CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA À SEGURANÇA SOCIAL
CRIME POR OMISSÃO
Sumário

I - O bem jurídico tutelado pelo tipo legal do crime de burla tributária à Segurança Social, constante do artigo 87.º do RGIT, é o património público.
II - O crime de burla tributária à Segurança Social é um crime de execução vinculada, uma vez que o seu cometimento tem de se verificar «por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos».
III - São elementos constitutivos do crime o uso de erro ou engano sobre factos, criado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante; determinação da Administração Tributária ou da Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais; que destas atribuições resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
IV - Não obstante a norma não fazer referência expressa a «erro ou engano», é pacífica a sua aceitação enquanto elemento objetivo do tipo porque se exige a criação, na Administração Tributária ou na Administração da Segurança Social, de uma falsa representação da realidade, que é conseguida através de falsas declarações, falsificação, viciação de documento fiscalmente relevante ou outro meio fraudulento.
V - O crime exige um duplo nexo de causalidade: entre as falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outro meio fraudulento, e o erro ou engano sobre factos; entre as atribuições patrimoniais efectuadas pela Administração Tributária ou da Segurança Social e o enriquecimento do agente ou de terceiro.
VI - Sendo entendimento maioritário que o crime de burla comum pode ser cometido por omissão, por uma questão de coerência sistemática também deve ser admitida a prática do crime de burla tributária por omissão.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO

1.1. A decisão

No Processo Comum Singular nº 885/20.... do Juízo Local Criminal de Leiria, foi submetido a julgamento o arguido

… tendo sido :

- Absolvido da prática em autoria material, na forma consumada de dois crimes de burla tributária à Segurança Social na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 87.º, n.º 1 e 2 do RGIT e 30.º, n.º 2, do Código Penal, improcedendo ainda o pedido de declaração de perda de vantagens a favor do Estado Português, formulado pelo Ministério Público.

1.2.O recurso

1.2.1. Das conclusões da assistente Instituto da Segurança Social, IP

Inconformada com a decisão, a assistente interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1 -

2 - Entre 16 de março de 2014 e 18 de abril de 2016 e ainda no período compreendido entre 12 de julho de 2017 e 17 de agosto de 2019, o arguido recebeu subsídio por doença profissional, doença determinante de incapacidade temporária para o trabalho.

3 - Em situação de baixa, cumulou o recebimento do mencionado subsídio com a atividade de exploração do estabelecimento comercial (Ourivesaria) de que era proprietário, tendo declarado rendimentos profissionais e empresariais, para efeitos fiscais.

4 - Ficou provado em 1.ª Instância que o arguido, recebeu da Segurança Social, de indevidamente, “nos períodos de 16.01.2015 a 18.04.2016 e de 12.07.2017 a 17.07.2019, prestações no valor total de 12.200,72€ (doze mil e duzentos euros e setenta e dois cêntimos);

5 - Dispõe o artigo 87.º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, que prevê o crime de burla tributária que:

“Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.”

6 – Tem sido alvo de discussão jurisprudencial e doutrinal a admissibilidade da comissão deste tipo de crime por omissão.

7 - Questão que “in casu” releva porque o arguido não comunicou a cumulação da sua atividade habitual com o recebimento de subsídio de doença.

8 - Debate-se a aplicabilidade do artigo 10.º do Código Penal (CP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, colocando-se especial enfoque na sua parte final quando ressalva da cláusula de extensão da tipicidade dali constante os casos em que o intento da lei é diverso.

9 - Retira-se do artigo 10.º, n.º 1 do CP: “Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”.

10 - É entendimento da aqui Recorrente que a supracitada norma é aplicável quando em causa está o preenchimento do tipo de crime previsto e punido pelo artigo 87.º do RGIT, por força do disposto no artigo 3.º, alínea a) que determina a aplicabilidade subsidiária do Código Penal.

11 - De acordo com o estatuído Decreto-Lei (DL) n.º 28/2004 que estabelece “o novo regime jurídico de protecção social na eventualidade doença, no âmbito do subsistema previdencial de segurança social”, concretamente o artigo 28.º, n.º 2, alínea d), é dever do beneficiário comunicar o “exercício de actividade profissional, independentemente de prova da inexistência de remuneração”.

13 - “In casu” cumpre determinar se, a falta de comunicação por parte do arguido de que se encontrava a desenvolver atividade, é suscetível de preencher o conceito de meio fraudulento, o qual pressupõe a indução de erro ou engano, por meio da violação de um dever de garante que sobre aquele impenderia.

14 - Entende o Recorrente que sim.

15 - Acresce que, o crime de burla tributária é um crime de resultado, cuja consumação está dependente de uma atribuição patrimonial da parte da Segurança Social que determina o enriquecimento do agente, com um correspetivo empobrecimento, com reflexos na prossecução do interesse público, sendo que este fator também se registou.

16 - Estabelece o artigo 1.º, n.º 2 do DL n.º 28/2004, de 4 de fevereiro: “A protecção na eventualidade doença realiza-se mediante a atribuição de prestações destinadas a compensar a perda de remuneração presumida, em consequência de incapacidade temporária para o trabalho.”

17 - Tal como sucede no que concerne à burla comum, prevista e punida (p. e p.) no artigo 217.º, mencione-se a tese subscrita por Sousa Brito com a qual se concorda, que, referindo-se à erradicação da referência ao aproveitamento do erro do sujeito passivo, defende que “significou, no confronto com o n.º 1 do artigo 212.º do ProjePE 1966, uma subordinação da burla por omissão ao regime geral do artigo 10.º do CP e, assim, uma limitação do seu sancionamento aos casos em que o agente se encontra investido num “dever de garante” pela não verificação do resultado.

18 - Nesse enquadramento, prossegue, expondo que além de compatível com o elemento gramatical do n.º 1 do art. 217.º, aquela é “a perspetiva mais adequada no contexto geral da tutela do património constante do CP” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo II, artigos 202.º a 307.º, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, dezembro de 1999, Coimbra Editora).

19 - E não se considera que a intenção da lei tenha sido diversa. A ressalva feita a final no artigo 10.º, n.º 1 do CP não é de verificação automática, posição que encontra apoio nos ensinamentos do Prof. Figueiredo Dias. Antes impõe uma valoração ética e social que, em face do caso concreto, permita concluir pela equiparação entre o desvalor dos comportamentos omissivo e ativo.

20 - A partir da entrada em vigor da Portaria n.º 220/2013, de 4 de julho, a transmissão eletrónica dos certificados de incapacidade temporária mencionada no artigo 34.º do DL n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, levada a cabo pelos serviços indicados no artigo 14.º do mesmo diploma, passou a ser obrigatória, não se alterando, salvo melhor opinião em contrário, a circunstância de o arguido conheceras condições da atribuição do subsídio;

21 - Que cessaria ao abrigo do estabelecido no artigo 24.º, n.º 1, alínea c) do DL n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, especificamente por ter “exercido actividade profissional, independentemente da prova de não existência de remuneração”.

22 - Não cumprindo o dever de comunicação relativo ao exercício das suas funções laborais, o beneficiário, tal como foi dado como provado em primeira instância, conseguiu convencer a Segurança Social da manutenção / atribuição de um subsídio “a que não tinha direito, uma vez que continuou regularmente em exercício de funções e a auferir rendimentos a título profissional”.

29 - Sem conceder, a conduta do arguido não foi omissiva.

Nos termos da Portaria n.º 337/2004, na atual redação, a certificação da incapacidade temporária para efeitos de atribuição do subsídio de doença, depende da emissão de CIT pelos médicos do SNS, e está subordinada a limites temporais de validade de 12 (doze) e de 30 (trinta) dias, consoante de trate de período inicial ou de prorrogação

30 - Assim, o arguido, para se manter em situação de incapacidade temporária para o trabalho, que sabia estar a ser subsidiada mensalmente pela Segurança Social, teve de diligenciar ativamente junto dos serviços do SNS pela emissão de CIT e pela prorrogação da sua validade, uma vez que, perante uma conduta omissiva, o CIT rapidamente caducaria, fazendo cessar o pagamento do subsídio de doença que indevidamente recebeu durante mais de 3 (três) anos.

31 - Por último, refira-se quanto à punibilidade contraordenacional o disposto no artigo 2.º, n.º 3 do RGIT, que estabelece que quando um mesmo facto constituir, em simultâneo, contra-ordenação e crime, o agente é punido por este último, reforçando esta norma o teor do artigo 20.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro que disciplina o Ilícito de Mera Ordenação Social.

                                  


1.2.2 Da resposta do Ministério Público

Respondeu em 1ª instância o Ministério Público, defendendo a total improcedência do recurso, …

1.2.3. O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação foi de parecer que o recurso merece provimento, com a consequente revogação da sentença e a sua substituição por outra que condene o arguido pela prática do crime imputado, nos termos dos arts. 87º do RGIT e 10º do C. Penal, …

1.2.4. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P., foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.

II. OBJECTO DO RECURSO

Assim, examinadas as conclusões de recurso, a questão a conhecer e a decidir no presente recurso é a da verificação do crime de burla tributária à Segurança Social por conduta omissiva do arguido.

III. FUNDAMENTAÇÃO

Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido na primeira instância (transcrição) :

         2.1. Factos Provados
Com relevo para a causa provou-se que:
1. O arguido é beneficiário da Segurança Social com o n.º ...13;
2. Exercia as funções de trabalhador independente, sendo responsável pela exploração do estabelecimento comercial de ourivesaria …
3. Nos períodos compreendidos entre 16.03.2014 a 18.04.2016 e de 12.07.2017 a 17.07.2019, o arguido recebeu prestações de subsidio por doença profissional por incapacidade temporária para o trabalho.
4. Visava a prestação de subsidio compensar a perda de retribuição de trabalho em consequência da sua incapacidade temporária para o exercício do mesmo.
5. Sucede que o dito estabelecimento comercial se manteve sempre em funcionamento desde, pelo menos, 2014.
6. E que, desde 16.01.2015, não tem quaisquer trabalhadores ao seu serviço.
7. Desde 16.01.2015 que o arguido auferiu cumulativamente as prestações referentes ao subsidio de doença profissional e a remuneração pelo exercício das suas funções, que declarou em sede de I.R.S. a título de rendimentos empresariais e profissionais.
8. Devido à sua conduta, o arguido, recebeu da Segurança Social, de forma indevida, nos períodos de 16.01.2015 a 18.04.2016 e de 12.07.2017 a 17.07.2019, prestações no valor total de 12.200,72€ (doze mil e duzentos euros e setenta e dois cêntimos);
9. Com efeito, o arguido continuou a exercer, de forma regular, as funções de comerciante do estabelecimento no referido período, procedendo algumas vezes à sua abertura e fecho, aos contactos com os clientes e fornecedores e realização dos correspondentes negócios, aos pagamentos, à gestão e tomada de decisões efetiva do estabelecimento.
10. Não obstante, pretendeu, o que fez, não comunicar esse facto à Segurança Social e assim ir beneficiando do subsidio em causa nos períodos supra referidos;
11. Por esse meio, logrou convencer a Segurança Social da manutenção atribuição de subsidio a que não tinha direito, uma vez que continuou regularmente em exercício de funções e a auferir rendimentos a titulo profissional.
12. Com efeito, não obstante, obrigatório por lei, o arguido nunca comunicou qualquer facto suscetível de determinar a suspensão ou cessação das prestações, concretamente a retoma das suas funções laborais, nos termos supra descritos.
13. Sucede que no âmbito de ação de fiscalização realizada pela Segurança Social ocorrida no dia 17.07.2019, o arguido encontrava-se no regular desempenho da sua atividade profissional, no interior das instalações do estabelecimento comercial,


2.2. Factos não provados

     2.3. Motivação

2.4. Enquadramento jurídico-penal dos factos provados

O arguido vem acusado da prática em autoria material e na forma consumada, a prática de dois crimes de burla tributária à Segurança Social na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 87.º, n.º 1 e 2 do RGIT e 30.º, n.º 2, do Código Penal.

Sob a epígrafe de “burla tributária”, prevê o aludido artigo 87.º do RGIT,

Trata-se de crime que protege o bem jurídico do património público e que se consuma aquando da indevida atribuição patrimonial que enriquece ilegitimamente o seu agente com o referido património público, sendo assim um crime de dano.

Para a sua consumação importa que estejam verificados os seguintes elementos objetivos do tipo: a) O uso de engano sobre factos por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outro meio fraudulento; b) A determinação da administração tributária ou da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais; c) Das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro;

Do ponto de vista do tipo subjetivo trata-se de crime doloso (bastando o dolo genérico).

Vejamos.

Como decorre do supra referido, a burla tributária surge como um ilícito de execução vinculada, na medida em que a sua consumação depende da verificação de um especial modo de agir, isto é, o uso do erro ou engano tem de ser provocado por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos.

Ora, não decorre da factualidade provada que a atribuição e manutenção do subsidio de doença ao arguido tenha resultado de qualquer erro ou engano provocado por falsas declarações do arguido, falsificação ou viciação de documento (não se provou que o arguido tenha redigido quaisquer requerimentos e que neles tenha falseado ou viciado informações, designadamente clínicas).

O que se prova é uma conduta omissiva do arguido, já que sendo o subsidio de doença uma prestação que não cumula com a remuneração, o arguido tinha um dever legal de comunicar a retoma da atividade profissional nos termos legais desde pelo menos 16.01.2015 - art. 28.º, n.º2 al. d) do Decreto-Lei n.º 28/2004 de 04.02 – comunicação essa que teria determinado a cessação do direito ao subsidio de doença como previsto no art. 24.º al. c) do mesmo diploma, e conduta essa que o arguido omitiu. Não tendo comunicado qualquer alteração, a Segurança social foi pagando o subsídio convencida que o arguido mantinha os requisitos para a sua atribuição, o que não correspondia à verdade e que determinou que o arguido tivesse recebido o subsidio nos termos provados de forma indevida e ilegítima.

Ora, estabelece esse mesmo Decreto-Lei quais as sanções para o incumprimento dos deveres estabelecidos no art. 28.º pelo beneficiário do subsidio.

Refere-se em tal diploma, no seu artigo 30.º, e sob a epígrafe de “incumprimento de deveres” que O incumprimento dos deveres dos beneficiários determina os efeitos previstos no presente diploma, sem prejuízo das sanções contraordenacionais fixadas em lei especial”. Significa isto que, violando o dever de comunicação de estar exercer atividade profissional, existem sanções legais que passam pelo previsto no diploma em apreço (que não prevê o crime imputado nos autos), ou por sanção contraordenacionais fixada em lei especial.

Somos assim remetidos para as sanções contraordenacionais previstas no artigo 230.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social que prevê que “Constitui contraordenação muito grave a acumulação de prestações com o exercício de atividade remunerada contrariando disposição legal específica”, sendo assim, sancionável com a coima prevista no art. 233.º, n.ºs 3 e 4.

Não desconhecemos as divergências doutrinais e jurisprudenciais a propósito da possibilidade de o crime ser imputado a título de omissão (art. 10.º, n.º2 do CP).

Contudo, face ao modo como está recortado o tipo legal de crime em concreto, o art. 87.º do RGIT concordamos com o Ac. do Tribunal da Relação de Évora, Proc. nº 9/06.0TALLE.E1, disponível em www.dgsi.pt (ainda que quanto a outro tipo de subsidio e outro ilícito contraordenacional) …

 Neste sentido também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.01.2011, proferido no processo nº 370/06.7TACBR.C1, disponível em www.dgsi.pt  …

Assim, face ao princípio da legalidade e tipicidade criminal afigura-se-nos não ser admissível sair dos quadros dos elementos desde logo objetivos definidos pelo legislador na lei penal.

Ora, no caso da burla tributária a execução é vinculada. O resultado a que se chega tem que ter sido provocado por um dos modos previstos no tipo legal, ou seja: (i) A prática de factos que consistam em falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos; (ii) Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.

Não vemos assim como preencher este elemento do tipo sem um comportamento ativo do arguido, que se aproveita da circunstância da Segurança social desconhecer a nova realidade de trabalho (retoma da atividade não comunicada), e continua a receber as prestações que lhe foram atribuídas simultaneamente com os rendimentos da atividade profissional exercida, mas sem que tenha encenado ou falseado qualquer situação ou informação.  Trata-se de conduta censurável, ilícita, mas a nosso ver não se subsume ao ilícito criminal imputado

Em suma, a conduta imputada ao arguido não é suscetível de integrar a prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º, nº 1, do RGIT, sendo antes suscetível de integrar o eventual cometimento de uma contraordenação muito grave, p. e p. pelos artigos 230.º e 233.º do artigo 230.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.

         …

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Questão prévia

Antes de entrarmos no mérito do recurso, importa apreciar se assiste razão ao Ministério Público quando invoca que, por não ter indicado as normas jurídicas violadas, deve o recorrente ser notificado para as indicar, sob pena de rejeição do recurso.

De acordo com o artigo 412º, nºs 1 e 2 do C.P.P., sob a epígrafe «Motivação do recurso e conclusões» :

O incumprimento do disposto no nº 2 do preceito transcrito acarreta a notificação do recorrente para que complete as conclusões, no prazo de 10 dias, sob pena de rejeição do recurso – cfr. o nº 3 do artigo 417º do mesmo código.

Não podemos concordar com o recorrido, na medida em que o recorrente, nas suas conclusões 5 e 8 a 10, refere-se às normas que, no seu entender, foram mal interpretadas pelo tribunal recorrido.

4.1.  Verificação do crime de burla tributária à Segurança Social por conduta omissiva do arguido:

Ao arguido era imputada a prática de dois crimes de burla tributária à Segurança Social na forma continuada p. e p. pelo artigo 87º, nºs 1 e 2 do RGIT (aprovado pela Lei nº 15/2001 de 5/6), que dispõe assim :

«1 - Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Se a atribuição patrimonial for de valor elevado, a pena é a de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

3 - Se a atribuição patrimonial for de valor consideravelmente elevado, a pena é a de prisão de dois a oito anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas colectivas.

4 - As falsas declarações, a falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou a utilização de outros meios fraudulentos com o fim previsto no n.º 1 não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.

5 - A tentativa é punível.».

O bem jurídico tutelado por este tipo legal de crime é o património público – cfr. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, 2ª edição revista e ampliada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2018, p. 184.

Na verdade, a norma transcrita inclui entre os elementos típicos o «enriquecimento do agente ou de terceiro», que é consequência do prejuízo patrimonial do Estado.

Ao contrário do que sucede com o crime de fraude fiscal, que protege os deveres de informação com verdade dos cidadãos perante a máquina fiscal - – cfr. Germano Marques da Silva, op. cit., p. 222 -, o crime de burla tributária, tal como a burla comum, pretende proteger o prejuízo patrimonial, no caso, do Estado.

Trata-se de um crime de execução vinculada, uma vez que na descrição do tipo o seu cometimento tem de se verificar «por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos». Neste sentido, ver Carlos Adérito da Silva Teixeira e Sofia Margarida Correia Gaspar, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. II, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 413.

São os seguintes os elementos constitutivos do crime de burla tributária :

- uso de erro ou engano sobre factos, criado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante;

- determinação da Administração Tributária ou da Segurança Social a efetuar atribuições patrimoniais;

- das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.

Neste sentido, ver Paulo José Rodrigues Antunes, in Infracções Fiscais e seu Processo, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2004, pp. 126-127; Germano Marques da Silva, op. cit., p. 184-185; Carlos Adérito da Silva Teixeira e Sofia Margarida Correia Gaspar, op. cit., p. 413; e os seguintes Acórdãos :

- da Relação de Évora de 8/11/2005, processo 1598/05-1, relatado por Fernando Ribeiro Cardoso;

- da Relação de Coimbra de 26/1/2011, processo 370/06.7tacbr.C1, relatado por Eduardo Martins;

- da Relação de Évora de 7/12/2012, processo 312/11.8taabf.E1, relatado por Maria Filomena Soares;

- da Relação de Évora de 28/1/2014, processo 16/12.4tdevr.E1, relatado por Sénio Alves;

- da Relação de Guimarães de 30/11/2015, processo 2294/10.4tagmr.G1, relatado por João Lee Ferreira.

- da Relação do Porto de 28/5/2014, processo 1152/09.0tdprt.P1, relatado por Lígia Figueiredo; todos acessíveis in www.dgsi.pt.

É certo que o artigo 87º, nº 1 acima transcrito não faz referência expressa a «erro ou engano». Contudo, é pacífica a sua aceitação enquanto elemento objetivo do tipo de burla tributária, pois exige-se a criação, na Administração Tributária ou na Administração da Segurança Social, de uma falsa representação da realidade, que é conseguida através de falsas declarações, falsificação, viciação de documento fiscalmente relevante ou outro meio fraudulento.

A este propósito veja-se Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, in Regime Geral das Infracções Tributárias, 4.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2010, p. 601.

Do erro ou engano deve resultar a determinação da Administração Tributária ou da Segurança Social a efetuar atribuições patrimoniais. Isto é, tal como na burla comum, o cometimento do crime depende da participação da vítima.

Da atribuição patrimonial efetuada pela Administração Tributária ou pela Segurança Social, deve resultar o enriquecimento do agente ou de terceiro. Implicitamente, este enriquecimento pressupõe o prejuízo patrimonial do Estado, mas este não é elemento do tipo.

Mais, tem de se verificar um duplo nexo de causalidade :

- entre as falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outro meio fraudulento, e o erro ou engano sobre factos;

- entre as atribuições patrimoniais efectuadas pela Administração Tributária ou da Segurança Social, e o enriquecimento do agente ou de terceiro.

Depois, no que ao tipo subjectivo de ilícito diz respeito, tem de existir dolo, pois o legislador do RGIT não previu a possibilidade de punição a título de negligência, a qual, nos termos do artigo 13º do C.P., aqui aplicável por via da remissão contida no artigo 3º, alínea a) do RGIT, tem de estar especialmente prevista para que o agente possa ser punido a esse título.

Deste modo, o agente do crime de burla tributária tem de saber e querer induzir a Administração Tributária ou da Segurança Social em erro, de modo a determiná-la a efectuar atribuições patrimoniais, e ainda o seu enriquecimento ou o de terceiro.

Nas palavras de Susana Aires de Sousa, in Os crimes fiscais. Análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 110, «…este crime é um crime de dano, cuja consumação exige, ao nível do tipo objectivo o enriquecimento do agente ou de terceiro; elemento típico que, tratando-se de um crime doloso, terá que ser representado pelo agente para o preenchimento da ilicitude típica».

Estamos perante um crime comum, que pode ser cometido por qualquer pessoa, ou seja, não se exige nenhuma qualidade especial – como a de sujeito passivo, contribuinte, beneficiário - ao agente. Aliás, a relação tributária entre o agente do crime e a Fazenda Pública ou a Segurança Social «…pode ser meramente aparente, e nada impede mesmo que tal aparência tenha sido propositadamente criada pelo agente com o intuito de obter um enriquecimento ilegítimo» - cfr. João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, in Direito Sancionatório Tributário, anotações ao regime geral, Almedina, 2020, p. 714.

E trata-se de um crime de resultado, «…demandando a sua consumação a existência de um enriquecimento consubstanciado numa vantagem ilícita conseguida por meios ilícitos – tipificado como um crime de burla especial, em que o processo típico é de execução vinculada, com previsão de elementos integradores mais formais e resultando da solução normativa adotada que a medida da pena depende do valor da atribuição patrimonial» - cfr. o Acórdão da Relação de Évora de 8/3/2022, processo 496/18.4t9evr.E1, relatado por Maria Clara Figueiredo, in www.dgsi.pt.

A decisão recorrida absolveu o arguido dos crimes que lhe eram imputados, por considerar não estarem preenchidos os respectivos elementos típicos, considerando :

«Ora, não decorre da factualidade provada que a atribuição e manutenção do subsidio de doença ao arguido tenha resultado de qualquer erro ou engano provocado por falsas declarações do arguido, falsificação ou viciação de documento (não se provou que o arguido tenha redigido quaisquer requerimentos e que neles tenha falseado ou viciado informações, designadamente clínicas).

O que se prova é uma conduta omissiva do arguido, já que sendo o subsidio de doença uma prestação que não cumula com a remuneração, o arguido tinha um dever legal de comunicar a retoma da atividade profissional nos termos legais desde pelo menos 16.01.2015 - art. 28.º, n.º2 al. d) do Decreto-Lei n.º 28/2004 de 04.02 – comunicação essa que teria determinado a cessação do direito ao subsidio de doença como previsto no art. 24.º al. c) do mesmo diploma, e conduta essa que o arguido omitiu. Não tendo comunicado qualquer alteração, a Segurança social foi pagando o subsídio convencida que o arguido mantinha os requisitos para a sua atribuição, o que não correspondia à verdade e que determinou que o arguido tivesse recebido o subsidio nos termos provados de forma indevida e ilegítima.»

Não deixa, porém, o tribunal recorrido de fazer referência à Jurisprudência divergente quanto à possibilidade de este crime ser cometido em termos omissivos, citando em apoio da tese que adoptou, o Acórdão da Relação de Coimbra de 26/1/2011, processo 370/06.7tacbr.C1, relatado por Eduardo Martins, acrescentando nós ainda os Acórdãos da Relação de Évora de 8/11/2005, processo 1598/05-1, relatado por Fernando Ribeiro Cardoso, in www.dgsi.pt,  de 7/12/2012, processo 312/11.8taabf.E1, relatado por Maria Filomena Soares, in https://jurisprudencia.pt, e de 28/1/2014, processo 16/12.4tdevr.E1, relatado por Sénio Alves e da Relação de Guimarães de 30/11/2015, processo 2294/10.4tagmr.G1, relatado por João Lee Ferreira, ambos in www.dgsi.pt.

Em sentido contrário, temos outra Jurisprudência, como sejam os Acórdãos da Relação de Évora de 8/1/2013, processo 1298/11.4taabf.E1, relatado por Sérgio Corvacho, da Relação do Porto de 28/5/2014, processo 1152/09.0tdprt.P1, relatado por Lígia Figueiredo, da Relação de Lisboa de 22/4/2015, processo 3122/11.9t3snt.L1-3, relatado por Jorge Langweg, e da Relação de Évora de 3/11/2015, processo 8/12.3tafal.E1, relatado por Alberto Borges, todos acessíveis in www.dgsi.pt; além da seguinte doutrina: Paulo Rodrigues Antunes, in Infracções Fiscais e seu processo, 2ª edição, Coimbra, Almedina, p. 127; e a Dissertação de Mestrado de Ana Mónica Salvador de Manuel sob o título «Burla Tributária por Omissão ?», Universidade Católica Portuguesa, Lisboa Março de 2017.

Seguindo de perto o recente Acórdão da Relação de Évora de 8/3/2022, processo 496/18.4t9evr.E1, relatado por Maria Clara Figueiredo, in www.dgsi.pt, diremos que a falta de referência, no artigo 87º, nº 1 do RGIT, ao «aproveitamento, pelo arguido do erro ou engano em que se encontra a Administração Tributária ou a Segurança Social» não invalida a possibilidade de cometimento do crime por omissão, ao abrigo do disposto no artigo 10º do C.P..

Na verdade, este preceito é aplicável subsidiariamente aos ilícitos criminais previstos no Regime Geral das Infracções Tributárias, dado o que dispõe o artigo 3º, al. a) deste último.

Ora, estabelece aquele artigo 10º que:

«1- Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.

2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.».

São três os requisitos que este artigo estabelece para equiparar a omissão à acção:

- estarmos perante um crime de resultado;

- não ser outra a intenção do legislador; e

- recair sobre o agente um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado.

Que o crime de burla tributária é um crime de resultado, já ficou explanado atrás.

Relativamente à intenção do legislador quanto à equiparação da omissão à acção, temos por seguro que o artigo 87º, nº 1 do RGIT contém um elenco tão só exemplificativo do que sejam «meios fraudulentos». Na realidade, ao lado das «falsas declarações» e da «falsificação ou viciação de documento», temos «outros meios fraudulentos» que o legislador não especificou.

Deste modo, há que chamar à colação as condutas que integram a fraude (fiscal ou contra a Segurança Social) . Ora, quer o artigo 103º, al. b), quer o artigo 106º do RGIT (este, pela remissão do seu nº 2), incluem como conduta típica a «ocultação de factos … que devam ser revelados ».

Por outro lado, não acompanhamos o argumento – utilizado pelo tribunal recorrido e pelos defensores da tese da inadmissibilidade da burla tributária por omissão – de que a conduta do arguido integra apenas uma contra-ordenação .

É que, violando a mesma conduta, bens jurídicos penais e contraordenacionais, há que aplicar o artigo 2º, nº 3 do RGIT, o qual, à semelhança do que prescreve o artigo 20º do Regime Geral das Contra-ordenações (DL. 433/82 de 27/10), estabelece que «Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, o agente será punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação.».

Mais, actualmente, o entendimento maioritário vai no sentido de que o crime de burla comum pode ser cometido por omissão – cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo II, Coimbra Editora, p. 307-309; Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 18ª edição, Coimbra, Almedina, p. 738 e ss; Miguez Garcia e Castela Rio, in Código Penal Parte Geral e especial com notas e comentários, 2015, 2ª edição, Almedina, p. 961 e 86.

Deste modo, por uma questão de coerência sistemática, também deve ser admitida a prática do crime de burla tributária por omissão.

Em suma, o desvalor da omissão e da acção são equiparados, pelo que não vemos que o legislador tenha pretendido arredar a possibilidade de este crime ser cometido por omissão.

No que toca ao dever de garante, isto é, ao dever jurídico que pessoalmente obrigue o agente a evitar o resultado, concordamos com Eduardo Correia, in Direito Criminal, tomo I, Livraria Almedina Coimbra 1971, p. 303, «…um mero dever moral … não é suficiente para fundamentar a equiparação da omissão à acção, … Seria, pois, necessário que existisse, para alguém, o especial dever jurídico de ser garante da não produção de um certo evento».

O legislador não concretizou os concretos deveres de garante pressupostos por esta norma, cabendo à doutrina e à jurisprudência a sua delimitação.

No caso em apreço, a posição de garante do arguido decorre do disposto no artigo 28º, nº 2, al. d) do DL. 28/2004 de 4/2 que estabelece como dever dos beneficiários abrangidos pelo regime de protecção na doença, comunicar à Segurança Social «O exercício de actividade profissional, independentemente de prova da inexistência de remuneração».

É que, de acordo com o artigo 24º, nº 1, al. c) do mesmo diploma legal, o direito ao subsídio de doença cessa desde que o beneficiário tenha exercido actividade profissional, independentemente da prova de não existência de remuneração.

 Voltando agora a nossa atenção para o caso em apreço, verificamos que se apurou que :

- O arguido pretendeu não comunicar à Segurança Social o exercício das funções de comerciante, para assim ir beneficiando do subsídio de doença.

- Dessa forma, logrou convencer a Segurança Social da manutenção da atribuição de subsídio a que não tinha direito.

- O arguido agiu de forma livre e consciente, para receber cumulativamente o subsídio por doença e rendimentos pelo exercício de funções laborais, enriquecendo-se com as prestações indevidamente recebidas da Segurança Social e causando o correspondente prejuízo patrimonial, a que sabia não ter direito, o que representou.

Simultaneamente, não resultou provado que (alínea e) o arguido tenha agido com o propósito de falsear informações que prestava à Segurança Social, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Ou seja, atenta a factualidade provada e não provada – que se impõe a este foro, na medida em que não foi impugnada pelo recorrente, nem se verifica qualquer um dos vícios decisórios previstos no artigo 410º do C.P.P., que são de conhecimento oficioso –, não se verifica a consciência da ilicitude.

Nitidamente, o elemento subjectivo dos tipos legais de crime inclui-se nos «factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena», pois «Só é punível o facto praticado com dolo, ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência» (artigo 13º do C.P.).No caso, estamos em face de um tipo necessariamente doloso.

Embora se possa controverter se o dolo é inerente à prática do facto, temos por certo que o mesmo deve ser expressamente dado como provado, para poder ser relevado. A ideia de um «dolus in re ipsa», que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção, é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo – cfr. Figueiredo Dias, in Revista de Legislação e Jurisprudência, 105, pg. 142.

O dolo está legalmente definido no artigo 14º do C.P., sendo que, pese embora se desdobre em três modalidades, pressupõe o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.

Nos crimes dolosos, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe, tradicionalmente, (cfr., neste sentido, Tereza Pizarro Beleza, in Direito Penal – Lições Policopiadas, Vol. II, AAFDL, pág. 181 e Cavaleiro Ferreira, in Lições de Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Editorial Verbo, 1992, pág. 282 e segs.) o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente – o elemento intelectual ou cognitivo e o elemento volitivo.

Já para Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, p. 350, o dolo é conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, mas também expressão de uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal (elemento emocional).

O elemento intelectual pressupõe o conhecimento (previsão ou representação), por parte do agente, dos elementos constitutivos do tipo objectivo do ilícito.

O elemento volitivo consiste na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico.

O elemento emocional traduz-se na consciência da proibição legal.

Aqui chegados, importa trazer à colação o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, publicado no Diário da República n.º 18/2015, Série I, que fixou a seguinte Jurisprudência :

«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.».

Quanto ao conhecimento de que a conduta é proibida e punida por lei, ou seja, de forma um pouco simplista, à consciência da ilicitude, o Supremo Tribunal de Justiça, no aludido Acórdão, distingue os casos em que a relevância axiológica é pouco relevante, em que «faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo», dando como exemplo o direito contra-ordenacional e o direito penal secundário; das incriminações de direito penal relativamente a bens jurídicos cuja protecção está absolutamente solidificada na sociedade. 

Assim, escreveu-se : «Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significação da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que actuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, actuou ou não com conhecimento da proibição legal, isto é, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efectivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg.».

No caso em apreço, a mera factualidade objectiva e os factos acima transcritos, inerentes ao elemento subjectivo – que o arguido pretendeu não comunicar à Segurança Social o exercício das funções de comerciante, para assim ir beneficiando do subsídio de doença; que dessa forma, logrou convencer a Segurança Social da manutenção da atribuição de subsídio a que não tinha direito e que agiu de forma livre e consciente, para receber cumulativamente o subsídio por doença e rendimentos pelo exercício de funções laborais, enriquecendo-se com as prestações indevidamente recebidas da Segurança Social e causando o correspondente prejuízo patrimonial, a que sabia não ter direito, o que representou – são insuficientes para afirmar que o arguido conhecia, necessariamente, o desvalor da sua conduta, sendo que até resultou não provado que o recorrente soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Um dos exemplos de falta de consciência da ilicitude encontramo-lo elencado no Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de Paulo Pinto de Albuquerque, 5ª edição atualizada, UCE, p. 185, como sendo o erro sobre a existência de um dever de garante na omissão.

Neste quadro, não se encontrando demonstrado na sentença recorrida um dos elementos essenciais do tipo de crime, pois não consta da matéria de facto assente como provada que o arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, improcede o recurso interposto, mantendo-se a sua absolvição, embora por motivo diverso do considerado pela primeira instância.

Isto, na medida em que tal falta de consciência da ilicitude não poderá ser considerada censurável, uma vez que é juridicamente discutível a ilicitude da conduta concreta do arguido, como se verifica pelas diferentes posições assumidas pela primeira instância e por este foro.

Deste modo, por força do nº 1 do artigo 17º do C.P., a mesma fundamenta a ausência de culpa .

V. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 2 UCs – cfr. o artigo 515º, nº 1, al. b) do C.P.P..

Coimbra, 10 de Julho de 2024


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(Helena Lamas - relatora)



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(Rosa Pinto)



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(Maria Teresa Coimbra – voto a decisão)