CRIME DE FRAUDE NA OBTENÇÃO DE SUBSÍDIO
CRIME DE FRAUDE FISCAL QUALIFICADA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO NO PAGAMENTO DO IRS E IRC EM FALTA
DÍVIDA TRIBUTÁRIA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL JUDICIAL
PROVEITO PRÓPRIO
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
Sumário

I - Enquanto o bem jurídico protegido com a incriminação prevista para o crime de fraude na obtenção de subsídio é a confiança necessária à vida económica e à correcta aplicação dos dinheiros públicos no domínio da economia, já o bem jurídico protegido com a incriminação prevista para o crime de fraude fiscal em sede de IRS é a efectiva arrecadação deste imposto por parte do erário público.
II - Inexistindo identidade entre os bens jurídicos verifica-se concurso efectivo de crimes se ocorrer a prática de ambos os crimes, não violando a dupla penalização o princípio ne bis in idem.
III - O pedido, e subsequente condenação, de indemnização formulado pelo Ministério Público, consistente no pagamento dos montantes do IRS e IRC que vieram a ser julgados em dívida, emergindo da prática do crime de fraude fiscal qualificada praticado podia, e devia, ser deduzido nos autos, nos termos do artigo 71.º do C.P.P.
IV – Nesta situação não está em causa qualquer litígio relativo à liquidação de dívidas tributárias e/ou execução fiscal, cuja competência compete aos tribunais administrativos e fiscais, mas sim a apreciação da responsabilidade civil decorrente da prática de crimes de fraude fiscal qualificada, tendo o tribunal judicial competência material para apreciar o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado, que resulta da sua competência própria para dirimir a instância criminal e, por adesão, o pedido civil dela decorrente.
V - Também não ocorre caso julgado porque enquanto a causa de pedir que subjaz ao pedido de indemnização civil deduzido em processo penal é o facto penal ilícito gerador da obrigação de indemnizar, que deve ser conhecida no processo crime por força do princípio da adesão plasmado no artigo 71.º do C.P.P., o suporte dos processos tributários, incluindo as respetivas execuções, é uma responsabilidade intrinsecamente tributária, distinta da responsabilidade civil fundada na prática de crime, apesar de uma e a mesma pessoa poder ocupar, aqui, o lugar de contribuinte relapso e ali, a posição de arguido/demandado em processo-crime.
VI - Os factos geradores das duas responsabilidades em causa, ainda que se possam traduzir na mesma realidade – no caso a omissão de entrega ao Estado das quantias devidas a título de imposto de IRS e de IRC -, são substancialmente distintos mesmo que possa haver, total ou parcial, concordância dos montantes envolvidos.
VII - A circunstância de poder existir já título executivo para obter a cobrança dessa obrigação contributiva não impede a dedução nem a apreciação do pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público.

Texto Integral


            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I-Relatório
1. No Processo Comum Coletivo Nº 1161/17...., do Juízo Central Criminal de Viseu Quinta …, AA … e BB …

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 2. Realizada a audiência de julgamento, veio a ser proferido acórdão, em 8 de janeiro de 2024, depositado na mesma data, ficando a constar do respetivo dispositivo o seguinte, que se transcreve:
“ Pelo exposto, acordam os juízes que compõem o Tribunal Colectivo em julgar procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:
1. Condenar a sociedade arguida Quinta … pela prática, nos termos do art. 11.º, n.º 1 e 2 al. a) do Código Penal e 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, de:
a) um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, , p. e p. pelo art. 36.º, n.º 1 al. c), 2 e 5 al. a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, (praticado até 31/10/2016), na pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa;
b) um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.º-A, n.º 1 al. k) e n.º 12 do Código Penal (praticado até ao final do ano de /2016), na pena de 200 (duzentos) dias de multa.
Em cúmulo jurídico das penas parcelares acima referidas em a) e b), condenar a sociedade arguida Quinta … na pena única de 400 (quatrocentos) dias de multa, à razão diária de € 150,00 (cento e cinquenta euros), num total de € 60.000,00 (sessenta mil euros).
Mais se decide substituir a pena de multa por caução de boa conduta, nos termos do art. 90.º-D do Código Penal, no montante de € 10.000,00 (dez mil euros), pelo prazo de 5 (cinco) anos
Declara-se ainda a arguida AA … subsidiariamente responsável, nos termos dos art. os 11.º, n.º 9 al. a) do Código Penal e 3.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, pelo pagamento da referida multa, em caso de não pagamento da multa pela sociedade arguida.
2. Condenar a arguida AA … pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de:
a) um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, p. e p. pelo art. 36.º, n.º 1 al. c), 2 e 5 al. a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, (praticado até 31/10/2016), na pena de 3 (três) anos de prisão;
b) um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.º-A, n.º 1 al. k) e n.º 12 do Código Penal (praticado até ao final do ano de 2016), na pena de 2 (dois) anos de prisão;
c) um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1 als. a) e e) do Código Penal (praticado em 08/06/2016), na pena de 10 (dez) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico das penas parcelares acima referidas a) a c), condenar a arguida AA … na pena única de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão.
Mais se decide suspender na sua execução da pena de prisão pelo período de 5 (cinco) anos, sujeitando tal suspensão a regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, a delinear pela Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, bem como ao cumprimento, em alternativa, de uma das seguintes obrigações:
- proceder ao pagamento ao IFAP de quantia não inferior a € 9.000,00 [a descontar na obrigação de restituição que infra se estabelecerá, caso não seja cumprida antes disso], comprovando semestralmente nos autos o pagamento de € 900,00; ou
- prestar, com regularidade pelo menos quinzenal e com duração equivalente a pelo menos um período do dia, serviço de voluntariado a instituição de apoio a sem-abrigo ou pessoas carenciadas, comprovando-o semestralmente nos autos..
3. Condenar o arguido BB … pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de:
d) um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, , p. e p. pelo art. 36.º, n.º 1 al. c), 2 e 5 al. a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, (praticado até 31/10/2016), na pena de 3 (três) anos de prisão;
e) um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.º-A, n.º 1 al. k) e n.º 12 do Código Penal (praticado até ao final do ano de 2016), na pena de 2 (dois) anos de prisão;
f) um crime de fraude fiscal qualificada (IRS de 2014), p. e p. pelo art. 103.º, n.º 1 al. b) e 104.º, n.º 2 al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (praticado em 31/03/2015), na pena de 2 (dois) anos de prisão;
g) um crime de fraude fiscal qualificada (IRC de 2014), p. e p. pelo art. 103.º, n.º 1 al. a) e 104.º, n.º 2 al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (praticado em 31/05/2015), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico das penas parcelares acima referidas a) a c), condenar o arguido BB … na pena única de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
Mais se decide suspender na sua execução da pena de prisão pelo período de 5 (cinco) anos, sujeitando tal suspensão a regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, a delinear pela Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, bem como ao cumprimento, em alternativa, de uma das seguintes obrigações:
- proceder ao pagamento ao IFAP de quantia não inferior a € 12.000,00 [a descontar na obrigação de restituição que infra se estabelecerá, caso não seja cumprida antes disso], comprovando semestralmente nos autos o pagamento de € 1.200,00; ou
- prestar, com regularidade pelo menos quinzenal e com duração equivalente a pelo menos um período do dia, serviço de voluntariado a instituição de apoio a sem-abrigo ou pessoas carenciadas, comprovando-o trimestralmente nos autos.
4. Nos termos dos art. os 8.º, al. f) e 14.º, n. os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, condenar os arguidos Quinta …., AA … e BB …, na pena acessória de privação do direito a subsídios ou subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, pelo período de 3 (três) anos;
5. Nos termos do art. 39.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, condenar, solidariamente, os arguidos … a restituir ao IFAP a quantia de € 263.631,25 (duzentos e sessenta e três mil, seiscentos e trinta e um euros e vinte e cinco cêntimos).
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6. Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO em representação do Estado e, em consequência, condenar o arguido BB …, a pagar ao demandante a quantia de € 250.122,43 (duzentos e cinquenta mil, cento e vinte e dois euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido ao arguido, até efectivo e integral pagamento
(…)”
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            3.  Não se conformando com o decidido no acórdão, dele veio interpor recurso o arguido BB …, extraindo da respetiva motivação as conclusões que se transcrevem:
            “A) Estando comprovada a execução física do projeto financiada pelo IFAP, o Tribunal a quo não poderia concluir pela existência de fraude na obtenção de subsídio.
                B) Resultando provado e evidenciado nos autos que o projeto foi fisicamente executado e que o investimento foi feito na sua totalidade, não poderia o Tribunal decidir como decidiu, em sentido contrário!
                 C) Não houve majoração dos custos, resultando claramente dos autos que a Sociedade …, responsável pela empreitada física, executou a mesma (cfr. declarações do Técnico do IFAP …), em conformidade com o Relatório da verificação do investimento físico constante dos autos.
                D) O próprio Acórdão recorrido considera provada tal realidade quando no ponto 16 dos fatos provados considera que “A taxa de execução da operação foi de 93,5%, no montante global de € 465.300,00, tendo o IFAP procedido à transferência da quantia global de € 263.631,25.” (negrito e sublinhado nosso).
            E) Salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo não podia, com base nos mesmos fatos, por um lado, entender que existe fraude na obtenção da obtenção de subsídios e, por outro lado, concluir que os mesmos valores constituem rendimentos do ora recorrente e, como tal, tributados em sede de IRS.
                F) O Acórdão recorrido, ao considerar, por um lado, que existiu fraude na obtenção de subsídio e, por outro lado, que o arguido BB … fez “rolar” o valor do subsídio recebido, fazendo-o entrar na Sociedade A..., preenchendo o tipo legal de crime de fraude na obtenção de subsídio; e, por outro lado, que retirou, em proveito próprio, os mesmos valores da mencionada sociedade, devendo ser tributado por tais rendimentos em sede de IRS, o Acórdão recorrido labora em contradição lógica insanável.
                G) Com efeito, ou o referido valor resultou de subsídio fraudulentamente obtido ou correspondente a rendimentos auferidos pelo arguido BB …, o qual, por não os ter declarado em sede de IRS, preencheu o tipo legal de tipo de fraude tributária.
                H) É factual, objetiva e logicamente impossível que o mesmo valor tenha sido utilizado para o preenchido dos dois tipos legais de crimes.
                I) Perante tal impossibilidade objetiva, de duas, uma: ou o arguido é condenado na perda de vantagem pelo recebimento do subsídio indevido (o que se mostra factualmente afastado, como supra se deixou exposto); ou se entende que o arguido incorreu no crime de fraude tributária, devendo ser condenado no pagamento dos impostos devidos e os quais já lhe foram exigidos em sede próprio, tal como resulta provados dos autos;
                J) Como, reiteradamente, se deixou exposto nos autos, tal entendimento traduz um duplo julgamento e uma dupla condenação, com base nos mesmos fatos, em violação do princípio constitucional do ne bis in idem.
                K) Deverá reconhecer-se que se verifica a violação do princípio constitucional ne bis in idem, previsto no artigo 29º n.º 5 da C. da República Portuguesa. A consagração deste princípio constitucional tem como exigência a liberdade e a dignidade do individuo enquanto pessoa e cidadão, e visa impedir que os mesmos fatos sejam apreciados repetidamente, implicando a repetição uma perseguição penal sobre os mesmos factos, o que só pode ocorre uma vez.
            L) Existindo processo de execução fiscal pendente no Serviço de Finanças competente, não pode ser objeto de apreciação e decisão condenatória em sede de pedido cível no processo crime, sob pena de existir litispendência e violação de caso julgado;
                 M) O Tribunal a quo deveria ter reconhecido a exceção de caso julgado relativamente às liquidações tributárias e impostos em dívida e perante a pendência de execução tributária, reconhecer a litispendência de procedimentos, nos termos do disposto nos artigos 576º e 577º, al.i) do C. P. Civil.
            N) O Acórdão recorrido incorre nos vícios constantes das alíneas b) e c) do nº2 do artigo 410º do C. P. Penal, viola as normas constantes dos artigos 576º e 577º, al.i) do C. P. Civil e viola o princípio, princípio constitucional ne bis in idem, previsto no artigo 29º n.º 5 da C. da República Portuguesa.
                        Nestes termos e mais de direito, revogando o douto Acórdão, e substituindo-o por outro nos termos supra expostos, Vossas Excelências, como sempre, farão,
                                                                                                              JUSTIÇA”
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            4. O recurso foi admitido.
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            5. Cumprido o disposto no art. 413º, nº1 do CPP, a ele responderam o assistente Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P. (IFAP, I.P.) e a Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância, concluindo no final dessas respostas da seguinte forma que, igualmente, se transcreve:
            5.1. Da resposta do assistente (IFAP, I.P.):
            “ A. Vem o presente recurso interposto de acórdão proferido em 8/1/2024, no entendimento que este padece de erro de julgamento, porquanto:
                - estando comprovada a execução física do projeto financiado pelo IFAP, I.P. o Tribunal a quo não poderia concluir pela existência de fraude na obtenção de subsídio;
            - houve um duplo julgamento e uma dupla condenação, por o Tribunal entender que “… existe fraude na obtenção da obtenção de subsídios e, por outro lado, concluir que os mesmos valores constituem rendimentos do ora recorrente e, como tal, tributados em sede de IRS”.
                B. Relativamente à primeira questão, ao contrário do sustentado pelo recorrente, a comprovação da execução física de um projeto de investimento não significa que não existir a prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio.
                C. O bem jurídico protegido no âmbito do crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. no referido Artº 36º do DL 28/84, é a economia, mais precisamente, protege-se a intervenção do Estado na atribuição de dinheiros públicos.
                D. Na situação em apreço, os subsídios pagos pelo IFAP, I.P., são, e foram de facto pagos, em parte pela União Europeia e em parte pelo Orçamento do Estado, pelo que importa assegurar que estes dinheiros públicos são aplicados em projetos com viabilidade económica e que, com alto grau de probabilidade representem uma mais- valia de investimento, produtividade e de criação de postos de trabalho.
                E. O Artº 36º do DL nº 28/84, tutela em primeira linha a economia, pois, a razão pela qual devem ser punidos todos aqueles que singularmente ou comparticipando, põem em causa com a sua conduta o bem jurídico protegido.
                F. A incriminação nos termos do Artº 36º do DL nº 28/84, não depende tipicamente do enriquecimento de alguém à custa da património público, o que poderia justificar a necessidade de o tipo legal mencionar expressamente que o enriquecimento obtido ou pretendido tanto podia ser do próprio como de terceiro.
            G. Na situação em apreço, atentos os factos dados por provados pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, verifica-se que “… foi só por estar erroneamente convicto de que o valor total indicado na candidatura correspondia ao seu valor real, e que os comprovativos apresentados da aplicação e pagamento das respectivas despesas eram verdadeiros (titulando um efectivo investimento próprio por parte da sociedade arguida), que o IFAP validou os pedidos de pagamento do subsídio no valor de € 263.631,25”.
                …
                J. Invoca ainda o recorrente que, na situação em apreço, houve um duplo julgamento e uma dupla condenação, por entender que “… existe fraude na obtenção da obtenção de subsídios e, por outro lado, concluir que os mesmos valores constituem rendimentos do ora recorrente e, como tal, tributados em sede de IRS”.
                K. Salvo melhor entendimento, também não lhe assiste razão nesta questão, afigurando-se totalmente correto o entendimento do Tribunal no sentido que “… não ocorre a violação do princípio ne bis in idem, pois que nem os factos (integradores dos crimes de fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal) são totalmente sobreponíveis (os primeiros referentes à emissão de facturas e recibos não coincidentes com a realidade e à circulação dos valores pagos pela sociedade arguida com fundos públicos; e os segundos referentes à declaração de IRS apresentada sem menção aos valores que fez transitar para a sua esfera pessoal; e à contabilização como gastos de valores que adulteraram o valor do lucro tributável da sociedade A...), nem os crimes que por essa via lhe são imputados se encontram numa relação de concurso aparente”. (Negrito e sublinhado nosso)
                L. Daí se considerar também, totalmente correta a conclusão do Tribunal (pág.s 74 e 75 do acórdão recorrido) no sentido que “… estando em causa crimes que tutelam bens jurídicos distintos, e ainda que se considerasse ser a mesma a conduta do arguido que se subsume àqueles (o que, como se viu, se considera não ser o caso), sempre o preenchimento, com o mesmo comportamento, de tipos penais distintos importaria, nos termos do art. 30.º, n.º 1 do Código Penal, a condenação pelos dois tipos de crime”.
                M. Atento, o exposto, salvo melhor opinião, não merece qualquer censura o acórdão recorrido, pelo que deverá ser julgado improcedente o recurso ora apresentado, e em consequência deverá ser mantido o teor do Acórdão recorrido, assim se fazendo a costumada
                JUSTIÇA.”
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            5.2. Da resposta do Ministério Público:
           
            Termos em que, deve manter-se o douto acórdão recorrido.
                                                           V.Exªs, porém,
                                                                               e como sempre, farão
                                                                                              JUSTIÇA!”
*
            6. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da total improcedência do recurso, …
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            7. Não foi apresentada resposta a tal aparecer.
*
            8. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado.
*
            II- Fundamentação
A) Delimitação do objeto do recurso
            …
            Assim, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
            - A incorreta decisão sobre a matéria de facto e suas consequências;
            - A incorreta ponderação do enquadramento jurídico-penal dos factos;
                - A violação do princípio constitucional ne bis in idem;
                - A verificação das exceções de caso julgado e de litispendência relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público em representação do Estado
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            B) Decisão Recorrida
            Vejamos, então, o que consta da decisão recorrida que, na parte relevante para a apreciação das questões suscitadas no recurso, se transcreve:
            “ A matéria de facto provada é a seguinte:
                1. A sociedade arguida “Quinta… ” …, foi constituída em 14 de Novembro de 2011, tendo como objecto social a exploração avícola e criação de galináceos.
            2. A arguida AA … é sócia única e gerente da sociedade arguida … desde a sua constituição.
                3. Sendo ela que assume, de facto e direito, a gerência, sendo igualmente a responsável pela administração e giro comercial da sociedade arguida …
                4. A sociedade “…, Lda.” … tendo tido como objecto social, Indústria metalomecânica, projectos e construções metálicas, serralharia civil, construção civil, instalações eléctricas, de canalizações, de climatização e outras instalações, comércio, e importação e exportação de equipamentos para indústria e agro-pecuária.
                5. O arguido BB … foi seu sócio-gerente desde a sua constituição, assumindo de facto e direito a gerência da sociedade, sendo, por isso, o responsável pela administração da sociedade ….
                6. A sociedade … foi declarada insolvente por decisão judicial de 2 de Novembro de 2015, tendo sido cancelada a sua matrícula em 7 de Junho de 2018.
            I – Da Fraude na Obtenção de Subsidio e Branqueamento
                7. Em data não concretamente apurada do ano de 2011, a arguida AA …, que pretendia construir um aviário para exploração intensiva de galináceos, tomou a resolução de apresentar uma candidatura a um programa de fundos comunitários, em nome e no interesse da sociedade.
                8. Para o efeito, e como não pretendia investir quantia monetária proveniente de capitais próprios, tal como era pressuposto do programa de fundos a que se candidatava, gizou um plano com BB … de acordo com o qual este lhe providenciaria facturas no valor do investimento elegível (se necessário fosse, empolando os custos) e ambos fariam circular os valores libertados no âmbito da candidatura, de forma a demonstrar o pagamento daquelas facturas.
                9. Tinham, ambos os arguidos, o propósito concretizado de realizar todo o investimento com montantes pecuniários provenientes do investimento público que serviria para construção da quase totalidade do projecto, sem que as arguidas AA … e … tivessem que investir quantia monetária proveniente de capitais próprios.
                10. Os arguidos AA … e BB …e, de modo a concretizar o plano entre ambos delineado, mais decidiram em comunhão de esforços fazer uso da sociedade …, da qual era sócio gerente o arguido BB …, para realizar a construção das instalações.
                Assim, e em execução do plano delineado:
                11. Em 2011, a arguida AA …, em representação da firma arguida …, apresentou candidatura a apoios comunitários concedidos no âmbito do PRODER — Acção 113 — Instalação de Jovem Agricultor.
                12. A candidatura foi aprovada em 29 de Fevereiro de 2012, tendo sido, em 2 de Maio de 2012, celebrado o Contrato de Concessão de Incentivos Financeiros entre o IFAP — Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas. I.P. e a sociedade arguida, representada pela arguida AA …
                13. A operação n.º ...09 foi aprovada, com um investimento total de € 522.900,00, assumindo o investimento elegível o valor global de € 497.900,00, sendo o incentivo público no valor de € 280.000,00 (€ 250.000,00 de subsídio não reembolsável e € 30.000,00 de prémio) e a participação do beneficiário de € 272.900,00, correspondendo esta à aplicação da taxa de 52,19% sobre o montante das despesas consideradas elegíveis.
                14. Tal como consta do contrato de financiamento celebrado entre o IFAP e a sociedade arguida, ali representada pela arguida AA …, a operação destinava-se, designadamente à instalação de uma jovem agricultora (a arguida AA …) numa exploração avícola de produção intensiva de frangos, sendo necessário para tanto a construção de um pavilhão avícola (aviário).
                15. Os pedidos de pagamento ao investimento reportavam-se às despesas efectivamente realizadas e pagas, por transferência bancária, débito em conta ou cheque, devendo os comprovativos das mesmas (com o respectivo extracto bancário demonstrativo do pagamento) ser entregues no prazo estipulado.
                16. A taxa de execução da operação foi de 93,5%, no montante global de € 465.300,00, tendo o IFAP procedido à transferência da quantia global de € 263.631,25.
                17. Sucede que a arguida AA …, sócia única e responsável pela gestão e tomada de decisões da arguida QUINTA …, com vista a receber o apoio monetário contratado com o IFAP acertou com o arguido BB …, legal representante e gerente da sociedade …, que esta sociedade emitiria facturas titulando adiantamentos, e correspondentes recibos, até ao montante global do investimento ainda que este fosse – como foi – superior aos valores efectivamente despendidos na construção, empolando deste modo os custos.
                18. Após a apresentação daquele número de facturas e recibos, acompanhadas da documentação de suporte (extractos bancários), junto dos serviços competentes serem validadas e, deste modo, ser transferido para a conta bancária da arguida QUINTA … o montante proveniente do investimento público, esta efectuaria o pagamento à sociedade ….
                19. De seguida, o arguido BB …, na qualidade de sócio gerente daquela sociedade, procedia ao levantamento de tais quantias em numerário e/ou dava ordem de transferência a crédito para contas particulares suas.
                20. Depois, os montantes assim retirados das contas da sociedade … eram entregues à arguida AA …, via quantias em numerário e/ou transferências para contas particulares das quais era titular e/ou co-titular.
                21. Posteriormente, a arguida AA … procedia à entrega daquelas quantias monetárias na conta bancária da arguida QUINTA …, mediante depósitos de numerário e/ou transferências bancárias como se de suprimentos (e deste modo capitais próprios) se tratassem.
                22. Tais movimentos reflectidos na conta bancária da arguida QUINTA … serviriam para, ainda que de modo ilusório, demonstrar junto do IFAP que o investimento em causa se processava nos moldes acordados e pelos montantes fixados no contrato assinado pelas arguidas e o IFAP.
                23. Visando o circuito bancário, acima descrito, dissimular a proveniência das quantias monetárias que eram creditadas na conta da sociedade arguida, como capitais próprios/suprimentos.
                24. Assim, de harmonia com o previamente acordado e aceite pelos arguidos AA … e BB …, a sociedade … emitiu 16 facturas (e correspondentes recibos) à sociedade arguida nas seguintes datas e com os seguintes valores:
 

Factura
Data
VALOR
Obs.
Fls.
Ft
2012/16
30-05-
2014
30.000/00 €
Adiant. Const. Civil de Pavilhão avícola
557
Ft
2012/17
17-06-
2014
31,000.00 €
Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola
555
Ft 2012/19 30-07-
2014
10.000.00 €
Adiant. Const. Civil Pavilhão avícola
553
Ft 2012/21 17-09-
2014
32.500.00 €
Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola
572
Ft 2012/23 01-10-
2014
30.000,00 € Adiant. Const. Pavilhão avícola 574
Ft 2012/24 04-10-
2014
25.000,00 € Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola 576
Ft 2012/25 24-10-
2014
10.000.00 €
Adiant. Const. Civil Pavilhão avícola
561
Ft 2012/26 28-10-
2014
22.000,00 €
Adiant. Const. Civil Pavilhão avícola
563
Ft 2012/27 28-10-
2014
21.500,00 € Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola 564
Ft 2012/28 01-11-
2014
50.000,00 € Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola 566
Ft 2012/29 07-11-
2014
32.000,00 € Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola 568
Ft 2012/30 07-11-
2014
15.000,00 € Adiant. Sist. Aquec./p. radiante Pavilhão avícola 569
Ft 2012/31 01-12-
2014
40.000,00 €
Sist. Aquec./Piso radiante
583
Ft2012/32 01-12-2014 35.800,00 €
Adiant. Forn. Inst. Equip. avícola
582
Ft 2012/33 29-12-2014 70.000,00 €
Adiant. Forn. Inst, Equip. avícola
580
Ft 2012/34 17-03-2015 10.000,00 €
Adiant. Forn. Inst. Equip. avícola
578
Total 464.800,00 €
 
 

 
Totalizando o montante de € 464.800,00
                25. Após, em execução do plano formulado e aceite pelos arguidos BB … e AA …, esta, na qualidade de sócia gerente e em nome e no interesse da arguida QUINTA …, na posse das facturas emitidas pela sociedade, representada pelo arguido BB …, procedeu à sua entrega junto dos serviços competentes do IFAP;
                26. Atentos os documentos juntos (facturas e extractos bancários) que aparentemente demonstravam um efectivo cumprimento dos investimentos e cumpridas as demais condições do contrato programa, o IFAP, acreditando que aquelas facturas espelhavam o custo real do investimento (designadamente da construção do aviário pela arguida QUINTA) e pagamentos efectivamente suportados previamente pela sociedade arguida, foi procedendo ao reembolso/pagamento, por transferência na conta bancária n.º ...0 sedeada no Banco 1..., da qual é titular a sociedade arguida, da quota-parte de incentivos financeiros nos moldes estipulados no contrato, tendo em conta as taxas de execução do projecto, nas seguintes datas (fls. 698):
               
 

Data-Movimento
Crédito
30-05-2012
30.000,00 € 
29-08-2014
35.649,73 € 
31-10-2014
43.934,53 € 
28-11-2014
75.818,43 € 
31-10-2016
78.228,56 € 
TOTAL
263.631,25 €


                27. Sucede que tais quantias, tendo inicialmente sido transferidas para a conta do Banco 2... com o IBAN  ...43, titulada pelo fornecedor da sociedade arguida – a sociedade … – foram depois alvo de transferência, levantamento em numerário e/ou emissão de cheques de caixa para a conta pessoal do sócio gerente da …, o aqui arguido BB …, que por sua vez transferiu tais montantes para contas pessoais da arguida AA.
                28. Esta, depois de creditadas as suas contas com tais montantes, procedia a nova transferência para a conta da firma arguida, servindo tais montantes como suporte e prova de que havia sido igualmente realizado o investimento próprio, tal como acordado no contrato celebrado com o IFAP.
                Assim e concretizando:
                29. Após a arguida entregar no IFAP as facturas n.º 2012/16, 2012/17 e 2012/19, acompanhadas dos recibos e comprovativos de pagamento (titulando o aparente investimento de € 71.000,00), no dia 29 de Agosto de 2014, o IFAP transferiu para a conta bancária n.º ...0 do Banco 1..., titulada pela sociedade arguida, o montante de € 35.649,73, correspondendo à primeira tranche do apoio, por referência ao reembolso da respectiva quota- parte no investimento elegível.
                30. No dia 21 de Setembro de 2014, a sociedade arguida utilizou tal montante para pagar a factura n.º 2012/21 da sociedade …, tendo a arguida AA … dado ordem de transferência de € 32.500,00 para a conta daquela, no Banco 2..., com o IBAN  ...43.
                31. No dia 25 de Setembro de 2014, ao ficar disponível aquele montante, o arguido BB …, na qualidade de sócio gerente da sociedade A..., efectuou um levantamento de € 32.000,00 em numerário, mediante desconto de um cheque de caixa no valor de € 30.000,00 e um cheque compensação no valor de € 2.000,00.
                32. Após, o arguido BB … procedeu à entrega de tal quantia em numerário à arguida AA que, logo, no dia 26 de Setembro, depositou:
                 a quantia de € 14.000,00 na conta n.º  ...11 do Crédito Agrícola Banco 3... Lafões da qual é co-titular, e
                 a quantia de € 10.000,00 € na conta n.º  ...27 do Banco 4... da qual é titular
                33. No dia 29 de Setembro de 2014, a arguida AA depositou a quantia remanescente de € 6.000,00 na conta n.º  ...11 do Banco 3... da qual é co-titular.
                34. Nos dias 29 e 30 de Setembro e 1 de Outubro de 2014, a arguida AA … efectuou 3 transferências bancárias, totalizando € 30.000,00 para a conta bancária n.º ...0 do Banco 1..., titulada pela arguida QUINTA ….
                35. De imediato, no dia 1 de Outubro, a arguida AA na qualidade de legal representante da arguida QUINTA … efectuou uma transferência bancária de € 30.000,00 para a conta da sociedade A... para pagamento da factura 2012/23.
                36. No dia 3 de Outubro de 2014, ao ficar disponível aquele montante, o arguido BB …, na qualidade de sócio gerente da … efectuou um levantamento de € 25.000,00 em numerário, mediante desconto de um cheque de caixa.
                37. Na posse daquela quantia em numerário, o arguido BB … procedeu à entrega da mesma à arguida AA que logo no mesmo dia procede ao depósito daquele montante:
                 a quantia de € 14.000,00 na conta na conta n.º  ...11 do Banco 3... da qual é co-titular;
                 a quantia de € 9.000,00 na conta n.º  ...27 do Banco 4... da qual é titular, e
                 a quantia de € 2.000,00 na conta n.º ...0 do Banco 1..., da qual é titular a arguida QUINTA …
                38. No dia 3 de Outubro de 2014, a arguida AA procede à transferência daqueles montantes (de € 14.000,00 e € 9.000,00) para a conta bancária n.º ...0 do Banco 1..., titulada pela arguida QUINTA ….
                39. No dia 6 de Outubro de 2014, estando tais quantias disponíveis em conta, a arguida AA …, na qualidade de legal representante da arguida QUINTA … efectuou uma transferência bancária no valor de € 25.000,00 para a conta da sociedade … para pagamento da factura 2012/24.
                40. Ou seja, com quantia paga pelo IFAP, no valor de € 35.649,73, em 29/08/2014, e com os sucessivos levantamentos e depósitos, conseguiram os arguidos simular o montante de pelo menos € 55.000,00 de investimento próprio.
                41. Após a arguida entregar no IFAP as facturas n.º ..., acompanhadas dos recibos e comprovativos de pagamento (titulando o aparente investimento de € 87.500,00), no dia 31 de Outubro de 2014, o IFAP transferiu para a conta bancária n.º ...0 do Banco 1..., titulada pela arguida QUINTA … o montante de € 43.934,53, correspondendo à segunda tranche do apoio, por referência ao reembolso da respectiva quota-parte no investimento elegível.
                42. No mesmo dia, a arguida utilizou essa quantia, para pagar as facturas n.º ...6 e ...7 da sociedade …, efectuando uma transferência de € 43.500,00 para a conta daquela, no Banco 2....
                43. No dia 3 de Novembro de 2014, ao ficar disponível aquele montante, o arguido BB …, na qualidade de sócio gerente da … efectuou uma transferência bancária de € 49.500,00 para a sua conta pessoal, no Banco 4... com o n.º ...
                44. No dia seguinte, e quando ficou disponível na sua conta bancária, o arguido BB … deu ordem de transferência pelo mesmo montante de € 49.500,00 para a conta pessoal da arguida AA …, também no Banco 4..., com o n.º 15...2-7.
                45. Estando esta quantia creditada na sua conta pessoal, a arguida AA, no dia 5 de Novembro de 2014 deu ordem de transferência daquele montante para a conta da firma arguida Quinta....
                46. De seguida, no mesmo dia 5 de Novembro de 2014, foi adicionado a um depósito de numerário de € 500,00, e novamente movimentado – pelo total de € 50.000,00 – para a conta da A... no Banco 2... para pagamento da factura n.º 2012/28 emitida pela … no valor de € 50.000,00..
                47. Tendo este valor (€ 50.000,00) sido creditado na conta bancária da …, logo no dia 6 de Novembro de 2014, o arguido BB procedeu a uma ordem de transferência a débito de € 49.000,00, para a sua conta pessoal no Banco 4....
                48. No dia 7 de Novembro de 2014, a quantia de € 49.000,00 acrescida de um depósito de numerário de € 500,00 naquela conta, foi novamente transferida, pelo arguido BB, para a conta n.º 15...2-7 do Banco 4... da arguida AA … -.
                49. Após, a arguida AA … procedeu à transferência da mesma quantia (€ 49.500,00) para a conta da firma arguida QUINTA …, como se de suprimentos se tratasse..
                50. No dia 10/11/2014, a quantia de € 49.500,00 foi novamente alvo de uma transferência, desta vez no montante de € 47.000,00 para a … para pagamento das facturas n.º 2012/29 e 2012/30
                51. Ou seja, com a quantia paga pelo IFAP no valor de € 43.934,53, em 31/10/2014, e os sucessivos levantamentos e depósitos de que foi alvo, conseguiram os arguidos simular o montante de pelo menos € 97.000,00 de investimento próprio.
                52. Após a arguida entregar no IFAP as facturas n.º 2012/25, 2012/26 2012/27, 2012/28, 2012/29 e 2012/30 da … e a factura 1/82 da …a, acompanhadas dos recibos e comprovativos de pagamento (titulando o aparente investimento de € 153.000,00), no dia 28 de Novembro de 2014, o IFAP transferiu para a conta bancária n.º ...0 do Banco 1..., titulada pela firma arguida o montante de € 75.818,43, correspondendo à terceira tranche do apoio, por referência ao reembolso da respectiva quota-parte no investimento elegível.
                53. No dia 2 de Dezembro de 2014, a sociedade arguida utilizou tal montante para pagar as Facturas n.º 31/2012 e 32/2012 da sociedade A..., tendo a arguida AA … dado ordem de transferência no montante de € 75.800,00 para a conta daquela, no Banco 2..., com o IBAN  ...43.
                54. Ao ficar disponível aquele montante, o arguido BB …, na qualidade de sócio gerente da sociedade …, nos dias 5, 9 e 10 de Dezembro efectuou o levantamento de € 64.500,00 em numerário, mediante desconto de três cheques de caixa no valor de € 12.000,00, € 30.000,00 e € 22.500,00, respectivamente.
                55. Com esta actuação os arguidos apoderaram-se para proveito próprio da quantia de € 64.500,00.
                56. Após a arguida entregar no IFAP as facturas n.º 2012/31, 2012/32, 2012/33 e 2012/34 emitidas pela A..., acompanhadas dos recibos e comprovativos de pagamento (titulando o aparente investimento de € 155.800,00), no dia 31 de Outubro de 2016, o IFAP transferiu para a conta bancária n.º ...0 do Banco 1..., titulada pela sociedade arguida o montante de € 78.228,56, correspondendo à quarta e última tranche do apoio por referência ao reembolso da respectiva quota-parte no investimento elegível.
                57. A última tranche do apoio concedido pelo IFAP foi antecedida da verificação física, mediante visitas à exploração realizadas em 21/12/2015 e 26/07/2016 por técnico do Ministério da Agricultura, que concluiu que apesar dos atrasos no início e conclusão da obra, o projecto foi materialmente concluído e a exploração se iniciou em 22/07/2016.
                58. Para a execução de, pelo menos, parte dessa exploração, o arguido BB …, através da sociedade …,, deu de subempreitada a construção das infra- estruturas e instalação de equipamentos, a empresas que viriam a reclamar os pagamentos em dívida na acção de insolvência da sociedade A....
                59. Na posse do montante referente à última tranche do apoio, os arguidos decidiram apoderar-se de pelo menos parte da quantia acima referida, fazendo-a sua.
                60. Para tanto, nos dias 4 e 11 Novembro de 2016, a arguida AA deu ordem de transferência do montante de € 25.000,00 (€ 10.000,00 + € 15.000,00) para a conta ...80, da Banco 3... da qual era co-titular.
                61. Quantias essas que foram posteriormente levantadas, em numerário, ao balcão, assim se apoderando das mesmas.
                62. Os arguidos agiram sempre com a intenção, concretizada, de ludibriar o IFAP, fornecendo a este Instituto dados e informações incorrectos, de molde a que fossem transferidos fundos/subsídios, em montantes superiores aos por si despendidos no projecto candidato, para a conta bancária da arguida QUNTA …, que a arguida AA representava legalmente e de facto, a que, de outra forma, sabiam não ter direito.
                63. Os arguidos AA … e BB …e, sendo que arguida AA agiu em seu interesse e em representação e no interesse da sociedade arguida, agiram sempre com a intenção, concretizada, de ludibriar o IFAP, bem sabendo que o valor global constante das facturas emitidas pela …, da qual era sócio gerente o arguido BB … não correspondiam à totalidade do investimento efectuado, sendo as mesmas forjadas, e que as mesmas tinham como único objectivo ser apresentadas junto do IFAP, pela arguida AA, na qualidade única legal representante da sociedade arguida, com o intuito de obtenção de um montante de apoio a que, de outra forma, sabiam não ter direito.
                64. Tinham os arguidos BB … e AA … conhecimento que ao elaborarem e usarem as facturas e recibos como se de custos efectivamente por si suportados se tratassem abalavam a credibilidade e fé pública que os documentos merecem, bem como a segurança e confiança no tráfico jurídico e não desconheciam que faziam constar dos ditos documentos factos juridicamente relevantes, o que quiseram e lograram.
                65. Agiram, ainda, os arguidos com intenção de dissimular a proveniência dos montantes obtidos de forma ilegítima e usados para simular o investimento de capitais próprios junto de entidade pública, convertendo, assim, tais vantagens, em património de natureza diversa, obstando desta forma ao seu conhecimento e confisco por parte das autoridades.
                66. Pretendiam, igualmente, os arguidos, com este comportamento, eximir-se a responsabilidade criminal impedindo a descoberta da sua actuação.
                67. Todos os arguidos agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, de comum acordo e em comunhão de esforços, bem sabendo que todas as suas condutas eram punidas e proibidas por lei penal.
                II -Da Falsificação
                68. Em 19 de Fevereiro de 2016, foi determinada uma acção inspectiva tributária ao sujeito passivo e aqui arguida AA …, ao ano de 2014, face a divergências não justificadas entre acréscimos de património ou despesa efectuadas com os rendimentos declarados. – relatório de inspecção tributária de fls. 4 e ss.
                69. Com efeito face a elementos recolhidos na contabilidade da sociedade “Quinta …”, a arguida AA …, sócia gerente daquela sociedade emprestara à sociedade, no ano de 2014, a quantia de € 251.913,68.
                70. Como os empréstimos ou suprimentos efectuados pela arguida não eram compatíveis com o rendimento colectável por si declarado e que se cifrou no montante total de € 2.403,93 foi a arguida notificada pela Autoridade tributária para informar da origem dos valores do empréstimo e juntar os respectivos comprovativos.
                71. Em data não concretamente determinada mas que se situa entre o dia ../../.... e o dia 8 de Junho de 2016, de modo e em circunstâncias não concretamente apuradas a arguida elaborou um documento intitulado “contrato de mútuo” onde consta como primeiro outorgante a sociedade B...) LLC, com sede no ..., EUA e representada pelo seu procurador com poderes para o acto CC … e como segundo outorgante a arguida AA ….
                72. Mais ali fez constar que a primeira outorgante empresta à segunda o montante de € 275.000,00, com vista ao financiamento da construção de pavilhões avícolas.
                73. O mencionado documento está datado de 15 de Dezembro de 2010 e encontra-se assinado manualmente, estando ainda aposto um carimbo junto ao 1.º contraente
                74. Após, a arguida para comprovar o modo como obteve os montantes que emprestou à sociedade Quinta … remeteu o documento elaborado nos moldes acima mencionados acompanhado de requerimento que deu entrada nos serviços das Finanças ... em 08/06/2016 –
                75. Sucede que a sociedade B... LLC nunca efectuou qualquer empréstimo à arguida AA … e CC … nunca foi procurador da mesma nem procedeu à assinatura daquele documento e o carimbo aposto não pertence à sociedade
                76. Pretendia a arguida com esta sua actuação ludibriar as entidades públicas, in casu, a Autoridade Tributária., ao apresentar o mesmo falsamente como comprovativo do recebimento legitimo de uma quantia.
                77. A arguida sabia que o contrato de mútuo apresentado era falso, não havia sido subscrito pelo legal representante da sociedade B...) LLC, bem como esta não lhe havia emprestado qualquer quantia monetária, e que ao actuar dessa forma estava a induzir em erro funcionários daquela entidade.
                78. Estava, ainda, a arguida ciente de que não tinha legitimidade para usar aquele contrato de mútuo que sabia não estar regularmente emitido.
                79. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de se eximir à acção do Estado.
                80. Além disso, com a sua conduta, a arguida pôs em causa a segurança e credibilidade no tráfico jurídico inerente ao uso de documentos como, neste caso, são contratos celebrados entre duas partes, e ao usar, assim, indevidamente um documento que não lhe pertence e que sabe ser falso.
                81. Bem sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
                Apenso A
                82. A sociedade comercial “…”), possuía o capital social de € 150.000, distribuído pelo arguido BB … (€ 149.850) e por “… Lda.” (“C...”) (€ 150), sociedade unipessoal por quotas que tem por único sócio e gerente o arguido BB ….
                83. Era tributada em IRC pelo regime geral de tributação pela actividade de “Fabricação de Estruturas de construções metálicas”, a que corresponde o CAE 25110.
                84. A 22 de Abril de 2014 a quota pertencente à sociedade “I…” foi adquirida pelo arguido BB …, que, assim, passou a deter directamente todo o capital da “…”.
                85. O arguido BB … é o contribuinte fiscal n.º …
                IRS 2014
                86. Relativamente ao ano de 2014, o arguido entregou, em 2015, a sua declaração periódica de rendimentos Modelo 3 - IRS.
                87. Nessa declaração de rendimentos, o arguido declarou os seguintes rendimentos brutos e colectáveis, nas diferentes categorias de rendimentos previstos no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (artigo 1.º e seguintes, do CIRS): Trabalho dependente (Categoria A): no valor de € 5.030,64, pagos pela “…”.
                88. No entanto, no decurso do ano de 2014, o arguido BB … recebeu da sociedade “F…” e para além dos salários que declarou, um total de € 332.250, por transferências de contas da sociedade para as suas contas pessoais, levantamentos em caixas ATM e ao balcão.
                89. Assim, da conta bancária titulada pela “A...” do Banco 2..., com o n.º ...10, o arguido retirou os seguintes valores: 
 

DATA
DESCRITIVO
N. DOC
VALOR
05.06.2014
Cheque caixa
49612946
6.000,00
19.05.2014
Cheque caixa
49612943
2.100,00
19.06.2014
Cheque caixa
49612947
30.000,00
23.06.2014
Cheque caixa
49612948
29.000,00
25.09.2014
Cheque caixa
49612959
30.000,00
09.12.2014
Cheque caixa
51272392
30.000,00
03.10.2014
Cheque caixa
49612965
25.000,00
03.11.2014
Cheque caixa
49612980
2.500,00
11.11.2014
Cheque caixa
49612979
6.000,00
05.12.2014
Cheque caixa
51272389
12.000,00
13.11.2014
Cheque caixa
49612991
7.000,00
10.12.2014
Cheque caixa
51272393
22.500,00
30.10.2014
Cheque caixa
49612977
10.000,00
14.11.2014
Cheque caixa
49612992
6.000,00
03.11.2014
TRF BB -
...01
 
49.500,00
06.11.2014
TRF BB -
...01
 
49.000,00
  
TOTAL
316.600,00


                90. 12. E retirou da mesma conta, por levantamentos ao balcão ou em caixas ATM, entre 22 de Janeiro de 2014 e 26 de Dezembro do mesmo ano, o valor global de € 15.650, assim discriminado: 
 

DATA
VALOR
DESCRIÇÃO
22-01-2014 200,00 Levantamento
22-01-2014 200,00 Levantamento
28-01-2014 950,00 Cheque Caixa
31-01-2014 40,00 Levantamento
31-01-2014 100,00 Levantamento
04-02-2014 100,00 Levantamento
07-02-2014 200,00 Levantamento
08-02-2014 60,00 Levantamento
11-02-2014 200,00 Levantamento
11-02-2014 60,00 Levantamento
11-02-2014 100,00 Levantamento
13-03-2014 100,00 Levantamento
17-03-2014 100,00 Levantamento
26-04-2014 200,00 Levantamento
26-04-2014 140,00 Levantamento
05-05-2014 100,00 Levantamento
06-05-2014 60,00 Levantamento
15-05-2014 100,00 Levantamento
22-05-2014 200,00 Levantamento
22-05-2014 200,00 Levantamento
02-06-2014 100,00 Levantamento
03-06-2014 200,00 Levantamento
16-06-2014 90,00 Levantamento
01-07-2014 200,00 Levantamento
24-07-2014 60,00 Levantamento
07-08-2014 100,00 Levantamento
10-08-2014 150,00 Levantamento
12-08-2014 150,00 Levantamento
13-08-2014 150,00 Levantamento
15-08-2014 200,00 Levantamento
16-08-2014 200,00 Levantamento
20-08-2014 200,00 Levantamento
20-08-2014 200,00 Levantamento
03-09-2014 200,00 Levantamento
04-09-2014 200,00 Levantamento
05-09-2014 200,00 Levantamento
08-09-2014 200,00 Levantamento
08-09-2014 200,00 Levantamento
12-09-2014 150,00 Levantamento
30-09-2014 100,00 Levantamento
02-10-2014 200,00 Levantamento
02-10-2014 200,00 Levantamento
03-10-2014 100,00 Levantamento
05-10-2014 100,00 Levantamento
06-10-2014 150,00 Levantamento
07-10-2014 100,00 Levantamento
08-10-2014 200,00 Levantamento
08-10-2014 150,00 Levantamento
09-10-2014 200,00 Levantamento
09-10-2014 200,00 Levantamento
11-10-2014 100,00 Levantamento
13-10-2014 200,00 Levantamento
13-10-2014 200,00 Levantamento
17-10-2014 100,00 Levantamento
18-10-2014 100,00 Levantamento
22-10-2014 150,00 Levantamento
23-10-2014 100,00 Levantamento
24-10-2014 100,00 Levantamento
31-10-2014 40,00 Levantamento
31-10-2014 200,00 Levantamento
04-11-2014 200,00 Levantamento
04-11-2014 200,00 Levantamento
06-11-2014 200,00 Levantamento
06-11-2014 200,00 Levantamento
07-11-2014 200,00 Levantamento
07-11-2014 100,00 Levantamento
08-11-2014 100,00 Levantamento
10-11-2014 60,00 Levantamento
10-11-2014 40,00 Levantamento
11-11-2014 200,00 Levantamento
11-11-2014 200,00 Levantamento
13-11-2014 200,00 Levantamento
21-11-2014 200,00 Levantamento
21-11-2014 100,00 Levantamento
21-11-2014 100,00 Levantamento
22-11-2014 100,00 Levantamento
23-11-2014 200,00 Levantamento
23-11-2014 150,00 Levantamento
26-11-2014 100,00 Levantamento
28-11-2014 100,00 Levantamento
29-11-2014 200,00 Levantamento
01-12-2014 200,00 Levantamento
03-12-2014 200,00 Levantamento
03-12-2014 150,00 Levantamento
07-12-2014 200,00 Levantamento
09-12-2014 200,00 Levantamento
15-12-2014 200,00 Levantamento
16-12-2014 200,00 Levantamento
18-12-2014 200,00 Levantamento
19-12-2014 200,00 Levantamento
22-12-2014 200,00 Levantamento
23-12-2014 200,00 Levantamento
24-12-2014 200,00 Levantamento
24-12-2014 200,00 Levantamento
26-12-2014 200,00 Levantamento
26-12-2014 200,00 Levantamento
TOTAL 15.650  

               
                91. No entanto, o arguido BB … não entregou, relativamente ao ano de 2014, conjuntamente com a Declaração Modelo 3 de IRS, o Anexo E, omitindo todo este rendimento à Administração Tributária.
                92. Estes valores foram retirados da “…” pelo arguido na qualidade de seu sócio gerente e detentor da totalidade do respectivo capital social, tratando-se de frutos procedentes de uma situação mobiliária e, como tal, de rendimentos enquadráveis na categoria E de IRS, tributáveis nos termos do art. 5º do CIRS.
                93. Com base no apuramento deste rendimento ao arguido BB …, a Administração Tributária elaborou um Documento de Correcção ao IRS de 2014, com o n.º ...96, no qual reflectiu a consideração do valor de € 332.250,00 como rendimentos de capitais - Categoria E de IRS - auferido pelo arguido em 2014, documento de que resultou a emissão de liquidação de IRS n.º ...27, com o valor total a pagar de € 192.792,06 (imposto e juros moratórios).
                94. Concretamente, foi apurado o seguinte valor de imposto:
                - Colecta líquida: € 158.241,48;
                - Sobretaxa de IRS: € 11.420,74
                Total de Imposto apurado (1 +2): € 169. 662,22.
                95. A actuação do arguido BB  … levou, pois, a que tivesse, relativamente ao ano de 2014 e em sede de IRS, uma vantagem pecuniária indevida de € 169.662,22.
                IRC 2014 (“…”)
                96. No que diz respeito à contabilidade da sociedade “…”, os valores daí retirados pelo arguido e supra descritos foram registados na subconta 111-Caixa Sede e daí transferidos para a conta 688852 - Indemnizações contratuais pagas a terceiros.
                97. Inexistia, no entanto, qualquer indemnização a pagar, vindo tais valores a ser transferidos ou levantados pelo arguido BB …, que os fez seus e deles dispôs como entendeu.
                98. Na identificada conta 688852 - Indemnizações contratuais pagas a terceiros foram registados pelo arguido BB …, em 2014, para além dos valores descritos supra, outros valores. perfazendo o montante global de € 403.000,00, assim discriminados:
 

Conta                                         688852
Indemnizações contratuais
DÉBITO CONTRAPARTIDA
31-01-2014 25.000 ...12 - BB …
31-03-2014 35.000 ...12 - BB …
30-04-2014 20.000 ...12 - BB …
31-05-2014 12.500 ...12 - BB …
30-06-2014 25.000 1202 - Banco 2...
31-07-2014 20.000 111 Caixa Sede
31-08-2014 14.500 111 Caixa Sede
30-09-2014 30.000 1202 - Banco 2...
31-10-2014 13.000 111 Caixa Sede
31-10-2014 25.000 111 Caixa Sede
30-11-2014 50.000 111 Caixa Sede
30-11-2014 50.000 111 Caixa Sede
31-12-2014 40.000 111 Caixa Sede
31-12-2014 43.000 111 Caixa Sede
TOTAL 403.000 403.000


                99. Como contrapartida destes registos de gastos, foram, assim, creditadas as seguintes contas da “…”:
                - 111 - Caixa Sede: € 255.000;
                - 1202 Banco 2...: € 55.000;
                - ...12 - BB: € 92.500
                100. Inexistem documentos que comprovem tais “gastos”, não foram, no ano em causa, efectuados pagamentos a credores da “…” com os valores em causa, que não estão, como tal, reflectidos na contabilidade da sociedade.
                101. Tanto mais, que todos os pagamentos a credores/fornecedores da “…” eram efectuados por cheque ou transferência bancária.
                102. A totalidade dos valores inscritos na conta 688852 - Indemnizações contratuais pagas a terceiros, € 403.000,00, em face de tal inserção na contabilidade da “…” foi, para efeitos de cálculo do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas relativamente a tal sociedade no ano de 2014, considerada indevidamente como gastos.
                103. E assim fez o arguido BB … constar da declaração de MOD 22 de IRC que, a 29 de Maio de 2015, apresentou à Autoridade Tributária, relativa ao exercício de 2014 da sua representada “…”.
                104. Como resultado de tal inserção contabilística, a “…” apresentou, em 2014, um resultado tributável de € - 49.259,97 (Prejuízo para efeitos fiscais).
                105. Constou, assim, da declaração Modelo 22 de IRC entregue pelo arguido BB … à AT em 2015 e relativa a 2014, como rendimentos da “…”, o valor de € 503.679,74, Volume de Negócios, € 495.168,71, Resultado líquido € - 48.227,37, Resultado Final, € - 49.259,97.
                106. O que conduziu ao apuramento de imposto a restituir, correspondente a retenções de IRC efectuadas na fonte, de € 162,88, valor que foi devolvido à “A...”.
                107. Uma vez que o valor de € 403.000,00 não corresponde, efectivamente, a quaisquer indemnizações pagas a terceiros, retirado o mesmo dos gastos da “…” em 2014, apurou-se que a sociedade em causa teve, na realidade, um lucro tributável em IRC de € 353.740,03 (-49.259,97 + € 403.000,00).
            108. Em face desta circunstância, o cálculo relativo ao exercício de 2014, em sede de IRC, relativamente à “…” (e sem considerar a retenção na fonte, que já lhe fora devolvida) é o seguinte: 
 

Legislação Cálculos Valor
Art. 87º, n.º 2 CIRC 15.000 x 17% 2.550,00
Art. 87º, n.º 1 CIRC (353.740,03 - 15.000) x 23% 77.910,21
 COLECTA 80.460,21
                109. Furtou-se, assim, a sociedade “…”, por via da actuação do arguido BB …, ao pagamento do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas por si devido em 2014, no valor de € 80.460,21.
                ***
                110. O arguido BB … bem sabia que tinha o dever de integrar aqueles € 332.250,00 na sua declaração periódica de rendimentos Modelo 3 - IRS do ano de 2014, na medida em que se tratava de rendimentos de capitais, que recebeu da “…” no ano em causa, em virtude de ser o seu único sócio e gerente, com enquadramento nas normas de incidência de IRS da Categoria E e como tal tributados.
                111. O arguido bem sabia, igualmente, que tinha o dever de proceder ao pagamento do imposto que se viesse a apurar de acordo com o regime aplicável.
                112. Obrigações essas que o arguido, deliberadamente, não cumpriu, ocultando tais quantias monetárias à AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, que, por esse motivo, não aferiu do seu enquadramento fiscal para efeitos de tributação em sede de IRS e não as sujeitou a tributação, com o propósito conseguido de, com esta sua conduta omissiva, obter um acréscimo patrimonial de € 332.250 e, assim, se enriquecer ilicitamente à custa da Fazenda Pública, tendo auferido uma vantagem patrimonial ilegítima, no valor de € 169.662,22, a que acrescem juros compensatórios, a integrar no cálculo final, bem como todas as cominações legais por falta de pagamento voluntário, ou seja, juros de mora e custas do processo de execução fiscal, estando em dívida nas execuções instauradas, a 25 de Maio de 2022, € 226.813,04€.
                ***
                113. Sabia, também, o BB … que o valor de € 403.000 que integrou na conta da sua representada “…” 688852 - Indemnizações contratuais pagas a terceiros, não correspondia a qualquer dívida paga a terceiros.
                114. Mais sabia que ao fazer constar tal valor da contabilidade da empresa e da declaração que enviou à AT em 2015 para efeitos de cálculo de IRC de 2014 levou a que o mesmo, erradamente, fosse considerado como um custo, assim conduzindo a que pela AT fosse apurado, em tal ano, um prejuízo para a “…”, em sede de IRC, de - €49.259,97.
                115. Na verdade, a “…” teve, em 2014, um lucro que levou à liquidação de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas no valor de € 80.460,21.
                116. O arguido bem sabia, igualmente, que tinha o dever de proceder ao pagamento do imposto que se viesse a apurar de acordo com o regime aplicável.
                117. Obrigações essas que o arguido, deliberadamente, não cumpriu, ao ocultar os lucros tributáveis da “…” da forma descrita, ficcionando pagamentos de dívidas inexistentes, assim levando a que a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira não tenha aferido do seu enquadramento fiscal para efeitos de tributação em sede de IRC, não as sujeitando a tributação, com o propósito conseguido de, com esta sua conduta se enriquecer e à sua representada “A...” ilicitamente à custa da Fazenda Pública, tendo auferido uma vantagem patrimonial ilegítima, no valor de € 80.460,21, a que acrescem juros compensatórios, a integrar no cálculo final, bem como todas as cominações legais por falta de pagamento voluntário, ou seja, juros de mora e custas de um eventual processo de execução fiscal.
                118. O arguido actuou, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
                Do pedido de indemnização civil
                119. Com a actuação descrita em 80 a 116, o arguido BB … causou ao Estado Português – Ministério das Finanças – um empobrecimento no montante global de € 250.122,43, correspondentes às vantagens patrimoniais de IRS relativamente ao próprio em 2014 - € 169. 662,22 - e de IRC relativamente à sociedade “…”, no mesmo ano - € 80.460,21.
            120. Essa quantia, no valor global de € 250.122,43, nunca foi entregue à Fazenda  Nacional, pelo arguido ou pela já extinta “…” (quanto a esta, apenas o IRC de 2014).
                121. Para cobrança de tais quantias foram, pela AT, instauradas as seguintes execuções: 
 

N.º Imposto Juros Total Valor em dívida a 25 de Maio de 2022
...61
0 IRS 2014
€ 158.241,48 € 21.611,67 € 179.853,15 € 212.712,69
...38
70                      Sobretaxa
 IR
€ 11.420,74 € 1.518,17 € 12.938,91 € 14.100,35

 
                122. Não foi instaurada execução fiscal para cobrança do IRC em dívida de 2014, relativamente à “…”, € 80.460,21.
                123. O arguido BB sabia que, com as acções descritas em 79 a 115, diminuía as receitas tributárias, causando prejuízo ao Estado Português, aqui demandante, e colocando em crise o regular funcionamento do sistema fiscal e dos interesses que este deve
satisfazer.
                Mais se provou que:
               
*
                Factos não provados:
                Não há factos não provados com relevo para a discussão da causa.
*
                Motivação:
               
*
            C) Apreciação do recurso
            - Da incorreta decisão sobre a matéria de facto e suas consequências
            Como resulta das Conclusões A) a D) no recurso interposto pelo arguido … insurge-se este contra o acórdão recorrido por entender que nele se mostra incorretamente decidida a matéria que respeita à execução física do projeto, ao investimento que foi feito e ao custo deste, matéria esta que suporta o crime de fraude na obtenção de subsídio pelo qual foi condenados nos autos, mediante a argumentação que aí esgrime e que densifica nos pontos 1. a 9. do corpo da motivação do recurso.
*
            a. Nesta sede, começaremos por traçar os parâmetros do conhecimento da questão assim submetida pelo recorrente ao conhecimento deste Tribunal da Relação.
            Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
            A impugnação, por via de recurso, da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.
            …
            Ao enveredar pela primeira hipótese, a sua discordância traduz-se na invocação de um vício da decisão recorrida e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; optando pela segunda hipótese, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.
            Com efeito, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas.
            Esta especificação deve fazer-se, quando se trate de declarações gravadas, por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).
            O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.
            O erro de julgamento, ínsito no citado artigo 412º, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
            Pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
            O que se visa com a impugnação ampla é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.

            E, nessa medida, como já referido, impõe-se, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos do artigo 412º, nº3 do C.P.P., o qual dispõe o seguinte:
            «Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
            a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados
            b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
            c) As provas que devem ser renovadas.»
            A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da decisão recorrida e que se consideram incorrectamente julgados e só se se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
            …
            A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).
            Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
            Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo destas, quais as particulares passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem aos factos impugnados.
            A concretização das passagens da prova por declarações pode ser feita, designadamente, pela indicação dos tempos de gravação dos segmentos em causa, ou pela transcrição destes.
            O recorrente terá pois de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.
            Exige-se que o recorrente refira o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
            No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão de que se recorre, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
            Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra, de 4/5/2016, proferido no processo 721/13.8TACLD.C1, “Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das regras da experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorreção decisória, mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção”.
            Ao Tribunal da Relação, na sindicância do apuramento dos factos realizado em primeira instância, cabe, fundamentalmente, analisar o processo de formação da convicção do julgador e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado ou por não provado o que se deu por não provado.
            E só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão – neste sentido, Acórdãos do STJ de 15/5/2009,10/3/2010,25/3/2010, in www.dgsi.pt./stj.
*
            b. Não se mostrando, embora, corretamente distinguidos nem compartimentados, quer no corpo da motivação do recurso, quer nas conclusões do recurso, os fundamentos em que o recorrente sustenta a sua discordância em relação à decisão da matéria de facto, que, tal como daqueles conseguimos alcançar se respalda no erro de julgamento alegado no ponto 8. do corpo da motivação do recurso - ainda que desacompanhado do correspondente suporte normativo - e também nos vícios decisórios previstos nas alíneas b) e c) do nº2 do art. 410º do CPP - cuja invocação e indicação do respetivo suporte normativo ocorre apenas nas conclusões recursivas, concretamente, na Conclusão N) -  não deixa, porém, de poder antever-se que na dissensão por ele manifestada nesse particular, o mesmo envereda pelas duas referidas vias de impugnação da decisão da matéria de facto na pretensão de ver reapreciada a matéria de facto que, no seu entender, foi incorretamente julgada pelo tribunal a quo.
            Passemos, então, à apreciação da mesma nessa dupla vertente. 
*
           
Os vícios previstos no art. 410º nº2 do CPP são do conhecimento oficioso – conforme jurisprudência fixada no acórdão nº7/95, de 19 de outubro, in Diário da República, I Série – A, de 28/12/1995 - e constituindo um defeito estrutural da decisão têm que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para os fundamentar como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
Tais vícios decisórios traduzem, pois, defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e, por isso, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e ser de tal modo evidente que uma pessoa normalmente dotada os pode detetar – neste sentido, vide Ac. da Rel. de Coimbra, de 12.06.2019, Proc. 1/19.5GDCBR.C1, in www.dgsi.pt.
            O respetivo regime legal não contempla a reapreciação da prova – contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto – limitando-se a apreciação pelo tribunal de recurso a incidir sobre defeitos presentes na decisão recorrida suscetíveis de serem detetados, e, na impossibilidade de sanação, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento, como impõe o citado art. 426º nº1 do CPP, relativamente ao qual se impõe esclarecer o seguinte:
            Nele prevê-se que «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio».
            Densificando a previsão e o conteúdo normativo relativo aos vícios decisórios previstos nas alíneas b) e c) do nº2 do art. 410º do CPP – a respeito dos quais aos quais o recorrente equacionado o respetivo suporte normativo, diremos:
            Na alínea b) do nº 2 do citado normativo legal (art. 410º do CPP) contempla-se a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, abrangendo, na verdade, dois vícios distintos:
            - A contradição insanável da fundamentação; e
            - A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
             No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis.
            Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” – vide, neste sentido, - Ac. do STJ de 18-02-1998, nº convencional JSTJ00034535.
            Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
            As contradições da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão para efeitos do vício decisório do referido art. 410º nº2 b) do CPP, têm de resultar de conclusões contraditórias, insanáveis, irredutíveis, que não possam ser ultrapassadas recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e ainda com recurso às regras da experiência comum, ou, dito ainda de outra forma, o vício da contradição insanável da fundamentação a que alude o citado preceito legal, só se verifica quando no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva da lógica interna da decisão.
            Este vício ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas. A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação – dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se -, como entre a fundamentação e a decisão - esta não se encontra em sintonia com os factos apurados (cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2ª Ed., Editorial Verbo, págs. 340 e 341).
            Como se adianta, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06.10.2011, disponível in www.dgsi.pt:
             “IV - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b) do n.º 2 da referida norma), pode ser percetível, antes do mais, na motivação da convicção do julgador que levou a que se desse por provado certo facto, mas pode também decorrer dos próprios factos dados por provados e por não provados; já quanto à contradição entre a fundamentação e a decisão, ela resultará, em princípio, da fundamentação apontar num sentido e a decisão ir noutro.”
            E, também no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de14.01.2015, igualmente disponível in www.dgsi.pt:
            “VIII - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
            X - Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.”
            Pois bem.
            O recorrente sustenta a existência do vício previsto na alínea b) do nº2 do art. 410º do CPP na argumentação de que o projeto aprovado foi executado e o investimento foi feito na sua totalidade, com recurso a financiamento do IFAP e com capitais próprios devidos, e, por isso, “resultando provado e evidenciado nos autos que o projeto foi fisicamente executado e que o investimento foi feito na sua totalidade, não poderia o Tribunal decidir como decidiu, em sentido contrário!”.
            Não o diz o recorrente nem se alcança a partir da argumentação por si esgrimida onde reside o vício decisório que aquele invoca previsto na citada alínea b) do nº2 do art. 410º do CPP passível de integrar qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão - sendo certo que também quanto à invocada contradição insanável nem sequer o recorrente esclarece qual destas entende estar em causa -  uma vez que, face ao teor da decisão recorrida – único a ter em conta para a aferição do apontado vício decisório -  não se divisa qualquer contradição entre a factualidade que consta dos pontos vertidos no elenco factual provado respeitantes à execução do projeto, ao respetivo investimento e capitais utilizados, nem entre estes e a motivação que lhe está subjacente.
            É que, a execução do projeto e do investimento que lhe esteve subjacente de que dá conta a factualidade dada como provada tem de ser concatenada com os capitais para o efeito utilizados e sobre estes, como nela bem se evidencia, apenas se contam os que dizem respeito ao incentivo financeiro do IFAP, não integrando esse investimento capitais próprios da sociedade arguida, porque, fruto da atuação concertada dos arguidos nela descrita, esse investimento não contou, como devia contar, de acordo com a candidatura aprovada, com capitais próprios da sociedade arguida.
            Pelo que, perante a factualidade provada que a esse respeito consta do acórdão recorrido e a motivação que lhe está subjacente, da qual decorre quais os meios probatórios e a respetiva análise crítica que estribam a convicção alcançada pelo tribunal a quo em relação à mesma, não se vislumbra, a partir do texto da decisão, qualquer incompatibilidade entre os factos que vieram a ser dados como provados nem entre estes e a respetiva fundamentação.
Daí que, ao contrário do pretendido pelo recorrente, balizada que ficou a densificação normativa que o vício decisório previsto na alínea b) do nº2 do art. 410º do CPP comporta, entendemos que este se não patenteia na decisão recorrida.
             Já quanto ao vício decisório consistente no erro notório na apreciação da prova, que igualmente parece vir invocado pelo recorrente ao fazer menção de que o acórdão recorrido incorre no vício constante da alínea c) do nº2 do art. 410º do CPP,  verifica-se o mesmo quando o tribunal procede à valoração contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Edição, 2000, Editorial Verbo, pág. 341).
             Pode, pois, dizer-se que ocorre erro notório na apreciação da prova quando, através da leitura do texto da decisão, por si só, ou, quando disso seja caso, conjugado com as regras da experiência comum [portanto, com o que é normal acontecer em circunstâncias idênticas], o homem médio imediatamente se apercebe da sua existência, por ser evidente que o julgador fez  uma apreciação da prova manifestamente ilógica e/ou arbitrária, aqui se incluindo as situações de desrespeito de prova tarifada e das leges artis, ou, dizendo de forma mais simples, existe erro notório na apreciação da prova quando se deu como provado o que, ostensivamente, resultou não provado, ou quando se deu como provado o que, manifestamente, não podia ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 81).  
            Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
            Existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros, AC. do STJ de 4.10.2001 ( in CJ, AC. STJ, ano IX, 3º, pág.182 ), Ac. da Rel. Porto de 27.09.95 ( in C.J. , ano XX , 4º, pág. 231)., Ac. do T. Rel. Coimbra, de 10.07.2018, in www.dgsi.pt.
            A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a definir e, consequentemente, delimitar o vício do erro notório na apreciação da prova, sufragando entendimentos, como o perfilhado no Ac. de 04.07.2013, Proc. n.º 1243/10.4PAALM.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt., segundo o qual  “O erro notório na apreciação da prova comporta a uma definição que se não se afasta do facto notório, da notoriedade relevante no direito, enquanto realidade de todos conhecida e por isso não carente de alegação e prova , impondo-se ao julgador, vício aqui circunscrito aos termos da decisão e sempre que se dê como assente algo que, forçosamente, não podia ter ocorrido, que a lógica comum repudia, de tão evidente que assim é, percetível pelo cidadão comum, sem formação qualificada, a uma análise perfunctória, sem esforço.
            O vício é prefigurável quando se depara ter sido usado um processo racional, mas retirando-se de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária, absurda; a prova produzida não pode, sob pena de atropelo das mais elementares regras da lógica, conduzir ao resultado factual assente, mercê de uma incongruência lógica, ela também, ofensiva de princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas – cfr. Acs . do STJ , de 3.7.2002 , P.º n.º 1748/02 e de 10.2.2005 , P.º n.º 3207 /04 -5.ª Sec. e de 20.04.2006.”
            E, também, no ac. de 9.02.2005, disponível in www.dgsi.pt, de acordo com o qual, o erro notório constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
            …
      Tal como compreendemos a invocação feita pelo recorrente respeitante à existência do vício decisório do erro notório na apreciação da prova, parece basear a mesma no entendimento de que não houve“ majoração dos custos” e de que a sociedade A..., responsável pela empreitada física, executou a mesma em conformidade com o relatório da verificação do investimento físico constante dos autos, verificando-se, na ótica do recorrente, um juízo errado por parte do tribunal recorrido em relação à análise da prova carreada para os autos, o qua sustenta na diferente valoração que o próprio faz desses elementos probatórios – que não foi a seguida pelo tribunal recorrido e que este exprime na decisão recorrida pela forma nela exarada  - da qual se não descortina falta de lógica ou de raciocínio a respeito da valoração da prova nela analisada ou incongruência resultante de uma descoordenação factual patente que se revele imediatamente na decisão - por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos -  segundo as regras da experiência comum.
E, do que se mostra consignado a respeito dessa convicção assim alcançada, partindo do texto da decisão recorrida - único a ter em conta para aferição da existência de tal vício decisório igualmente apontado pelo recorrente ao acórdão recorrido – não se vislumbram quaisquer motivos suscetíveis de o poderem configurar.
Com frequência vem sendo confundido o erro notório na apreciação da prova com o erro de julgamento – o que igualmente parece ter acontecido com o ora recorrente -  a verdade é que tal erro decisório não se confunde com o erro de julgamento.
            O erro de julgamento, que se nos afigura ser no caso em vertente o fundamento da discordância do recorrente em relação à matéria fáctica apurada pelo tribunal recorrido que consta do acórdão que vem posto em crise, assenta na divergência entre a convicção pessoal da recorrente sobre a prova produzida em audiência de julgamento e a convicção que o tribunal recorrido firmou sobre os factos em relação aos meios de prova carreados para os autos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no art. 127º do CPP.
Na verdade, face à densificação recursiva adiantada pelo recorrente, a admitir-se a existência de erro, ele seria, em termos processuais, um erro de julgamento, na medida em que não tem a característica imprescindível para o colocar ao abrigo do referido regime legal, a sua notoriedade, com o sentido supra definido, e necessariamente revelado no texto da decisão.
            Pois, como ressuma de toda a densificação recursiva a tal propósito exarada no corpo da motivação e nas conclusões do recurso, a existência dos erros decisórios que naquelas se assaca ao acórdão recorrido assenta na incorreta valoração dos meios de prova carreados para os autos, os quais, na perspetiva do recorrente, não sustentam a prova da matéria de facto que o tribunal recorrido considerou resultar demonstrada, por força do que concluiu pela sua condenação pelo crime  de fraude na obtenção de subsídio por que  vinha acusado.
Mas, tal erro, só poderia, eventualmente, ser corrigido no âmbito do regime da impugnação ampla da matéria de facto, com base no erro de julgamento, da qual também o recorrente parece lançar mão e sobre o qual, de seguida, nos pronunciaremos.
      Anotando, ainda que, apesar de não vir invocado, mas sendo o seu conhecimento de natureza oficiosa, face à densificação normativa contida na alínea a) do mesmo normativo legal (art. 410º, nº2 do CPP), afastada fica, igualmente, a existência do vício decisório nesta contemplado – insuficiência para a decisão da matéria de facto.
*
      d. Como já deixámos adiantado, da análise da argumentação recursiva exarada na motivação e nas conclusões do recurso apresentadas pelo recorrente resulta patente que o mesmo envereda, também, pela impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na incorreta análise e valoração dos elementos probatórios carreados para os autos, os quais, em seu entender deveriam conduzir à não prova dos factos que sustentam a sua condenação pelo crime de fraude na obtenção de subsídio - que o tribunal recorrido decidiu terem resultado provados -, pretendendo, assim, que a decisão nessa parte  do tribunal recorrido padece de erro de julgamento, ainda que sem  a expressa invocação do respetivo suporte normativo (contido no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP).       
      Sendo esse, como é, o desiderato do recorrente, incumbia-lhe o cumprimento dos ónus de impugnação especificada previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorretamente provados e a alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida - als. a) e b) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4).
      E, essa especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da decisão recorrida e que o recorrente considera incorretamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.
      Diz, a propósito, o Sr. Desembargador Sérgio Gonçalves Poças, «como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas (…) apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo (…).
      Assim, nesta especificação – as palavras valem – serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão» - in Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 10, Janeiro-Abril de 2010, págs. 31 e 32.
      Assim, se o tribunal a quo deu como provado determinados pontos da matéria de facto (provada ou não provada), se o recorrente entende que tais factos foram incorretamente julgados (porque deveriam ter sido dados como não provados ou como provados) tem, no mínimo, de dizer clara e expressamente sob o título de “Pontos de facto incorretamente julgados” quais são esses pontos da matéria de facto.
Para além disso, ainda a respeito do requisito da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, convirá adiantar que o mesmo se traduz numa exigência que não se basta com a mera afirmação dos factos, críticas, considerações, apreciação e valoração subjetiva da prova feita pelos recorrentes, segundo a sua convicção e versão dos factos, em contraposição com a apreciação e valoração do tribunal recorrido.
Tal pressuposto de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida só se encontra preenchido ou observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do tribunal recorrido.
Ou seja, importa fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente, exigência esta que, de algum modo, corresponde àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, pois, do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, esse dever de fundamentação é igualmente exigido ao recorrente. Só deste modo se perceberá ou entenderá qual o raciocínio deste para, em seu entender, dizer ou afirmar que determinado depoimento impõe decisão diversa da recorrida.
E, tal assim é, porque, como se salienta no Ac. do STJ, de 19.05.2010 ( processo nº 696/05.7TAVCD.S1), disponível in www.dgsi.pt, “(…) não se pode deixar de ter presente que o legislador, quando se refere à especificação das provas, as restringe àquelas que imponham decisão diversa. A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina. Por aí, se limita, ainda, o recurso em matéria de facto aos casos de valoração de provas proibidas ou de valoração das provas admissíveis em patente desconformidade com as regras impostas para a sua valoração.”
      Pois bem.
      Face ao modo como o recorrente equaciona em sede recursiva – pontos 8. e 9. da motivação do recurso a questão do erro do julgamento da matéria de facto que, no dizer do mesmo, se traduz em “Resultando inequivocamente demonstrado que, quer o IFAP, quer a componente própria foram integralmente aplicados na execução do projeto, o Acórdão recorrido labora em errado julgamento da matéria de fato, neste particular, pois, dos autos, resulta abundantemente prova documental que impõe decisão em sentido diverso, corroborada pelas declarações do técnico do IFAP que verificou o investimento e elaborou o Relatório que consta dos autos e que aqui se dá integralmente por reproduzida” e “ Os autos contêm elementos de prova suficientes de que a Quinta... obteve os fundos próprios necessários para a realização da sua componente própria. Como consta do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, junto aos autos e transitado em julgado, obteve do arguido BB, ora recorrente, um financiamento de €99.000,00. Somando a este valor o montante do financiamento obtido junto do Banco 4.... Tais valores ultrapassam o montante correspondente à sua componente própria.”, entendemos não ter o recorrente dado cumprimento a nenhum dos aludidos ónus de especificação.
      Desde logo, não indicando o recorrente, como não indica, quais os pontos da matéria de facto que pretende ver reapreciada por este Tribunal de recurso, fica este sem saber em relação a que concreta factualidade se verifica a dissensão do mesmo em relação à decisão do tribunal recorrido, patenteando-se, manifestamente, incumprido o ónus de especificação previsto na alínea a) do nº3 do art. 412º do CPP.
      Incumprimento esse que, da mesma forma, se verifica em relação ao ónus previsto no nº4 por referência às concretas provas indicadas, desde logo, porque, não só o recorrente não indica as concretas passagens das declarações da testemunha DD que convoca, que,  por terem sido prestadas na audiência de julgamento se mostram gravadas no sistema de registo de gravação do sistema Media Studio - não procedendo nem à indicação dessas passagens, por referência à hora, minutos e segundos, nem à respetiva transcrição -, como, igualmente, não procede à indicação, por referência à localização nos autos, onde se mostra a “ abundante prova documental” que entende constar dos autos e que em seu entender impõe decisão diversa, designadamente, o Relatório da verificação do investimento  físico e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte.
Por fim, também nem sequer conexionou o recorrente, com maior ou menor acuidade, o conteúdo dos meios de prova convocados com a factualidade impugnada, desde logo, porque, como já referido, nem sequer procede à concreta indicação desta.
A respeito do requisito da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, que a lei impõe para a impugnação da matéria de facto por via do recurso amplo ou efetivo, este traduz-se numa exigência que não se basta com a mera afirmação dos factos, críticas, considerações, apreciação e valoração subjetiva da prova feita pelos recorrentes, segundo a sua convicção e versão dos factos, em contraposição com a apreciação e valoração do tribunal recorrido.
Tal pressuposto de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida só se encontra preenchido ou observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do tribunal recorrido.
Ou seja, importa fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente, exigência esta que, de algum modo, corresponde àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, pois, do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, esse dever de fundamentação é igualmente exigido ao recorrente. Só deste modo se perceberá ou entenderá qual o raciocínio deste para, em seu entender, dizer ou afirmar que determinado depoimento impõe decisão diversa da recorrida.
E, tal assim é, porque, como se salienta no ac. do STJ, de 19.05.2010 ( processo nº 696/05.7TAVCD.S1), disponível in www.dgsi.pt, “(…) não se pode deixar de ter presente que o legislador, quando se refere à especificação das provas, as restringe àquelas que imponham decisão diversa. A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina. Por aí, se limita, ainda, o recurso em matéria de facto aos casos de valoração de provas proibidas ou de valoração das provas admissíveis em patente desconformidade com as regras impostas para a sua valoração.”
Havendo, ainda, que considerar, como aspeto relevante na apreciação da impugnação da matéria de facto, a que vem estando atenta a jurisprudência, que a apreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, se destina, apenas, a remediar erros pontuais de procedimento ou de julgamento, pois, tal como se salienta no Ac. do STJ de 15.12.2005, (Proc.  05P2951), igualmente disponível in www.dgsi.pt, “O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.
Donde, como bem se sintetiza, no ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 30.04.2008, proferido no proc. nº 105/06.4GCPMS.C, disponível in www.dgsi.pt., “O recurso da matéria de facto não pressupõe portanto, uma reapreciação pelo tribunal superior dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida – o tribunal de recurso não efectua um novo julgamento nem forma uma nova convicção –, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera determinarem uma diversa decisão (cfr. Ac. do STJ de 19/12/2007, processo nº07P4203, em http://www.dgsi.pt).
Por isso, como neste se adianta, no que concerne à valoração da prova testemunhal e da prova por declarações, existe uma enorme diferença entre a apreciação e valoração feita na 1ª instância e a que pode ser efetuada pelo tribunal de recurso, com base na transcrição dos depoimentos ou mesmo, na audição das respetivas gravações.
É que a impressão produzida no julgador pela prova testemunhal e por declarações, e que se fundamenta no conhecimento das reações humanas e análise psicológica que traçam o perfil de cada testemunha ou declarante, só alcança a sua plenitude através da imediação, ou seja, do contacto próximo entre o tribunal e as testemunhas e outros intervenientes processuais.
Daí que, quando o julgador atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, porque a opção tomada se funda na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador fundada naquela prova, quando for feita a demonstração de que aquela opção viola as regras da experiência comum. De outra forma, seriam violados os princípios da imediação e da oralidade.
Neste sentido, aliás, se pronunciou já o Tribunal Constitucional, ao aceitar que o verdadeiro julgamento da causa é o realizado na 1ª instância, onde regem os princípios da imediação e da oralidade, onde são produzidas todas as provas e o tribunal contacta diretamente com os intervenientes processuais (Ac. nº 59/2006, de 18/01/2006, proc. nº 199/2005, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
Aqui chegados, somos levados a concluir que o recorrente ao pretender impugnar pela via do recurso amplo ou efetivo a matéria de facto provada no acórdão recorrido que entende ter sido incorretamente julgada, não cumpriu os ónus de especificação previstos nas alíneas a) e b) do nº3 e nº4 do art. 412º CPP.
      É que, as menções exigidas pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
      No rigor dos termos, o que o recorrente acaba por fazer em relação à factualidade que entende ter sido incorretamente julgada, mas que nem sequer indica, é, tão só, uma exegese crítica a alguns meios de prova carreados para os autos, esquecendo o essencial, isto é, a conexão desse juízo com determinada factualidade devidamente concretizada, por referência a um certo segmento de tais meios de prova.
      Como se escreveu no Acórdão do STJ de 24/10/2002 Processo n.º 2124/2002, in www.dgsi.pt. «(...) o labor do Tribunal da 2.ª instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida [art. 412.º, n.º 3, als. a) e b) do CPP].
      Se o recorrente não cumpre aqueles deveres não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência às provas e respetivos suportes».
      De acordo com posição constante do Supremo Tribunal de Justiça, o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto, tanto na motivação como nas conclusões desta, não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido Cfr. v.g., Acs. de 04-10-2006, proc. n.º 812/06-3.ª; 08-03-2006, proc. 185/06-3.ª; 04-01-2007, proc. n.º 4093-3.ª; e de 10-01-2007, proc. 3518/06-3.ª.. Daí que o artigo 417.º, n.º 3, do CPP, imponha o dever de convite tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”.
      Se o recorrente não faz, como no presente caso acontece, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, todas as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, não há lugar ao convite à correção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite - Neste sentido, Ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, de 18-06-2002 (proc. n.º 101/02) - DR, II Série de 13-12-2002.
      Assim, não pode a impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo recorrente ser conhecida.
*
      Pelo exposto, improcede o segmento recursivo atinente à impugnação da matéria de facto, a qual, por isso, permanece inalterada, mantendo-se a mesma tal como consta do acórdão recorrido e nele foi julgada pela 1ª instância.
*
            - Da incorreta ponderação do enquadramento jurídico-penal dos factos e da violação do princípio constitucional ne bis in idem;
            Não conclusões E) a K), à semelhança da densificação que espraia nos pontos 19. a 23. do corpo da motivação do recurso, alega o recorrente que: o acórdão recorrido, ao considerar, por um lado, que existiu fraude na obtenção de subsídio e, por outro lado, que o arguido BB … fez “rolar” o valor do subsídio recebido, fazendo-o entrar na Sociedade …, preenchendo o tipo legal de crime de fraude na obtenção de subsídio; e, por outro lado, que retirou, em proveito próprio, os mesmos valores da mencionada sociedade, devendo ser tributado por tais rendimentos em sede de IRS, labora em contradição lógica insanável, porque, segundo o mesmo entende, ou o referido valor resultou de subsídio fraudulentamente obtido ou corresponde a rendimentos auferidos pelo arguido BB …, o qual, por não os ter declarado em sede de IRS, preencheu o tipo legal de crime de fraude tributária.
            Pretende o mesmo que é “ factual e logicamente impossível que o mesmo valor tenha sido utilizado para o preenchido dos dois tipos legais de crimes”, pelo que, perante tal impossibilidade objetiva, de duas, uma:
            - ou o arguido é condenado na perda de vantagem pelo recebimento do subsídio indevido;
            - ou se entende que o arguido incorreu no crime de fraude tributária, devendo ser condenado no pagamento dos impostos devidos e os quais já lhe foram exigidos em sede próprio, tal como resulta provados dos autos.
            - Devendo reconhecer-se que se verifica a violação do princípio constitucional ne bis in idem, previsto no artigo 29º n.º 5 da C. da República Portuguesa, pois, a consagração deste princípio constitucional tem como exigência a liberdade e a dignidade do individuo enquanto pessoa e cidadão, e visa impedir que os mesmos fatos sejam apreciados repetidamente, implicando a repetição uma perseguição penal sobre os mesmos factos, o que só pode ocorre uma vez.
            Para apreciação da presente questão importa saber o que, para efeitos de subsunção dos factos ao direito, se discorreu no acórdão recorrido a respeito do crime de fraude na obtenção de subsídio e dos crimes de fraude fiscal qualificada, imputados nos autos ao recorrente, pois, a questão que vem suscitada pelo recorrente agora em apreciação respeita a estes, ainda que, quanto aos crimes de fraude fiscal qualificada pelos quais o arguido foi condenado apenas venha posta em causa a atinente ao crime de fraude fiscal em sede de IRS.
            Assim, a esse respeito, importar revisitar o que deflui da decisão recorrida, que passa a transcrever-se:
                “ Passando a conhecer de direito:
                Da fraude na obtenção de subsídio:
                Dispõe o artigo 36.º, n. os 1, 2, 5, alínea a) e 8.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que:
                “1- Quem obtiver subsídio ou subvenção:
                a) Fornecendo às autoridades ou entidades competentes informações inexactas ou incompletas sobre si ou terceiros e relativas a factos importantes para a concessão do subsídio ou subvenção;
                b) Omitindo, contra o disposto no regime legal da subvenção ou do subsídio, informações sobre factos importantes para a sua concessão;
                c) Utilizando documento justificativo do direito à subvenção ou subsídio ou de factos importantes para a sua concessão, obtida através de informações inexactas ou incompletas;
                Será punido com prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias.
                2- Nos casos particularmente graves, a pena será de prisão de 2 a 8 anos.
                (...)
                5- Para os efeitos do disposto no nº 2, consideram-se particularmente graves os casos em que o agente:
                a) Obtém para si ou para terceiros uma subvenção ou subsídio de montante consideravelmente elevado ou utiliza documentos falsos;
                (...)
                8- Consideram-se importantes para a concessão de um subsídio ou subvenção os factos:
                a) Declarados importantes pela lei ou entidade que concede o subsídio ou a subvenção;
                b) De que dependa legalmente a autorização, concessão, reembolso, renovação ou manutenção de uma subvenção, subsídio ou vantagens  daí resultantes.”.
                Valor consideravelmente elevado, será aquele que, nos termos do art. 202.º, al. b) Código Penal, exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto, ou seja, € 20.400,00.
                No presente caso, dúvidas não há que o valor é elevado – está em causa a obtenção indevida (como adiante se verá) de € 263.631,25.
                O direito penal económico é a área do direito penal que protege bens jurídicos supra-individuais, que se caracterizam materialmente pela sua relevância directa para o sistema económico cuja sobrevivência, funcionamento e implementação se pretende assegurar.
                O crime de fraude na obtenção de subsídio encontra-se inserido no capítulo II, secção II, subsecção II, do citado Decreto-Lei nº 28/84, sob a epígrafe “Crimes contra a Economia”.
                Realça-se no preâmbulo deste diploma que “É da própria natureza desta área do direito penal atender essencialmente à reprovação das condutas em si mesmas lesivas dos valores fundamentais do ordenamento sócio-económico, crimes que "pela gravidade dos seus efeitos e pela necessidade de proteger o interesse da correta aplicação de dinheiros públicos nas actividades produtivas, não poderiam continuar a ser ignorados pela nossa ordem jurídica”.
                Aliás, como lembrado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2006 de 23/11/2005, in Diário da República, de 04/01/2006 – I Série A (que uniformizou jurisprudência quanto ao momento da consumação deste crime), “a estrutura e configuração da sua factualidade típica aponta claramente no sentido de que é efectivamente um crime contra a economia, visto que a norma que o modela e define tutela bens jurídicos supra-individuais, materialmente referenciados com a economia, designadamente com o seu funcionamento, desenvolvimento e sobrevivência”.
                O bem jurídico protegido abrange também o património público, entendido como conjunto de valores “desse património público especificamente destinados mediante os subsídios ou subvenções que podem integrar – a fins concretos de programas públicos elaborados genérica e sectorialmente para a promoção desse desenvolvimento”.
                O bem jurídico protegido com a incriminação, corresponde, de acordo com o entendimento consensual da doutrina, à confiança necessária à vida económica, e por outro lado, à correta aplicação dos dinheiros públicos no campo económico.
                São elementos do tipo legal de fraude na obtenção de subsídio:
                a) a existência de uma (ou mais) entidade de direito público, prestadora do subsídio ou subvenção (sujeito enganado e lesado);
                b) a existência de uma empresa ou unidade produtiva (beneficiária do subsídio ou subvenção);
                c) a obtenção de um subsídio ou subvenção;
                d) a verificação de erro da entidade concedente do subsídio ou subvenção;
                e) a conduta fraudulenta causadora daquele erro;
                f) o dolo ou, nos casos das alíneas a) e b) do n.º 1, a negligência.
                A conduta tipicamente relevante abrange a obtenção “para terceiros” da subvenção ou subsídio (cfr. a alínea a), do n.º 5, do artigo 36.º), o que se compreende, identificada que está a natureza supra – individual do bem jurídico tutelado «no sentido de que estão em causa dinheiros de todos e que a sua aplicação se dirige a um fim de interesse social», não se vendo motivo para que assim não seja, também, relativamente ao tipo do corpo do n.º 1. 4 5
                Estamos, pois, perante um crime comum, susceptível de ser praticado por qualquer pessoa, independentemente de ser ou não o promotor ou beneficiário do subsídio ou subvenção.
                Quanto ao momento da consumação, vem sendo entendido que, mesmo à luz da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2006 (no sentido de que «o crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção previsto no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, consuma-se com a disponibilização ou entrega do subsídio ou subvenção ao agente.»), comete o crime de fraude na obtenção de subsídio quem utiliza os artifícios fraudulentos previstos nas diversas alíneas do seu n.º 1 não só na concessão formal e prévia do subsídio como também para a posterior disponibilização ou entrega material das quantias subsidiadas.
                O conceito de subsídio ou subvenção mostra-se delineado no art. 21.º do Decreto- Lei n.º 28/84, considerando-se como tal a prestação feita a empresa ou unidade produtiva, à custa de dinheiros públicos, quando tal prestação:
                - não seja, pelo menos em parte, acompanhada de contraprestação segundo os termos normais do mercado, ou quando se tratar de prestação inteiramente reembolsável sem exigência de juro ou com juro bonificado, e
                - deve, pelo menos em parte, destinar-se ao desenvolvimento da economia.
                O subsídio será obtido através de três formas típicas:
                - fornecimento de informações inexactas ou incompletas;
                - ocultação e factos importantes;
                - uso de documento falso.
                Admite-se assim a comissão de crime por omissão, “omitindo, contra o disposto no regime legal da subvenção ou subsídio”, isto é, quando sobre o agente recaía um dever legal de informar.
                Quer a acção, quer a omissão têm que incidir sobre factos importantes para a concessão do subsídio, entendendo-se como tal, nos termos do n.º 8, aqueles:
                a) declarados importantes pela lei ou entidade que concede o subsídio ou a subvenção;
                b) de que dependa legalmente a autorização, concessão, reembolso, renovação oumanutenção de uma subvenção, subsídio ou vantagem daí resultante.
                Estamos neste caso perante um crime de resultado pelo que não bastará que a acção ou omissão incidam sobre os factos declarados importantes, é necessário que sejam adequados a produzir o resultado típico e, portanto, determinantes da concessão do subsídio.
                Não se exige como no crime de burla um dolo específico, “a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo”, nem o artifício fraudulento, ou que a mentira, ou a ocultação sejam astuciosos.
                Basta-se o legislador com declarações não verdadeiras, inexactidões ou omissões sobre factos importantes sobre os requisitos que devem estar reunidos para obter o subsídio.
                A negligência é punível e o crime consuma-se quando o agente já dispõe ou pode dispor dos fundos, mas há que atentar que a fraude ocorre antes da concessão do subsídio, - o agente defrauda, engana, cria uma realidade inexistente para obter o subsídio.
                Vejamos agora a situação dos autos em concreto:
                A entidade prestadora do subsídio foi o IFAP, organismo público lesado que foi enganado quanto à regularidade da atribuição.
                Beneficiária do subsídio foi a sociedade arguida Quinta....
                Verificados os sujeitos (agente e lesado), vejamos o objeto material da acção incriminada (obtenção do subsídio), sabido que o crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção configura um crime de dano e de resultado ou material, visto que a sua consumação depende do efectivo recebimento do subsídio ou subvenção.
                Independentemente da sua específica designação (contribuição, comparticipação, etc..), aquela prestação há-de implicar a transferência do dinheiro, destinando-se pelo menos em parte, de forma principal ou secundária, ao desenvolvimento económico.
                Essa transferência pode ser efectuada no início, de forma faseada, em tranches, ou no final com o pagamento do saldo, devendo destinar-se a empresa ou unidade de produção, entendida esta em sentido amplo e em conjugação com o estatuído nos artigos 3.º, n.º 1 e 6 alínea b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, de modo a abarcar todas as entidades, singulares ou colectivas, que independentemente do seu estatuto jurídico - pessoas singulares, sociedades civis e comerciais, associações de facto, pessoas colectivas ainda que de natureza pública - tenham como objectivo principal ou meramente acessório uma actividade económica.
                No caso este financiamento não reembolsável configura claramente um subsídio nos termos e para os efeitos incriminadores aqui considerados, visando a construção de um aviário para exploração intensiva de galináceos.
                A circunstância dessa prestação (subsídio) ter sido realizada à custa de fundos comunitários não a exclui do âmbito de protecção da norma incriminadora, tanto mais que ao tempo da publicação do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, o nosso país ainda não era membro da Comunidade Europeia.
                Os fundos envolvidos foram concedidos pela União Europeia ao Estado Português inseridos no PRODER (Programa de Desenvolvimento Rural do Continente) que visava, como decorre da Portaria n.º 357-A/2008, de 9 de Maio, promover o desenvolvimento e adaptação das explorações, gerando impactos positivos para os sectores e as regiões rurais onde se desenvolviam.
                A entidade pagadora foi no caso o Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I. P. (IFAP, I.P.), instituto público português de cujo erário saíram os montantes concedidos.
                Da acção incriminada (o erro e a conduta enganadora)
                A conduta enganadora encontra-se típica e abstractamente descrita no n.º 1, do citado artigo 36.º.
                Tratando-se de um crime de execução vinculada, a conduta do agente em ordem à obtenção do subsídio terá de assumir uma das três formas típicas e abstractamente descritas:
                a) Fornecimento de informações inexactas ou incompletas
                Pune-se a obtenção de subsídio ou subvenção através de afirmações inexactas ou incompletas, ou seja, de informações desconformes com a realidade.
                Neste caso, o documento que contém as afirmações é verdadeiro nos seus requisitos externos ou materiais, mas o que nele se diz é inexacto ou incompleto.
                Há genuinidade formal do escrito, mas não há veracidade intelectual do conteúdo.
                Estas informações devem dizer respeito ao sujeito activo ou a terceiro e recair sobre factos essenciais ou determinantes da concessão do subsídio ou subvenção.
                b) Ocultação de factos importantes
                Comete-se o delito com a omissão de factos importantes para a concessão do subsídio ou subvenção, contanto que sobre o agente recaia o dever legal de informar.
                c) Uso de documento falso
                O agente serve-se de documento falsificado (falsificação material e/ou ideológica) para obter o deferimento da sua pretensão.
                A actividade do agente consiste em apresentar como genuíno o documento, se ele foi materialmente falsificado, ou como verídico, se foi ideologicamente falsificado.
                Nestas três modalidades típicas, nos termos do nº 8, do artigo 36º, consideram-se importantes para a concessão de um subsídio ou subvenção os factos:
                a) declarados importantes pela lei ou entidade que concede o subsidio ou a subvenção;
                b) de que dependa legalmente a autorização, concessão, reembolso, renovação ou manutenção de uma subvenção, subsídio ou vantagem daí resultante.
                As manobras fraudulentas empreendidas pelo agente, tal como reflexamente o erro por elas induzido, terão de incidir não sobre aspectos do regime legal de subsídio, mas antes e exclusivamente sobre os pressupostos de facto da sua concessão.
                Nos termos da lei, tanto a fraude como o erro hão-de reportar-se “a factos importantes para a concessão do subsídio”.
                Na verdade, com o tipo legal de crime do artigo 36.°, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, pretende-se que a concessão de subsídio ou subvenção, acto relevante para a economia, se efectue com observância do condicionalismo fáctico previsto nas disposições legais que a regulam, tendo em vista os valores e interesses que conformam e desenvolvem o sistema económico.
                O pagamento dos subsídios está dependente da verificação de condições de natureza substancial e formal (procedimental), “pressupostos objetivos e cumulativos que condicionam o pagamento destes benefícios”.
                As condições de natureza substancial prendem-se essencialmente com a execução das obras e suas características.
                As condições de natureza formal relacionam-se com os procedimentos a observar pelo agente económico para obtenção do subsídio nomeadamente na parte em que se estabelece as regras para comprovação da aplicação e/ou pagamento das despesas objeto da candidatura.
                Percorrido no essencial o regime jurídico-penal deste tipo de crime apenas se pode concluir que a conduta imputada aos arguidos preenche a acção típica em causa.
                Efectivamente, provou-se que a arguida AA …, em representação da sociedade arguida QUINTA …, apresentou candidatura a apoios comunitários concedidos no âmbito do PRODER — Acção 113 — Instalação de Jovem    Agricultor, candidatura que foi aprovada, vindo em 2 de Maio de 2012, a ser celebrado o Contrato de Concessão de Incentivos Financeiros entre o IFAP — Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas. I.P. e a sociedade arguida, representada pela arguida AA …
                A operação n.º ...09 foi aprovada, com um investimento total de € 522.900,00, assumindo o investimento elegível o valor global de € 497.900,00, sendo o incentivo público no valor de € 280.000,00 (€ 250.000,00 de subsídio não reembolsável e € 30.000,00 de prémio) e a participação do beneficiário de € 272.900,00, correspondendo o incentivo à aplicação da taxa de 52,19% sobre o montante das despesas consideradas elegíveis.
                De acordo com o contrato de financiamento celebrado entre o IFAP e a sociedade arguida, ali representada pela arguida AA, a operação visava a instalação de uma exploração avícola de produção intensiva de frangos, sendo necessário para tanto a construção de um pavilhão avícola (aviário).
                Mais ficou provado que, nos termos do mesmo contrato, os pedidos de pagamento ao investimento reportavam-se às despesas efectivamente realizadas e pagas por transferência bancária, débito em conta ou cheque, devendo os comprovativos das mesmas, com o respectivo extracto bancário demonstrativo do pagamento, ser entregues no prazo estipulado..
                Resultou ainda provado que a arguida AA …, em nome da sociedade arguida e com vista a receber o apoio monetário contratado com o IFAP, acertou com o arguido BB …, legal representante e gerente da sociedade …, que esta sociedade emitiria facturas titulando adiantamentos, e correspondentes recibos, até ao montante global do investimento ainda que este fosse – como foi – superior aos valores efectivamente despendidos na construção, empolando deste modo os custos.
                Após a apresentação das facturas e recibos, acompanhadas da documentação de suporte (extractos bancários), junto dos serviços competentes serem validadas e, deste modo, ser transferido para a conta bancária da arguida QUINTA … o montante proveniente do investimento público, esta efectuaria o pagamento à sociedade ….
                De seguida, o arguido BB …, na qualidade de sócio gerente daquela sociedade, procedia ao levantamento de tais quantias em numerário e/ou dava ordem de transferência a crédito para contas particulares suas e os montantes assim retirados das contas da sociedade … eram entregues à arguida AA …, via quantias em numerário e/ou transferências para contas particulares das quais era titular e/ou co-titular, após o que esta procedia à entrega daquelas quantias monetárias na conta bancária da arguida QUINTA …, mediante depósitos de numerário e/ou transferências bancárias como se de suprimentos (e deste modo capitais próprios) se tratassem.
                Tais movimentos reflectidos na conta bancária da arguida QUINTA … serviriam para, ainda que de modo ilusório, demonstrar junto do IFAP que o investimento em causa se processava nos moldes acordados e pelos montantes fixados no contrato assinado pelas arguidas e o IFAP.
                Visando o circuito bancário, acima descrito, dissimular a proveniência das quantias monetárias que eram creditadas na conta da sociedade arguida, como capitais próprios/suprimentos.
                Em concreto, a sociedade … emitiu 16 facturas (e correspondentes recibos) à sociedade arguida totalizando o montante de € 464.800,00, grande parte das quais foi paga com os valores disponibilizados pelo IFAP e que os arguidos fizeram circular repetidamente entre as contas das sociedades e as contas pessoais.
                Tal sucedeu, designadamente:
                - com o montante de € 35.649,73 (primeira tranche paga pelo IFAP em 29/08/2014), que, depois de repetidamente ter sido feito circular nas contas das sociedades e dos arguidos como descrito nos pontos 29 a 39 dos factos provados, permitiu simular o pagamento das facturas 21, 23 e 24 emitidas pela sociedade … no valor de € 87.500,00, as quais viriam a ser apresentadas ao IFAP (com os respectivos recibos e comprovativos de pagamento) para solicitar a disponibilização da 2.ª tranche do apoio.
                - com o montante de € 43.934,53 (2.ª tranche paga pelo IFAP em 31/10/2014), que, depois de repetidamente ter sido feito circular nas contas das sociedades e dos arguidos como descrito nos pontos 42 a 50 dos factos provados, permitiu simular o pagamento das facturas 26, 27, 28, 29 e 30 emitidas pela sociedade … no valor de € 140.500,00, as quais, juntamente com 2 outras facturas no valor de € 12.500,00 viriam a ser apresentadas ao IFAP (com os respectivos recibos e comprovativos de pagamento) para solicitar a disponibilização da 3.ª tranche do apoio, que ascendeu a € 75.818,43.
                Ora, resulta da análise dos factos dados como provados que o contrato de concessão de incentivos financeiros celebrado entre o IFAP e a sociedade arguida supunha uma participação da beneficiária/sociedade arguida no valor de € 272.900,00, que a arguida AA, em nome daquela, declarou – no contrato celebrado – comprometer-se a custear, sabendo à partida que não iria fazê-lo, pois que, não só o valor das despesas elegíveis havia sido empolado, como pretendia – como efectivamente veio a fazer – simular o investimentode capitais próprios mediante a  circulação dos montantes subsidiados, de forma repetida entre as contas da sociedade arguida e da sociedade … e as contas pessoais dos respectivos sócios, ora arguidos.
                Mais resulta que, ao procederem, de forma repetida, a levantamentos dos montantes de financiamento público, da conta da …, para as contas pessoais dos arguidos, para simularem suprimentos na conta da sociedade arguida, com os quais procederiam a pagamentos simulados das facturas emitidas por aquela, os arguidos lograram obter a ilusória comprovação do pagamento de despesas, com a qual solicitavam a libertação das tranches subsequentes de investimento público.
                E que foi só por estar erroneamente convicto de que o valor total indicado na candidatura correspondia ao seu valor real, e que os comprovativos apresentados da aplicação e pagamento das respectivas despesas eram verdadeiros (titulando um efectivo investimento próprio por parte da sociedade arguida), que o IFAP validou os pedidos de pagamento do subsídio no valor de € 263.631,25.
                De onde decorre que não só a sociedade arguida forneceu aos organismos competentes informações inexactas quanto ao valor real da obra e quanto ao valor que se propunha suportar com capitais próprios, como utilizou, para prova daqueles factos essenciais à atribuição da ajuda, documentos justificativos que não correspondiam à realidade, por documentarem um ilusório investimento prévio por parte da entidade promotora.
                Mais ficou demonstrado que essa prática fraudulenta foi realizada em vista da obtenção do subsídio superior ao que seria devido se não tivessem sido inflacionados os custos facturados, e a que nunca teriam direito se a sociedade beneficiária não se propusesse (e simulasse) investir capital próprio na percentagem correspondente, tudo com conhecimento e vontade dos arguidos, que agiram concertadamente, cientes que assim actuando criavam nos responsáveis do IFAP a convicção de que o valor indicado, bem como os documentos oferecidos como justificativos das despesas eram verdadeiros, o que sabiam ser falso.
                Convicção que conseguiram criar, pois aqueles responsáveis, só por disso se terem convencido, persuadidos do valor reclamado a título de reembolso das despesas realizadas e pagas, procederam ao pagamento do subsidio no montante de € 263.631,25.
                É certo que da prova produzida em audiência resulta que o aviário foi instalado, ainda que à custa de subempreitadas acordadas pela sociedade A..., muitas delas não pagas, mas tal não afasta a conclusão de que a concessão do subsídio ocorreu, no caso, em situação de facto viciada pelos arguidos, os quais, ao arrepio do dever de boa fé e contrariamente à confiança inspirada na Administração, distorceram e forjaram elementos relevantes para atribuição das ajudas.
                O tipo penal supõe um duplo processo causal (conduta causa do erro e erro causa da prestação), de tal modo que a prestação de subsídio ou subvenção há-de ser determinada por erro causado pela conduta enganadora do beneficiário .
                E é o que sucede no caso dos autos, pois que ficou demonstrado que em consequência da sua actuação fraudulenta os arguidos criaram nos responsáveis pelo IFAP a convicção, aliás, falsa, que estavam verificados os pressupostos de facto substanciais e formais para atribuição do subsidio de € 263.631,25, circunstância que no caso foi determinante para a sua validação e pagamento.
                Em termos subjectivos, demonstrado ficou também que os arguidos agiram sempre em execução de um plano previamente traçado, em comunhão de esforços e comum acordo, com vista à obtenção de um enriquecimento financeiro para a sociedade arguida, passando a dispor do capital subsidiado a que sabiam não ter direito, actuando assim com dolo directo e em co-autoria.
                Ambos agiram de forma livre, voluntária e consciente, cientes que toda esta relatada actuação era proibida e punida por lei.
                Por último, considerando o valor do subsídio indevidamente pago (de € 263.631,25), dúvidas não restam da verificação da circunstância agravante prevista no art. 36.º, n.º 2 e 5 al. a) do Decreto-Lei n.º 28/84.
                Em conclusão, estão preenchidos os elementos constitutivos do crime agravado de fraude na obtenção de subsídio, p.e p. pelas disposições conjugadas dos art. os 36.º, n. os 1, al. c), 2, 5 al. a) e 8, al. b) do Decreto-Lei n.º 28/84.
                Por este crime responderão, como co-autores, os arguidos AA e BB, bem como a sociedade arguida Quinta …, cuja responsabilidade criminal se mostra prevista no art. 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 28/84, claro como fica que aarguida AA …agiu em representação e no interesse desta.
            (…)
                Do crime de fraude fiscal qualificada
                É ainda imputada ao arguido BB … a prática de dois crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo art. 103.º, n.º 1 als. a) e b) e 104.º, n.º 2 al. b) do RGIT.
            Dispõe o primeiro normativo que:
            “1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
                a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
                b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
                c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
                2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.
                3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária..”
                E nos termos do art. 104.º, n.º 2 do mesmo diploma, os factos são puníveis com prisão de um a cinco anos, quando:
                “a) (…); ou
                b) A vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 50 000.”
                O tipo penal em causa visa a protecção de duas ordens de valores: de um lado os deveres de lealdade, verdade e transparência fiscal, e em última análise o dever de colaboração com a Administração, assegurando-lhe o cabal e ajustado conhecimento dos factos fiscalmente relevante; do outro o património público, tutelando o interesse do Estado no recebimento completo e tempestivo dos impostos por forma a assegurar a realização do património necessário ao exercício das funções estaduais.
                Trata-se de um delito de falsidade, só que duma falsidade levada a cabo com o propósito de produzir um prejuízo ou alcançar um benefício. Dano ou prejuízo que, em todo o caso, não têm de ocorrer para se atingir a consumação do crime, bastando-se o preenchimento do tipo com a intenção da sua causação pelo agente.
                Constituem condutas típicas a ocultação ou alteração de factos ou valores declarados ou que devam ser declarados para efeitos de tributação [alínea a)]; a ocultação de factos ou valores não declarados em violação à lei fiscal [alínea b)]; ou, finalmente, a celebração de negócio simulado quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas [alínea c)].
                As condutas tipificadas no art. 103.º do RGIT podem assim revestir a forma de acção ou de omissão. A realização da conduta de modo activo corresponde à alteração de factos ou valores que devam constar da escrita contabilística ou de declarações apresentadas à administração tributária  ou ainda através da celebração de contrato simulado. A fraude por omissão tem lugar quando o agente oculta factos ou valores que devam constar da contabilidade ou de declarações tributárias, [alínea a)]; ou ainda quando o agente não declara factos ou valores com relevância tributária [alínea b)].
                No caso dos autos, resultou provado que o arguido:
            1. apresentou declaração de IRS relativamente ao ano de 2014, na qual apenas declarou rendimentos de trabalho dependente no valor de € 5.030,64.
                Contudo, apurou-se que o arguido recebeu também da sociedade A..., mediante transferências para contas pessoais e levantamentos em caixas ATM e ao balcão, a quantia de € 332.250 nos termos descritos em 86 a 88.
                Valores que, por terem saído da esfera da sociedade A... para a esfera pessoal do arguido, correspondem a rendimentos de capitais, que o arguido estava obrigado a declarar enquanto rendimentos de categoria E, nos termos do art. 5.º do CIRS.
                Mais resultou provado que, ao omitir a declaração destes rendimentos, o arguido obstou à liquidação de imposto no valor de € 169.662,22.
                Ficou também provado que o arguido sabia estar obrigado a declarar tais rendimentos e a proceder ao pagamento do imposto que, em face deles, se viesse a apurar, agindo com o propósito de obter um acréscimo patrimonial sem liquidar o imposto correspondente, e assim obter vantagem patrimonial ilegítima correspondente ao imposto que, por força daquelas retiradas de dinheiro,  estava obrigado a liquidar, no valor global de € 169.662,22.
                Importa ainda referir (porque em causa estão rendimentos obtidos pelo arguido no âmbito da actividade ilícita consubstanciadora do crime de fraude na obtenção de subsídio) que a prerrogativa de que goza o arguido relacionada com o direito à não auto-incriminação (o chamado “nemo tenetur”), decorre implicitamente das garantias de defesa do arguido em processo penal, previstas no art. 32.º da Constituição, e visa a liberdade de declaração no sentido de não contribuir para a sua própria incriminação.
                Contudo, o “nemo tenetur” só pode ser violado na hora da utilização/valoração em processo penal.
                Ou seja, o arguido só goza dessa prerrogativa no âmbito do processo penal, pelo que não pode fundar-se na mesma a “anulação” do dever de colaboração a que o contribuinte está sujeito perante a Administração Fiscal.
                Caso contrário, perderiam sentido grande parte das obrigações declarativas, o que inviabilizaria o funcionamento do sistema fiscal tal como o conhecemos, tornando muito difícil, senão impossível a tributação.
                Os efeitos da referida prerrogativa só serão de ponderar quando, na pendência de processo penal contra o arguido, se coloque a questão de utilizar ou não como meio probatório contra aquele, dados de sentido auto-incriminatório que o contribuinte foi obrigado a levar ao conhecimento da Administração Fiscal.
                A obrigação declarativa situa-se, por isso, a montante de tal questão não podendo a prerrogativa de que o arguido possa gozar em processo penal (que eventualmente poderá nunca vir a ser instaurado) afastá-la.
                Por seu turno, a Lei Geral Tributária é clara ao estabelecer, no seu art. 10.º que: “O carácter ilícito da obtenção de rendimentos ou da aquisição, titularidade ou transmissão dos bens não obsta à sua tributação quando esses actos preencham os pressupostos das normas de incidência aplicáveis”.
                De onde se conclui que, independentemente da origem dos rendimentos obtidos pelo arguido, este tinha a obrigação de os declarar à Administração Fiscal para efeitos de tributação. E não o tendo feito, incorreu na prática do crime de fraude fiscal.
                2. o arguido, enquanto sócio e gerente da sociedade …, contabilizou os valores por si retirados e outros valores no montante global de € 403.000 como gastos da sociedade …, gerando um resultado tributável de € 49.259,97 de prejuízo para efeitos fiscais, o que implicou o apuramento de imposto a restituir no valor de € 162.88.
                Contudo, inexistem documentos que comprovem os gastos registados contabilisticamente, não foram efectuados pagamentos a credores da …, nem existem registos de quaisquer indemnizações contratuais a ser pagas a terceiros.
                Ao incluir como gastos valores que sabia não terem sido usados pela sociedade na actividade comercial a que se dedicava, sabia o arguido alterar os valores nos quais se baseia o apuramento de imposto, o que fez com o propósito conseguido de se enriquecer à custa da Fazenda Pública, tendo auferido vantagem patrimonial ilegítima no valor de € 80.460,21.
                Mostram-se, pois, preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo penal previsto no art. 103.º, n.º 1 al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (quanto à ocultação de rendimentos tributáveis em sede de IRS, acima aludidos em 1.) e daquele previsto no art. 103.º, n.º 1 al. a) do Regime Geral das Infracções Tributárias (quanto à alteração dos valores contabilizáveis como custos para apuramento do IRC da sociedade A..., acima aludidos em 2.).
                Por outro lado, não restam dúvidas de que o valor da vantagem patrimonial obtida em cada um dos casos, importa o preenchimento da circunstância qualificativa prevista no art. 104.º, n.º 2 al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias.
                Importará apenas referir que, contrariamente ao invocado pela Defesa, não ocorre a violação do princípio ne bis in idem, pois que nem os factos (integradores dos crimes de fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal) são totalmente sobreponíveis (os primeiros referentes à emissão de facturas e recibos não coincidentes com a realidade e à circulação dos valores pagos pela sociedade arguida com fundos públicos; e os segundos referentes à declaração de IRS apresentada sem menção aos valores que fez transitar para a sua esfera pessoal; e à contabilização como gastos de valores que adulteraram o valor do lucro tributável da sociedade A...), nem os crimes que por essa via lhe são imputados se encontram numa relação de concurso aparente.
                Efectivamente, estando em causa crimes que tutelam bens jurídicos distintos, e ainda que se considerasse ser a mesma a conduta do arguido que se subsume àqueles (o que, como se viu, se considera não ser o caso), sempre o preenchimento, com o mesmo comportamento, de tipos penais distintos importaria, nos termos do art. 30.º, n.º 1 do Código Penal, a condenação pelos dois tipos de crime.
                Argumentos que se aplicam ainda à relação entre entres dois tipos penais e o crime de branqueamento de capitais, também ele a tutelar bem jurídico distinto e autónomo.”
                Argumenta o recorrente que o acórdão recorrido labora em  contradição lógica insanável quando, por um lado, considerou que o arguido BB … fez “rolar” o valor do subsídio recebido, fazendo-o entrar na Sociedade A...…preenchendo por força dessa atuação o tipo legal de crime de fraude na obtenção de subsídio, e, por outro lado, que retirou, em proveito próprio, os mesmos valores da mencionada sociedade, devendo ser tributado por tais rendimentos em sede de IRS, preenchendo em resultado dessa atuação o tipo legal de frade fiscal qualificada em sede de IRS.
            Daí decorrendo, no entendimento do recorrente, o preenchimento, em alternativa, do crime de fraude na obtenção de subsídio ou do crime de fraude fiscal qualificada em sede de IRS, porque, ou o referido valor resultou de subsídio fraudulentamente obtido, e, nessa medida, poderá preencher o tipo legal do primeiro daqueles imputados crimes, ou corresponde a rendimentos por si auferidos e não declarados em sede de IRS, e, nessa medida, preencheu o tipo legal do crime de fraude fiscal qualificada em sede de IRS.
                Pois bem.
            Adiantando já, diremos que não assiste razão ao recorrente.
            Isto porque.
            São diferentes os bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras que preveem e punem os dois crimes em causa imputados ao recorrente - fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal em sede de IRS.
            Com efeito, como se salienta no ac. do TRL, de 12 de abril de 2016, disponível em www.dgsi.pt, a respeito do crime de fraude na obtenção de subsídio“ O bem jurídico protegido pela norma é a economia e a intervenção do Estado nesta área efectuada mediante a utilização de dinheiros públicos. Em segundo plano, protege-se a boa gestão do património público – assim, Eliete Dias/Josefina Fernandes/João Ramos, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume II, UCE, 2011, págs. 115 e 119.”
         Por seu turno, na tentativa de determinação do bem jurídico protegido pelas incriminações fiscais, nas quais se integra o crime de fraude fiscal em sede de IRS imputado nos autos ao recorrente têm vindo a ser identificadas na doutrina portuguesa e estrangeira, e também na jurisprudência nacional, três grandes modelos: funcionalista, patrimonialista e misto.
            A este propósito, veja-se o ac. do STJ, de 21-05-2003, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual “Relativamente aos modelos de organização dos crimes fiscais, tem-se distinguido três: o que centra a ilicitude no dano causado ao erário público, dando relevo na estrutura do ilícito ao desvalor do resultado; o que centra a ilicitude na violação dos deveres de colaboração dos contribuintes com a Administração e, por consequência, na violação dos deveres de informação e de verdade fiscal, dando prevalência ao desvalor da acção; o que se apoia em razões mistas, resultantes da combinação dos anteriores modelos.”     
                O primeiro modelo agrupa um número elevado de teorias, sendo que todas elas têm em comum o facto de recusarem uma configuração patrimonial do bem jurídico tutelado e fazerem uma grande associação daquele às funções que são atribuídas ao imposto. A natureza do bem jurídico protegido aproxima-se dos bens tutelados pelos crimes de falsificação, havendo uma prevalência do desvalor da ação na estrutura do ilícito - cfr. SUSANA AIRES DE SOUSA, in Os Crimes Fiscais: Análise Dogmática e Reflexão sobre a Legitimidade do Discurso incriminador, pag. 69; NUNO POMBO, in A Fraude Fiscal: A Norma Incriminadora, a Simulação e outras Reflexões, pag. 280.
            O segundo modelo atribui ao bem jurídico tutelado uma natureza patrimonial. A infração, neste modelo, surge estruturada como um crime de dano ou lesão cuja consumação exige a inflição de um prejuízo patrimonial à administração fiscal, acentuando-se a importância de ser assegurada a obtenção integral das receitas tributárias, sendo que se coloca o acento tónico no desvalor do resultado na construção do ilícito - cfr. SUSANA AIRES DE SOUSA, in Os Crimes Fiscais, cit., p. 68; NUNO POMBO, A Fraude Fiscal, cit., p. 279.
                Por fim, os defensores do modelo misto fazem uma combinação dos elementos dos dois modelos anteriormente referidos, tentando, deste modo, assegurar a proteção dos valores da transparência e verdade fiscal e também dos interesses patrimoniais – cfr. JORGE FIGUEIREDO DIAS/MANUEL DA COSTA ANDRADE, in “O Crime de Fraude Fiscal no novo Direito Penal Tributário Português (Considerações sobre a Factualidade Típica e o Concurso de Infracções), in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Volume II, pag. 420.
                Pode, pois, dizer-se que, enquanto o bem jurídico protegido com a incriminação prevista para o crime de fraude na obtenção de subsídio é a confiança necessária à vida económica e à correta aplicação dos dinheiros públicos no domínio da economia, já o bem jurídico protegido com a incriminação prevista para o crime de fraude fiscal em sede de IRS é a efetiva arrecadação deste imposto por parte do erário público – neste sentido, vide ac. do TRE, de 16.06.2015, acessível in www.dgsi.pt.
            Como se salienta neste aresto, “ É certo que estão em causa, em ambos os casos, dinheiros públicos, mas em momentos e perspectivas completamente diferentes: no momento da sua cobrança pelo Estado, quanto à fraude fiscal; no momento da sua aplicação no apoio à actividade económica, no que se refere à fraude na obtenção de subsídio ou subvenção.
            Nesta conformidade, teremos de concluir pela inexistência de identidade entre os bens jurídicos tutelados por cada um dos tipos de crime em confronto, pelo que os dois se encontram numa relação de concurso efectivo.”
            Foi também este o entendimento sufragado no acórdão recorrido quando nele se adianta que “nem os factos (integradores dos crimes de fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal) são totalmente sobreponíveis (os primeiros referentes à emissão de facturas e recibos não coincidentes com a realidade e à circulação dos valores pagos pela sociedade arguida com fundos públicos; e os segundos referentes à declaração de IRS apresentada sem menção aos valores que fez transitar para a sua esfera pessoal; e à contabilização como gastos de valores que adulteraram o valor do lucro tributável da sociedade A...), nem os crimes que por essa via lhe são imputados se encontram numa relação de concurso aparente.
                Efectivamente, estando em causa crimes que tutelam bens jurídicos distintos, e ainda que se considerasse ser a mesma a conduta do arguido que se subsume àqueles (o que, como se viu, se considera não ser o caso), sempre o preenchimento, com o mesmo comportamento, de tipos penais distintos importaria, nos termos do art. 30.º, n.º 1 do Código Penal, a condenação pelos dois tipos de crime.”
            Perfilhando também este Tribunal de recurso de tais entendimentos, há que concluir que inexiste identidade entre os bens jurídicos tutelados por cada um dos tipos de crime em confronto imputados nos autos ao recorrente, pelo que, se encontram ambos numa relação de concurso efetivo, não assistindo razão ao mesmo ao pretender a sua condenação, em alternativa, ou pelo crime de fraude na obtenção de subsídio ou pelo crime de fraude fiscal em sede de IRS.
            Daí que não possa colher o entendimento sufragado pelo recorrente no seu discurso recursivo, no sentido da sua condenação pelos dois referidos e imputados crimes - fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal qualificada em sede de IRS -  implicar a violação do princípio ne bis in idem, como também foi entendido no acórdão recorrido, com fundamento em que “ nem os factos (integradores dos crimes de fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal) são totalmente sobreponíveis (os primeiros referentes à emissão de facturas e recibos não coincidentes com a realidade e à circulação dos valores pagos pela sociedade arguida com fundos públicos; e os segundos referentes à declaração de IRS apresentada sem menção aos valores que fez transitar para a sua esfera pessoal; e à contabilização como gastos de valores que adulteraram o valor do lucro tributável da sociedade A...), nem os crimes que por essa via lhe são imputados se encontram numa relação de concurso aparente.
            E tal assim é porque:
            Seguindo de perto o entendimento que se deixou adiantado no ac. deste TRC, de 22.03.2023, Proc. nº 122/20.1GCCLD.C1, disponível in www.dgs.pt., do qual somos relatora:
            “O princípio ne bis in idem encontra consagração legal no normativo contido no art. 29º, nº5 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual,“ ninguém ode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime “.
                O ne bis in idem tem, pois, por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo. O que se proíbe é que um comportamento espacio-temporalmente caracterizado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objeto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare possa fundar um segundo processo penal, independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado – vide, neste sentido, o Ac. da Relação do Porto, de 10.07.2013, in www.dgsi.pt.
                Apesar da CRP apenas proibir expressamente o duplo julgamento pelo mesmo facto – ne bis in idem na vertente processual – a proibição abrange ainda a aplicação de novas sanções penais pela prática do mesmo crime – ne bis in idem na vertente penal (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 497). Assim, o princípio é entendido no duplo sentido de proibição de duplo julgamento de uma infracção penal e de proibição de dupla punição, sendo seu fundamento essencial, o de que, para cada acto ilícito só pode existir uma reacção penal.
            O principio ne bis in idem, visa evitar que exista um julgamento plural do mesmo facto de forma simultânea ou sucessiva, funcionando como a excepção do caso julgado e a litispendência que constitui uma emanação daquele mesmo princípio; o conceito necessário de mesmo (identidade) crime tem que ver não apenas com o mesmo agente (sem o qual nunca será o mesmo) e a mesma vítima mas essencialmente com o mesmo facto histórico localizado no tempo e no espaço – neste sentido  Ac. da Relação do Porto  de 25.01.2017, in  www.dgsi.pt.
                O objeto de cada processo penal é definido na acusação respectiva, pela narração de factos que dela consta, ou seja, pelos vários factos singulares que formam, quando aglutinados, o pedaço de vida em que se traduz o facto processual (cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 2ª edição, 1995, Almedina, pág. 97), objeto que deverá manter-se, tendencialmente, inalterado, até ao trânsito da sentença que a tenha apreciado.
                É este pedaço/acontecimento de vida, enquanto pedaço da vida social, cultural e jurídica de um indivíduo que se sujeita à apreciação judicial, portanto, numa perspectiva da valoração e imagem social da conduta, ou seja, na perspectiva de como o homem médio vê e entende o acontecimento submetido a juízo (Frederico Isasca, op. cit., págs. 93 e 240).
                Deste modo, definitivamente julgado o facto típico acusado, a questão que se coloca, como pressuposto da exceptio rei judicatae, é a de precisar a identidade daquele facto e a identidade do “novo” facto a julgar, de modo a concluir se são, ou não, o mesmo facto, a mesma realidade ou acontecimento de vida. E para este efeito, o crime deve considerar-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objeto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico (Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 41). “

            O que, verdadeiramente, importa saber para efeitos de aferir da violação do princípio ne bis in idem é se se está perante a "prática do mesmo crime" ou perante um concurso efetivo de infrações, quer este concurso seja real, quer seja ideal.
            É que, sendo o concurso de crimes efetivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem. E isto, porque as sanções, que cada uma das normas penais que se encontram em concurso prevê, se destinam, cada uma delas, a punir a violação de um bem jurídico diferente; ou, então, porque o bem jurídico, que a mesma conduta viola por mais do que uma vez, é um bem jurídico eminentemente pessoal. Em ambos os casos, não se está em presença do mesmo crime, embora se esteja em presença do mesmo facto ou da mesma ação delituosa. O que vale por dizer de uma mesma conduta naturalística.
            O apuramento da violação do princípio constitucional do ne bis in idem pressupõe que as normas em causa sancionem - de modo duplo ou múltiplo - substancialmente a mesma infração.
            A contrariedade ao princípio ne bis in idem depende assim da identidade do bem jurídico tutelado pelas normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma delas – neste sentido, vide ac. TC n° 244/99, o que não acontece no caso dos crimes de fraude na obtenção de subsídio e de fraude fiscal qualificada sede de IRS, imputados nos autos ao arguido e ora recorrente, pelo que a condenação que lhe foi imposta na decisão recorrida pela prática dos mesmos não viola o principio constitucional ne bis in idem.
            Assim não merece censura a decisão recorrida, quer na parte que respeita ao enquadramento jurídico-penal dos factos a respeito dos crimes de fraude na obtenção de subsídio e de fraude fiscal em sede de IRS, cujo preenchimento dos respetivos elementos, objetivos e subjetivos, se  verifica - o que, diga-se, nem sequer o recorrente questiona, pelo que nos dispensamos de fazer a esse respeito outros considerandos, aderindo ao que nesse particular se sufraga no acórdão recorrido e, ainda, ao que, de forma acutilante, se aduz na resposta ao recurso apresenta pelo Ministério Público junto da 1ª instância -  quer na parte que se refere à condenação do recorrente pela prática de tais crimes, pela verificação de concurso efetivo entre si, donde não decorre, ao contrário do que propugna o recorrente, a violação do princípio ne bis in idem, sendo, por isso, de manter tal condenação.
            Resta, pois, concluir pela improcedência do recurso também neste segmento recursivo.
*
                - Da verificação das exceções de caso julgado e de litispendência relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público em representação do Estado
            Insurge-se, ainda, o recorrente BB … contra o acórdão recorrido na parte deste em que o condenou a pagar ao Estado a quantia de € 250.122,43 (duzentos e cinquenta mil, cento e vinte e dois euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido ao arguido, até efetivo e integral pagamento, por entender que uma vez emitidas as liquidações tributárias, o Serviço de Finanças respetivo é a entidade competente para a execução e cobrança dos valores constantes das referidas liquidações; no caso dos autos, tendo sido proferida sentença, com trânsito em julgado, que fixou os valores tributários devidos na sequência das aludidas liquidações e existindo execução para a cobrança das mesmas, não pode a mesma matéria ser objeto de apreciação e condenação em sede de pedido cível; o Tribunal a quo deveria ter reconhecido a exceção de caso julgado relativamente às liquidações tributárias e impostos em dívida e perante a pendência de execução tributária, reconhecer a litispendência de procedimentos, nos termos do disposto nos artigos 576º e 577º, al. i) do C. P. Civil.
            Sintetiza tal argumentação nas Conclusões L) e M).
             A respeito desta concreta questão, que fora suscitada pela defesa do arguido e ora recorrente BB …, não deixou o tribunal recorrido de sobre a mesma se pronunciar no acórdão recorrido, antes de apreciar o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado, da seguinte forma:
            “ Invoca a Defesa do arguido BB … a inadmissibilidade legal do pedido de indemnização civil, na medida em que a Autoridade Tributária dispõe já, quanto às quantias em causa de título executivo traduzido nas liquidações tributárias subjacentes à instrução de processos executivos tributários, ocorrendo, por isso, litispendência julgado.
                Sucede que, desde logo no respeitante ao IRC de 2014, como decorre do facto dado como provado em 122., não foi instaurada execução fiscal para a sua cobrança o que, como esclareceu a testemunha …, resultou do facto de ter caducado o direito à ou violação do caso
liquidação, pelo que, nesta parte, nem sequer existe título executivo.
                Acresce que, mesmo quanto ao IRS de 2014, não colhem as razões invocadas pela Defesa.
                É que a lei não veda ao credor que já tenha um título executivo, a possibilidade de deduzir pedido de indemnização civil no processo penal contra o mesmo devedor e por valor que se contém nos limites daquele título, apenas determinando que no caso as respectivas custas ficarão a seu cargo, nos termos do artigo 535.º, n.º 1 e 2, alínea c), do Código de Processo Civil.
                Por seu turno, a verificação das excepções de litispendência e caso julgado, ocorrem quanto há identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir. Contudo, enquanto que na execução a causa de pedir documentada pelo título é o incumprimento da obrigação tributária, no pedido de indemnização enxertado no processo criminal a causa de pedir é a responsabilidade civil emergente da prática dos crimes fraude fiscal, pelo que não existe identidade de causas de pedir porque, apesar dos factos serem coincidentes, ocorre diferença de regimes e seus alcances.
                Improcede, pois, a questão prévia suscitada, sem prejuízo de se consignar que o facto de existir a possibilidade legal de a administração fiscal dispor de duas vias de cobrança, uma com base no título executivo por si emitido e outra com base no título executivo civil, não significa que possa haver um duplo recebimento (como efectivamente não ocorreu até ao presente, de acordo com o depoimento de EE.”
                Em consonância com o entendimento que, desta forma, sufragou, ao proceder à apreciação do pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado, que julgou parcialmente procedente, o tribunal recorrido decidiu-se pela condenação do arguido/demandado BB … no pagamento ao Estado do valor global de € 250.122,43, correspondente aos valores que, por força da atuação ilícita do mesmo, a Administração Fiscal deixou de arrecadar (€ 169.662,22 de IRS + € 80.460,21 de IRC), considerando ser apenas este o valor do dano indemnizável no âmbito do pedido de indemnização civil deduzido, em virtude de corresponder ao valor dos impostos que o arguido – por si e em representação da sociedade … – com a prática dos crimes de fraude fiscal, evitou pagar.
            Tal entendimento sufragado pelo tribunal recorrido relativamente à não verificação das exceções de litispendência e de caso julgado invocadas pelo arguido e ora recorrente não nos merece qualquer censura.
            Com efeito, os montantes reclamados em sede de pedido de indemnização civil formulado nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado, em  cujo pagamento veio o arguido a ser condenado no acórdão recorrido, correspondem aos montantes dos impostos (IRS e IRC) que nele vieram a ser considerados em dívida, condenação essa que emerge da prática pelo mesmo dos crimes de fraude fiscal qualificada que lhes vinham imputados, nele também decidida, pelo que, nos termos do artº 71 do CPP, tal pedido podia e devia ser deduzido nos presentes autos e nele ser, como foi, apreciado.
            Não há, nesta situação, qualquer utilização de um meio processual impróprio, já que o processo penal é, nos termos do artº 71º do respetivo Código, o meio idóneo para se conhecer do pedido, que resulte e seja consequência dos crimes praticados pelo arguido e ora recorrente e pelos quais o mesmo foi condenado.
                Não está em causa a análise de dívidas tributárias, mas sim, a apreciação da responsabilidade civil decorrente de dois crimes de fraude fiscal qualificada, pelo que não se coloca a questão da competência material do tribunal para apreciar o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado, a qual resulta, naturalmente, da sua competência própria para dirimir a instância criminal e, por adesão, o pedido civil dela decorrente, nem, também, a da existência de caso julgado.
            Uma coisa são os litígios relativos à liquidação das dívidas tributárias e às execuções de natureza fiscal, cuja competência, evidentemente, compete aos tribunais administrativos e fiscais, outra, bem diversa, é o direito à indemnização decorrente do processo penal cuja apreciação cumpre neste fazer quando para tal é nele deduzido pedido de indemnização civil.
            A causa de pedir que subjaz ao pedido de indemnização civil  deduzido em processo penal é o facto penal ilícito gerador da obrigação de indemnizar, que deve ser conhecida no processo crime por força do princípio da adesão plasmado no Artº 71 do CPP; os processos tributários, incluindo as respetivas execuções, já têm, como seu suporte, uma responsabilidade intrinsecamente tributária, distinta da responsabilidade civil fundada na prática de crime, apesar de uma e a mesma pessoa poder ocupar, aqui, o lugar de contribuinte relapso e ali, a posição de arguido/demandado em processo-crime.
            E tal assim sucede, porquanto, os factos geradores das duas responsabilidades em causa - ainda que se possam traduzir na mesma realidade, como acontece no caso concreto, ou seja, na omissão de entrega ao Estado das quantias devidas a título de imposto de IRS e de IRC-, são substancialmente distintos mesmo que possa haver, total ou parcial concordância dos montantes envolvidos: num caso, a prática de um crime, noutro, o mero incumprimento de uma obrigação contributiva.
            O que se discute nos presentes autos no concernente ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado contra o arguido e ora recorrente BB …, é, apenas e só, a responsabilidade civil do mesmo resultante da prática dos dois crimes de fraude fiscal qualificada que neles lhe vêm imputados e essa responsabilidade civil pode e deve ser apreciada nestes autos, nos termos do artº 71º do CPP.
            A circunstância de poder existir já título executivo para obter a cobrança dessa obrigação contributiva, como acontece no tocante ao IRS (no valor de 169.662,22) – o mesmo não se verificando em relação ao IRC (no valor de € 80.460,21) -  não impede a dedução nem a apreciação do presente pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público.
            A propósito da pendência simultânea de uma ação cível enxertada no processo penal (por infração fiscal ou contra a segurança social) e da cobrança coerciva da mesma dívida em processo de execução fiscal, decidiu-se no ac. do Tribunal da Relação de Évora, datado de 07.11.2017, disponível em www.dgsi.pt, que não existe litispendência entre o pedido cível formulado no processo penal ao abrigo do princípio da adesão e as eventuais execuções fiscais que corram termos contra o mesmo arguido, por não se verificar identidade de pedido nem de causa de pedir, com base na seguinte argumentação, que perfilhamos:
            “ Assim, e a propósito da pendência simultânea dos dois processos (a acção cível enxertada no processo penal e a execução fiscal), considerou-se já em anterior acórdão (que teve a Relatora do presente) não existir litispendência entre o pedido cível formulado no processo penal ao abrigo do princípio da adesão e as eventuais execuções fiscais que corram termos contra o mesmo arguido, por não se verificar identidade de pedido nem de causa de pedir.
                A litispendência é uma excepção dilatória que pressupõe a repetição de uma causa, ocorre quando a causa anterior ainda está em curso (arts 577º- al. i) e 580º do CPC, ex vi art. 4º do CPP), e verifica-se a repetição da causa quando as acções são idênticas quanto aos sujeitos, pedido, e causa de pedir (art. 581.º do CPC). Conforme art. 581º do CPC, há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
                Considerou-se então nesse acórdão (acórdão TRE de 04.06.2013) que nestes casos falha uma identidade da causa de pedir e do pedido, reconhecendo-se embora uma “zona de intersecção” protagonizada pelas contribuições/cotizações devidas à Segurança Social, o que não deixará de desencadear consequências jurídicas, mas noutra sede e a outro propósito.
                Aqui, o pedido cível tem como causa de pedir o facto (penal e civilmente) ilícito, gerador de obrigação de indemnizar. Objecto da causa cível fundada na prática do crime é, pois, o facto ilícito, ao lado do dano, do nexo causal e da imputação daquele ao agente.
                A responsabilidade civil por facto penalmente ilícito é conhecida no processo-crime por força do princípio da adesão (art. 71º do CPP), e o lesado só pode fazer valer os seus direitos em separado perante o tribunal civil nas situações excepcionais previstas no art. 72º nº1 do CPP.
                Já as execuções tributárias pendentes contra o contribuinte relapso – que poderá ou não ocupar, simultaneamente, a posição de arguido/demandado em processo-crime – terão na sua base uma responsabilidade tributária, distinta da responsabilidade civil fundada na prática de crime.
                Como se dá nota no acórdão do TRP de 27 de Maio de 2009 (Rel. Carmo Dias), citando Germano Marques da Silva “nem o RGIT, nem a LGT afastam a regra geral constante dos arts. 483º a 498º do Código Civil, aplicáveis por remissão do art. 129º do Código Penal, porque nunca se referem aos danos emergentes do crime, salvo quando o art. 3, al. c), do RGIT manda aplicar subsidiariamente as disposições do Código Civil. A unidade e coerência do sistema impõem que se distinga a responsabilidade pelo pagamento do imposto (responsabilidade tributária), sendo então aplicável a legislação tributária, nomeadamente, a Lei Geral Tributária, e a responsabilidade emergente do crime, consequência civil resultante da prática do ilícito criminal causador do dano à administração tributária ou à administração da segurança social.”
                Também no acórdão TRP de 20.04.2009, relatado pela agora Adjunta (Rel. Leonor Esteves), se distinguiu “a responsabilidade fundada no incumprimento da obrigação legal, que impendia sobre a entidade empregadora de descontar nas remunerações dos trabalhadores da sociedade arguida as respectivas contribuições obrigatórias para a segurança social e de as entregar à respectiva entidade, e a responsabilidade fundada na obrigação de indemnizar os danos causados pela prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social”.
                Ali também se considerou tratar-se “de realidades diferentes, na medida em que os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação contributiva não são necessária e integralmente coincidentes, obedecendo a fins e regimes próprios. As causas de pedir em que se sustentam são distintas – a responsabilidade civil que pode ser feita valer no processo penal não emerge do incumprimento das obrigações contributivas, mas apenas do facto de a falta de entrega das mesmas constituir um facto ilícito –, podendo ou não haver coincidência, parcial ou total, entre os montantes envolvidos.”
                Em igual sentido, aponta o ac. do STJ, de 11.12.2008, in  www.dgsi.pt, segundo o qual “(…) fundando-se o pedido de indemnização na prática de crime, teria ele de ser deduzido por dependência da acção penal, como decorre do princípio da adesão estabelecido no art. 71.º do CPP, só o podendo ser em separado nos casos previstos na lei, como se acentuou no acórdão deste STJ de 06/01/2005, Proc. n.º 4450/04, da 5ª Secção, Sumários de Acórdãos do STJ, n.º 87, p. 108, de que o presente relator foi um dos adjuntos. Ora, não configura excepção a tal regra o facto de a legislação tributária permitir ao demandante obter o pagamento das quantias em dívida por outros meios, concretamente pela execução fiscal. E mesmo a existência de título executivo não obstaria a que o credor pudesse obter a condenação do devedor por meio do pedido cível, como se tem afirmado em diversa jurisprudência (…).
            Entendimento este, aliás, que está em consonância com o sufragado pelo STJ em relação à dedução de pedido de indemnização civil em processo penal por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, que emana do AFJ 1/213, publicado no D.R. n.º 4, Série I de 2013-01-07.
                Assim sendo, por se entender que não se verificam as invocadas exceções de caso julgado e de litispendência em relação ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado, improcede o recurso também neste segmento recursivo.
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III- Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido BB …, e, em consequência:
1. Confirmar, na íntegra, o acórdão recorrido.
2. Custas relativas ao recurso a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).
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                                                           Coimbra, 10 de julho de 2024
                (Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

                (Maria José Guerra - relatora)
                (Maria José Matos -1ª adjunta)
                 (Maria Teresa Coimbra – 2ª adjunta)