ao delinquente e que, ao fim, as conduzirá a não cometerem factos criminais” – cfr. obra supra citada, 118.

Mas, em termos jurídico-constitucionais, é a ideia de prevenção geral positiva ou de integração que dá corpo ao princípio da necessidade de pena.

“A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto óptimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (cfr. obra e aresto supra citados).

“O ponto de chegada está nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização, ou, porventura a prevenção negativa relevando de advertência individual ou de segurança ou inocuização, sendo que a função negativa da prevenção especial, se assume por excelência no âmbito das medidas de segurança.

Ensina o mesmo Ilustre Professor, in As Consequências Jurídicas do Crime, §55, que “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida’” – cfr. aresto supra citado.

Porém, “em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor – ob. cit. § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização” – cfr. Ac. do STJ de 14.10.2015, in www.dgsi.pt.

Também o artigo 71º, nº 1, do Código Penal estabelece que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Por sua vez, dispõe o nº 2 do mesmo artigo que, na determinação concreta da pena, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) a intensidade do dolo ou da negligência;

c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) a conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime e

f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

“As circunstâncias e critérios do artigo 71º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente” – cfr. aresto supra citado.

A lei, ao referir que se deve atender nomeadamente àquelas circunstâncias, por serem as mais comuns, quer com isto dizer que o tribunal deve atender a outras ali não especificadas, isto é, a todas as circunstâncias susceptíveis de influenciarem a determinação da pena concreta – cfr. neste sentido Ac. da RC de 18.3.2015, in www.dgsi.pt.

             *

Relembra-se que, na apreciação dos critérios do artigo 71º, nº 2, do Código Penal, consta do acórdão recorrido que:

● o modo de prática dos factos e a gravidade dos mesmos, assim como as circunstâncias em que ocorreram e sua duração, que permitem concluir por um grau de ilicitude e de culpa bastante elevado;

● o grau de participação nos factos de cada um dos arguidos e os deveres inerentes às funções exercidas pelos arguidos CC e DD;

● o valor do prejuízo causado e não reparado (de € 1.025.674,08 e de € 773.389,46);

● o dolo direto;

● a personalidade dos arguidos revelada nos factos e em audiência (sendo que em audiência nada há a assinalar, uma vez que todos os arguidos mantiveram um comportamento educado e respeitador);

● a negação dos factos por banda dos arguidos e a falta de um juízo de autocensura pela prática dos mesmos e de assunção de responsabilidade pelos seus atos (que acentua as exigências de prevenção especial);

● o passado criminal de cada um dos arguidos (registando a sociedade arguida e o arguido AA condenações posteriores pela prática de factos de igual e semelhante natureza).

Concorda-se, inteiramente, com esta apreciação dos critérios do artigo 71º, nº 2, do Código Penal, tendo o colectivo julgador procedido a uma correcta individualização e ponderação dos factores que relevam para a determinação da medida concreta das penas parcelares.

Estamos perante uma ilicitude bastante elevada, mormente face aos valores envolvidos e ao modo rebuscado de actuação;

A culpa é igualmente muito elevada, face a um dolo directo e, por isso, intenso.

O recorrente já foi condenado:

▪ Por decisão proferida em 20.12.2013 e transitada em julgado em 29.09.2014, no Processo Comum Singular nº 1470/11...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 10.11.2011, de um crime de abuso de confiança fiscal (p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, nº 2, nº 4 e nº 5 do RGIT), na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano (declarada extinta, pelo cumprimento);

▪ Por decisão proferida em 24.06.2015 e transitada em julgado em 11.02.2016, no Processo Comum Singular nº 233/14...., do Juízo Local Criminal ..., pela prática, em Janeiro de 2014, de um crime de desobediência qualificada (p. e p. pelo 348, nº 2 do CPP e 375º do CPC), na pena de 100 dias de multa à razão diária de € 7,00, num total de € 700,00 (declarada extinta, pelo pagamento);

▪ Por decisão proferida em 23.10.2019 e transitada em julgado em 08.07.2020, no Processo Comum Singular nº 199/15...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 2014, de um crime de abuso de confiança na forma continuada (p. e p. pelo artigo 205º, nº 1 do Código Penal) e de um crime de abuso de confiança fiscal (p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, nº 4, alínea b) e nº 5 do RGIT), na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período (declarada extinta, pelo cumprimento);

▪ Por decisão proferida em 02.03.2020 e transitada em julgado em 03.07.2020, no Processo Comum Singular nº 10/19...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 02.01.2015, de um crime de fraude fiscal qualificada (p. e p. pelos artigos 103º, nº 1 e 104º do RGIT), na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período (declarada extinta, pelo cumprimento);

▪ Por decisão proferida em 15.12.2020 e transitada em julgado em 28.10.2021, no Processo Comum Singular nº 293/19...., do Juízo Local Criminal de..., pela prática, em 2015, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (p. e p. pelo artigo 107º do RGIT), na pena de 180 dias de multa, à razão diária de € 6,00, num total de € 1.080,00 (declarada extinta, pelo pagamento).

A prevenção geral atinge um patamar elevadíssimo, face à grande frequência com que o crime é praticado e à repercussão que tem na comunidade pelas suas consequências.

De facto, a fraude fiscal cria situações de desigualdade, leva à inevitável diminuição da receita fiscal global, o que impõe um aumento da carga fiscal e o sacrifício de todos os contribuintes.

Os comportamentos fiscalmente evasivos e fraudulentos alimentam as chamadas economias paralelas dificultando, desta forma, a construção de um Estado Social de Direito e, implicitamente, provoca um aumento do défice e da dívida pública. O crime de fraude fiscal é um dos principais responsáveis pela perda de receita fiscal nos mais variados tipos de impostos a ponto de considerarmos que em muitos casos, a actual situação económica e social, não se deve essencialmente ao abrandamento da atividade económica mas sim ao forte movimento de ilicitude fiscal” (cfr. Rui Pedro Pereira Pinto, in O Crime de Fraude Fiscal - O impacto na receita pública do Estado, consultável em  https: //recipp.ipp.pt/ bitstream/10400.22/3105/1/DM_RuiPinto_2013.pdf.

Daí que nos crimes fiscais seja reclamada pela comunidade uma eficaz e severa perseguição penal.

Como se refere no Ac. da RP de 1.3.2023, in www.dgsi.pt, “no domínio da criminalidade fiscal, as exigências de prevenção geral são prementes, porquanto é sabido que entre nós a evasão fiscal assume proporções escandalosas, sendo ainda razoável suspeitar da existência de elevadíssimas cifras negras, tratando-se de uma situação de fuga generalizada à tributação que acarreta imensas desigualdades sociais, cria uma imagem de impunidade que põe em causa a coesão social e faz vacilar o sentimento de dever que cada cidadão deveria ter presente ao pagar os seus impostos ou contribuições para a segurança social, bem como ao próprio Estado”.

Cumpre evitar a lesão dos respectivos bens jurídicos, particularmente caros à sociedade, impondo-se uma reacção musculada do aparelho judiciário tendo em vista reprimir este tipo de ilícito e, assim, evitar um clima de impunidade que induza à sua proliferação.

Face à violação das aludidas normas jurídicas, impõe-se o reforço da consciência jurídica comunitária, a necessidade de restabelecer a confiança na validade das normas violadas; isto é, a estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência das normas infringidas.

São igualmente muito elevadas as necessidades de prevenção especial, face ao registo criminal do arguido, com condenações por crimes de igual natureza, em penas de prisão suspensas, praticados ao longo dos anos.

O arguido encontra-se desempregado e está inscrito no IEFP, como candidato a emprego, desde Fevereiro de 2021.

Pela prevenção especial pretende-se a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva), mas também a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa).

Prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, mas também negativa ou de intimidação. Assim, devem ser valorados todos os factores relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza; seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 243.

Como se refere no Ac. do STJ de 26.2.2020, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT, que cita o sumário do Acórdão de 01.04.98, do Supremo, in CJ. - AC. STJ - Ano VI - tomo 2- fls. 175, “as expectativas da comunidade ficam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o rigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa. Se uma pena de medida superior à culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins da prevenção constitui um desperdício”.

Ponderando todos os factores, entende-se que as penas aplicadas de 3 anos e 6 meses de prisão para o primeiro crime, e de 4 anos e 6 meses de prisão, para o segundo crime, são penas que não ultrapassam o limite da culpa do arguido, revelando-se justas, adequadas e necessárias. Penas inferiores às aplicadas, como pretendido pelo recorrente, revelar-se-iam manifestamente insuficientes face às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.

             *

No que respeita à pena única alega o arguido que apenas por claro excesso e injustiça poderá ser fixada em mais de 4 anos de prisão.

Afigurando-se que, após a concreta reparação da decisão condenatória das penas parcelares aplicadas, bem como daquela resultante da operação de cúmulo a realizar nos termos do disposto no artigo 77º do CPP, deve a pena única ser reduzida.

Pois bem.

Encontradas as penas parcelares, cumpre agora aferir da bondade da pena única, fixada em 4 anos e 6 meses de prisão, atendendo às regras de punição do concurso de crimes previstas no artigo 77º do Código Penal.

Nos termos do artigo 77º, nº 1, do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

O nº 2 da mesma norma dispõe que “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Face às referidas normas legais, é necessário a verificação de dois requisitos para a elaboração do cúmulo jurídico: a prática de vários crimes pelo arguido e que estes tenham sido praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles.

Requisitos que se verificam no presente caso.

A moldura abstrata do concurso é de 4 anos e 6 meses de prisão a 8 anos de prisão.

Para encontrar a pena única, o tribunal tem que considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

“Na concretização da regra estabelecida no nº 1, in fine, do artigo 77º do Código Penal, de acordo com o qual na medida da pena - no que à punição do concurso concerne - são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, tem sido pacífico, designadamente ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que essencial «na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse bocado de vida criminosa com a personalidade, de tal forma que a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares» - (cf. Ac. STJ de 05.07.2012, Proc. n.º 145/06.SPBBRG.S1), o que, contudo, não dispensa o recurso às exigências de prevenção geral e especial, encontrando, também, a pena conjunta o seu limite na medida da culpa” – cfr. Ac. da RC de 13.12.2017, in www.dgsi.pt.

Também segundo o Ac. do STJ de 27.06.2012, proferido no Proc. n.º 95/08.9EACBR.C1.S1 – in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/criminal2012.pdf:

“Com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e da gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto a lei mandar considerar, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente. Na determinação concreta da pena conjunta importa averiguar se ocorre ou não conexão entre os factos em concurso, se existe ou não qualquer relação entre uns e outros, indagar da natureza ou do tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente, com vista à obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos. Isto de modo a aferir se o ilícito global é ou não produto de uma tendência criminosa do agente e a fixar a medida concreta da pena dentro da moldura do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre ele”.

Neste particular consta do acórdão recorrido que:

“considerando os factos na sua globalidade, os bens jurídicos violados, o período temporal dos mesmos, as suas circunstâncias e a personalidade dos arguidos revelada nos factos, considera-se adequada a punição do arguido AA na pena única de 5 anos e 9 meses de prisão”.

Da análise efectuada por esta Relação, apreciando os factos na sua globalidade e os critérios do artigo 71º, nº 2, do Código Penal, acompanha-se a posição do tribunal a quo.

Concorda-se inteiramente com a fixação da pena única em 5 anos e 9 meses de prisão.

É uma pena que, não ultrapassando o limite da culpa do arguido, revela-se adequada, necessária e justa. Foi encontrada com respeito pelos parâmetros legais e realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Acresce que “o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta, apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial, isto é, quando se torne evidente que foi aplicada sem fundamento, com desvios aos citérios legalmente apontados” – cfr. Ac. da RC de 18.3.2015, in www.dgsi.pt.

Como se pode ler igualmente no Ac. da RG de 5.3.2018, in www.dgsi.pt, “quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso - entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de que é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada”.

No caso concreto, conclui-se, mais uma vez, pelo acerto da decisão da 1ª instância, não se vislumbrando qualquer erro, incorrecção ou distorção no processo de determinação da pena única, nem desrespeito por princípios aplicáveis ou violação de regras de experiência, nem mesmo qualquer desproporção na quantificação efectuada.

 Pelo que fica dito e em jeito de conclusão, as penas aplicadas, parcelares e única, não ultrapassam os limites da culpa do arguido AA, como se disse, revelando-se necessárias face às referidas exigências de prevenção geral e especial.

A ser assim, devem manter-se.

Improcede igualmente esta questão suscitada pelo recorrente.

                *

Próxima questão: se a pena aplicada ao arguido CC de 4 anos de prisão é manifestamente excessiva e desproporcional.

Alega o arguido que já decorreram quase 12 anos sobre os factos que lhe são imputados, o que diminui grandemente as necessidades, quer de prevenção geral, quer de prevenção especial.

O recorrente tem um relacionamento e um ambiente familiar estável e equilibrado, é casado desde 1986, tem 2 filhos, e mantem contactos regulares com todos eles.

Quer o recorrente, quer a sua esposa, são portadores de atestado médico de incapacidade multiuso, por motivos oncológicos.

O recorrente está reformado há cerca de 3 anos, mas continua a exercer a profissão de contabilista, ainda que de forma residual mantendo apenas uns quantos clientes que pedem especificamente que seja ele a tratar-lhes da contabilidade.

Em suma, o recorrente encontra-se familiar, profissional e socialmente inserido, o que permite indiciar fortemente que terá uma conduta conforme com o Direito, não reincidindo.

Acresce que o recorrente não tem antecedentes criminais.

Sem ignorar que, mesmo admitindo (sem conceder) a versão considerada provada no d. acórdão recorrido, conforme acima foi dito e demonstrado, o recorrente agiu sempre a mando e sob direção dos coarguidos administradores da A... Sa., no âmbito da subordinação e dependência que mantinha com aqueles em virtude da relação laboral existente, o que diminui consideravelmente a sua culpa.

E que, de acordo com o que é dado como provado no d. acórdão recorrido (fato 14), o coarguido recorrente, CC, foi Técnico Oficial de Contas da sociedade coarguida A... Sa., apenas entre Março de 2012 e Outubro de 2012, uns parcos sete meses, o que terá também de ser tido em conta para aferição do quanto da culpa.

Perante o que, a pena principal, stricto sensu, aplicada ao recorrente pelo Tribunal a quo, de 4 (quatro) anos de prisão, mostra-se manifestamente excessiva e desproporcional.

Admitindo-se que se mantenha a condenação do recorrente pela prática do crime de que vem acusado, a pena principal não deverá ultrapassar 1 ano de prisão.

Pois bem.

O crime imputado ao arguido CC é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos, nos termos dos artigos 103º, nº 1, alínea a), e 104º, nº 1, alíneas a), d) e e), e nº 3, do RGIT (na versão da Lei 64-B/2011, de 30.12).

O arguido foi condenado na pena de 4 anos de prisão.

Dão-se como reproduzidas todas as considerações já efectuadas na apreciação da medida das penas aplicadas ao arguido AA.

Continuamos com uma ilicitude bastante elevada, uma culpa igualmente muito elevada, face a um dolo directo e, por isso, intenso, sendo, neste caso, de considerar a violação dos deveres inerentes às funções exercidas pelo arguido.

A prevenção especial situa-se num patamar mediano. Se, por um lado, o arguido não tem antecedentes criminais, por outro, ainda trabalha como contabilista por conta própria.

Como se disse, pela prevenção especial não se pretende apenas a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva), mas também a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa).

Ponderando todos os factores, entende-se que a pena aplicada de 4 anos de prisão não ultrapassa o limite da culpa do arguido, revelando-se justa, adequada e necessária. Pena inferior à aplicada, como pretendido pelo recorrente, revelar-se-ia manifestamente insuficiente face às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.

Aliás, da alegação do arguido resulta que este nem atentou na moldura abstracta de 2 a 8 anos de prisão, já que defende a aplicação de uma pena que não ultrapasse a pena de 1 ano de prisão.

Também neste caso não merece qualquer censura a decisão da 1ª instância, não se vislumbrando qualquer erro, incorrecção ou distorção no processo de determinação da pena, nem desrespeito por princípios aplicáveis ou violação de regras de experiência, nem mesmo qualquer desproporção na quantificação efectuada.

Deve, pois, manter-se a pena de 4 anos de prisão aplicada ao recorrente, improcedendo esta questão por si suscitada.

             *

Passa-se agora a apreciar se a pena aplicada ao arguido DD de 4 anos e 6 meses de prisão é manifestamente excessiva.

Alega o arguido que o bem jurídico tutelado pelo crime de fraude fiscal não é um bem pessoal, não visando imediatamente a tutela da dignidade da pessoa humana, a qual consubstancia o valor supremo, ou melhor, o «fundamento dos valores» da ordem jurídica portuguesa.

Mais: é inclusive discutível que, pelas suas caraterísticas, aquele bem possa ser afetado por uma só fraude fiscal, por maior que seja a sua dimensão patrimonial.

Para além disso, já decorreram quase 12 anos sobre os factos que lhe são imputados, o que diminui grandemente as necessidades, quer de prevenção geral, quer de prevenção especial.

Por sua vez, o recorrente tem um relacionamento familiar estável e equilibrado, é casado desde 1979, tem 4 filhos e 6 netos e mantem contactos regulares com todos eles.

Está reformado há 3 anos, continuando, no entanto, a exercer a profissão de contabilista, tendo 4 pessoas a trabalhar para si.

Em suma, o recorrente encontra-se familiar, profissional e socialmente inserido.

Este panorama indicia fortemente que terá uma conduta conforme com o Direito, não reincidindo.

Aliás, reitere-se, já volveram quase 12 anos sobre os factos que lhe são imputados no presente processo, não tendo o recorrente reincidido.

Acresce que o recorrente não tem antecedentes criminais.

O recorrente era prestador de serviços à coarguida A..., S. A., tendo agido sob a direção e orientação dos administradores desta, o que diminui consideravelmente a sua culpa.

Perante este quadro, a pena principal, stricto sensu, aplicada ao recorrente pelo Tribunal a quo – 4 anos e 6 meses de prisão – mostra-se manifestamente excessiva.

Na hipótese de ser mantida a sua condenação pela prática do crime de que foi acusado – hipótese que, reitera-se, apenas por excesso de cuidado se aventa –, a pena principal, em sentido restrito, a aplicar-lhe não deverá ultrapassar 3 anos de prisão.

O crime imputado ao arguido DD é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos, nos termos dos artigos 103º, nº 1, alínea a), e 104º, nº 1, alíneas a), d) e e), e nº 3, do RGIT (na versão da Lei 64-B/2011, de 30.12).

O arguido foi condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.

Dão-se por reproduzidas todas as considerações já efectuadas na apreciação da medida das penas aplicadas aos arguidos AA e CC.

Continuamos com uma ilicitude bastante elevada, uma culpa igualmente muito elevada, face a um dolo directo e, por isso, intenso.

Situa-se o grau de culpa num patamar mais elevado relativamente à culpa do arguido CC, face aos especiais deveres de Revisor Oficial de Contas, a quem compete rever a contabilidade (executada pelo TOC) e auditar as contas; isto é, o ROC tem a responsabilidade de conferir se todas as contas estão em conformidade com o estipulado pelas normas técnicas aprovadas ou reconhecidas pela Ordem dos Revisores de Contas, emitindo, após a revisão ou auditoria de contas, uma certificação legal das mesmas ou um relatório de auditoria, documentando a sua opinião sobre a situação financeira, os resultados das operações e os fluxos de caixa da empresa em questão – cfr. artigos 41º, 42º e 45º do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, aprovado pela Lei nº 140/2015, de 7 de Setembro). 

A prevenção especial situa-se num patamar mediano. Se, por um lado, o arguido não tem antecedentes criminais, por outro, continua a exercer a profissão de contabilista.

Como se disse, pela prevenção especial não se pretende apenas a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva), mas também a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa).

Ponderando todos os factores, entende-se que a pena aplicada de 4 anos e 6 meses de prisão não ultrapassa o limite da culpa do arguido, revelando-se justa, adequada e necessária. Pena inferior à aplicada, como pretendido pelo recorrente, revelar-se-ia manifestamente insuficiente face às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.

Assim, também neste caso não merece qualquer censura a decisão da 1ª instância, não se vislumbrando qualquer erro, incorrecção ou distorção no processo de determinação da pena, nem desrespeito por princípios aplicáveis ou violação de regras de experiência, nem mesmo qualquer desproporção na quantificação efectuada.

Deve, pois, manter-se a pena de 4 anos e 6 meses de prisão aplicada ao recorrente, improcedendo esta questão por si suscitada.

             *

Próxima questão: se a pena única aplicada ao arguido AA deve ser suspensa na sua execução.

Pugna o arguido pela suspensão da execução da pena.

Vejamos.

Estipula o artigo 50º, nº 1, do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

O nº 2 da mesma norma dispõe que “o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.

O nº 3 estipula que “os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente” e nos termos do nº 4 “a decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições”.

Por último, o nº 5 da mesma norma refere que “o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos”.

São estes os pressupostos para a suspensão da execução da pena de prisão. Um objectivo e formal (pena aplicada não superior a 5 anos de prisão) e outro material, que se traduz no juízo que o tribunal fará de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Como consta no Ac. da RC de 29.11.2017, in www.dgsi.pt, “os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão vêm enunciados no artigo 50º, nº 1, do Código Penal. O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos. O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. No juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir)”.

Ainda no mesmo aresto pode ler-se que “no entendimento do Prof. Figueiredo Dias, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização), se a ela se opuserem as finalidades da punição (artigo 50, nº 1 e 40º, nº1, do Código Penal), nomeadamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que «só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto…».

“A suspensão da execução da pena de prisão é, sem dúvidas, um poder vinculado do julgador, que terá de a decretar sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos formais e materiais. Deste modo, o tribunal, quando aplicar pena de prisão não superior a 5 anos deve suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, juízo este não necessariamente assente numa certeza, bastando uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização, em liberdade, do arguido” – cfr. Ac. da RC de 3.10.2018, in www.dgsi.pt.

Voltando ao caso concreto, facilmente se conclui que está afastada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA, desde logo porque a pena aplicada ao arguido ultrapassa os 5 anos de prisão.

Assim, não se encontra verificado o pressuposto formal (pena aplicada não superior a 5 anos de prisão), ficando prejudicada a análise do pressupostos material.

Pelo exposto, nenhuma censura merece a não suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido.

Improcede esta questão por si suscitada.

              *

Próxima questão: se o acórdão recorrido é nulo, na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena ao referido pagamento, por não ter sido feito qualquer juízo sobre a razoabilidade de exigir ao recorrente o cumprimento da referida condição (questão do recurso do arguido CC).

Alega o recorrente que não discute a suspensão da execução da pena, porem, discorda da condição imposta pelo Tribunal recorrido para essa suspensão.

In casu, a suspensão da execução da pena de prisão foi condicionada ao pagamento ao Estado do montante de € 773.389,46 (setecentos e setenta e três mil trezentos e oitenta e nove euros e quarenta e seis cêntimos), por aplicação do referido artigo 14º, nº 1 do RGIT.

Cita o douto parecer da Professora Doutora Maria João Antunes, onde se pode ler que:

“A condenação do coarguido CC na suspensão da execução da pena de prisão, condicionada ao pagamento ao Estado de € 773.389,46, de forma solidária, não ter sido precedida de um qualquer juízo sobre se é razoável exigir ao condenado o cumprimento da condição imposta, em violação do que dispõe o regime geral da suspensão da execução da pena de prisão, nomeadamente do que dispõe o nº 2 do artigo 51º do Código Penal.

E não se diga que se esse juízo for negativo fica arredada a aplicação, no caso, da suspensão da execução da pena de prisão. Como bem aduz o Tribunal Constitucional, a conformidade constitucional do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT passa por a lei não excluir a possibilidade de suspensão da execução da pena, perante a impossibilidade de pagamento.

Com efeito, subsistirá sempre o disposto nos artigos 40.º, n.º 1, e 70.º do CP: se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade – no caso, pena de prisão ou suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que foi determinada em concreto uma pena de 4 anos de prisão –, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de proteção de bens jurídicos e de reintegração do agente na sociedade. Subsistirá a exigência constitucional de aplicar a pena de prisão apenas se for necessária, devendo o tribunal fundamentar a inadequação e insuficiência da suspensão da execução da pena de prisão para realizar as finalidades da punição (artigos 27.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição) [. Sobre isto, MARIA JOÃO ANTUNES, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2024, pp. 19 e 94 e ss.]. Tanto mais quanto a decisão sobre a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão é autónoma relativamente ao juízo atinente à subordinação ao cumprimento de deveres impostos ao condenado. Cfr. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, Direito Penal Económico. Uma Política Criminal na Era Compliance, Almedina, 2020, p. 79 e s”.

Mais alega o arguido que In casu, o Tribunal de 1ª instância não tomou em consideração nem cumpriu as exigências acima mencionadas na prolação do d. acórdão recorrido quanto à condição de suspensão da pena de prisão aplicada ao coarguido CC, sendo, portanto, esse acórdão nulo, sob pena de na prática estarmos perante uma verdadeira situação de “prisão por dividas”, ao arrepio de todos e quaisquer preceitos legais e constitucionais.

Vejamos, então.

O artigo 51º do Código Penal, no seu nº 1, dispõe que “a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;

b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.

São deveres que, como ensina o Professor Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 348, podem destinar-se não apenas a reparar o mal do crime, mas também a facilitar a readaptação social do agente, o que faz englobar no conceito de deveres verdadeiras regras de conduta.

São de vária ordem os deveres que podem ser impostos, como resulta do nº 1 do artigo 51º supra referido.

Porém, o da alínea a), é, sem dúvida, um dever patrimonial; em concreto, o de pagamento ao lesado da indemnização, total ou parcial.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª ed. actualizada, pág. 308, “a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão à satisfação de certos deveres visa dar uma oportunidade ao condenado para reparar o mal do crime. Os deveres de reparação do mal do crime são, em regra, deveres de natureza económica, que visam repor a situação da vítima antes do cometimento do crime, mas também reforçar a censura do facto e a ameaça da prisão … Assim, nada obsta a que o tribunal determine a suspensão da execução da pena de prisão condicionada ao pagamento da indemnização devida. … Caso o arguido seja condenado no pagamento de indemnização, seja no processo penal, seja em processo civil, a suspensão da execução da pena de prisão, pode e deve ser subordinada ao pagamento dessa mesma quantia, ou de parte dessa quantia, mas não de quantia que exceda o montante fixado na condenação para o pagamento da indemnização e muito menos de valor superior ao peticionado pelo lesado. Por isso, quando a suspensão da execução da pena de prisão é condicionada ao pagamento de uma quantia, sendo esta satisfeita, ela é dedutível no montante da indemnização arbitrada ao ofendido, na procedência do pedido cível por ele formulado. Contudo, não é requisito da imposição deste dever que já tenha sido deduzido pedido de indemnização, como resulta expressamente da alternativa prevista pelo legislador (nº 1, alínea a), in fine): garantia de indemnização por caução; e, nem mesmo é requisito a prévia procedência do pedido de indemnização deduzido”.

Do que fica dito, resulta que tal dever encontra-se intimamente relacionado com o dano provocado, com o mal do crime e com a indemnização devida ao lesado.

Como se refere no Ac. da RP de 28.10.2021, in www.dgsi.pt “o dever enunciado tem, em primeira linha, uma finalidade reparadora (reparar o mal do crime) mas, por via dela, fortalece a finalidade da pena enquanto visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Com efeito, limitando-se a suspensão da execução da pena de prisão ao pronunciamento da culpa e da pena, deve encontrar-se, por razões de justiça e equidade, outra maneira de fazer sentir à comunidade e ao condenado, os efeitos da condenação.

Do que se trata, em suma, neste dever de indemnizar, é da sua função adjuvante da realização da finalidade da punição.

O pagamento da indemnização, na medida em que representa um esforço ou implica até um sacrifício para o arguido, no sentido de reparar as consequências danosas da sua conduta, funciona não só como reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição, mas também como elemento pacificador, neutralizando o efeito negativo do crime e apresentando-se, assim, como meio idóneo para dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo, nomeadamente, à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade.

A obrigação deve responder à ideia da exigibilidade e ao princípio da proporcionalidade que são conceitos básicos do Estado de Direito”.

Por sua vez, estipula o artigo 51º, nº 2, do Código Penal, que “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”.

Como refere Maia Gonçalves, em anotação ao referido artigo 51º, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18ª ed., pág. 221, “no nº 2 consagra-se o princípio da razoabilidade, a que tem de obedecer a imposição dos deveres. … Trata-se de exprimir um princípio de orientação para o tribunal, de modo a habilitá-lo a delimitar o domínio em que há-de mover-se na sua faculdade de determinação dos deveres a cumprir pelo condenado em vista da reparação do mal causado pelo crime.

O juiz deve averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres impostos, ainda que, posteriormente, no caso de incumprimento, deva apreciar da alteração das circunstâncias que determinaram a impossibilidade, para o efeito de decidir sobre a revogação da suspensão. Não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres. Como pondera o Prof. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, pág. 208, prática contrária significaria apenas adiar a execução da pena de prisão”.

No mesmo sentido veja-se o Ac. da RG de 5.7.2021, in www.dgsi.pt, onde se lê que “a suspensão da execução da pena de prisão condicionada ao cumprimento de deveres e regra de conduta visa reforçar os vetores da reparação do mal do crime e das suas consequências, por um lado e da socialização do delinquente por outro.

Ao impor a condição de pagamento de quantia, o juiz deve averiguar da possibilidade de cumprimento desse dever, tendo em conta a consagração do princípio da razoabilidade previsto no nº 2 do artigo 51º do CP.

Não deve ser imposto ao arguido o dever de indemnizar como condição da suspensão da execução da pena de prisão, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desse dever.

No processo de imposição ao arguido do cumprimento de um dever de natureza económica, importa considerar as capacidades económicas do arguido, o prazo de cumprimento e o quantitativo a pagar”.

Acontece que, nos termos do artigo 14º, nº 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.

Porém, o STJ, pelo Ac. nº 8/2012, de 24 de Outubro, publicado no DR nº 206/2012, Série I, de 24.10.2012, já fixou a seguinte jurisprudência:

“No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.»

Jurisprudência que se aplica, naturalmente, ao crime de fraude fiscal, já que o artigo 14º do RGIT aplica-se a todos os crimes tributários.

Como se lê no Ac. da RP de 9.10.2019, in www.dgsi.pt, citado no parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, “a jurisprudência fixada pelo acórdão nº 8/2012, de 12/09/2012, embora verse sobre o crime de abuso de confiança fiscal, deverá ser extensível ao regime do crime de fraude fiscal”.

Veja-se igualmente o Ac. da RL de 21.3.2024, in www.dgsi.pt onde se refere que: “A aplicação da condição referida no artigo 14.º/1 do RGIT impõe que se pondere a real situação económica do arguido e a sua capacidade para proceder ao pagamento da quantia em dívida, devendo tal norma ser interpretada conjugadamente com o artigo 51.º/2 do CP, subordinando-se a dita aplicação a critérios de ponderação, aos princípios da razoabilidade e da dignidade da pessoa, bem como do respeito pelos direitos fundamentais do próprio condenado, como seja a garantia do mínimo necessário à sua subsistência”.

Também no Ac. do STJ de 6.4.2016, in www.dgsi.pt, se pode ler que: “O acórdão recorrido, que confirmou a sentença proferida em 1.ª instância, numa data em que já estava em vigor a jurisprudência fixada no AUJ 8/2012, não realizou o necessário juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade do condenado satisfazer esta condição legal.

O acórdão recorrido ao omitir formulação do juízo sobre razoabilidade de cumprimento da condição imposta incorreu em omissão de pronúncia, determinativa de nulidade, nos termos do art. 379.°, n.º 1, al. c) e n.º2, do Código de Processo Penal”.

Lê-se ainda neste aresto que:

“A decisão da primeira instância não formulou um juízo sobre a possibilidade do pagamento da quantia imposta como condição da suspensão.

Sobre a razoabilidade da imposição a sentença nada disse, o mesmo acontecendo com o acórdão recorrido, sendo que o recorrente no recurso ordinário interposto nunca refere a revogação, mas antes a sanação das nulidades invocadas e no que aqui importa a nulidade por omissão de pronúncia.

O recorrente invocou a nulidade por omissão de pronúncia sobre a condição, adiantando mesmo que a sentença não recolheu factos suficientes para a formulação do juízo de prognose, sendo incontornável que não houve formulação de tal juízo.

O Tribunal da primeira instância e o Tribunal da Relação não se referiram nunca à existência de jurisprudência uniformizada.

Ao omitir pronúncia sobre o ponto está-se a contrariar a jurisprudência fixada e no caso concreto a integrar a previsão da uniformização no sentido de presença de nulidade por omissão de pronúncia.

A reacção à omissão de pronúncia não é a arguição de nulidade, como defende o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, no prazo geral de dez dias após a notificação do acórdão da Relação.

O recorrente arguiu, e bem, a nulidade em causa no recurso interposto para a Relação, pois como estabelece o artigo 379.º, n.º 2, do CPP, as nulidades da sentença, como era o caso, devem ser arguidas ou conhecidas em recurso.

Dúvida não há de que não foi feita qualquer pronúncia sobre a razoabilidade da imposição de pagamento da quantia fixada.

Sobre o ponto, passa-se a transcrever parte da fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/2012:

“De pouco valerá impor um dever económico de forma cega só porque a lei a impõe de forma automática, dir-se-ia, num posicionamento que roça a total e completa alienidade em relação ao concreto ser julgado e condenado, quando não só pelo exagero do montante, não arbitrado, mas imposto, pelo muito curto prazo assinado para o cumprimento e sobretudo pela já consabida sua deficiente capacidade de solvência, de cumprir o imposto, seria dentro de um juízo de normalidade das coisas da vida do cidadão comum, de um juízo de verosimilhança, de antever o inevitável incumprimento, a menos que lhe sorrisse em sorte a “sorte grande”, ou mesmo uma média, com que pudesse recompor a sua vida e cumprir a injunção condicionante da suspensão.

Ao decretar-se a imposição da condição deve ter-se uma imagem global do condicionamento, da real dimensão económica do dever imposto, que a opaca fórmula legal de jeito algum deixa transparecer, em que se incluem juros compensatórios e moratórios, com vista à reparação integral, plena, a que pode ser acoplada, caso o juiz o entenda, o montante previsto na segunda parte do n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, ou seja, uma “quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”, o que tendo em conta que a pena de multa (artigo 105.º. n.º 1) vai até 360 dias e que cada dia de multa pode ir até € 500,00 (artigo 15.º, n.º 1), significa que se estará a falar de uma quantia que terá como limite máximo € 180.000,00.

Na avaliação da opção pela suspensão não podem ser olvidados os condicionalismos inerentes ao agente e se é certo que a impossibilidade de cumprimento não integra os elementos constitutivos do tipo, tal avaliação tem de estar presente no juízo de opção pela substituição.

Apenas como adjuvante de compreensão não será despiciendo deitar um olhar sobre a situação pessoal e económica de cada um dos arguidos nos processos onde foram proferidos os acórdãos em confronto.

O arguido no processo de Vila Nova de Gaia (acórdão recorrido), de acordo com os factos provados n.º s 14, 21, 22 e 23, exerce a actividade de treinador profissional de futebol, tendo emigrado para Marrocos, onde exerce tal actividade ao serviço de um clube de futebol da segunda divisão, auferindo mensalmente € 500,00, sendo que a única residência que possui em Portugal situa-se na casa de sua mãe e que – facto provado n.º 20 -, perante dificuldades económicas optou por manter a laboração da sociedade arguida e garantir o pagamento dos salários dos seus trabalhadores que deles dependiam para manterem as respectivas famílias.

O arguido no processo de Alcanena (acórdão fundamento) é motorista, auferindo € 358, 25, tendo chegado a vender bens do seu património para colocar fundos na sociedade, que veio a ser declarada falida em 2-02-2001.

Perguntar-se-á qual o sentido pedagógico /reeducativo da aplicada pena de substituição quando ao condenado é exigida reparação total, condicionante da suspensão, quando não tenha capacidade económica e financeira de resposta adequada, capacidade de resposta num domínio onde já foram dadas provas de que não é possível cumprir o programa traçado, pois se não o foi, enquanto ainda receptor de receitas, indevidamente desviadas, é certo, como esperar que o seja depois da falência, após o termo da actividade económica, sem possibilidades de soluções paliativas, tipo lei Catroga ou lei Mateus, restando ficar à espera da tão ventilada hipótese de possível melhor fortuna. É que por vezes, a crença só por si, não basta! Necessário é que se diga que no plano das coisas práticas, do dia a dia do cidadão comum deste País, do pequeno empresário, tão prestimosamente acolitado nas soluções da “empresa na hora” e tipo novas oportunidades, estamos a falar de um tecido empresarial ao nível das PME, sobretudo das pequenas, que no concreto contexto dos acórdãos em confronto, nem sequer – obviamente – se entrecruzam e muito menos digladiam, ao nível internacional, mas apenas interno – prestação de serviços de limpeza, no acórdão recorrido, e fabrico e comércio de vestuário desportivo e malhas exteriores, no caso do acórdão fundamento.

A juzante, como facilmente se antevê, a culpa morrerá, uma vez mais, solteira, porque o incumprimento da condição necessariamente culposo, como não deixam de assinalar todos os arestos do TC e STJ, face aos cenários catastróficos, de rotura com o mercado, de incumprimento em incumprimento, de insolvência em insolvência, ditará a ausência de culpa, o que conduzirá a que em linha recta, a condição, obviamente, não se cumpra e que, por força do enredo, nada acontecerá, isto é, a revogação tout court será sempre uma miragem situada do outro lado da margem, in casu, da, a priori, bem intencionada condenação condicional.

Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339.º, n.º 4, do CPP.

Com a aplicação da condição não se trata de pagar determinada quantia à entidade credora para a compensar do prejuízo por ela sofrido. Mais do que isso, trata-se de um crédito garantido pelo jus puniendi de que o Estado está armado (Costa Andrade, Direito Penal Económico, volume III, pág. 249).

No caso, a arrecadação de receitas, complementos e seus derivados é assegurada através da imposição de uma sanção penal; a subordinação obrigatória da suspensão da execução da pena de prisão à exigência do pagamento do montante da dívida volve o instituto em instrumento de recuperação de dívidas fiscais, tornando-se numa medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente.

Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exactamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exactamente por isso a merecer maiores cuidados.

A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente. Como afirmar a presença do pressuposto material de suspensão sem atender à carga imposta? Aliás, na lei de autorização de 1993 referia-se a possibilidade de suspensão com imposição de pagamento; não é a suspensão que é imposta; uma vez eleita a solução de suspensão, sabido é que terá necessariamente aqueles contornos, aquela forma de reparação e não outra, a reposição na íntegra do devido, mas não só, pois acresce o demais, ultrapassando a condenação o montante do imposto e demais acréscimos, sem reduções, sem cortes, sem descontos.

Para que sobrevenha a aplicação da pena fixa em que consiste a “condição”, necessário é que se opte pela suspensão; de contrário, que sentido teria falar em medida de sentido pedagógico e reeducativo?

Assim descaracterizada sempre seria de colocar a questão de saber se ainda se estará perante uma pena suspensa.

Não colhe grande sentido que o mesmo preceito tenha dois pesos e duas medidas para a concretização, composição, da condição. O artigo 14.º, n.º 1, alberga duas hipóteses. Uma primeira em que impõe o condicionamento e uma segunda, prevista na última parte do mesmo n.º 1, em que sem qualquer dúvida se abre a janela da liberdade de escolha e ponderação, pois caso o juiz o entenda, fica a suspensão condicionada ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

A óbvia, patentemente expressa e declarada compressão da liberdade do julgador, levada em forma de lei no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, reeditando semelhante “diktat” proveniente do n.º 7 do artigo 11.º do RJIFNA, não se verifica em, nosso entender, de forma inexorável, em toda a linha, afigurando-se-nos que a impossibilidade de ultrapassagem surge apenas num segundo momento, num subsequente/ulterior estádio de cognição da concreta situação, avaliação e ponderação das variáveis em equação, na análise do circunstancialismo concreto e decisão, até porque a própria suspensão, sendo um exercício ainda em liberdade, de um poder-dever, de um poder vinculado, é ainda um exercício de plena liberdade de apreciação/valoração, está ela própria subordinada a condições de êxito, como a imprescindível verificação dos pressupostos do artigo 50.º, aplicáveis ex vi do artigo 3.º do RGIT.

A suspensão em si mesma não deixa de ser uma faculdade, como se acentua no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 242/2009, de 12-05-2009, processo n.º 250/09, da 2.ª Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 75.º, pág. 209, onde se afirma: “a norma do artigo 14.º do RGIT, ao estabelecer, de forma geral e abstracta, uma condição à faculdade de o tribunal decretar a suspensão da execução da pena de prisão, em todas as situações em que essa faculdade se lhe depare, assume claramente natureza de acto legislativo”.

Voltando ao caso concreto, vejamos o que consta neste particular do acórdão recorrido:

“No que respeita aos arguidos BB, CC e DD, atentas as penas aplicadas (inferiores a 5 anos de prisão) e a ausência de antecedentes criminais por parte dos arguidos, quer-se crer que a censura do facto e a ameaça da execução da pena de prisão serão ainda aptas a assegurar as finalidades da punição, afastando os arguidos do cometimento futuro de factos semelhantes.

Nos termos do disposto no artigo 14º do RGIT:

1. A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

2. Na falta de pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:

a) Exigir garantias de pagamento;

b) Prorrogar o período da suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo da suspensão admissível;

c) Revogar a suspensão da pena de prisão.

Assim, e ao abrigo do disposto no artigo 50º do Código Penal e do artigo 14º do RGIT, suspender-se-á a execução das penas aplicadas por igual período de tempo, sujeitas ao pagamento ao Estado do prejuízo causado com os ilícitos praticados.

Com a prática do crime de fraude qualificada relativo aos anos de 2008 e 2009, o arguido BB causou ao Estado um prejuízo de IRC devido pela sociedade arguida e não pago no montante de € 1.025.674,08 (€ 647.470,63 + € 378.203,45).

Com a prática do crime de fraude fiscal qualificada relativo ao ano de 2012, o arguido BB (em conjunto com os demais arguidos) causou ao Estado um prejuízo de IRS devido e não pago no valor global de € 773.389,46.

Com a sua conduta, os arguidos CC e DD (em conjunto com os demais arguidos) causaram ao Estado um prejuízo de IRS devido e não pago no valor global de € 773.389,46”.

O tribunal a quo decide, então, relativamente ao arguido CC:

“SUSPENDER a execução da referida pena pelo período de 4 (quatro) anos, sujeita ao pagamento pelo arguido ao Estado, no referido período, de forma solidária com os arguidos BB e DD, do montante de € 773.389,46 (setecentos e setenta e três mil trezentos e oitenta e nove euros e quarenta e seis cêntimos)”.

 Ora, aqui chegados e face a todo o supra exposto, facilmente se conclui que, nesta parte, o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal; em concreto, por não ter efectuado qualquer juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal, tendo em conta a situação económica concreta do arguido, por não ter ponderado a sua real situação e a sua capacidade para proceder ao pagamento da quantia em causa.

Como bem se esclarece no Ac. da RL de 5.6.2018, in www.dgsi.pt, “entendem uns que, perante a obrigatoriedade da condição, é completamente irrelevante apurar a situação económica do arguido, considerando outros, porém, que, apesar daquela obrigatoriedade, a necessidade daquela averiguação impõe-se, para que possa ser avaliada a razoabilidade de tal condição, para efeitos de se decidir se a prisão aplicada deve ou não ser suspensa na sua execução, optando-se, em caso de juízo negativo, pela aplicação de pena de diferente natureza. O que conduz, neste caso, a nulidade por omissão de pronúncia, caso não seja apurada aquela situação económica, conforme resulta da jurisprudência fixada. É clara a posição ali defendida, no sentido de que tal  ponderação, quanto à capacidade económica de o arguido pagar as aludidas quantias em dívida, tem de ser feita no momento da correspondente avaliação quanto a saber se a suspensão da execução da pena satisfaz ou não as finalidades da punição, no pressuposto de que o arguido tem possibilidades de proceder a tal pagamento, devendo, pelo contrário, entender-se que tal suspensão não realiza essas finalidades se for manifesto que não se mostra possível esse pagamento.

Por isso, a sua única interpretação possível, em conjugação com o art. 50.º, n.º 1, do CP, é, em cada caso concreto, avaliar se, perante as circunstâncias definidas neste artigo - atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste - e comprovada a capacidade económica de o condenado pagar a prestação tributária em dívida e acréscimos legais, «a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficientes as finalidades da punição».

O juízo que deve ser feito quanto à determinação da medida da pena - necessariamente de prisão no crime da fraude - e à sua substituição por pena não detentiva – no caso só é equacionável a suspensão da execução da pena – tem desde logo de ponderar a real capacidade económica do arguido para cumprir a condição de pagamento das aludidas quantias, no prazo razoável a fixar – até cinco anos, com possibilidade de prorrogação até metade -, suspendendo a execução da prisão se tal cumprimento lhe parecer possível, ou não suspendendo no caso contrário, por a suspensão, sem tal pagamento, não realizar, «de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

Esta interpretação não só é admissível face à jurisprudência fixada pelo acórdão citado, como ela se impõe, sendo a única compatível com a redacção das aludidas normas”.

Jurisprudência que se acompanha.

Assim, mesmo que se defenda a obrigatoriedade da condição nos termos definidos no artigo 14º do RGIT, isso não afasta a aplicação do AUJ, no sentido da necessidade de averiguar a situação económica-financeira do arguido, para efeitos de ser ponderada a eventual suspensão da execução da pena.

Assim sendo, nesta parte, assiste razão ao arguido, procedendo esta questão por si suscitada.

Nulidade do acórdão que se reflecte não apenas na situação do arguido CC, mas também na dos arguidos BB e DD.

            *

Face à referida nulidade fica prejudicado o conhecimento das seguintes questões:

- se o montante de € 1.025.674,08 não pode constar como condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido BB, pelo facto de não se ter demonstrado que a A... se enriqueceu nesse montante – questão do recurso do arguido BB;

- se a suspensão da execução da pena não deve ser condicionada ao pagamento do montante de 773.389,46 euros, nos termos em que o foi – questão do recurso do arguido CC;

- se o artigo 14º, nº 1, do RGIT é inconstitucional, por violação do princípio da culpa, implicitamente consagrado nos artigos 1º, 13º e 25º, nº 1 da Constituição da Republica Portuguesa - questão do recurso do arguido CC;

 - se o artigo 14º, nº 1, do RGIT é inconstitucional, por violação dos princípios da insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade penal e da legalidade criminal, consagrados nos artigos 30º, nº 3 e 29º da Constituição da República Portuguesa - questão do recurso do arguido CC;

- se a suspensão da execução da pena não deve ser condicionada ao pagamento do montante de 773.389,46 euros; quando muito se deve ser condicionada ao pagamento do Estado da quantia de 20.000,00 euros – questão do recurso do arguido DD.

             *

 Cumpre agora conhecer se deve ser aplicada ao arguido a Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto – questão do arguido AA.

        

Alega o recorrente que “foi recentemente publicado regime legal que prevê o perdão de penas ou a amnistia de infrações quando estejam em causa vários tipos penais, constante da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (publicada na I.ª Série do Diário da República, n.º 149, de 02.08).

O Tribunal a quo considerou que, “face à idade dos arguidos à data dos factos (superior a 30 anos de idade)”, a Lei 38-A/2023 não tem aplicação ao caso dos autos.

É entendimento da Defesa que o referido diploma legal tem aplicação ao caso dos presentes autos e, consequentemente, sustenta, por força do perdão de pena aí previsto, uma redução das penas aplicadas ao Arguido.

E, assim, uma redução da pena única que lhe foi aplicada.

Consta do acórdão recorrido que face à idade dos arguidos à data dos factos (superior a 30 anos de idade), não tem aplicação o regime do perdão e da amnistia previsto na Lei 38-A/2023, de 02.08.

Vejamos, então.

A Lei nº 38-A/2003, de 2 de Agosto, que veio estabelecer um perdão de penas e amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, estipula no seu artigo 2º, nº 1, que estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º

Na Exposição de motivos da Proposta de Lei nº 97/XV/1.ª refere-se que: “Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ”.

O arguido AA nasceu a ../../1956. Assim, à data da prática dos factos, tinha muito mais de 30 anos de idade, razão pela qual não se encontram verificados os pressupostos para poder beneficiar do pretendido perdão de penas com a consequente redução da pena única.

Nenhuma censura merece o acórdão recorrido neste ponto, improcedendo a questão suscitada pelo arguido.

             *

Passa-se então a apreciar se a previsão de um critério etário, nos termos em que o mesmo se encontra fixado para a determinação do âmbito subjetivo de aplicação do perdão de penas e amnistias previstos na Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, é manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade – questão do recurso do arguido AA.

Alega o arguido que o artigo 2º, nº 1, da referida Lei, no segmento por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, é absolutamente clara no sentido da previsão de um critério etário para a aplicação de qualquer perdão ou amnistia previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08. Critério que, no caso, resulta na fixação de um intervalo etário que se pretende abrangido – em abstrato – pela referida Lei.

A previsão de um critério etário, nos termos em que o mesmo se encontra fixado (v.g., sem qualquer tipo de fundamentação que o justifique) para a determinação do âmbito subjetivo de aplicação do perdão de penas e amnistias previstos na já identificada Lei, é manifestamente inconstitucional, porquanto:

- a identificação da motivação para o processo legislativo em causa não é acompanhada, ao contrário do que sucede com os diplomas emanados do Governo no exercício das respetivas competências legislativas, por qualquer outro dado de natureza preambular que possa servir como auxiliar interpretativo de qualquer uma das soluções previstas na Lei ou dos critérios para a aplicação das mesmas;

- pelo que a sua introdução deveria ser acompanhada de motivação que permitisse ao intérprete localizar os fundamentos de uma tal redução do campo de aplicação dos perdões e amnistias aí previstos.

- no caso da norma prevista no artigo 2.º, n.º 1, não poderá deixar de considerar-se que a mesma implica um tratamento desigual entre as pessoas que tivessem até 30 anos à data da prática dos factos ilícitos (referidos nos artigos 3.º e 4.º do mesmo diploma) e aquelas que tivessem mais;

- importando perceber se a introdução desse tratamento desigual é admissível, sendo a resposta a tal questão claramente negativa;

- dúvidas não existem de que a Constituição da República Portuguesa reconhece e protege, de forma muito particular, o princípio da igualdade;

- O princípio previsto e protegido no artigo 13.º da Constituição tem de ser parâmetro de apreciação da validade dos atos e normas produzidos pelo Estado;

- sempre que temos uma norma legal – que, por definição, deve ser geral e abstrata – que não se aplica ao conjunto dos cidadãos, deverá apurar-se da conformidade da mesma com o princípio constante do artigo 13.º, n.º 1, da CRP;

- dúvidas não existem que limitar a aplicação do regime da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 a pessoas que tenham até 30 anos de idade à data da prática dos factos implica que as demais (como é o caso do Arguido nos presentes autos) sejam excluídas dos benefícios que a mesma prevê, colocando-as em situação de desvantagem;

- a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, considerando a matéria, é uma lei que incide sobre direitos, liberdades e garantias, estando claramente abrangida pelo que se postula no artigo 18.º da CRP;

- o princípio da proporcionalidade encontra-se plasmado no artigo 18.º, n.º 2, 2.ª parte, da Constituição, desdobrando-se em necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito;

- o segmento do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, ao estabelecer um critério (etário) que limita a aplicação do regime mais favorável ao Arguido, excluindo-o do campo de aplicação subjetivo do diploma, significa que a referida norma tem para si (Arguido) uma natureza restritiva de direitos, no caso, do direito a beneficiar de perdão de penas nos crimes pelos quais foi condenado;

- trata-se, pois, de uma decisão completamente arbitrária do legislador, violando, assim e também, o princípio da proporcionalidade na vertente da adequação, como, aliás, já era arbitrária a fixação da concreta idade de 30 anos;

- esta violação do princípio da proporcionalidade implica a violação do disposto no artigo 29.º da CRP, isto porquanto, sendo a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 uma lei penal, com impacto ao nível do perdão, total ou parcial, de penas e de amnistia de infrações várias, não pode a mesma, ao introduzir um regime mais favorável, deixar de ser aplicada ao Arguido;

- a referida norma (i.e., aquela contida no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08), quando interpretada e aplicada no sentido da sua expressão literal, padece dos vícios de inconstitucionalidade antes identificados, não podendo os Tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (cfr. artigo 204.º da CRP22);

- deve interpretar-se e aplicar-se a norma constante do art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º38-A/2023, de 02.08, no seguinte sentido:

“Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.”;

- interpretação que permitirá o aproveitamento da norma (por via da referida interpretação) constante do artigo 2.º, n.º 1, e da qual resultará a aplicação do regime previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, no caso dos autos, com o consequente perdão de pena ao Arguido.

Pois bem.

Apesar da referida Lei nº 38-A/2003 ser recente, a verdade é que a questão colocada pelo arguido já foi tratada abundantemente pela jurisprudência.

Como se refere no Ac. da RP de 5.1.2024, in www.dgsi.pt, “a amnistia ou o perdão genérico não são um mero acto de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade, conforme disse o Tribunal Constitucional no Ac. TC 347/2000 e vários outros acórdãos nesse citados. Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são dilatados tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita segundo critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de direito, sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.

Embora o legislador tenha uma ampla margem de manobra quanto à delimitação do campo de aplicação das medidas de clemência, a verdade é que se não houver qualquer racionalidade nessa delimitação entramos num arbítrio não consentido pelo artigo 13º da CRP.

O legislador pretendeu exercer este direito de graça da Lei n.º 38-A/2023 por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude e da visita Papal a ela associada.

A Jornada Mundial da Juventude é um evento religioso instituído pelo Papa João Paulo II em 1985, que reúne milhões de católicos de todo o mundo, sobretudo jovens.

Daí que a delimitação do âmbito de aplicação da amnistia e do perdão genérico também pela idade das pessoas abrangidas, até aos 30 anos de idade, o que tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais das ditas jornadas, não seja destituída de qualquer racionalidade.

É certo que não se vislumbra qualquer relação da concessão desta amnistia com quaisquer das tarefas de política criminal que devem caber ao direito de graça, designadamente a intervenção como «válvula de segurança» do sistema, evitando a severidade da lei mediante circunstâncias supervenientes nas relações comunitárias ou da situação pessoal do agraciado, mas a verdade é que tem sido ‘tradicional’ entre nós a publicação de leis de amnistia para efeitos de comemoração de eventos festivos ou de visitas ao país de personalidades importantes.

Seja como for, a delimitação pela idade, até aos 30 anos, da aplicação da amnistia e perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se afigura decisivamente irracional e arbitrária, tendo em conta o evento que se comemora destinado em primeiro lugar à juventude católica, mas também aberto a pessoas não católicas e não jovens, pelo que tal delimitação está dentro da margem de manobra do legislador, não ferindo de forma decisiva o princípio da igualdade”.

No mesmo sentido encontra-se o Ac. da RL de 20.3.2024, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que:

“A Lei nº 38-A/2023, de 02/08, que decretou medidas de clemência de amnistia e perdão de penas, estabeleceu uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos (os beneficiários dessas medidas de clemência) e os demais (excluídos da aplicação das medidas) não é inconstitucional por violação do princípio constitucional da igualdade, porque a discriminação positiva introduzida pela Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto ao segmento da população cuja idade se situa entre os 16 e os 30 anos, no momento da prática do crime que estiver abrangido pela amnistia e/ou pelo perdão, se mostra justificada, segundo um critério objectivo e razoável e tal previsão ainda está dentro dos limites da função modeladora do legislador ordinário, que definiu a faixa etária abrangida pela Lei da Amnistia, por referência ao limite máximo de idade, em regra, permitido para as inscrições nas Jornadas Mundiais da Juventude.

Também a Relação de Évora já se pronunciou no mesmo sentido. Conforme consta do Ac. de 23.1.2024, in www.dgsi.pt,  “as leis de amnistia e perdão têm caracter de clemência, não é um direito dos cidadãos; O Estado goza de grande liberdade conformativa no conteúdo das leis de amnistia e perdão, sendo que as suas razões e objetivos não estão concretizadas em lei;

Não podendo ocorrer o arbítrio ou discriminação infundada, o Estado pode escolher o momento da entrada em vigor da amnistia/perdão, que tipos legais ou condutas serão passiveis de amnistia/perdão, qual a abrangência da amnistia/perdão (penal, contraordenacional, disciplinar …), que grupos de indivíduos amnistiar/perdoar (Lei 9/96, de 23 de Março, conhecida pela Amnistia às FP25), isto é, desde que justificada a sua restrição não existe inconstitucionalidade.

Ora, no caso em apreço não se vislumbra qualquer arbítrio ou falta de fundamento material.

Na verdade, tratou-se de assinalar a vinda do Papa às JMJ, estabelecendo-se vários limites: idade, data da prática dos factos, tipos de infracções.

Tal e qual se estabeleceu em anteriores amnistias.

A fixação da idade dos 30 anos, e não de outra qualquer, mesmo que por referência a jovens, está também bem explicitada, parecendo desrazoável a discussão acerca da idade até à qual se pode considerar uma pessoa jovem. E muito menos por referência ao conceito de jovem para muitos outros efeitos (até para jovem agricultor!).

Tratou-se apenas de equiparar com a idade considerada para participação nas JMJ.

Por outro lado, é bem compreensível que se associe à vinda do Papa e às JMJ à concessão de um “benefício” a quem sendo jovem, mais facilmente merece “incentivo” para uma melhor ressocialização.

Resulta de tudo o exposto que com a fixação do limite dos 30 anos não se vislumbra qualquer contrariedade aos preceitos constitucionais ou da carta dos direitos fundamentais dos cidadãos da união europeia.

Por último, uma referência à Relação de Coimbra, onde no seu Ac. de 21.4.2024 já se pronunciou nos seguintes termos:

“Limitando a abrangência do perdão e da amnistia previstos na Lei 38-A/2023, de 02/08, e entre o mais, às sanções penais pelos ilícitos cometidas por agente que à data da prática do facto não tivesse mais de 30 anos de idade, o art. 2.º/1 respetivo em nada briga com o art. 13.º/2 da Constituição da República.

A proibição de tratamento desigual dos cidadãos proscreve o arbítrio, mas não veda ao legislador democrático diferenciações razoavelmente fundadas em diversidade de condições dos beneficiários de certa norma relativamente a quem do seu âmbito seja excluído.

A juventude, à data da prática do facto, daqueles a quem sejam concedidos a amnistia ou perdão, presta-se justamente a ser fundamento daquela diferenciação, para mais sendo uma condição que nos próprios termos da Constituição da República legitima o Estado, e até o compele, a políticas de favorecimento em variados planos.

Enfim, a definição legal de um certo limite etário para que alguém beneficie da amnistia ou do perdão, com a inerente exclusão de quem o ultrapasse, como é da natureza dos limites, também não é geradora de desigualdade constitucionalmente censurável, não havendo imposição de específico padrão ou sequer de uniformidade nos diversos domínios em que a juventude funde diferenciações pelo legislador, que nisso tem uma ampla margem de avaliação e decisão política”.

Jurisprudência que se acompanha e de onde se retira que os princípios da igualmente e da proporcionalidade não saíram beliscados com a referida Lei.

Pelas razões vertidas na jurisprudência citada, indefere-se esta pretensão do arguido.

             *

Aqui chegados, uma vez não ser de aplicar a Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, ficam prejudicadas as seguintes questões do recurso do arguido AA:

- se por aplicação da referida Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, deve ser descontado um ano a cada uma das penas parcelares, promovendo-se posteriormente o cúmulo jurídico, não podendo a final resultar da determinação da pena única um perdão inferior a um ano (questão do recurso do arguido AA);

- se o disposto no artigo 3º, nº 4, da Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto é inconstitucional por violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da aplicação da lei penal mais favorável, devendo, por isso, ser rejeitada a sua aplicação (questão do recurso do arguido AA).

             *

Também o recorrente DD veio suscitar as seguintes questões:

- se o segmento normativo do nº 1 do artigo  2º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que restringe o perdão de penas previsto no artigo 3º desse diploma às «sanções penais relativas aos ilícitos praticados (…) por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (…)», enferma de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP; e

- consequentemente, se deve ser aplicado o perdão previsto no artigo 3º do referido diploma legal.

Alega este arguido em termos semelhantes ao arguido AA.

Frisam-se apenas alguns segmentos da sua argumentação:

- possuindo todas as pessoas a mesma dignidade, todas elas devem não só gozar dos direitos fundamentais, mas também ser tratadas como iguais;

- tratando-se de uma medida de clemência geral que é aplicada a todos em função das penas aplicadas, o perdão é um perdão geral;

- o perdão de penas é, pois, genérico e, por princípio, deve abranger todos os condenados pela prática dos crimes a que se refere.

- consequentemente, apenas para realização de ponderosos interesses jusconstitucionais e mediante profusa justificação objetiva e racional será legítimo conceder um perdão de penas a um grupo restrito de pessoas;

- inexiste qualquer «justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes», para que o perdão de penas concedido pelo art. 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, abranja apenas crimes praticados por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, e não as demais;

- como consta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, que deu lugar à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento JMJ;

- tal fundamento não tem qualquer respaldo constitucional, tanto mais que a República Portuguesa é um Estado laico, não confessional, onde vigora a liberdade religiosa, encontrando-se as Igrejas separadas do Estado;

- na ordem jusconstitucional portuguesa não é, pois, admissível que um perdão de penas – ato genérico que, por princípio, deve abranger todos os condenados pela prática dos crimes a que respeita – seja restringido a um grupo etário, por virtude o mesmo ser destinatário de um evento de determinada Igreja.

- assim, a referida discriminação em função da idade, a qual é simultaneamente positiva e negativa, não possui «justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes»;

- deve a referida inconstitucionalidade ser declarada, não se aplicando implicitamente o mencionado segmento normativo do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sendo, em consequência, aplicado o perdão previsto no art. 3.º deste diploma.

- sendo de antever, pelo que se deixou dito, que este Tribunal considere que o art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, na medida em que restringe o âmbito de aplicação do perdão previsto no art. 3º desse diploma às sanções penais relativas a ilícitos praticados por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, viola os arts. 20.º e 21.º da CDFEU.

O arguido DD nasceu a ../../1956.

Também ele, à data da prática dos factos, tinha muito mais de 30 anos de idade, razão pela qual não se encontram verificados os pressupostos para poder beneficiar do pretendido perdão.

Dando-se como reproduzido o que ficou dito supra, conclui-se, mais uma vez, que não se encontra violado o princípio da igualdade plasmado na nossa Lei Fundamental e no disposto no artigo 20º da CDFEU, nem mesmo o direito de não discriminação vertido no artigo 21º do mesmo diploma (CDFEU).

Sem necessidade de mais considerações indeferem-se estas questões suscitadas pelo recorrente DD.

             *

Passa-se agora a conhecer se estão, ou não, reunidos os pressupostos formais de aplicação da pena acessória aplicada de proibição do exercício de funções (questão do recurso do arguido CC).

Alega o arguido que não estão reunidos os pressupostos formais de aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função a que foi condenado por aplicação do artigo 66º, nº 1, al. a) e nº 2, do Código Penal.

Citando o douto parecer da Professora Doutora Maria João Antunes, afirma que:

“é pressuposto da pena acessória de proibição do exercício de função a condenação em pena de prisão superior a 3 anos. No caso, o arguido foi condenado na pena de suspensão da execução da pena de prisão.

A suspensão da execução da pena de prisão, prevista nos artigos 50.º a 57.º do CP e em legislação extravagante, nomeadamente no artigo 14.º do RGIT, é uma pena de substituição em sentido próprio. Aplica-se em vez da pena de prisão concretamente determinada, em medida não superior a 5 anos, sempre que realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. …

A suspensão da execução da pena de prisão em nada se confunde com a execução da pena de 4 anos de prisão concretamente determinada em relação ao arguido CC. A cada uma delas (a cada uma dessas penas) correspondem regras próprias em matéria de execução, como muito bem se evidencia no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 13/2016.

Não é este, porém, o enquadramento que é feito no acórdão condenatório que confunde uma e uma e outra realidade – “DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO APLICADA” – e que, consequentemente, omite a determinação da medida concreta da suspensão da execução da pena de prisão, nada mais dizendo do que “suspender-se-á a execução das penas aplicadas por igual período de tempo”. …

A doutrina e a jurisprudência entendem, maioritariamente, que a condenação na pena acessória prevista no artigo 66.º do CP pressupõe que o agente tenha sido concretamente punido com pena de prisão superior a três anos (pena de prisão efetiva), não sendo, por isso, aplicável quando a condenação é em pena de substituição, nomeadamente em suspensão da execução da pena de prisão”.

Em face de tal parecer, conclui o recorrente que, tendo sido condenado na pena de suspensão da execução da pena de prisão, não se verificam os pressupostos formais de aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função, à luz do disposto no artigo 66.º do CP.

Por sua vez, neste particular, consta do acórdão recorrido que:

“Requer ainda o Ministério Público a condenação dos arguidos CC e DD na pena acessória de proibição do exercício de função, prevista e punida pelo artigo 66.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal.

Nos termos do mencionado preceito, na versão do DL 48/95, de 15.03 (em vigor à data da prática dos factos):

1. O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da atividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções, por um período de 2 a 5 anos quando o facto:

a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;

2. O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável às profissões ou atividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.

A profissão de técnico oficial de contas e de revisor oficial de contas exercida pelos arguidos CC e DD, respetivamente, depende de autorização da autoridade pública.

O crime praticado pelos referidos arguidos é punido com pena de prisão superior a 3 anos e foi praticado com manifesta e grave violação dos deveres inerentes à respetiva profissão, pelo que tem aplicação aos mesmos a pena acessória de proibição do exercício de funções prevista no mencionado preceito.

Tendo em conta a medida abstrata da referida pena acessória [2 a 5 anos], a gravidade dos factos praticados e o montante do prejuízo causado ao Estado, entende-se adequado fixar em 4 (quatro) anos a pena acessória de proibição do exercício de funções a aplicar a cada um dos mencionados arguidos”.

Vejamos então.

O arguido CC foi condenado na pena acessória de proibição do exercício de profissão de contabilista certificado pelo período de 4 (quatro) anos, nos termos do artigo 66º, nº 1, alínea a), e nº 2, do Código Penal, na versão do Decreto-Lei nº 48/95, de 15.3, em vigor à data da prática dos factos.

Estipulam as referidas normas legais que:

“O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto:

a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes” – artigo 66º, nº1, alínea a).

O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável às profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública – nº 2 do artigo 66º.

Há muito que a questão vem sendo tratada, quer na doutrina quer na jurisprudência, sem que haja consenso.

Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª Ed. actualizada, pág. 344, em anotação ao artigo 66º do Código Penal, defende que “o pressuposto formal da pena acessória é a condenação em pena de prisão superior a 3 anos. A suspensão da execução da pena não obsta à aplicação da pena acessória (também, Miguez Garcia e Castela Rio, 2014:360, anotação 4ª ao artigo 66º)”.

O Professor Figueiredo Dias defende posição oposta (in Código Penal Português, “As consequências Jurídicas do Crime”, pág. 167), segundo a qual se a execução da prisão tiver sido suspensa não se encontra verificado o dito pressuposto formal, uma vez que a suspensão de execução da prisão é uma pena autónoma (de substituição) e portanto diferente da pena de prisão. Para compensar o benefício da suspensão estão os deveres e regras de conduta que a podem condicionar, sendo para tal fim absolutamente inadequada a pena acessória.

A Relação de Évora, no seu acórdão de 19.12.2013, in www.dgsi.pt, afirmou que “se a pena aplicada foi suspensa na sua execução ganhando autonomia como pena de substituição, fica vedada a aplicação do disposto no artigo 66.º do C.P.

Se houve suspensão da execução da pena de prisão, o juízo que tal permitiu não é adequado a co-existir com uma pena acessória de tal gravidade”.

Segundo o Ac. da RP de 15.2.2019, in www.dgsi,pt, “o titular de cargo público, funcionário público ou agente da administração que seja condenado em pena de prisão superior a três anos, por se verificarem os requisitos previstos no artigo 66º, nº 1, do Código Penal, deverá ser proibido do exercício das respectivas funções, independentemente de a pena de prisão ser efectiva ou com execução suspensa.

De resto, a condenação em pena de prisão efectiva implica já por si a suspensão do exercício das respectivas funções durante o cumprimento da pena, pelo que será nas situações de condenação em pena com execução suspensa que a aplicação de tal pena acessória terá mais acuidade”.

Pode ler-se no corpo deste aresto que “afigura-se-nos que a letra da lei, ao mencionar «pena de prisão superior a três anos», pode abranger, como pressuposto formal de aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função, quer a pena de prisão efetiva, quer a pena de prisão suspensa na sua execução (que tem – é certo - autonomia como pena de substituição).

Mas decisivo é saber se a ratio da lei (o seu espírito) também abrange a pena de prisão suspensa na sua execução.

Como bem salienta o Ministério Público na sua resposta à motivação do recurso, será até nas situações de pena de prisão suspensa na sua execução que a pena acessória em causa tem maior acuidade, pois a pena de prisão efetiva já acarreta, por si mesma, nos termos do artigo 67.º do mesmo Código, a suspensão do exercício de funções públicas durante o cumprimento dessa pena.

Por outro lado, não se nos afigura, ao contrário do que se sustenta no citado acórdão da Relação de Évora, que sejam contraditórias, nos seus pressupostos, a suspensão da execução da pena de prisão e a proibição do exercício da função. É pressuposto da suspensão de execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º, n.º 1, do Código Penal, um juízo de prognose favorável a respeito da prática de outros crimes no futuro. Poderá ser pressuposto da proibição do exercício da função o perigo de prática de futuros crimes nesse exercício (como se verificará na situação referida na acima citada alínea c) do n.º 1, do artigo 66.º do Código Penal), mas não necessariamente. Tal pena será também aplicada quando o facto for praticado com flagrante e grave abuso da função e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes (alínea a) do n.º 1 desse artigo 66.º) e quando o facto revelar indignidade no exercício do cargo (alínea b) do n.º 1 desse artigo 66.º). E podemos dizer que se verificam estas últimas situações no caso em apreço.

Também se impõe afirmar que os malefícios, na perspetiva da inserção social do condenado, que se pretendem evitar com a suspensão da execução da pena de prisão são substancialmente mais graves do que os que decorrem da pena acessória da proibição do exercício de função”.

No mesmo sentido encontra-se o Ac. da RL de 12.4.2016, in www.dgsi.pt, onde se lê que “as penas acessórias são uma consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal, mas que revestem autonomia em relação a esta. Não um efeito da pena, nem uma sua consequência automática.

No caso em apreço, tendo o Tribunal para além do cabimento formal decorrente da condenação final em pena superior a 3 anos exigida pela n.º 1 do art. 66.º do Cód. Penal (a suspensão da execução da pena, para esse efeito, não constitui circunstância obstativa), tido por verificadas todas as alíneas constantes daquele preceito, sendo o arguido Chefe de Finanças Adjunto de uma secção de justiça tributária, e tendo-se considerado que “foram gravemente violados deveres relativos a um correcto exercício daquela função e posto severamente em causa o respeito e a confiança requeridos para o exercício daquele cargo”, então nada impedia que aquele pudesse também ser sancionado com a de proibição do exercício de funções.

Verificando-se os respectivos pressupostos, a mesma “deve” e não apenas “pode” ser aplicada”.

Tomando agora posição, vamos começar por analisar a letra da lei.

Nos termos do artigo 50º, nº 1, do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Isto é, segundo esta norma, é aplicada uma pena de prisão não superior a 5 anos e o tribunal pode, ou não, suspender a execução dessa pena.

Não se afirma que o tribunal aplica uma outra pena, a de substituição, quando pretende suspender a execução da pena de prisão.

Nos mesmos moldes, encontra-se o disposto no artigo 51º, nº 1, do Código Penal, quando afirma que “a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente …”.

Também no artigo 52º, nº 1, do mesmo diploma legal, se diz que “o tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, …”.

Não afirma que o tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da pena de suspensão …

Aliás, todas as normas relativas à Suspensão da execução da pena de prisão (cfr. Secção II, do Capítulo II, do Título III do Código Penal), encontram-se nestes moldes.

Da mesma forma, no artigo 66º, nº 1, do Código Penal, na redacção vigente à data da prática dos factos, consta que:

“O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto …”.

O pressuposto formal de condenação da referida pena acessória é a condenação em pena de prisão superior a 3 anos, independentemente da sua execução ser ou não suspensa.

Não cabe na letra da lei, como vimos, que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada seja uma outra pena, autónoma. O que resulta da letra da lei, mormente dos normativos citados, é a aplicação de uma pena de prisão, que pode ser ou não suspensa, na sua execução.

Atentemos agora na natureza e fins das penas acessórias.

Como ensina a Professora Maria João Antunes, in Penas e Medidas de Segurança, pág. 43, “as penas acessórias são verdadeiras penas. … As penas acessórias aplicam-se por referência ao conteúdo do ilícito típico; ligam-se, necessariamente, à culpa do agente, que é seu pressuposto e limite; justificam-se de um ponto preventivo; e são determinadas concretamente em função dos critérios gerais de determinação da medida da pena previstos no artigo 71º do CP, a partir de uma moldura que estabelece os seus limites (mínimo e máximo) de duração. …

As penas acessórias têm um afloramento explícito no nº 2 do artigo 65º do CP, nos termos do qual a lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões, o que tem o objetivo inequívoco de distinguir o que é efeito do crime do que é efeito da pena. A lei pode fazer corresponder a certos crimes determinados efeitos, prevendo penas acessórias cuja aplicação é ainda por referência ao conteúdo do ilícito respetivo e à censura do facto praticado, penas essas que constituem a forma atual de os efeitos do crime poderem ter relevo, sem qualquer quebra da proibição da sua automaticidade”.

Realça-se o facto de estarmos perante verdadeiras penas, que se ligam, necessariamente, à culpa do agente e justificam-se pelas exigências de prevenção, geral e especial.

Neste sentido veja-se o Ac. da RC de 16.5.2018, in www.dgsi.pt, onde se lê que:

“Denominam-se penas acessórias as que só podem ser decretadas conjuntamente com uma pena principal.

A pena acessória não é um efeito automático da prática do crime que a prevê, porque tem que ser decretada numa sentença condenatória, dependendo a sua aplicação da verificação de pressupostos autónomos, em função de cada crime, da existência de uma moldura abstracta privativa e da valoração dos critérios gerais de determinação das penas criminais.

Condição necessária da aplicação da pena acessória é a condenação do agente numa pena principal mas não é, sua condição suficiente pois torna-se, porém, sempre necessário ainda que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie, da pena acessória (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 197).

As penas acessórias são verdadeiras penas criminais e por isso, também elas estão ligadas à culpa do agente e são justificadas pelas exigências de prevenção (cfr. Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 34)”.

Muito embora distintas nos seus pressupostos, quer a pena principal, quer a acessória, assentam num juízo de censura global pelo crime praticado e daí que para a determinação da medida concreta de uma e outra se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal – cfr. Ac. da RC de 20.2.2019, in www.dgsi.pt

Para a situação específica da pena acessória sub judice, veja-se o Ac. do STJ de 27.5.2010, in www.dgsi.pt, onde se afirma que:

“Como anota FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, p. 168, o que faz desencadear a pena acessória é a violação grave de deveres relativos à função exercida pelo agente ou a consequência que a prática do crime acarreta do ponto de vista funcional, pela indignidade manifestada na prática do crime ou pela perda de confiança necessária ao exercício da função que dele deriva. Analisando-se no reflexo produzido na função, o aludido pressuposto acresce à prática do crime propriamente dito, sendo aquele o determinante autónomo da aplicação da pena acessória, que assim se distingue da sanção correspondente ao crime – sanção principal, embora pressupondo-a.

A reforma penal de 1995 trouxe uma inovação importante, para além de outras, nesta matéria: a introdução de um mínimo e um máximo – limites dentro dos quais deve ser doseada a pena acessória, conferindo, assim, a esta uma mais vincada natureza de pena (e não já de medida de segurança), pena essa a ser doseada de acordo com critérios ligados ao facto praticado e à culpa do agente.

Uma tal reforma não é alheia às críticas tecidas ao regime anterior por FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 178 e ss.

Do que se trata é de fazer reflectir na pena a fixar (principalmente na pena única, em que se deve ter em conta os factos no seu conjunto) que quem desempenha cargos públicos relevantes, como era o da arguida, deve, mais do que qualquer outra pessoa, abster-se da prática de actos que possam pôr em causa, como puseram, o bom nome da instituição onde se inserem.

A actuação da arguida, reiterada, persistente, em crimes tão graves não deixa de ter pronunciado reflexo em tais funções, implicando a perda da confiança necessária ao seu exercício.

Para além disso, a arguida, em diversas situações, usou da sua função e do prestígio inerente, bem como da confiança que o cargo inspirava nas pessoas que ela contactava, para conseguir obter diversas vantagens ilícitas, não se coibindo de praticar os crimes de burla por que foi condenada.

Ora, a actuação da arguida, revelada em todas estas situações, é particularmente lesiva dos deveres inerentes ao cargo, sendo adequada a produzir a tal perda de confiança no exercício da função, para além de revelar indignidade, sendo que, como referem SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES no seu Código Penal Anotado, Editora Rei dos Livros, em anotação ao art. 66.º «é indigno tudo o que for desprezível, indecoroso, impróprio, inadequado ao prestígio e elevação que o exercício do cargo exige dos seus servidores.»

Por todo o exposto, a arguida não pode deixar de ser punida com a pena acessória de proibição de exercício das funções que desempenhava.

Considerando a gravidade da actuação da arguida do ponto de vista do prejuízo acarretado para a função e o seu reflexo na confiança que deve merecer aos cidadãos, e ainda a culpa da mesma arguida na violação dos deveres impostos pelo exercício do cargo, sendo uma funcionária altamente qualificada e servindo numa instituição como a Procuradoria-Geral da República, acha-se adequado puni-la com a pena acessória de proibição de exercício da função por um período de cinco anos”.

Por sua vez, estipula o artigo 50º, nº 1, do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

O nº 2 da mesma norma dispõe que “o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.

O nº 3 estipula que “os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente” e nos termos do nº 4 “a decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições”.

Por último, o nº 5 da mesma norma refere que “o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos”.

São estes os pressupostos para a suspensão da execução da pena de prisão. Um objectivo e formal (pena aplicada não superior a 5 anos de prisão) e outro material, que se traduz no juízo que o tribunal fará de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Como consta no Ac. da RC de 29.11.2017, in www.dgsi.pt, “os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão vêm enunciados no artigo 50º, nº 1, do Código Penal. O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos. O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. No juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir)”.

Ainda no mesmo aresto pode ler-se que “no entendimento do Prof. Figueiredo Dias, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização), se a ela se opuserem as finalidades da punição (artigo 50, nº 1 e 40º, nº1, do Código Penal), nomeadamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que «só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto…».

“A suspensão da execução da pena de prisão é, sem dúvidas, um poder vinculado do julgador, que terá de a decretar sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos formais e materiais. Deste modo, o tribunal, quando aplicar pena de prisão não superior a 5 anos deve suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, juízo este não necessariamente assente numa certeza, bastando uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização, em liberdade, do arguido” – cfr. Ac. da RC de 3.10.2018, in www.dgsi.pt.

Do que fica dito, facilmente se conclui que o juízo a fazer para a suspensão da execução da pena de prisão é bem distinto daquele outro para a aplicação da pena acessória sub judice.

Se na suspensão da execução da pena o juízo traduz-se numa prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, na aplicação da pena acessória estão em causa as necessidades de prevenção geral e especial, mas também a culpa do agente.

Como se disse, deve ser ponderada, mormente, a gravidade da actuação do arguido, do ponto de vista do prejuízo acarretado para a função, e o seu reflexo na confiança que deve merecer aos cidadãos, e ainda a sua culpa na violação dos deveres impostos pelo exercício do cargo.

Assim, discorda-se, frontalmente, do referido aresto da Relação de Évora quando afirma que “se houve suspensão da execução da pena de prisão, o juízo que tal permitiu não é adequado a co-existir com uma pena acessória de tal gravidade”.

Pelo contrário, a suspensão da execução da pena de prisão deve, de facto, co-existir com a aplicação da pena acessória prevista no artigo 66º do Código Penal, se se verificarem todos os demais pressupostos.

É isso que impõe a natureza e os fins da referida pena acessória, o que se mostra devidamente compatível com a letra do preceito; ou melhor, é isso que impõe quer a letra quer o espírito da norma.

De referir, por último, que o artigo 66º, nº 1, do Código Penal, sofreu uma alteração com a Lei nº 94/2021, de 21.12.

Este diploma legal alterou o nº 1 do artigo 66º, passando este a ter a seguinte redacção:

1 - O funcionário que, no exercício da atividade para que foi eleito ou nomeado ou por causa dessa atividade, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, ou cuja pena seja dispensada se se tratar de crime de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de corrupção, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 8 anos quando o facto …”.

Foi agora aditada a expressão ou cuja pena seja dispensada se se tratar de crime de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de corrupção.

Com esta nova redacção cai por terra o argumento de que a referida pena acessória só deve ser aplicada nos casos que atinjam um patamar de gravidade apenas compatível com a prisão efectiva.

Não se compreende agora que possa ser aplicada quando a pena seja dispensada se se tratar de crime de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de corrupção, mas já não se se tratar de uma pena de prisão suspensa na sua execução.

Pelo que fica dito, conclui-se que também neste ponto não assiste razão ao recorrente, pelo que se indefere a sua pretensão.

             *

Próxima questão: se o artigo 66º, nº 1, do Código Penal é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa (questão do recurso do arguido CC).

O arguido suscita a inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, da interpretação do artigo 66º, nº 1, do Código Penal, no sentido de que a proibição do exercício de função é aplicável quando o crime seja punido com pena de prisão superior a três anos suspensa na sua execução.

Vejamos.

Nos termos do artigo 29º, nº 3, da CRP, “não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior”.

Ora, no caso concreto e pelas razões supra aduzidas, a pena acessória aplicada encontra-se prevista, precisamente, no artigo 66º do Código Penal.

Assim, não se verifica a invocada inconstitucionalidade.

Também neste ponto não assiste razão ao recorrente.

              *

Também o recorrente DD vem suscitar a mesma questão de saber se não estão reunidos os pressupostos de aplicação da pena acessória de proibição do exercício de funções.

Alega o arguido que, tal como sucede, v. g., com a profissão de advogado, também a de revisor oficial de contas não deve considerar-se compreendida no âmbito normativo do n.º 2 do art. 66.º do CP.

Seja como for, o certo é que a referida pena acessória somente é aplicável se o agente for punido efetivamente com pena de prisão superior a 3 anos.

Tal pressuposto reporta-se à pena efetivamente aplicada ao agente.

Ora, o Tribunal a quo suspendeu a execução da pena aplicada ao recorrente. Não se trata, pois, de uma pena de prisão, mas de uma pena de substituição, hoc sensu.

Destarte, in casu, uma vez que a pena de prisão foi suspensa na sua execução, ganhando autonomia como pena de substituição, não pode ser aplicada ao recorrente a pena acessória de proibição do exercício de profissão de revisor oficial de contas.

Pois bem.

No que respeita à profissão de revisor oficial de contas, a mesma encontra-se abrangida pelo nº 2 do artigo 66º do Código Penal, vigente à data da prática dos factos, nos termos do qual “o disposto no número anterior é correspondentemente aplicável às profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública”.

De facto, como resulta do artigo 6º do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de contas, constituem atribuições da Ordem, entre outras:

a) Regular o acesso à profissão pelo reconhecimento de qualificações profissionais e pela realização de estágio profissional e regular o acesso e do exercício da profissão em matéria deontológica;

c) Conceder, em exclusivo, o título profissional de revisor oficial de contas.

A Ordem dos Revisores Oficiais de Contas é uma associação pública profissional a quem compete representar e agrupar os seus membros, inscritos nos termos do respectivo Estatuto, bem como superintender em todos os aspetos relacionados com a profissão de revisor oficial de contas – artigo 1º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas.

Nos termos do nº 2 da mesma norma legal “a Ordem é uma pessoa coletiva de direito público que, no exercício dos seus poderes públicos, pratica os atos administrativos necessários ao desempenho das suas funções e aprova os regulamentos previstos na lei e no presente Estatuto”.

No que respeita à profissão de Advogado, apesar de não estar em causa nos presentes autos, sempre se deixa a posição de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal 3ª Ed. actualizada, pág. 345, segundo o qual “as profissões que dependem de título público incluem as profissões liberais, incluindo os advogados”.

 No que respeita à questão relativa à suspensão da execução da pena de prisão, dá-se por reproduzido o que ficou dito supra na apreciação da mesma questão suscitada pelo recorrente CC.

Pelo exposto, não assiste razão ao recorrente DD, improcedendo esta sua pretensão.

             *

Subsidiariamente, pugna o arguido DD pela redução da pena acessória para 2 anos e 6 meses.

Alega que, uma vez que, como se sustentou acima, a pena principal a aplicar ao recorrente não deve ser superior a 3 anos de prisão, sempre será inaplicável in casu a referida pena de proibição do exercício de profissão de revisor oficial de contas.

Caso também assim não se entenda, perante o quadro supra descrito, o quantum da pena acessória de proibição do exercício de profissão de revisor oficial de contas fixado pelo Tribunal a quo mostra-se manifestamente excessivo, devendo ser reduzido para 2 anos e 6 meses.

Neste particular consta do acórdão recorrido que:

“Tendo em conta a medida abstrata da referida pena acessória [2 a 5 anos], a gravidade dos factos praticados e o montante do prejuízo causado ao Estado, entende-se adequado fixar em 4 (quatro) anos a pena acessória de proibição do exercício de funções a aplicar a cada um dos mencionados arguidos”.

Pois bem.

Como resulta do que ficou dito supra, a pena principal do arguido DD mantém-se.

Cai, assim, o primeiro dos argumentos.

Quanto ao mais, face aos fundamentos apresentados pelo julgador, que não merecem qualquer censura, improcede a pretendida redução da pena acessória.

A pena acessória aplicada de 4 anos não ultrapassa o limite da culpa do arguido, revelando-se justa, adequada e necessária. Pena inferior à aplicada, como pretendido pelo recorrente, revelar-se-ia manifestamente insuficiente face às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.

Aliás, neste ponto, o arguido apenas refere perante o quadro supra descrito a pena acessória é excessiva, sem que concretize as razões que deveriam conduzir à redução dessa pena.

Improcede igualmente esta questão suscitada pelo recorrente.

              *

Face ao exposto, deve ser negado provimento ao recurso do arguido AA, face à improcedência de todas as questões, e concedido parcial provimento aos recursos dos arguidos BB (por razões diversas das invocadas no recurso), CC e DD (por razões diversas das invocadas no recurso).

             *

           

       C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em:

 - negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA;

- conceder parcial provimento aos recursos interpostos pelos arguidos BB, CC e DD e, em consequência, decide-se:

▪ declarar nulo o acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal (em concreto, por não ter efectuado qualquer juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição da suspensão da execução da pena, tendo em conta a situação económica concreta dos arguidos, por não ter ponderado a real situação de cada um dos arguidos e a sua capacidade para proceder ao pagamento das quantias em causa), devendo este ser substituído por outro que, se necessário com recurso a produção ou repetição de prova, supra a identificada nulidade nos termos enunciados, decidindo-se em conformidade.

Face à referida nulidade, fica prejudicado o conhecimento das seguintes questões:

- se o montante de € 1.025.674,08 não pode constar como condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido BB, pelo facto de não se ter demonstrado que a A... se enriqueceu nesse montante – questão do recurso do arguido BB;

- se a suspensão da execução da pena não deve ser condicionada ao pagamento do montante de 773.389,46 euros, nos termos em que o foi – questão do recurso do arguido CC;

- se o artigo 14º, nº 1, do RGIT é inconstitucional, por violação do princípio da culpa, implicitamente consagrado nos artigos 1º, 13º e 25º, nº 1 da Constituição da Republica Portuguesa - questão do recurso do arguido CC;

 - se o artigo 14º, nº 1, do RGIT é inconstitucional, por violação dos princípios da insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade penal e da legalidade criminal, consagrados nos artigos 30º, nº 3 e 29º da Constituição da República Portuguesa - questão do recurso do arguido CC;

- se a suspensão da execução da pena não deve ser condicionada ao pagamento do montante de 773.389,46 euros; quando muito se deve ser condicionada ao pagamento do Estado da quantia de 20.000,00 euros – questão do recurso do arguido DD.

No mais, mantém-se o acórdão recorrido.

             *

               Custas pelo recorrente AA, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça devida – artigos 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

                            *

            Sem custas quanto aos demais arguidos (artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, a contrario sensu).

              *

               Coimbra, 10 de Julho de 2024.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

              Rosa Pinto – Relatora

              Cândida Martinho – 1ª Adjunta

              Maria José Guerra – 2ª Adjunta