REGIME PENAL DO JOVEM DELINQUENTE
RELATÓRIO SOCIAL
MEIOS OU DILIGÊNCIAS DE PROVA ESSENCIAIS PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
MEIOS DE PROVA NECESSÁRIOS PARA A CORRECTA DETERMINAÇÃO DA SANÇÃO
PENA DE PRISÃO SUSPENSA
PERDÃO
Sumário

I – Pretendendo o D.L. n.º 401/82, de 23 de Setembro, com a atenuação especial da pena, evitar os efeitos perversos e criminógenos da prisão, resulta que quando a opção recai sobre uma pena que não tenha associados tais efeitos, como é o caso das penas de multa, de trabalho a favor da comunidade e da suspensão da pena de prisão, o tribunal não tem que equacionar a aplicação de tal regime.
II - A junção de relatório social, ao abrigo do artigo 370.º, n.º 1, do C.P.P., é facultativa e o tribunal só deve diligenciar por obter tal meio de prova se a tiver “necessária à correta determinação da sanção”.
III - A lei distingue entre meios ou diligências de prova “essenciais para a descoberta da verdade”, referidos no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do C.P.P., e meios de prova “necessários para a correta determinação da sanção”, do artigo 370.º, n.º 1, não radicando a diferença apenas no conteúdo e força das expressões essenciais e necessários, mas sobretudo no momento processual a que tal meio de prova se dirige.
IV - Consagrando o nosso processo penal um sistema mitigado de “cesure” entre a decisão sobre a culpa e a decisão sobre a sanção a aplicar, tem de entender-se que a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade respeita à decisão sobre a culpa, enquanto que a falta de relatório social necessário para a determinação da sanção respeita à decisão sobre a sanção a aplicar.
V - A não junção do relatório social quando necessário consubstancia um vício do procedimento adoptado, a invocar nos termos do artigo 123.º do C.P.P., apenas podendo o tribunal ad quem apreciar a invocada falta se ela se tiver traduzido numa insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
VI - A aplicação da pena de suspensão da execução da pena de prisão afasta a aplicação do perdão de penas previsto no artigo 3.º da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, por cair no âmbito da excepção prevista na segunda parte da alínea d) do nº 2 do referido preceito.

Texto Integral

            Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I.

            No processo comum com intervenção do tribunal singular que, com o nº 73/22...., corre termos pelo juízo local criminal de Alcobaça foi decidido: …

            - ABSOLVER o arguido … da prática de um crime de condução perigosa de veículos rodoviário, previsto e punido pelo artº 291º, nº1, al. b) do Código Penal;

            - CONDENAR o arguido … pela prática de um crime de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano subordinada à condição do arguido, no prazo máximo de 3 (três) meses após o trânsito em julgado da sentença, comprovar nos autos a inscrição em escola de condução e até ao fim do período de suspensão comprovar a sua sujeição ao exame teórico de condução, denominado código.

            - Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça de 2 U.C., bem como dos encargos com o processo.


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            Inconformado, recorreu o arguido para este tribunal, concluindo o seu recurso do seguinte modo (transcrição):

1. À data da prática dos factos, o Arguido tinha 19 anos e foi condenado em pena de prisão, logo, os artigos 1.º, n.º 2 e 4.º do DL n.º 401/82, de 23 de Setembro, ex vi art. 9.º do CP, deveriam ter sido interpretados no sentido de ser imposta a ponderação da atenuação especial da pena, o que o Tribunal, sem apontar razões ou sequer referir as normas, não fez, pelo que essas normas foram violadas, devendo ser declarada a nulidade da sentença prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por omissão de pronúncia.

2. As disposições conjugadas dos art.ºs 370.º n.º 1 do CPP, 9.º e 71.º n.º 2 al. d) do CP, e 1.º, n.º 2 e 4.º do DL nº 401/82 de 23 de Setembro deviam, no caso, ter sido interpretadas no sentido de impor a realização do relatório social e consideração do respectivo teor aquando da determinação da natureza da pena e respectiva medida, para formar uma decisão sustentada sobre a existência ou não de «sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado».

3. Mas o Tribunal parece ter interpretado essas normas em sentido contrário, assim as violando, o que constitui vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (cf. artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP), impondo a anulação da sentença e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (nos termos do disposto no artigo 371º do CPP).

4. A sentença condenou o Arguido em prisão, mas não aplicou o perdão de um ano de pena de prisão imposto pela interpretação do art. 3.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, no sentido de abranger o crime praticado em 09.05.2022 pelo Arguido nascido menos de 20 anos antes, tendo a sentença violado a norma, ao ignorá-la ou interpretá-la de forma diferente, mas não mencionada na decisão.

5. Ao Tribunal cabia aplicar essa norma, por força do art. 14.º da mesma lei, que foi, então, igualmente violado.

6. Devem, assim, ser declarados e reparados os erros referidos, nos termos legais.


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            Respondeu ao recurso o Ministério Público em primeira instância defendendo a sua improcedência.

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            Recebido o recurso e remetidos os autos a este tribunal, pelo Ministério Público foi emitido parecer no sentido da procedência do recurso por, em síntese, ter sido omitida quer a apreciação do Regime Penal Especial para Jovens, constante do DL 401/82 de 23 de setembro, quer a aplicação da lei da Amnistia, entendendo ainda o Ministério Público, nesta Relação, que deverá ser reaberta a audiência, em primeira instância, para junção de relatório social.

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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP).

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Após os vistos foram os autos à conferência.

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            II.

            Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que é pelas conclusões de recurso que se afere o seu âmbito e que, analisando-as, são as seguintes as questões trazidas à apreciação deste tribunal:

            - Nulidade da sentença por omissão da pronúncia quanto à eventual aplicação do DL 401/82 de 23.09.

            - Vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto (artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP) por inexistência de relatório social.

            - Aplicação do perdão previsto no artigo 3º, nº 1 da Lei 38-A/2023 de 2.8.


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            É a seguinte a decisão proferida em primeira instância (transcrição):

a)         Factos Provados

1.         No dia 09.05.2022, cerca das 13h15, em segmento da Estrada Nacional ...42, inserido em ..., no concelho ..., o arguido, conduziu o veículo automóvel de marca BMW, cor de laranja, com a matrícula ..-..-DG, sem que fosse titular de carta de condução ou de qualquer outro título que o habilitasse para tanto.

2.         No percurso efectuado, o arguido foi avistado por AA e BB, ambos militares da GNR, devidamente uniformizados e no exercício de funções, que se encontravam no interior de veículo caracterizado, com a matrícula ..-..-VM, da marca Citroen, pertencente a tal força de segurança.

3.         Os referidos militares decidiram, então, seguir o veículo conduzido pelo arguido a fim de proceder à sua fiscalização.

4.         Contudo, após os militares terem ordenado, através de sistema altifalante do veículo em que seguiam, a paragem do veículo conduzido pelo arguido, este manteve a sua condução e aumentou a sua velocidade, de forma a evitar ser fiscalizado, sendo sempre seguido pelos militares da GNR acima indicados.

5.         Já no interior da vila de ..., onde o limite máximo de velocidade consentida era de 50 km/h, o arguido, conduzindo a velocidade não concretamente apurada, e com vista a despistar os militares da GNR, sem efectuar qualquer sinal luminoso, reduziu a velocidade que imprimia à sua condução e mudou de direcção, à direita, na direcção da Praça ....

6.         Por motivo não concretamente apurado, o veículo conduzido pelos militares acabou por embater e subir o lancil do passeio do lado esquerdo da via, deixando, de imediato, de funcionar, ficando parado no local, por ter sofrido estragos em diversos componentes do seu exterior e interior, que ficaram totalmente inutilizados.

7.         O arguido conhecia as características do veículo identificado em 1. e sabia que, ao actuar nos termos aí descritos, circulava com ele numa via pública, não ignorando que, pelo facto de não ser titular de carta de condução ou de documento equivalente, aí o não podia conduzir.

8.         Ao conduzir o veículo indicado em 1., nos termos acima descritos em 5., o arguido sabia estar a incumprir regras estradais respeitantes à mudança de direcção, o que quis e fez.

9.         Agiu o arguido de forma deliberada, livre e conscientemente, muito embora conhecesse o carácter proibido e criminalmente punível da sua conduta.

10.       O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 05.07.2022, na pena de 90 dias de multa pela prática em 14.12.2021 de um crime de condução sem habilitação legal, extinta em 11.05.2023.

11.       O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 18.01.2023, na pena de 120 dias de multa pela prática em 17.02.2022 de um crime de condução sem habilitação legal, extinta em 20.06.2023.

12.       O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 10.02.2023, na pena de 79 dias de multa pela prática em 27.11.2021 de um crime de condução sem habilitação legal.

13.       O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 14.02.2023, na pena de 140 dias de multa pela prática em 29.12.2922 de um crime de condução sem habilitação legal.

b) Factos Não Provados


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            (…)

IV. DAS CONSEQUÊNCIAS JURIDICAS DO CRIME

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Apreciação do recurso.

Questão Prévia: como já se disse, no dispositivo da sentença recorrida que se encontra nos autos (fls. 162), consta um nome que não o do arguido que foi julgado neste processo. Trata-se de um manifesto lapso que deverá ser corrigido, o que, a final, se determinará, nos termos do artigo 380º, nº 1, alínea b) e 2 do CPP.

                                                      *

A primeira questão invocada pelo recorrente, que à data dos factos tinha 19 anos de idade, respeita à omissão da consideração pelo tribunal recorrido do Regime Penal Especial para Jovens entre 16 e 21 anos, instituído pelo DL 401/82 de 23.09, ao abrigo do qual, entende o recorrente, deveria ter sido especialmente atenuada a pena imposta.

De facto, é hoje incontroverso que a atenuação especial prevista no DL 401/82, de 23-09, corresponde a um dos "casos expressamente previstos na lei", a que alude o n.º 1 do art. 72.º do Código Penal. Trata-se de uma medida que, como é dito no preâmbulo do referido diploma, lembra que o princípio geral imanente em todo o texto legal é o de maior flexibilidade na aplicação das medidas de correção que vem permitir que a um jovem imputável até aos 21 anos possa ser aplicada tão só uma medida corretiva. (…) trata-se, em suma, de instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção.

 Sublinha ainda o diploma a inconveniência dos efeitos estigmatizantes das penas aconselhando a que se pense na adoção preferencial de medidas corretivas para os delinquentes a que o diploma se destina.

Também a jurisprudência o tem afirmado. Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão da Relação de Guimarães de 27/04/2020 proferido no processo 163/19.1JABRG.G1

I - A opção político-criminal por um tratamento diferenciado e especial estabelecido pelo artigo 9o do C. Penal e DL n.° 401/82, de 23/9, aos jovens que tiverem (à data da prática do crime) completado 16 anos sem terem ainda atingido os 21 anos, em relação ao regime penal para adultos, tem vista a facultar aos tribunais um leque maior de alternativas na imposição de penas de prisão e fundamenta-se, essencialmente, no conhecido efeito altamente criminógeno da pena de prisão e no entendimento de que a delinquência juvenil envolve um ciclo de vida correspondente a uma fase de latência social que faz supor a criminalidade como um fenómeno efémero e transitório.

II - Com efeito, tais dados apontam para que quanto menor for a reclusão mais reduzido será aquele seu efeito e, consequentemente, maior a possibilidade de o jovem, em liberdade, poder optar por uma vida arredada do crime e, ademais, esse regime especial tem a vantagem de permitir uma transição gradual, menos abrupta e dramática, entre a inimputabilidade e a imputabilidade, entre o direito dos menores e o dos adultos.

III - Porém, a atenuação especial não constitui um “efeito automático", derivado da juventude do arguido, mas uma consequência, a ponderar casuisticamente, em função dos crimes cometidos, do modo e tempo de execução, do comportamento do arguido anterior e posterior ao crime e de todos os elementos que possam ser colhidos do caso concreto e que permitam concluir que, conciliando as exigências especiais de prevenção no sentido de integração do delinquente na sociedade e as exigências de prevenção geral, a reinserção social do delinquente será facilitada se for condenado numa pena que parta de um patamar inferior.

IV Assim, a juventude é apenas o requisito formal que impõe ao julgador, não uma mera faculdade, mas o poder-dever, vinculadamente concedido (que tem de usar sempre), de averiguar se estão ou não verificados os requisitos (materiais) para a aplicação da atenuação especial: a existência de "sérias razões" que lhe permitam "crer" que daquela atenuação resulte alguma vantagem para uma mais fácil reintegração do jovem delinquente.

E igualmente a propósito da atenuação especial da pena, resume o acórdão do STJ de 29.04.2009, proferido no processo 6/08.1PXLSB.S1 in www.dgsi.pt,:

- não é de aplicação necessária e obrigatória;

- não opera de forma automática, sendo de apreciar casuisticamente;

- é de conhecimento oficioso;

- não constitui uma mera faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos, sendo de concessão vinculada;

- é de conceder sempre que procedam sérias razões para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção social do jovem condenado, sendo em tais circunstâncias obrigatória e oficiosa;

 - não dispensa a ponderação da pertinência ou inconveniência da sua aplicação;

- impõe se justifique a opção ainda que se considere inaplicável o regime, isto é, deve ser fundamentada a não aplicação.

Portanto, não há qualquer dúvida de que a lei pretende evitar que os jovens delinquentes sejam introduzidos em estabelecimentos prisionais dado o efeito criminógeno que lhes está associado e a estigmatização que acarreta, se for possível alcançar os fins das penas, sem compromisso da preservação da paz jurídica, com sanções alternativas que facilitem e promovam a reinserção social do delinquente.

Só que, se com a referida lei se pretendem evitar os efeitos perversos e criminógenos da prisão, então, forçoso é concluir que quando não é aplicada pena de prisão efetiva, isto é, quando a opção recai sobre uma pena que não tenha associados tais efeitos, como sejam a pena de multa, a pena de trabalho a favor da comunidade, a suspensão da pena de prisão, não tem que se aplicar, ou sequer equacionar, a aplicação do DL 401/82 de 23.09, v. g. para proceder à atenuação especial da pena ou aplicar qualquer outra medida.

Portanto, se o recorrente tivesse sido condenado em pena de prisão efetiva em estabelecimento prisional, o tribunal ao omitir pronúncia sobre a possibilidade de aplicação de Regime Penal Especial para Jovens determinaria que a sentença incorresse em nulidade por omissão de pronúncia (artigo 379º, nº 1, alínea c) e 2 do CPP) ou, sob um outro ponto de vista, em violação do dever de fundamentação (artigo 374º, nº 2 do CPP). Mas ao optar por uma pena sem efeitos criminógenos, como é a pena suspensa, já não tem de o fazer, porque a pena imposta já constitui em si mesma uma alternativa à prisão, da qual estão arredados tais efeitos. O mesmo sucederia, por exemplo, se o tribunal optasse por pena de multa (cfr. Ac RL de 08/02/2022 proferida no processo 1315/18.7PAALM.L1-5 in www. dgsi.pt e a jurisprudência aí referida).

É que o regime consagrado nos artigos 4º (atenuação especial), 5º (aplicação subsidiária da legislação relativa a menores com menos de 18 anos) e 6º (medidas de correção a jovens maiores de 18 anos e menores de 21 anos) tem sempre como pressuposto a pena de prisão, porquanto o regime penal especial destinado a jovens adultos visa, precisamente, pelos conhecidos malefícios dos seus efeitos, evitar a aplicação de penas de prisão efetiva de jovens adultos.

Não tendo o recorrente sido condenado em pena de prisão efetiva, terá de improceder este segmento do seu recurso.


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            O segundo ponto de discordância do recorrente relativamente à sentença recorrida tem a ver com a falta de junção de relatório social que, no seu entender, determina a existência do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP.

Dispõe o nº 1 do artigo 370º do CPP com a epígrafe “Relatório Social” que: “O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respetiva atualização quando aqueles já constarem do processo”(sublinhado nosso).

            A junção do relatório, como se disse no acórdão 1921/16.4T9BRG.G1, é, pois, facultativa, (cfr Ac. STJ de 06/02/2019 proferido no processo 488/12.7JAAVR.1.P1.S1), na medida em que só se for entendida “necessária à correta determinação da sanção” é que o Tribunal deverá diligenciar por obter tal meio de prova. Tal significa, portanto, que a necessidade da sua junção tem de ser casuisticamente, concretamente, avaliada.

            Mas significa mais: significa que a não junção do relatório social, quando necessário, consubstancia um vício do procedimento adotado, um “error in procedendo”, mas não necessariamente um vício da decisão, um “error in iudicando”. De facto, pode haver decisões injustas sem que tenham ocorrido vícios de procedimento e pode haver vícios de procedimento que não conduzam a decisões injustas.

            Ora, é a lei que diz quais são os vícios de procedimento e também é a lei que estabelece as consequências da sua ocorrência (artigos 118º a 123º do CPP).

            É certo que há quem considere (cfr Ac. RE de 21/12/2017, entre outros) que a falta de relatório social consubstancia uma nulidade dependente da arguição por se tratar de “omissão de diligência que pode reputar-se essencial para a descoberta da verdade” (artigo 120º, nº 2, alínea d), 2ª parte). Mas, salvo o devido respeito, não tem de ser, necessariamente, assim.

            Desde logo porque se impõe fazer a distinção entre meios ou diligências de prova “essenciais para a descoberta da verdade” (artigo 120º, nº 2, alínea d) do CPP) e meios de prova “necessários para a correta determinação da sanção” (artigo 370º, nº 1 do CPP). E a diferença não está só no conteúdo e força das expressões essenciais e necessários. Está no momento processual a que tal meio de prova se dirige.

            Como se sabe o nosso processo penal consagra um sistema mitigado de cisão (“cesure”) entre a decisão sobre a culpa e a decisão sobre a sanção aplicar (artigo 368º e 369º do CPP), havendo até a possibilidade de reabertura da audiência (artigo 371º do CPP) e de produção de prova suplementar, caso tal se revele necessário.

            Ora, assim sendo, terá de entender-se que a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade (artigo 120º, nº 2, alínea d) do CPP) respeita à primeira parte (da decisão sobre a culpa), enquanto que a falta de relatório social, quando este é necessário para a determinação da sanção, respeita à segunda parte, isto é, à decisão sobre a sanção a aplicar.

            Mas vejamos ainda a questão sob outro ponto de vista.

            De acordo com Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao Código de Processo Penal, 4ª edição, 881 “a lei portuguesa reconhece apenas três critérios materiais de admissibilidade da prova: a prova essencial (“indispensável”,absolutamente indispensável” ou “estritamente indispensável”); a prova necessária (“previsivelmente necessária”, “absolutamente necessária”, “útil”, “de interesse”, “relevante” ou “de grande interesse” ou, na formulação negativa a prova “inadequada”, “de obtenção improvável ou muito duvidosa” ou “com finalidade meramente dilatória”, “irrelevante” ou “supérflua”) e a prova conveniente.

            A diferença entre estes três tipos de critérios é fundamental em termos práticos: a omissão da prova do primeiro tipo constitui uma nulidade sanável nos termos do artigo 120.º nº 2 al. d) do CPP; a omissão da prova do segundo tipo constitui uma irregularidade, nos termos do art.º 123º; a omissão da prova do terceiro tipo não constitui qualquer vício processual.

            Assim sendo, enquanto vício de procedimento, a não junção de relatório social constituiria uma irregularidade a invocar no próprio ato (neste caso, no julgamento) ou, se a este o interessado não tivesse assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tivesse sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado (artigo 123º, nº 1 do CPP).

            Na situação em apreço, o recorrente esteve no julgamento e não invocou qualquer irregularidade atempadamente, isto é, deixou que terminasse o julgamento sem requerer a junção de relatório social.

            Sendo assim, este Tribunal ad quem apenas poderá apreciar a questão da invocada falta de relatório social se ela se tiver traduzido numa insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que consubstanciaria o vício previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP, vício este invocado pelo recorrente, mas que sempre seria do conhecimento oficioso.

            No entanto, antes de entrarmos na análise do referido vício, há ainda uma outra perspetiva da apreciação da questão que não deve ser descurada, qual seja o comportamento processual do recorrente.

Como se disse, o julgamento decorreu sem que tivesse sido requerido que fosse levada a efeito a elaboração do relatório social. O recorrente esteve devidamente representado por advogada que assistiu a toda a produção de prova e que nada requereu, mesmo perante a constatação óbvia de que o tribunal não disporia de relatório social, elemento esse que, agora no recurso, considera relevante. Este comportamento traduz um desvio ao princípio da lealdade processual – princípio que deve enformar todos os ramos do direito – e que no dizer de Paulo Pinto de Albuquerque (ob. Cit, anot 401º, 1051) “se impõe aos sujeitos e participantes processuais” porque representa uma imposição de princípios gerais inscritos na própria dignidade humana e da ética, que deve presidir a todos os atos de qualquer cidadão.

            A este propósito diz o Tribunal Constitucional no acórdão nº 429/95 citado no acórdão da Relação do Porto de 09/11/2016 in www.dgsi.pt: “Neste domínio são de realçar os deveres de vigilância e de boa fé processual: o primeiro obriga os sujeitos processuais “a reagir contra nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspetiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a atos em que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber”; o segundo impede que os sujeitos processuais possam “aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos atos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um “trunfo”, para em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado”.

            E note-se que este direito e dever de colaboração em nada colide com o facto de qualquer arguido beneficiar de presunção de inocência e, portanto, não estar obrigado a fazer prova da sua inocência, nem estar obrigado a colaborar com o tribunal na descoberta da verdade ou a prestar declarações, sem que tal o possa desfavorecer.

            Mas se um arguido entende que há determinadas circunstâncias da sua vida que o favorecem e que deveriam ser tidas em conta pelo tribunal, circunstâncias que o tribunal desconhece, então é razoável esperar que as leve ao conhecimento de quem julga e é desrazoável criticar o tribunal quando este as não foi procurar.

            No caso em apreço o arguido, ora recorrente, esteve no seu julgamento e não requereu nem a junção de relatório social, nem a realização de qualquer diligência de prova sobre a sua situação de vida que se configurasse necessária e viável.

Por outro lado, o tribunal durante o julgamento questionou o arguido sobre as suas condições de vida, mas, na sentença, não as fez constar na factualidade apurada.

Esta omissão faz padecer a sentença do invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP)? Vejamos.

            Este vício existe quando se constata que da factualidade constante da decisão faltam elementos que, podendo ser indagados ou descritos, impossibilitam, pela sua ausência, um juízo seguro de condenação ou absolvição (Ac. STJ de 15/02/2007 in www.dgsi.pt). E mesmo que se considere que este vício existe quando ficam por indagar factos essenciais à decisão no seu todo (relativos ao juízo de culpa e à determinação da natureza e dimensão da pena), eles têm de ser indagáveis, isto é, tem de ser possível efetivamente investigar tais factos. (Neste sentido AC. Relação de Guimarães de 25.03.2019 proferido no processo 45/11.5GAVVD). Ora, os atinentes às condições pessoais do arguido, foram relatados por ele próprio em julgamento (declarou ser operário fabril, auferir mensalmente 900€ líquidos, viver com a mãe reformada em casa do padrasto, estar inscrito em escola de condução e ter feito aulas), só que da sentença não ficou a constar, como provada ou não provada, qualquer factualidade de caráter pessoal, familiar ou profissional. No entanto ao escolher e determinar a pena o tribunal referiu como fator favorável o facto de o arguido ter uma “situação pessoal, com aparente estabilidade e normatividade, encontrando-se familiar, social e profissionalmente inserido”. A questão que se põe é, então, a de saber se a omissão das condições de vida do recorrente na factualidade apurada teve relevo na determinação concreta da pena aplicável.

            O critério da escolha da pena está fixado no artigo 70º do Código Penal que estatui que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição. Em face desta orientação legal o tribunal a quo, dados os antecedentes criminais, optou por pena de prisão, mas suspendeu-a na sua execução. Esta concreta escolha não mereceu qualquer reparo por parte do recorrente, uma vez que entendeu apenas que a pena deveria ter sido atenuada especialmente. Assim sendo, quanto à opção feita pela natureza da pena o “esquecimento” das circunstâncias da sua vida, revela-se inócuo.

            Já no que respeita à determinação da medida concreta da pena é ao artigo 71º que se vai buscar a matriz, isto é, as linhas orientadoras da graduação da pena.

            O tribunal a quo ponderou: “- as exigências de prevenção geral elevadas, o alarme social que pela sua gravidade é revelador de necessidade de reafirmação da norma jurídica, repetidamente violada junto da comunidade”, as “também relevantes necessidades de prevenção especial uma vez que o arguido possui já 4 condenações averbadas no seu certificado do registo criminal”.

            É certo que a alínea d) do artigo 71º manda atender também “às condições pessoais do agente e à sua situação económica”, pelo que seria sempre desejável que fosse projetado na factualidade apurada um conhecimento da personalidade e da situação socioeconómica do arguido.

            Mas pergunta-se: alguma das circunstâncias de vida referidas pelo arguido em audiência seriam fundamento para alterar a medida da pena a qual – fixada de forma branda, em cerca de 1/4 da moldura penal – reflete o desvalor da ação e, através deste, a culpa, além das necessidades de prevenção geral e especial? É evidente que não.

            Aliás o recorrente não diz quais os factos que pretendia que tivessem ficado a constar da sentença reveladores da sua situação de vida. Fossem quais fossem, uma vez que em nada alterariam a medida da pena - até porque o tribunal referiu de forma genérica a correta inserção familiar e profissional - é forçoso concluir que não padece a sentença do invocado vício de insuficiência da matéria de facto necessária para a decisão, não sendo a pena imposta inadequada à factualidade apurada.

 Pelo que fica exposto, não pode, também neste segmento, o recurso obter provimento.

Finalmente entende o recorrente que o tribunal a quo deveria ter aplicado o perdão previsto na lei 38-A/2023 de 02.08.

A lei 38-A/2023 de 2.8, aprovada por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude é aplicável (art. 2º, n.º 1) aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.

O recorrente pretende que a pena - suspensa na sua execução subordinada à condição do arguido no prazo de 3 meses comprovar nos autos inscrição em escola de condução e até ao fim do período de suspensão a sujeição a exame teórico - que lhe foi imposta, seja declarada perdoada pelo nº 1 do artigo 3º da referida lei.

Antes de mais, impõe-se dizer que, tendo o recorrente nascido em ../../2002 e tendo os factos ocorrido em 9 de maio de 2022, tinha 19 anos na data da sua prática, pelo que, quer em termos etários, quer em relação à data prevista como limite para prática de infrações abrangidas pela referida lei, a situação sub iudice cabe no âmbito da lei constante do artigo 2º.

Por seu turno, o perdão de penas está, efetivamente, previsto no artigo 3º da Lei 38-A/2023 de 02.08 que estipula que:

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

2 - São ainda perdoadas:

As penas de multa até 120 dias (…);

A prisão subsidiária (…)

c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e
            d) As demais penas de substituição,
exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.( sublinhado nosso)

3 – O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.

4- (…)

5-(…)

6-(…)

A questão que se põe é, então, a de saber se o tribunal a quo deveria ter aplicado à concreta pena imposta, o perdão previsto na lei 38-A/2023 de 2.8..

Olhando para a letra da lei, não há dúvida de que o legislador (que, como ensina o Professor F. Dias in Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, 695, §1117, regula como entender preferível as questões constantes do artigo 126º, nºs 2, 3 e 4 do Código Penal  (atual art. 127º) - , constituindo este preceito, para este efeito, legislação subsidiária) prevê um regime específico para as penas de substituição, ao estipular que, para além do perdão previsto no nº 1 do artigo 3º “são ainda perdoadas (…) d) as demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão, subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova” (sublinhado nosso).

Ora, é certo que a pena suspensa imposta ao recorrente é uma pena de substituição, mas ficou subordinada ao cumprimento da condição de comprovar no prazo de 3 meses a inscrição em escola de condução e até ao fim do período de suspensão a sujeição a exame teórico e, por isso, cai no âmbito da exceção (exceto…) que afasta a aplicação do perdão.

Como é dito por Pedro José Esteves de Brito in Julgar online, agosto de 2023 “Não tendo sido estabelecido o perdão da pena de substituição da suspensão entre 1 e 5 anos da execução da pena de prisão até 5 anos (cfr art. 50º do CP) que tenha ficado subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime (cfr art. 51º do CP) e/ou regras de conduta (cfr art. 52º do CP) e/ou acompanhada de regime de prova (cfr. Art. 53º do CP), neste caso, o perdão só poderá ser aplicado uma vez revogada a referida suspensão da execução da pena de prisão, na pena de prisão fixada na decisão condenatória (cfr art. 56º do CP) e com o limite de 1 ano de prisão estabelecido no nº 1 do preceito em apreço, para onde expressamente remete o nº 3 do art. 3º da lei em análise”.

Assim, como o recorrente viu a sua pena de 6 meses de prisão ser suspensa, subordinada à condição atrás referida, não há dúvida de que, não obstante se tratar de uma pena de substituição, está arredada do perdão de penas previsto no artigo 3º da Lei 38-A/2023 de 2.8, por cair no âmbito da exceção prevista na segunda parte da alínea d) do nº 2 do referido preceito, pelo que não tinha o tribunal a quo de julgar perdoada a pena imposta ao arguido.

Tanto basta para que, também neste segmento, o recurso tenha de ser julgado improcedente.


*

              III.

DECISÃO.

            Em face do exposto decide-se:

            - Ordenar a correção no dispositivo da sentença (fls. 162) do nome do arguido, substituindo o nome que dele consta por CC.

- Julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3Ucs.

            Notifique.

                                               Coimbra, 10 de julho de 2024

                                       Maria Teresa Coimbra


Cândida Martinho

Jorge Jacob