RENOVAÇÃO DA PROVA
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
LEGALIDADE URBANÍSTICA
ACTO ADMINISTRATIVO
Sumário

I - O erro notório na apreciação da prova examina-se através da análise do texto e o erro de julgamento da matéria de facto analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas, do que resulta a formulação de um juízo que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto.
II - A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em primeira instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo.
III - Conforme resulta do artigo 151.º, n.º 1, alínea g), do Código do Procedimento Administrativo, a assinatura do autor do acto administrativo é uma das menções obrigatórias que dele devem constar, determinando a sua falta a inexistência do acto.
IV - O crime de desobediência, do artigo 100.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, e 384.º do Código Penal, protege, tal como nos demais crimes contra a autoridade pública, a autonomia intencional do Estado, de uma forma particular a não colocação de entraves à atividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

Mediante sentença datada de 27.02.2024 proferida no processo n.º 179/21.... do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra (Juízo de Competência Genérica de Penacova), foi decidido condenar os arguidos A..., Lda e AA como autores, na forma consumada de 1 (um) crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 100.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, e dos artigos 11.º, n.º 2, al. a), e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à razão diária de € 120,00 (cento e vinte euros), o que perfaz o montante global de € 7.200,00 (sete mil e duzentos euros) e na pena de 60 (sessenta) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de € 360,00 (trezentos e sessenta euros), respetivamente.

Inconformados recorreram os arguidos, formulando as seguintes conclusões:

«CONCLUSÕES:

4- O recorrente AA considera erradamente julgados os factos dados como provados em relação à sua pessoa.

5- Em obediência ao disposto no artigo 412.º, n.º 3, al. a) do Código de Processo Penal, o recorrente AA considera não ter sido dada como provada os factos constantes nos pontos 6, 7, 8, 10, 11, 12 e 13 da matéria de facto provada.

6- Em cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.º 3, al.b) do Código de Processo Penal, considera o recorrente AA que as provas que impõem uma decisão diversa são os documentos a: fls.6 a 19 (processo de obras), fls.20 a 23vº (auto de embargo de obras com registo fotográfico), fls. 360 (comunicação), fls. 361 (documento CTT), fls. 375 (comunicação), fls.376 (documento CTT), fls. 377 (aviso de recepção), fls. 155 a 157 e documento extraído da aplicação MyDoc Win constante da ref.ª 8649431 de 06-02-2024.

7- O recorrente AA entende que não se encontra minimamente demonstrado que este tenha recebido, e, por isso, tomado conhecimento, de que foi determinado embargo da obra de construção de um pavilhão num terreno sito na Rua ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... (...) sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03, e que o mesmo tenha sido ordenado, conforme é legalmente exigido.

8- Razão pela qual, entende que, não se mostram devidamente preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de desobediência, pelo que se impõe a sua absolvição.

9- Da análise da prova documental produzida percebe-se que não estão preenchidos todos os elementos do tipo do crime quanto ao arguido AA, pessoa singular.

10- Em momento algum ocorreu ordem expressamente dirigida junto do arguido AA, na sua condição pessoal, ou seja, não recebeu qualquer ordem e ou advertência por parte de quem quer que seja.

11- Resulta à saciedade dos autos, que todas as cartas/ofícios/despachos/auto de embargo têm apenas como destinatário a sociedade Arguida “A..., Lda.”, que naturalmente age através do seu legal representante (fls.6 a 19, fls.20 a 23vº, fls.360 a 361 e fls. 375 a 377).

13- O arguido AA não foi pessoalmente notificado do despacho de embargo de obra da edificação a ser executada sem a necessária licença administrativa e remodelação de terrenos, a ser levada a efeito no prédio, sito na Rua ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., sob o artigo n.º ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03, e lá inscrito a favor de A... Lda, exarado na informação técnica n.º 2928/2021, no dia 30 de setembro de 2021, com os fundamentos de facto e de direito constantes na referida informação técnica.

14- O arguido AA não foi pessoalmente notificado do despacho de posse administrativa nº87/2021, exarado a 20/10/2021, com os fundamentos de facto e de direito nele constantes. Atente-se à promoção do Ministério Público a fls. 137 a 139, notificada à Câmara Municipal ..., conforme ref.ª:91910276, a fls. 141, pela qual se solicita o envio de cópia da carta registada com aviso de recepção, contendo a notificação, da posse administrativa, ao arguido AA e à sociedade arguida A..., Lda, nos termos do artigo 107º, nº2 do RJUE (conforme disposto na al.d) da notificação). Na resposta a tal notificação, a Câmara Municipal ... somente juntou a fls. 375, 376 e 377, a notificação enviada à sociedade arguida relativo ao despacho de posse administrativa.

15- Pelo exposto, não se encontra verificada a imposição legal de o destinatário ter tido conhecimento da ordem e que, ao não a cumprir estava a cometer um crime de desobediência, neste sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2022, processo nº 547/20.2T9VLG.P1, relatado pelo Desembargador Paulo Costa.

16- Pelo que, impõe-se alterar-se a matéria fática quanto ao arguido AA.

17- Em face do exposto, não se pode imputar ao arguido AA a prática de qualquer crime de desobediência, pelo que a sua conduta deve ser excluída dos factos dados como provados nos pontos 6., 7., 8., 10., 11., 12., e 13.

18- E tendo presente o enquadramento jurídico supra referenciado, o recorrente AA tem de ser absolvido da prática de um crime de desobediência.

19- A recorrente A..., Lda considera erradamente julgados os factos dados como provados em relação à sua pessoa.

20- Em obediência ao disposto no artigo 412.º, n.º 3, al.a) do Código de Processo Penal, a recorrente A..., Lda considera não ter sido dada como provada os factos constantes nos pontos 6, 7, 8, 10, 11, 12 e 13 da matéria de facto provada.

21- Em cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.º 3, al.b) do Código de Processo Penal, considera a recorrente A..., Lda que as provas que impõem uma decisão diversa são: o depoimento da testemunha BB, prestado a 30.01.2024 e gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, H@bilus Media Studio, o qual se iniciou pelas 15h19 e terminou pelas 16h08s e os documentos a: fls.6 a 19 (processo de obras), fls.20 a 23vº (auto de embargo de obras com registo fotográfico), fls. 116 a 122 (despacho de delegação e subdelegação de competências), fls. 360 (comunicação), fls. 361 (documento CTT), fls. 375 (comunicação), fls.376 (documento CTT), fls. 377 (aviso de recepção), fls. 155 a 157 e documento extraído da aplicação MyDoc Win constante da ref.ª 8649431 de 06-02-2024.

22- A recorrente A..., Lda entende que não se encontra minimamente demonstrado a existência do despacho de embargo da obra de construção de um pavilhão num terreno sito na Rua ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... (...) sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03, e que o mesmo tenha sido ordenado, conforme é legalmente exigido.

23- Razão pela qual, entende que, não se mostram devidamente preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de desobediência, pelo que se impõe a sua absolvição.

25- Nos termos do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, «[o] desrespeito dos actos administrativos que determinam qualquer das medidas de tutela da legalidade urbanística previstas no presente diploma constitui crime de desobediência, nos termos do artigo 348.º do Código Penal.» Para tais efeitos, constituem medidas de tutela da legalidade urbanística, designadamente, o embargo, previsto no artigo 102.º- B do referido diploma legal, e a posse administrativa e execução coerciva, prevista no artigo 107.º do mesmo diploma legal.

26- Do preenchimento do tipo do crime de desobediência, dispõe o artigo 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal que quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples. Porquanto de relevo no caso concreto, importa igualmente reter que, de acordo com o artigo 11.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, as pessoas colectivas e entidades equiparadas são responsáveis pelo crime previsto no artigo 348.º, quando cometidos em seu nome ou por sua conta e no seu interesse directo ou indirecto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança.

27- Em causa está o interesse administrativo do Estado em garantir a obediência aos mandados legítimos da autoridade em matéria de serviço e ordem pública.

28- O crime de desobediência é um crime de facere que determina um dever de ação ou omissão.

29- São elementos objetivos (e comutativos) do tipo do crime, os seguintes:

a) a existência de ordem ou mandado de autoridade ou funcionário, na aceção do art. 386° do Código Penal, impondo uma determinada conduta, um dever de ação ou omissão;

b) a sua legalidade material e formal;

c) a competência de quem a emite;

d) a comunicação regular da ordem ao destinatário;

e) a cominação não legal, mas expressa da autoridade da ordem ou mandato a conferir à conduta transgressora o caracter de desobediência;

f) o conhecimento pelo agente da ordem ou mandado.

30- Numa interpretação a contrario da lei, facilmente se conclui não ser devida obediência a ordens ou mandados ilegítimos, ainda que emanados da autoridade competente e regularmente comunicados.

32- Da análise da prova documental produzida e elencada na motivação da sentença, não vislumbramos nenhum despacho de embargo de obra.

33- O despacho de embargo de obra constitui um ato administrativo, e como tal sujeito ao cumprimento de determinadas regras, conforme se dispõe no Código de Procedimento administrativo.

34- Tratando-se o despacho de embargo de obra de um acto administrativo tal como o define o artigo 148.º do Código de Procedimento Administrativo, o texto “telegráfico” ínsito no «(2) Movimentado no dia 30/09/2021 11:16, efetuado pela Sra Vereadora CC, que resulta do print do MyDoc Win, junto aos autos a fls.155 a 157 e com a ref.ª 8649431 de 06-02-2024, não configura um ato administrativo.  O texto: «Despacho: Atendendo ao reportado: [/] 1. Determino o Embargo imediato da Obra (Eng. BB e Polícia Municipal) […]», exarado digitalmente pela Sr.ª Vereadora CC, em 30-09-2021, às 11 horas e 16 minutos, no documento extraído da aplicação MyDoc Win, não constitui o despacho de embargo da obra porque não corresponde às exigências legais quer do ponto de vista substantivo quer do ponto de vista formal, não revestindo o mesmo as regras e a forma que se exige expressamente de um ato administrativo.

35- Pelo que, a contrário da conclusão alcançada pelo tribunal a quo, não se pode concluir pela verificação da factualidade inscrita no ponto 4 da matéria de facto.

36- Pelo que, e a contrário do considerado pelo tribunal a quo, não se pode aceitar como válido que um print extraído da plataforma eletrónica de gestão documental camarária, designado por – MyDoc Win Gestão Documental/Município ..., junto a fls.155 a 157 e, igualmente, constante da ref.ª 8649431 de 06-02-2024, seja o despacho de embargo de obra, considerado-o prova bastante da sua existência e que o mesmo haja sido legitimamente proferido.

37- O MyDoc Win constitui apenas uma plataforma de gestão documental utilizada pelo Município ..., onde fica registado todo o tipo de movimentos realizados, não podendo aceitar-se que as informações nela relacionadas configurem e constituam expressamente atos administrativos, proferidos no exercício de poderes jurídico administrativos, que visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual.

38- Não existe despacho de embargo de obra em suporte documental e autónomo nem tampouco foi o mesmo ordenado, conforme é legalmente exigido

39- Não foi despiciendo que o Digníssimo Procurador, em sede de inquérito, por 2 (duas) vezes, mandou promover junto do Município ... pela junção, aos autos, do despacho que determinou o embargo da obra, conforme fls. 76 a 79 e fls. 137 a 139.

40- Nas respostas apresentadas pelo Município ..., nunca veio a ser apresentado qualquer despacho de embargo de obra, conforme fls.105 a 122 e 153 a 163v. A fls. 105 a 122 vieram apresentar uma certidão a atestar o despacho de embargo exarado. A fls. 153 a 163v.vieram apresentar print extraído da aplicação MyDoc Win.

41- Atenta a prova documental produzida nos autos, se o tal despacho de embargo de obra existisse, na legalidade material e formal que a lei determina, não teria tido a Sra Vereadora necessidade de certificar por certidão, o despacho de embargo imediato da obra, por ela própria exarado na informação técnica nº2928/2021, determinado no dia 30/09/2021, junto aos autos a fls.113.

42- Para além da legalidade material e formal do ato administrativo acima abordada, no caso sub judice, coloca-se igualmente a questão ab initio relativamente a uma ordem ou mandado legítimo, derivado ou emergente directamente de um acto administrativo que lhe subjaz.

43- Tratando-se o despacho de embargo de obra, de um acto administrativo tal como o define o artigo 148.º do Código de Procedimento Administrativo, o despacho da Sra. Vereadora do Pelouro das Obras Particulares é emanado ao abrigo de normas de direito público, visando causar ou produzir efeitos jurídicos na esfera particular quer da sociedade arguida e quer do arguido AA.

44- Para averiguar se tal ordem ou mandado foi emitida por quem tinha legitimidade ou  autoridade para tal – pois provado está que foi a referida Sra. Vereadora que a emitiu (atente-se, por exemplo ao auto de embargo, fls.20 a 23v e à certidão, fls.113) – há que verificar se a esta lhe foi feita a referida delegação de competências ou de poderes nessa matéria, já que a competência para embargar obras é uma competência própria do Presidente da Câmara Municipal, nos termos do artigo 35.º, n.º 2, alínea k) da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, referente ao Regime Jurídico das Autarquias Locais, doravante RJAL.

45- A competência para embargar obras é uma competência própria do Presidente da Câmara Municipal. Ora, a inexistência nos autos de qualquer menção à delegação de poderes por parte do Vice-Presidente que ordenou o embargo, conforme é legalmente exigido, implica a incompetência, ilegitimidade, e nulidade do acto em causa.

46- Dispõe o artigo 44.º do Código de Procedimento Administrativo que a delegação de poderes ou de competência terá obrigatoriamente que ser feita por um “acto de delegação de poderes”, o que significa que esse acto terá necessariamente de ser escrito, o qual, como refere, o artigo 47.º, n.º 1, do mesmo Código, terá de “especificar os poderes que são delegados”.

A lei supre a desnecessidade – de o delegado ter sempre de exibir ou comprovar o acto da delegação que lhe confere os poderes que exercita em nome do delegante – com a exigência necessária de um outro formalismo e que é precisamente a exigência constante dos artigos 48.º e 151.º, n.º 1, al. a), ambos do CPA, ou seja, a de que “O órgão delegado deve mencionar essa qualidade no uso da delegação”.

47- Isto significa que in casu a Sra. Vereadora, tendo delegação de poderes do Presidente da Câmara Municipal, obrigatoriamente em todos e quaisquer dos seus actos que exerça enquanto tal ou nessa qualidade, teria obrigatoriamente que mencionar essa qualidade de delegada.

48- Constituindo o despacho de embargo de obra é um ato administrativo, visando produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta, o mesmo deveria conter as menções obrigatórias, tipificadas no artigo 151.º, nº1 do Código de Procedimento Administrativo, sem prejuízo de outras referências especialmente exigidas por lei:

a) A indicação da autoridade que o pratica e a menção da delegação ou subdelegação de poderes, quando exista;

b) A identificação adequada do destinatário ou destinatários;

c) A enunciação dos factos ou atos que lhe deram origem, quando relevantes;

d) A fundamentação, quando exigível;

e) O conteúdo ou o sentido da decisão e o respetivo objeto;

f) A data em que é praticado;

g) A assinatura do autor do ato ou do presidente do órgão colegial que o emana.

49- Elemento necessário e constitutivo do crime de desobediência é que a ordem seja formal e substancialmente legal ou legítima e ainda que dimane de autoridade ou funcionário competente.

50- No caso sub judice tais requisitos não resultam devidamente preenchidos, no despacho de embargo, nomeadamente:

- não contem a menção obrigatória da delegação ou subdelegação de poderes;

- não identifica adequadamente o destinatário ou destinatários;

- não contem a enunciação dos factos ou atos que lhe deram origem, a fundamentação, o conteúdo ou o sentido da decisão e o respetivo objeto;

- a assinatura do autor do ato.

51- Nos termos do disposto no artigo 151.º, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo, o acto administrativo, in casu- despacho de embargo, deveria obrigatoriamente conter para além da autoridade que o praticou, a menção da delegação de poderes do Presidente da Câmara Municipal, a identificação adequada do destinatário ou destinatários, a enunciação dos factos ou atos que lhe deram origem, a fundamentação, o conteúdo ou o sentido da decisão e o respetivo objeto, a data em que é praticado e a assinatura do autor do ato. O que, no caso dos autos, de todo em todo não existe.

52- O que quer dizer, e no que ao caso sub judice nos interessa, que a ordem ou mandado de embargo da obra, proferida a 30.09.2021 não existe e não provém de autoridade ou órgão competente e, como tal, quer a sociedade arguida quer o arguido AA não lhe deviam ou devem obediência.

53- Ademais se dirá que, o Município ..., através de ofício nº1237/2022, datado de 23/03/2022, com entrada registada no tribunal nº7155533, de 24/03/2022, a fls. 105 e seguintes, respondendo ao solicitado pelo Ministério Público veio juntar:

- a fls.113, como Doc. nº4 – Certidão do despacho exarado pela Sra Vereadora DD, de 30/09/2021, em resposta ao solicitado para remeter despacho que determinou o embargo da obra (despacho exarado pela Sra Vereadora da Câmara Municipal, em 30.09.2021;

- a fls. 116 a 122, como Doc. nº5 – Despacho nº86/2021 de delegação e subdelegação de competências na Sra Vereadora DD, em resposta ao solicitado para remeter o despacho de delegação de competências na Sra. Vereadora, bem como a sua publicação em Diário da República.

54- A Câmara Municipal ... ao responder nos termos em que o fez, através de ofício nº1237/2022, datado de 23/03/2022, com entrada registada no tribunal nº7155533, de 24/03/2022, a fls. 105 e seguintes, ao solicitado pelo Ministério Público a fls. 76 e 77, validou como despacho de delegação e subdelegação de competências na Sra Vereadora DD para a prática do embargo de obra (proferido a 30.09.2021, conforme resulta da certidão, a fls.113), o despacho nº86/2021 de delegação e subdelegação de competências, de 16.10.2021.

55- O despacho nº86/2021 de delegação e subdelegação de competências, de 16.10.2021, é de data posterior ao embargo de obra, de 30.09.2021. Pelo que, a exarar o despacho de embargo a 30.09.2021, sustentando-se despacho nº86/2021 de delegação de competências, nota-se, desde logo, a falta do elemento objectivo “ordem legítima”.

56- Sustentando-se a Sra Vereadora no despacho nº86/2021 de delegação e subdelegação de competências para exarar o despacho de embargo de obras a 30.09.2021, carecia a mesma de legitimidade.

57- O embargo exarado pela Sra Vereadora foi realizado na convicção da delegação de poderes constante do despacho nº86/2021 de delegação de competências e não do despacho de competências nº31/2017. E tal assim sucedeu que, quando foi solicitado pelo Ministério Público o envio do despacho de delegação de competências na Sra Vereadora, a Câmara Municipal ... veio juntar aos autos o despacho nº86/2021 de delegação e subdelegação de competências, a fls. 116 a 122.

58- Razão pela qual, não poderá assim o tribunal a quo considerar sanada ou ultrapassada qualquer dúvida razoável acerca da verificação da factualidade inscrita no ponto 4 da matéria de facto (despacho de embargo de obra, de 30.09.2021):

- seja considerando a existência de despacho de embargo de obra, validando que o mesmo foi exarado digitalmente pela Sra Vereadora CC em «(2) Movimentado no dia 30/09/2021 11:16, conforme constante do print do MyDoc Win, junto a fls.155 a 157 e também com a ref.ª 8649431 de 06-02-2024 e pelos depoimentos das testemunhas EE, BB, FF;

- seja com a junção aos autos do despacho de competências nº31/2017 (cfr.ref.ª:8649431 de 03.02.2024), junto aos autos após a 1ª sessão de audiência de julgamento, o qual continha a delegação de competências que legitimaria a ordem de embargo.

59- Não sendo a ordem legítima, a desobediência à mesma não acarreta o preenchimento dos elementos objectivos necessários ao preenchimento do tipo de crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 100.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, e dos artigos 11.º, n.º 2, al. a), e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, imputados à sociedade arguida A..., Lda e ao arguido AA.

60- Ou seja, carece a ordem ou mandado dos elementos quer objectivos quer subjectivos tipificados na norma incriminadora do artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

61- Padecendo o despacho de embargo de vício de forma, a montante, resulta inquinado todo o procedimento subsequente, não se convalidando os atos subsequentes.

62- E assim tanto basta para que quer a sociedade recorrente e quer o recorrente AA não possam ser condenados pelo crime de desobediência de que foram acusados.

63- Pelo que, impõe-se alterar-se a matéria fática quanto à sociedade arguida A..., Lda.

64- Em face do exposto, não se pode imputar à sociedade arguida A..., Lda a prática de qualquer crime de desobediência, pelo que a sua conduta deve ser excluída dos factos dados como provados nos pontos 4, 5, 6., 7., 8., 9., 11., 12., e 13.

65- E tendo presente o enquadramento jurídico supra referenciado, quer a sociedade recorrente A..., Lda quer o recorrente AA têm de ser absolvidos da prática do crime de desobediência em que foram condenados.

DO PEDIDO:

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V.Ex.ªs doutamente suprirão, por meio de douto acórdão a proferir por esta Relação, e em face de todo o exposto, deverá o presente recurso da matéria de facto e de direito, vir a ser julgado totalmente procedente por provado, e, por consequência, sendo revogada a sentença na parte de que se recorre, substituindo-a por outra, com procedência dos argumentos invocados, sendo absolvidos os arguidos AA e A..., Lda.

Termos em que requer a V.as Ex.as se dignem conferir provimento ao presente recurso.

É o que se pede e espera desse ALTO TRIBUNAL, Assim se fazendo JUSTIÇA!».

Notificado, respondeu o Ministério Público, concluindo o seguinte:

Nestes termos e nos por V. Ex.as doutamente supridos, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta Sentença recorrida na sua integralidade e nos seus termos, assim se fazendo, INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!».

Nesta Relação, o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, …

Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido exercido o contraditório.

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

ÂMBITO DO RECURSO

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.

Encontra-se, ainda, o tribunal obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos art.º s 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, é são as seguintes as QUESTÕES a resolver:
1. Sindicância da matéria de facto;
2. Enquadramento Jurídico.


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II. Sentença recorrida (transcrita na parte ora relevante)

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            «

(…)

II. FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS

[DA ACUSAÇÃO]

1 – A sociedade arguida A..., Lda. é uma sociedade por quotas, constituída em 08-02-2011, que tem como objecto social, entre o mais, o comércio por grosso de madeira, a exploração florestal e o comércio a retalho de combustíveis para uso doméstico (lenha e madeira).

2 – Desde a data da sua constituição, encontra-se designado como gerente o arguido AA.

3 – A aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03 encontra-se inscrita sob a AP. ...76 de 03-03-2020, figurando a sociedade arguida como sujeito activo.

4 – No dia 30 de Setembro de 2021, mediante despacho de CC, Vereadora da Câmara Municipal ..., e por competência delegada pelo Presidente da Câmara ..., foi determinado o embargo da obra de construção de um pavilhão num terreno sito na Rua ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... (...) sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03.

5 – A sociedade arguida, por se encontrar na posse do referido prédio, e ser responsável pela obra, foi pessoalmente notificada, na pessoa do arguido, enquanto seu sócio-gerente, de tal embargo, no dia 30 de Setembro de 2021, tendo o arguido AA recusado assinar o auto de embargo.

6 – Nesse acto, foram os arguidos devidamente advertidos de que deveriam suspender de imediato os trabalhos, não devendo prosseguir com a obra, durante o tempo necessário para a sua regularização através de licenciamento, tendo sido ainda informados das consequências legais do incumprimento da ordem de suspensão, nomeadamente a eventual prática de um crime de desobediência e de eventual selagem da obra.

7 – Nesse dia e no acto da notificação pessoal efetuada, ficaram os arguidos bem cientes do teor da decisão.

8 – Apesar da advertência que decorre da própria lei e que, não obstante, lhe foi devidamente comunicada, os arguidos, no dia 13 de Outubro de 2021, continuaram com as obras no local identificado em 4, tendo realizado, pelo menos, obras de construção de uma das paredes do pavilhão.

9 – Em virtude dessa violação, e de forma a evitar a continuação das obras pelos arguidos, foi efetuada a selagem do local identificado em 4 por FF, agente graduado da Polícia Municipal ..., BB, chefe de unidade de 4.º grau e GG, técnico superior da Câmara Municipal ..., tendo sido colocado um cadeado e correntes metálicas no portão da entrada principal, e, nas traseiras do local, um arame atado a varões de aço.

10 – Apesar da advertência que decorre da própria lei e que, não obstante, lhe foi devidamente comunicada, o arguido AA, ou alguém por sua indicação, e cuja identidade não se logrou apurar, removeu, de forma não concretamente apurada, o arame atado que se encontrava nas traseiras do prédio, tendo continuado com as obras no referido local, nomeadamente através do enchimento de pilares.

11 – O arguido AA agiu por si, e em nome e no interesse da sociedade arguida A..., Lda., bem sabendo que a referida ordem emanava de autoridade competente, que lhe tinha sido regularmente comunicada, que lhe devia estrita obediência e que o seu não cumprimento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

12 – O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito único e concretizado de não obedecer à ordem legítima que lhe fora regularmente comunicada, pondo em causa a autoridade que lhe estava subjacente, o que representou.

13 - Sabia, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

[OUTROS FACTOS RELEVANTES]

14 – No acto da selagem do prédio, foi afixado um aviso de selagem de obra no portão de entrada no prédio.

[CONDIÇÕES PESSOAIS E ECONÓMICAS]

[ANTECEDENTES CRIMINAIS]

FACTOS NÃO PROVADOS

MOTIVAÇÃO

A convicção sobre a matéria de facto sustentou-se na prova produzida e examinada em audiência de julgamento, em obediência ao preceituado no artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sendo que o arguido não prestou declarações sobre os factos descritos na acusação, quer por si, quer na qualidade de legal representante da sociedade arguida.


O DIREITO APLICÁVEL AO CASO

Enquadramento jurídico-penal


…».


III. Apreciando e decidindo

           

            Insurgem-se os recorrentes contra a sua condenação sindicando a matéria de facto e contestando o enquadramento jurídico, sendo estas as questões a resolver.

            Vejamos.


1. Sindicância da matéria de facto

1.1 A sindicância à matéria de facto pode ser deduzida ao abrigo do disposto no art.º 410.º n.º 2 al. c) do CPP, isto é, enquanto erro notório de apreciação da prova, ou nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do mesmo diploma legal, ou seja, fazendo uso da denominada impugnação ampla da matéria de facto.
Ora, se o erro notório na apreciação da prova se examina através da análise do texto, já o erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto -  Cf. Ac. do TRL datado de 27.04.2022, proc. 342/19.1PBLRS.L1-3 (rel. Des. Florbela Sebastião e Silva), disponível, como os demais a que nos referiremos no presente Acórdão em www.dgsi.pt.

Compulsadas as alegações de recurso constatamos que arguidos recorrentes invocam expressamente o regime previsto no art.º 412.º do CPP.
Ora, a intromissão da Relação no domínio factual, nos termos do art.º 412.º cinge-se a uma intervenção cirúrgica e não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Por isso mesmo impõe-se o cumprimento do ónus, estabelecido no artigo 412º nº 3, do Código de Processo Penal, de proceder a uma tripla especificação (n.º 3 do art.º 412.º do CPP).
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação necessária dos factos individualizados que constam da decisão recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» satisfaz-se com a indicação do conteúdo especifico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provaimpõem decisão diversa da recorrida.
Efetivamente, o recorrente deve explicar por que razão essa prova «impõe» decisão diversa da recorrida, relacionando o especifico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado.
A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em primeira instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. Art.º 430.º do mesmo Código) - Cf. Ac. TRL datado de 06.06.2017, proc. n.º 224/13.0PTFUN.L1-5 (rel. Des. Jorge Gonçalves).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 6 do artº 412º, do CPP) - Ac. TRL datado de 08.10.2015, processo 220/15.3PBAMD.L1-9 (rel. Des. Filipa Costa Lourenço).
As menções previstas no preceito que se analisa – artigo 412º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal – configuram, assim, um dever de primordial importância conexionado com a própria inteligibilidade e concludência do recurso sobre a matéria de facto e não apenas um ónus meramente formal, de relevo meramente secundário.
É que «o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afeta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law» - Cf. Acórdão do TRG, datado de 19.06.2017, proc. 644/15.6PBBRG.G1 (rel. Des. Ausenda Gonçalves).

As conclusões servem, entre outras finalidades, para a delimitação do objeto do recurso, operando a vinculação temática do tribunal superior e definem o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem.

Nos termos da primeira parte do n.º 3 do art.º 417.º do CPP: «Se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada».

Acrescenta o n.º 4 do mesmo artigo que «O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação».

E como assim é, o incumprimento do triplo ónus da especificação seja na motivação, seja nas conclusões implica a rejeição do recurso em matéria de facto sem convite ao aperfeiçoamento (art.º 417.º n.º 4 do CPP).

Dito isto.

1.2 O recorrente AA considera que não devia ter sido julgada provada a factualidade constante dos pontos 6, 7, 8, 10, 11, 12 e 13 da matéria de facto provada, devendo a sua conduta ser excluída dos factos dados como provados nos pontos 6., 7., 8., 10., 11., 12., e 13.

A recorrente A..., Lda entende que não deviam ter sido julgados provados os factos constantes nos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 da matéria de facto provada, devendo a sua conduta ser excluída dos factos dados como provados 4, 5, 6., 7., 8., 9., 11., 12., e 13.

Compulsando a motivação e as conclusões do recurso, verifica-se que (exceto quanto à impugnação do ponto 4) os recorrentes impugnam factos que respeitam a realidades distintas (seja temporalmente, seja quanto aos atos materiais, seja de um ponto de vista subjetivo e objetivo), dispensando-se, no entanto. de efetuarem a necessária conexão entre as provas que, a seu ver, impõem decisão diversa da recorrida, e cada um dos concretos factos impugnados.

Incumprido o ónus da impugnação especificada previsto na alínea b) do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, seja na motivação, seja nas conclusões, rejeitamos, nesta parte, o recurso em matéria de facto (sem convite ao aperfeiçoamento, art.º 417.º n.ºs 3 e 4, a contrario do CPP).

1.3 Com esforço suplementar é certo, consideramos que foi minimamente cumprido o ónus da impugnação especificada quanto ao ponto 4 dos factos provados, cujo teor é o seguinte:

«No dia 30 de Setembro de 2021, mediante despacho de CC, Vereadora da Câmara Municipal ..., e por competência delegada pelo Presidente da Câmara ..., foi determinado o embargo da obra de construção de um pavilhão num terreno sito na Rua ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... (...) sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03».

1.4  Reapreciemos:

1.5 Aqui chegados.

Não há qualquer evidência (e muito menos além da dúvida razoável) de que a determinação de embargo houvesse sido assinada pela senhora Vereadora.

1.7 Ora, o conceito de ato administrativo mostra-se enunciado no artigo 148º do CPA, do qual resulta que se considera como tal «as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta».

Não há decisão sem sujeito e para que possamos afirmar a sua existência, necessário é que a mesma seja imputada a determinado autor, o que exige a respetiva assinatura.

A assinatura do autor do ato administrativo é, aliás, uma das menções obrigatórias que dele devem constar (cfr. artigo 151º, n.º 1, al. g) do CPA), sem a qual não se pode afirmar a sua existência, por não poder reconhecer-se nele uma decisão tomada por um órgão dotado de poderes jurídico-administrativos.

Na ausência de assinatura física ou digital do titular do órgão [artigo 153.º, n.º 1, alínea g) do CPA], o «ato» não poderá ser imputado a um qualquer autor, faltando, portanto, por consequência, um dos elementos constitutivos [o sujeito] do conceito de ato administrativo [artigo 155.º, n.º 2, do CPA].

Por isso se diz que a existência de um ato administrativo depende sempre, pelo menos, do requisito e elemento constitutivo que é a presença de um «autor devidamente identificado e assumido como tal através da sua assinatura». - Cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, datado de 08.01.2021, processo 01501/20.0BEPRT (rel. Luís Migueis Garcia) disponível in www.dgsi.pt, cujo entendimento encontra conforto em Mário Aroso de Almeida, [in Teoria Geral do Direito Administrativo, Temas Nucleares, 2015, 2.ª edição, Almedina, pp. 257].

A este respeito, escrevem Mário Esteves de Oliveira e outros, em anotação ao art.º 123.º do anterior CPA (in CPA anotado, 2.ª edição, pág., 587): «A “assinatura” do acto é a última referência do elenco deste n.º 1 do art.º 123.º – e já vimos que só com ela existe acto ou decisão administrativa: um acto muito perfeito, mesmo manuscrito e em papel timbrado é um nada jurídico, se faltar a assinatura do seu autor».

E por isso se diz que «não existe ato administrativo sem uma autoria devidamente identificada e assumida como tal através da assinatura do autor ou dos autores da decisão» - Cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 12.09.2019, no processo 755/119.9BELSB (rel. Paulo Pereira Gouveia).

Também para Diogo Freitas do Amaral, João Caupers e outros in «Código do Procedimento Administrativo Anotado», pág. 212, a falta de assinatura do autor do ato determina a inexistência do ato.

Podemos, assim, concluir que a falta de assinatura determina a inexistência do próprio ato, retirando-lhe a aptidão para produzir quaisquer efeitos jurídicos.

Perscrutada a jurisprudência publicada podemos verificar, em sede de jurisdição administrativa que, refere-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, datado de 08.01.2021, proferido processo 01501/20.0BEPRT (rel. Luís Migueis Garcia) a um caso em que se mostrava junto um documento designado de “MyDoc Win Gestão Documental/Município de (...) (do qual constava designadamente  (6) Movimentado no dia 29/03/2019 18:01 para Serv: Departamento de Obras Municipais Efectuado por Presidente de Câmara: Motivo: aprovado nos termos propostos) e em que se entendeu que não havia evidência que esta determinação, a existir, pudesse ser imputada» à autoria do Senhor Presidente, «por falta de uma qualquer assinatura, quer física, quer digital, que atestasse o que consta na plataforma de gestão documental». Considerou-se, ainda, que, pese embora aí se identificasse que a determinação aprovado nos termos propostos” tinha sido da «autoria do titular daquele órgão», «nem aí, nem em lado algum do processo administrativo» constava a «respetiva assinatura física ou digital». Foi ainda salientado que, mesmo depois de o Tribunal recorrido solicitar ao Réu que procedesse à junção do despacho este, no seu requerimento viria a sustentar que esse despacho era o que constava do seu Sistema de Gestão Documental.

Neste seu Acórdão datado de 08.01.2021, o Tribunal Central Administrativo do Norte, concluiu que «a falta de assinatura determina a inexistência do próprio acto, retirando-lhe a aptidão para produzir quaisquer efeitos jurídicos».

1.8 No nosso caso.

Compulsado o teor do «ato» que se diz ter sido praticado pela Senhora Vereadora vertido no Ponto 4 dos factos provados, logo se constata que, pese embora aí se identifique que a determinação do «Embargo imediato da Obra (Eng. BB e Polícia Municipal) (…)» tenha por «autor» CC com a «categoria de vereadora», o certo é que nem aí, nem em algum dos documentos no processo, consta assinatura física ou digital da Senhora Vereadora em tal determinação a respetiva.

Uma vez que o pretenso «despacho» de 30.09.2021 não se encontra assinado pela Senhora Vereadora, a quem, consequentemente não é possível imputar a autoria do mesmo, falecendo, desde logo, inelutavelmente, o requisito constitutivo do «sujeito», o que quer dizer que esse “despacho” não consubstancia um qualquer ato administrativo na aceção que se encontra consagrada nos artigos 148.º e 155.º, n.º 2, do CPA.

Como assim é, impõe-se alterar o ponto 4 dos factos provados para os seguintes dizeres:

«4. Conta do print da plataforma de gestão documental camarária, designado por – MyDoc  Win Gestão Documental/Município ..., junto aos autos sob a ref.ª 8649431 de 06-02-2024, sobre a epígrafe - Relatório do documento saída n.º 2928 de 30/09/2021 (a mencionada informação técnica nº2928/2021) - « - (2) movimentado no dia 30/09/2021 11:16 para Func: BB.

Efetuado por Vereadora:327 – CC (CC) Despacho: Atendendo ao reportado:

1. Determino o embargo imediato da obra (Eng. BB e Polícia Municipal)

2. Notifique-se quem se encontre no local, bem como a empresa titular do

PO em curso/proprietária;

3. Instruam-se os autos de contra-ordenação correspondentes às infrações

cometidas (Polícia Municipal e Jurídico);

4. Dê-se imediato e devido conhecimento às entidades externas com competência para os espaços em causa e cujos Pareceres foram recolhidos em sede de licenciamento.

Autor do despacho: CC

Categoria: Vereador

Data do despacho:30/09/2021».

E, por consequência:

- Transita para a factualidade não provada que «No dia 30 de Setembro de 2021, mediante despacho de CC, Vereadora da Câmara Municipal ..., e por competência delegada pelo Presidente da Câmara ..., foi determinado o embargo da obra de construção de um pavilhão num terreno sito na Rua ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... (...) sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03»;

- Do ponto 5 da factualidade provada é eliminada a expressão «de tal embargo» passando a constar «de tal determinação», do ponto 7 da factualidade provada é eliminada a expressão «do teor da decisão», ficando a constar «o que então lhes foi comunicado», do ponto 8 é eliminada a expressão «que decorre da própria lei e que, não obstante, lhe foi devidamente comunicada», do ponto 9 da factualidade provada é eliminada a expressão «Em virtude dessa violação, e», do ponto 10 da factualidade provada é eliminada a expressão «que decorre da própria lei e que, não obstante, lhe foi devidamente»; do ponto 11 da factualidade provada transita para a factualidade não provada «bem sabendo que a referida ordem emanava de autoridade competente, que lhe tinha sido regularmente comunicada, que lhe devia estrita obediência e que o seu não cumprimento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência»;

- Os factos descritos sob os pontos 12. («O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito único e concretizado de não obedecer à ordem legítima que lhe fora regularmente comunicada, pondo em causa a autoridade que lhe estava subjacente, o que representou») e 13 («Sabia, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal») transitam para a factualidade não provada.

Concluímos, nesta parte, pela procedência parcial do recurso em matéria de facto.

2. Enquadramento Jurídico

           

Alterada a factualidade provada, vejamos se, em face dela, se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de crime desobediência, pp. pelo arts.348º, nº1, al.a) do Código de Penal.

Pratica o crime de desobediência, nos termos do artigo 348º n.º 1, do Código Penal:

«quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples;

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação».

Dispõe o artigo 100.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, «[o] desrespeito dos actos administrativos que determinam qualquer das medidas de tutela da legalidade urbanística previstas no presente diploma constitui crime de desobediência, nos termos do artigo 348.º do Código Penal.»

Constituem medidas de tutela da legalidade urbanística, designadamente, o embargo, previsto no artigo 102.º-B do referido diploma legal, e a posse administrativa e execução coerciva, prevista no artigo 107.º do mesmo diploma legal.

Neste tipo legal de crime, tal como nos demais crimes contra a autoridade pública, protege-se a autonomia intencional do Estado, de uma forma particular, a não colocação de entraves à atividade administrativa por parte dos destinatários dos seus atos.

Desobedecer é não cumprir, não respeitar «a ordem ou mandado legítimo, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente».

Trata-se de um crime doloso, nos termos do art.º 14.º do Código.

No caso, a inexistência do ato administrativo de embargo retira-lhe a aptidão para produzir quaisquer efeitos jurídicos.

Não se verificam, portanto, os elementos típicos objetivos da ordem legítima emanada de autoridade competente, além, naturalmente dos elementos subjetivos do tipo.

E como assim é, vão os arguidos absolvidos.


*

IV. DISPOSITIVO

*


Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra julgar procedente o recurso, e em consequência revogar a sentença recorrida, absolvendo os arguidos A..., Lda e AA da autoria na forma consumada de 1 (um) crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 100.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, e dos artigos 11.º, n.º 2, al. a), e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, pelo qual tinham sido condenados.

Sem tributação.


*

(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeira signatária, sendo ainda revisto pelo segundo ebpelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09)

*

            Coimbra

            Alexandra Guiné (relatora)

            José Eduardo Martins (1.º adjunto)

            Ana Carolina Cardoso (2.ª adjunta)