ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL OU NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR FUNDADA NA PRÁTICA DE UM CRIME
ELEMENTO SUBJECTIVO DO CRIME
PROVA POR PRESUNÇÃO
CRIME DE INSOLVÊNCIA DOLOSA
CLÁUSULA DE EXTENSÃO DO TIPO
ADMINISTRADOR DE FACTO
RESPONSABILIDADE CRIMINAL DO TERCEIRO
Sumário

I - As regras da alteração substancial ou não substancial de factos, constantes dos artigos 358.º e 359.º do C.P.P., respeitam exclusivamente aos factos relevantes para a condenação criminal.
II - A obrigação de indemnizar fundada na prática de um crime tem por fonte duas causas de pedir autónomas, a responsabilidade criminal e civil, mas conexas entre si.
III - A presunção judicial permite que, de entre uma categoria de circunstancias e por meio do método indutivo decorrente das regras da experiência comum, se aceda aos factos ocultados, constituindo uma prova legalmente admissível em processo penal, como decorre do artigo 125.º do C.P.P. e que é, nos termos do artigo 127.º, apreciada segundo a livre convicção do julgador.
IV - Os factos que integram o dolo constituem o exemplo mais frequente da prova indirecta ou por presunção, sendo alcançável, na maioria das vezes, através de juízos indutivos do comportamento exterior e visível do agente idóneo a revelá-lo, sendo as circunstâncias e elementos revelados nos actos externos que identificam os vários elementos do dolo, o conhecimento, a vontade e o propósito da actuação do agente, inferindo-se destes actos objectivos conhecidos os actos subjectivos.
V - O crime de insolvência dolosa é um crime de execução vinculada e um crime especifico próprio, na medida em que a ilicitude das acções típicas descritas depende de determinadas qualidades do agente, que o coloca numa relação especial com o bem jurídico protegido, em concreto o devedor cuja insolvência possa ser objecto de reconhecimento judicial.
VI - As condutas previstas no n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal só consubstanciam ilícitos típicos quando realizadas pelo devedor – originário ou derivado do artigo 12.º do Código Penal -, pois é o devedor que detém em exclusivo o poder de lesar ou colocar em perigo os direitos dos seus credores.
VII - O artigo 12.º do Código Penal permite responsabilizar criminalmente quem actua voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, ainda que o tipo de crime exija elementos pessoais que se verificam directamente na pessoa do representado, ou exige que agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.
VIII - Por força da cláusula de extensão do tipo prevista no artigo 12.º do Código Penal a qualidade de devedora da sociedade insolvente, exigida pelo n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal, transmite-se às pessoas singulares que, em nome daquela, exerçam a respectiva gerência ou administração de facto e/ou de direito, podendo ser responsabilizados criminalmente como autores imediatos do crime de insolvência dolosa, assegurando o legislador, desta forma, a tutela do património dos credores.
IX - A questão de saber se o administrador de facto pode ser responsabilizado criminalmente pelos actos voluntariamente praticados em nome sociedade veio a ser resolvida com a introdução, no artigo 227.º, do n.º 5 da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro (actual n.º 3).
X - A responsabilidade criminal do terceiro – aquele que praticar as condutas descritas com o conhecimento do devedor ou em beneficio deste -, não resulta da extensão da qualidade de devedor, mas da autonomia que lhe é conferida pelo artigo 227.º, n.º 2, do Código Penal.

Texto Integral

Relatora: Alcina da Costa Ribeiro
Adjuntos: Maria Alexandra Guiné
Rui Pedro Lima

Acordam, em Conferência na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. A sentença datada de 28 de setembro de 2023 proferida no âmbito destes autos decidiu:

I – Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa agravado, previsto e punido pelo artigo 227.º, n.º 1, al. a), n.º 3 e pelo artigo 229.º-A, ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

II - Suspender na sua execução a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido AA, pelo mesmo período de tempo, condicionada ao pagamento à demandante «A..., Lda», no período da suspensão, da quantia de 2.500,00€, (dois mil e quinhentos euros), documentando o pagamento nos autos. Esta quantia integra o valor da indemnização devida pelo arguido à demandante.

III -  (…)

IV - Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante «A..., Lda», e, em consequência, condenar o arguido AA a pagar à demandante quantia de 17.933,50€, acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista para os juros civis, desde a sua notificação para contestar o pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento.


*

2. Inconformado com a condenação, dela recorre, o arguido, formulando as conclusões seguintes:

B1. Desde logo, a M.ma Juiza, ao fazer apelo aos factos constantes do “pedido de indemnização civil” e que extravazam a mera quantificação dos danos procedeu a uma “alteração do objecto do processo” inadmissível, eivando de nulidade a decisão recorrida nos termos estatuídos no artigo 379.º-1, al. b), por violação do disposto nosartigos 71.º e 74.º, ambos do CPP.º ,

B2. A Senhora Juiza não procedeu a qualquer fundamentação crítica acerca do largo espectro probatório (documental, pericial e testemunhal), constante dos autos e que a determinou à condenação do recorrente, oque envolve a violação do disposto não só no artigo 97.º-4, como no artigo 374.º-2, ambos do CPP,

B3. normas estas que, ao serem, pura e simplesmente ostracizadas, acarretam a nulidade da peça em apreço.

B4. Acresce que se topa, na sentença recorrida, com três erros notórios na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, al. c), do CPP): um relativo ao facto de a B... ser, ou não, credora da C..., Lda. (facto 14 vs facto 15); e os outros dois relativos à capacidade financeira da B... (facto 18 e facto 20 vs 18, 43 e 44). Vejamos:

B5. Relativamente ao primeiro, simplesmente não pode afirmar-se, como o faz a decisão recorrida, que a B..., no período de 2010 a 2012 recebeu da C... mais do que aquilo que lhe facturou e, ao mesmo tempo dizer-se que, naquele hiato temporal, a C... (que até pagara mais do que devido) era devedora da B...;

B6. Outrossim, de forma contraditória, a M.ma Juiza considerou simultaneamente que a B... possuía créditos sobre a D... (empresa não insolvente – o que resulta da circunstancia de tal facto ter sido retirado da pronúncia e alocado aos factos não provados – e com património – facto 7. provado) e que a insolvência da B... foi encerrada por insuficiência da massa (o que pode ter sucedido em virtude de inércia dos intervenientes).

B7. Ainda, nesta sede: o Tribunal a quo afirma, por um lado, que o arguido sabia que a B... não tinha capacidade financeira para pagar à demandante mas, por outro lado, dá como provado que até Junho de 2015 aquela sociedade pagou a esta o montante de € 36.000,00 (mais de metade do valor facturado).

B8. O recorrente tem por incorrectamente julgado, desde logo, o facto 6. Daqueles provados, como resulta, desde logo, da prova  documental aí referida sob A3.1.1. (pág. 12 supra) e, B9. Também, o facto 20, face à prova documental e testemunhal que, em contrário, se invoca ut supra (A3.2.2, pp. 12 a 15);

B10. No que atine aos factos 28 a 30, 54 e 55, relativos ao elementos subjectivo, não flui dos meios de prova carreados para os autos a menor evidência susceptível de estribar a condenação de qualquer dos recorrentes – o que aliás, pode configurar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Com efeito,

B11. A este título, Tribunal a quo invoca a livre apreciação da prova obnubilando esclarecer, de entre o largo acervo probatório carreado, qual ou quais as concretas provas que lhe percutiram o espírito e porquê, em termos decisivos, para a condenação do recorrente (o que vem, aliás, na senda do vício apontado em B2.)

B12. E, a invocação das regras da experiência comum como meio alternativo para suprir as lacunas probatórias não pode colher, por violador do artigo 127.º CPP.

B13.Tal como incorrectamente julgados foram os pontos 32 a 41 e 346 a 55. Com efeito,

B14: ao incluir entre os factos provados um conjunto de elementos de facto e valor usados para a determinação da responsabilidade penal do arguido não obstante não constantes da pronúncia e respigados dos alegados em sede do pedido ressarcitório, seja qual for a norma legal em que pretendeu fazer presa, a M.ma Juiza inconstitucionalizou-a face ao princípio da plenitude das garantias de defesa, com sede no nº 1 do art. 32º da Constituição da República.

B15. Por fim, a al. j) dos factos não provados também merece crítica veemente, face ao extracto bancário junto com o requerimento de 01/06/2023 conjugado com o teor do relatório pericial da PJ (fls. 760) e com as declarações do arguido.

B16. O recorrente entende, outrossim, que deveria ter tido lugar, no cado dele, a aplicação do n.º 2 do artigo 227.º posto que, sendo a devedora a sociedade B..., Lda. ele é terceiro face a ela, ainda que assuma a qualidade de gerente (o n.º 3 reenvia, também, para o n.º 2).

B17. Ainda: por desproporcionada e arbitrária e, nessa medida violadora do disposto nos artigos 71º a 73º, e 227.º-2, todos do CP, deve a pena aplicada ao recorrente.

B18: É inimiga de uma compreensão à luz da CRP, a valoração dos factos considerados provados em sede de “pic”, como atendíveis na sede jurídico-criminal, o que coenvolve a violação do disposto no art. 32º, nº 1 e nº 5, segunda parte, do diploma fundamental, seja qual for a norma convocada para o consentir.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado          procedente              e,             consequentemente, extraídos     os      corolários     dimanados              das “conclusões” tecidas, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!

3. O Ministério Público, em primeira instância, respondeu à motivação do Recorrente, concluindo pela manutenção da sentença recorrida.

4. Nesta Relação, Digna Procurador-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, nos termos de fls. 1224 e 1225

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, nada obstando ao conhecimento de mérito do Recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A primeira instância julgou provados os seguintes factos:

1) Factos Provados

Discutida a causa, com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1 - A sociedade comercial “B... Lda.” (doravante designada por B..., Lda.) é uma sociedade comercial por quotas, constituída em ../../2010, que se encontrou matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., sob o n.º ...47, e tinha por objecto social a construção de todos os tipos de edifícios residenciais e não residenciais, executados por conta própria ou em regime de empreitada ou subempreitada, de parte ou de todo o processo de construção, entre outras actividades ligadas à construção civil.

2 - No período compreendido entre a data da sua constituição e até ../../2015, eram sócios e gerentes da sociedade arguida, o arguido AA e a sua, então, mulher BB.

3 - A 2 de Fevereiro de 2015, BB cedeu a sua quota à sociedade comercial “C..., S.A., E..., S.A” (doravante designada por “C..., S.A.”).

4 - A partir de ../../2015, passou a sociedade comercial “B..., Lda.” a ter como gerente único o arguido AA, por força da renúncia à gerência de BB.

5 - O arguido AA era também, no mesmo período temporal, o único gerente de facto da sociedade comercial “C..., S.A.”, com a matrícula nº ...24, sediada em ..., e cujo objecto social se destinava à compra e venda de imóveis e construção de edifícios.

6 - A 26.4.2012, o arguido constituiu uma nova sociedade comercial - D..., S.A. (doravante designada por “D..., S.A.”) com BB, sendo que quem exercia a administração da referida empresa era o arguido AA.

7 - A “D..., S.A.”, tinha registado um prédio urbano – Pousada ..., sita em ... e cujo objectivo era restaurar o edifício para exploração de uma pousada.

8 - Entre ../../2010 e ../../2015, o arguido exerceu as funções de gerente da “B..., Lda.”, designadamente, dirigindo as actividades daquela, fazendo contactos com clientes, celebrando contratos, procedendo ao pagamento de impostos, decidindo, da afectação dos respectivos recursos financeiros à satisfação das suas necessidades, das encomendas e dos pagamentos a efectuar aos seus fornecedores e trabalhadores.

9 - A “B..., Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida em 28.1.2016, transitada em julgado em 8.3.2016, no processo judicial de insolvência, sob o número 311/14...., que correu termos pelo J... do Juízo de Competência Genérica de ....

10 - A “B..., Lda.” foi constituída por iniciativa do arguido, com vista à construção de um hotel, em ..., propriedade da “C..., S.A.”, a qual se candidatou a um subsídio comunitário para a construção do hotel, atribuído pelo Instituto Público - Turismo de Portugal.

11 - A principal cliente da “B..., Lda.” era a “C..., S.A.”.

12 - O projecto da “C..., S.A.”, foi aprovado pelo Turismo de Portugal, sendo que, do investimento global da obra, seria concedido àquela empresa o valor de €4.442.667,55 euros (65% de investimento elegível aprovado) por aquele instituto.

13 - Do valor atrás identificado, entre ../../2011 e ../../2013, foi transferido por parte do Turismo de Portugal, IP para a sociedade “C..., S.A.”, a quantia global de €3.137.907,43 euros.

14 - Entre os anos 2010 e 2012, a B..., Lda. emitiu facturas à C..., S.A., no valor global de €5.087.446,68 euros, tendo recebido da mesma sociedade a quantia de €5.372.996,68 euros, sendo que a “C..., S.A.” constituía 94% da sua facturação.

15 - No ano de 2012, a “B..., Lda.” tinha créditos sobre a sua principal cliente C..., S.A. no valor de €631.385,45 euros.

16 - Já no ano 2013, e respeitante à “D..., S.A.”, a sociedade B..., Lda., emitiu facturas no valor global de €269.921,26 euros, tendo apenas recebido a quantia de €15.000,00 euros, nunca tendo recebido o restante montante, nem tendo procurado cobrar tal quantia ou constituído privilégios creditórios sobre a mesma.

17 - No processo de insolvência foram reconhecidos créditos de terceiros sobre a “B..., Lda.”, designadamente fornecedores, trabalhadores, autoridade tributária, no valor global de €1.140.236,85 euros.

18 - À data da declaração de insolvência, a “B..., Lda.” não possuía qualquer património móvel ou imóvel, resumindo-se o seu activo aos créditos que possuía sobre a empresa “D..., S.A.”, já indicados, e sobre o seu sócio/arguido, pelo que o processo de insolvência acabou por ser declarado encerrado por insuficiência da massa, por decisão judicial de 4.5.2017, sendo que a empresa “C..., S.A.”, da qual o arguido era administrador, também se encontrava numa situação de insolvência.

19 - No processo judicial, a insolvência da “B..., Lda.”, foi considerada culposa, porquanto o arguido, em sua representação, assumiu dívidas que não eram da sua responsabilidade, designadamente, de trabalhos realizados a favor e por conta da “D..., S.A.”, da qual também era acionista e administrador o aqui arguido.

20 - Em concreto, no segundo semestre de 2014, o arguido AA contratou a sociedade comercial “A..., Lda.” para realizar trabalhos de restauro na pousada ..., em ..., e quando solicitado ao arguido a indicação do número de identificação fiscal (NIF) em nome de quem seriam emitidas as facturas dos trabalhos realizados, o arguido indicou o NIF da sociedade “B..., Lda.”, ao invés da D..., S.A. que era a dona do edifício onde foram realizados os trabalhos, bem sabendo que a “B..., Lda.” já não tinha capacidade financeira para pagar aquela dívida, nem qualquer património que garantisse o credor, nem qualquer relação com o negócio da pousada, estando inactiva desde 2013.

21 - A “B..., Lda.” era detentora da conta bancária nº...43-...0....04-7 no banco Banco 1..., para a qual foram transferidos ou depositados os valores pagos pela C... entre os anos 2011 a 2013, os quais representavam 94% das entradas na referida conta.

22 - Entre 22.12.2011 e 14.5.2011, o arguido AA procedeu a diversas transferências da mencionada conta bancária da “B..., Lda.” para a sua conta pessoal e desta para a conta bancária da C..., S.A., nos seguintes datas e montantes:

- a) A 22.12.2011, duas tranches de €90.000,00 euros (total: €180.000,00);

- b) A 29.12.2011, uma tranche no valor de €66.000,00 euros;

- c) A 30.12.2011, uma tranche no valor de €12.000,00 euros;

- d) A 02.01.2012, duas tranches nos valores de €44.000,00 euros e €20.000,00 euros;

- e) A 14.5.2012, duas tranches, uma no valor de €48.000,00 euros e outra de €100.000 euros;

23 - A 30.1.2013, foi transferida a quantia global de €280.000,00 euros para uma conta bancária em nome de CC, sem que esta fosse fornecedora ou tivesse emitido alguma factura por conta de serviços, fornecimentos ou trabalhos à B..., Lda.

24 - A “B..., Lda.” era também detentora da conta bancária nº...20 do Banco 2..., que, nos anos 2012 e 2013, serviu para realizar transferências da conta de que era titular no banco Banco 1..., e cujos valores serviram essencialmente para emitir cheques a favor da C..., S.A, bem como de levantamentos em dinheiro pelo arguido AA.

25 - Realizada uma inspecção tributária à contabilidade da “B..., Lda.”, apurou-se que a empresa tinha registado na sua contabilidade, num campo identificado como outros devedores e credores (27833003) um empréstimo a sócio para financiamento do Hotel, apresentando um saldo devedor de €2.768.182,55 euros – valor este que constituía os fundos das contas bancárias atrás identificadas tituladas pela B..., Lda.

26 - Todas estas movimentações bancárias realizadas pelo arguido AA deixaram a “B..., Lda.” despida de qualquer capital.

27 - No processo judicial que decretou a insolvência da “B..., Lda.”, o trabalhador DD reclamou créditos no valor de €18.732,88 euros, que foram reconhecidos, porém, não foram pagos por inexistência de qualquer activo da insolvente.

28 - O arguido conhecia a situação financeira e patrimonial da B..., Lda. e, por via disso, elaborou um plano para nada pagar aos credores, incluindo trabalhadores, designadamente, não cobrando as receitas que lhe eram devidas pela sociedade “D..., S.A.” e não cobrando atempadamente as que lhe eram devidas pela “C..., S.A”, bem como fazendo transferências dos valores que receberam da C..., S.A. para terceiras pessoas e empresas que nada tinham a ver com a sociedade e às quais nada devia, fazendo desaparecer todo o património que lhe restava e que pudesse responder pelas dívidas que tinha contraído.

29 - A actuação do arguido teve o propósito conseguido de fazer desaparecer todo o património da “B..., Lda.”, privando dessa forma os seus credores de verem cobrados os seus créditos, incluindo trabalhadores, o que efectivamente ocorreu, tendo o processo de insolvência da “B..., Lda.” acabado por ser declarado encerrado por insuficiência da massa insolvente, no ano 2017.

30 - O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, aceitando o resultado das suas condutas, com o propósito conseguido de atentar contra os direitos patrimoniais dos credores da sociedade comercial “B..., Lda.” bem sabendo que tal actuação era proibida e punida por lei.

Mais se provou:

31 – O valor referido em 15., foi pago pela C... à “B..., Lda” em janeiro de 2013.

Do pedido de indemnização civil:

32 - No decurso do segundo semestre do ano de 2014, a demandante «A... Lda» travou conhecimento com o demandado AA.

33 - No final do ano de 2014, a demandante «A... Lda» e o demandado AA ajustaram entre si que a primeira procederia a trabalhos de restauro em obra de madeiras na Estalagem de ..., sita em ....

34 – Procedendo a trabalhos de restauro e reparação, designadamente, em tectos em madeira, portas, rodapés, cabeceiras, toucadoures, dentro da referida Estalagem.

35 – O demandado apresentou-se sempre como o proprietário do referido equipamento hoteleiro, junto com a sua esposa, BB.

36 – Era do conhecimento geral, ao nível local, que a Estalagem/Pousada ... era propriedade dos referidos AA e BB.

37 – Tal equipamento hoteleiro foi objecto de um incentivo financeiro concedido no âmbito do programa operacional “Mais Centro”, conduzido pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR-C), com recurso a dinheiros públicos/comunitários.

38 – A referida Pousada é um imóvel que foi classificado como de interesse público em 2005, tendo os referidos AA e BB promovido a aquisição do mesmo junto da F..., S.A.

39 - A demandante encontrou sempre inúmeras dificuldades para poder facturar e receber o valor devido pelos serviços prestados na obra da Pousada ....

40 - Os trabalhos foram-se protelando ao longo do tempo dados os sucessivos incumprimentos por parte do arguido/demandado.

41 - Só após várias solicitações da demandante é que o arguido lhe forneceu os dados necessários para facturação dos serviços prestados, tendo indicado os dados da B..., afirmando ser dono e gerente dessa sociedade e ser essa a empresa a responsável pela execução e desenvolvimento do projecto em causa.

42 - Por conta dos serviços prestados e para cobrança dos mesmos, a demandante emitiu e entregou ao arguido AA as seguintes facturas:

- Factura n.º FCT15 00110, de 29.05.2015, no valor de 18.000,00€;

- Factura n.º FCT15 00112, de 29.05.2015, no valor de 8.523,40€;

- Factura n.º FC T15 00113, de 29.05.2015, no valor de 12.072,60€;

- Factura n.º FCT15 00114, de 29.05.2015, no valor de 14.775,00€;

- Factura n.º FCT15 00115, de 30.05.2015, no valor de 400,00€; e

- Factura n.º FCT15 00133, de 23.06.2015, no valor de 162,50€; todas emitidas em nome da B... e com vencimento nas respectivas datas de emissão, perfazendo tais facturas a importância global de 53.933,50€.

43 - Por conta do montante titulado pelas referidas facturas, o arguido AA, por intermédio da B..., procedeu ao pagamento da quantia global de 36.000,00€.

44 - Os últimos pagamentos foram efectuados em Junho de 2015.

45 – Tendo ficado por pagar o montante de capital remanescente, no total de 17.933,50€.

46 – De então para cá, o arguido AA deixou de atender os telefonemas da demandante, permanecendo incontactável.

47 – A demandante encetou diligências de contacto pessoal junto da obra da referida pousada, sem sucesso.

48 – Encontrando-se as instalações onde funcionaria a B... inactivas, não possuindo esta empresa fluxos financeiros, nem património, mobiliário ou imobiliário.

49 – A demandante veio posteriormente a descobrir que a B... foi declarada insolvente no processo e data referidos em 9.

50 – Tendo o referido processo de insolvência sido instaurado no mês de Agosto de 2014.

51 – O arguido, quando negociou com a demandante e lhe deu indicação para emitir as sobreditas facturas em nome da B..., omitiu a pendência daquele processo de insolvência.

52 – Se a demandante tivesse conhecimento da pendência de qualquer PER ou Processo de Insolvência da B..., não teria aceitado facturar à mesma.

53 – A B... já não apresentava contas desde 2013.

54 – O arguido omitiu deliberada, voluntária e conscientemente à demandante a referida situação da B....

55 – Ao actuar da forma descrita, o arguido/demandado agiu com intenção deliberada e consciente de prejudicar patrimonialmente a demandante.

Dos antecedentes criminais:

56 – O arguido foi condenado:

- Por sentença proferida em 27.10.2016, transitada em julgado em 21.06.2017, pela prática em 2013, de um crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355.º do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de 7,00€, o que perfez 1.050,00€, a qula foi extinta por decisão de 14.09.2018.

- Por sentença proferida em 23.11.2016, transitada em julgado em 24.01.2017, pela prática em 2011, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1 e 2 ex vi do artigo 105.º, n.º 1 e 4 do RGIT e artigo 30.º do Código Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 7,00€, o que perfez 1.400,00€, a qual foi extinta por decisão de 01.10.2017.

- Por sentença proferida em 13.01.2017, transitada em julgado em 07.02.2017, pela prática em 07.2010, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1 e 2 ex vi do artigo 105.º, n.º 1 e 4 do RGIT, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfez 600,00€, a qual foi extinta por decisão de 14.04.2018.

- Por sentença proferida em 09.05.2017, transitada em julgado em 06.09.2017, pela prática em 22.06.2015, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 7,00€, o que perfez 560,00€, a qual foi extinta por decisão de 15.05.2018.

- Por sentença proferida em 23.02.2018, transitada em julgado em 21.03.2018, pela prática em 22.07.2017, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfez 1.250,00€, a qual foi declarada extinta por decisão de 17.05.2018.

- Por sentença proferida em 06.06.2018, transitada em julgado em 06.07.2018, pela prática em 09.01.2017, de um crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob poder público na forma tentada, p. e p. pelos artigos 355.º, 22.º e 23.º do Código Penal, na pena de 11 meses de prisão, substituída por 330 horas de trabalho a favor da comunidade, a qual foi extinta por decisão de 27.04.2019.

- Por acórdão proferido em 03.07.2019, transitado em julgado em 07.07.2020, pela prática em 13.08.2014, de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, p. e p. pelo artigo 36.º, n.º 1, als. a) e c), n.º 2 e n.º 5, al. a) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20/01 (por reporte à candidatura da arguida “D..., S.A”, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, e na pena acessória de privação do direito do direito a subsídios, subvenções ou incentivos pelo prazo de 3 anos.

Das condições pessoais do arguido:

57 – O arguido exerce actualmente a actividade profissional de vendedor, auferindo mensalmente o salário mínimo nacional. O arguido reside com a sua companheira e a filha mais velha do arguido, de 20 anos, a qual frequenta um curso de estética não remunerado. A companheira do arguido aufere mensalmente cerca de 800,00€ por conta da actividade profissional exercida. Residem todos em casa arrendada, pagando a renda mensal de cerca de 240,00€. O arguido tem ainda uma outra filha, de 16 anos, que vive com a mãe, não se encontrando fixada pensão de alimentos. O arguido não é proprietário de bens imóveis ou veículos automóveis. Estudou até ao 12.º ano de escolaridade.

2) Factos Não Provados

 Motivação

A convicção do tribunal fundou-se na prova produzida em audiência de julgamento – nomeadamente, as declarações do arguido – na parte em que mereceram credibilidade – a prova pericial, a prova documental e a prova testemunhal. Tais elementos de prova, com excepção feita para a prova pericial, foram apreciados à luz do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, ou seja, segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador.

Desde logo, a convicção do Tribunal assentou no teor do relatório pericial junto a fls. 749 a 777, relativa a perícia a elementos contabilísticos e financeiros das sociedades “B...”, “C..., S.A” e “D..., S.A”, realizada pela Unidade de Perícia Financeira e Contabilística da Polícia Judiciária. Na referida perícia, apurou-se que a principal cliente da “B...”, nos anos de 2010 a 2013, era a C... e, bem assim, os valores facturados pela B... à C... naquele período e os pagamentos efectuados por esta à B..., assim como os valores das facturas emitidas pela B... à D... e o valor que relativamente a estas foi pago.

Na referida perícia, apurou-se também a realização, em 30.01.2013, de duas transferências da conta da B..., no valor global de 280.000,00€ para CC, a qual não foi identificada como fornecedora, tendo no mesmo dia sido efectuados depósitos em numerário de igual montante. Apurou-se ainda os valores que foram retirados da conta Bancária da B..., pelo arguido AA e que este deu entrada na conta da C..., o que aí se concluiu ter vindo a provocar dificuldades de tesouraria à empresa B....

Assim, concluiu-se em tal perícia que, em 31.12.2012, não obstante a empresa B... não apresentar uma situação de falência técnica, fruto dos resultados gerados, os valores a receber incluem dívidas de sócios (mais de 2.000,000€) a partir do ano de 2011, estando reflectido na contabilidade da B..., numa conta de “outros devedores e credores” empréstimo a sócio para financiamento do Hotel, que apresentava o saldo devedor de 2.768.182,55€.

O Tribunal baseou ainda a sua convicção na ponderação da prova documental junta aos autos, mormente: a documentação junta aos autos com a denúncia apresentada pela demandante “A..., Lda”, de fls. 23 e seguintes (entre a qual o contrato da sociedade por quotas da firma B..., o relatório apresentado pela Exma. Sra. Administradora da Insolvência no processo de insolvência da firma B..., as certidões prediais referentes aos imóveis registados a favor das sociedades C... e D..., as facturas emitidas pela demandante à B... e cópia de dois cheques da B...), a informação de serviço da Polícia Judiciária de fls. 69 e seguintes, a certidão extraída do processo de insolvência da B... (processo n.º 311/14....) de fls. 89 a 499; cópias da acusação e acórdão proferidos no processo n.º 311/14...., do Juízo Central Cível e Criminal ...; certidões permanentes de fls. 628 a 637, informações bancárias de fls. 648 a 656, 667 a 680 e 703 a 724; o relatório final da Polícia Judiciária de fls. 833 a 851; o balancete da B..., constituindo o apenso n.º 1, decisão de encerramento do processo de insolvência extraída do processo n.º 311/14.... (fls. 1002) e lista dos créditos aí reconhecidos (fls. 10031006) e ainda a prova documental junta aos autos pelo arguido com o requerimento entrado em juízo em 31.05.2023.

Prestando declarações em audiência de julgamento, o arguido AA assumiu a gestão exclusiva, de facto, das empresas B..., C... e D..., confirmando, assim, o vertido em 5., e o segundo segmento do ponto 6., da factualidade provada. O arguido referiu que já era titular de uma empresa de construção, a “AA, Lda”, que tinha alvará classe 3, mas precisava de alvará de classe 5 para a obra de construção do hotel, pelo que decidiu criar a “B...”, adiantando que utilizando esta firma a construção do hotel ficava mais barata.

O arguido assumiu ainda que a principal cliente da B... era a C... e mais tarde a D..., negando que estas duas sociedades tivessem ficado a dever à B..., declarações estas que, no tocante à D..., resultaram infirmadas com base no teor do relatório pericial junto aos autos a fls. 749 a 777, não resultando distinto resultado probatório da demais prova produzida em audiência.

Quanto às transferências de capital da conta da B... para a sua conta e desta para a C..., procurou justificar as mesmas com a necessidade de realizar aumentos de capital, referindo que os valores transferidos retornavam à B..., normalmente no próprio dia, o que pela análise do relatório pericial vemos que nem sempre sucedeu, no qual se apurou ter sido retirado das contas da B... o montante global de 2.695.977,43€ (através de cheques a favor da C..., de retiradas para o sócio AA e ainda de levantamentos em numerário), valor que, conforme se concluiu no relatório pericial, poderá estar reflectido no saldo da conta de “outros devedores e credores” da contabilidade da B... – Empréstimo sócio p/ financiamento do Hotel, no valor de 2.768.182,55€.

O arguido referiu, a este propósito, que foi aconselhado pelo TOC, EE a fazer aumentos de capitais na C... e que, no final, a empresa de construção (B...) ficaria com acções da sociedade e receberia dividendos, cabendo aqui assinalar que não foi possível ouvir em audiência a testemunha EE.

No que concerne às transferências realizadas da conta da B... para CC, referiu que pretendia adquirir à mesma a empresa “G...”, para facilitar a construção do hotel, mas que o negócio não se chegou a concretizar e, como tal, o dinheiro retornou à B... no mesmo dia. Todavia, da análise dos extractos bancários juntos aos autos não resulta que o valor em questão tenha sido depositado/transferido por CC, pelo que à míngua de qualquer outro elemento de prova relevante, resultou não provado o vertido em j).

O arguido confirmou, por outro lado, que acordou com a demandante a realização de obras de restauro de madeiras na Pousada ..., adquirida pela D..., referindo que os pagamentos que foram realizados foram pela B.... O arguido procurou justificar o não pagamento do valor global facturado, referindo que a obra não foi concluída e que foram facturados trabalhos não realizados, o que resultou contraditado com base nos depoimentos coerentes e espontâneos das testemunhas FF (responsável pela área comercial da empresa demandante) e GG (gestora e gerente da demandante), nos termos que infra se explanarão, para além que o crédito em questão foi reconhecido pelo Sr. Administrador Judicial no âmbito do processo de insolvência da B....

Relativamente à prova testemunhal produzida, o Tribunal começou por valorar o depoimento da testemunha HH, inspectora da Polícia Judiciária, que deu conta das diligências a que procedeu na fase investigatória do processo e do relatório final constante de fls. 833 a 851, que elaborou no final da investigação.

A testemunha II, administrador judicial, deu conta das diligências que efectou enquanto administrador judicial provisório no processo especial de revitalização da “B...”, anterior à declaração da insolvência, designadamente a deslocação às instalações da empresa, onde verificou indícios de que a empresa já não se encontrava a laborar, não tendo logrado estabelecer contacto com qualquer pessoa, adiantando que se deslocou ainda ao hotel que estava a ser construído pela C..., tendo verificado que o mesmo estava parado e inacabado.

A testemunha JJ, economista e administrador da insolvência, deu conta das diligências que efectuou enquanto administrador da insolvência no processo de insolvência da B..., no âmbito das quais apurou que a empresa se encontrava sem actividade desde 2013, não tendo apresentado as contas relativas a esse ano e seguintes, e não possuía bens, o que foi conjugado com o teor parecer por si elaborado e junto ao processo de insolvência (fls. 144 a 146 dos autos) e, bem assim, com relatório de fls. 30 a 32.

O Tribunal valorou também o depoimento da testemunha DD, engenheiro civil, que declarou ter sido trabalhador da sociedade “B...” – explicitando ter transitado já da anterior sociedade “AA, Unipessoal, Lda” – até cerca de abril de 2014, data em que referiu ter rescindido o contrato por falta de pagamento dos salários. Referiu ter acompanhado a obra de construção do hotel e ter saído no momento em que se encontravam a iniciar as obras na Pousada ..., salientando que quer a B..., quer a C... eram geridas pelo arguido. Confirmou ainda ter sido o requerente do processo de insolvência da B... e que no mesmo não logrou obter qualquer pagamento.

A testemunha GG (gestora e gerente da demandante) deu conta do valor aproximado que foi facturado pela demandante à B..., no ano de 2015, e do valor que ficou em dívida. Adiantou que foi com alguma dificuldade que foram recebendo os pagamentos efectuados e que, numa fase final, o arguido deixou de pagar e de atender o telefone.

O depoimento desta testemunha foi conjugado com o depoimento da testemunha FF (responsável pela área comercial da empresa demandante), o qual, de forma clara, espontânea e coerente, esclareceu que acordaram com o arguido a realização dos trabalhos de restauro de madeiras na estalagem, tendo o mesmo fornecido os dados da B... para facturação, salientando que não fazia ideia que esta empresa se encontrava numa situação económica difícil. Explicitou que foi sempre com dificuldade que foram feitos os pagamentos e que, numa fase final, o arguido deixou de pagar e de atender o telefone, asseverando que efectuou várias deslocações à obra para tentar cobrar os valores em dívida. Tal testemunha asseverou ainda que as facturas eram emitidas após se fazer um auto dos trabalhos executados e que, portando, os valores aí constantes correspondem a trabalhos realizados. Salientou ainda espontaneamente que o arguido pedia para terminarem a obra, fazendo promessas de pagamento, dizendo que iria receber valores por banda do Turismo de Portugal, adiantando que só saíram da obra quando o arguido já não atendia os telefonemas.

Os depoimentos destas últimas testemunhas foram conjugados com os documentos juntos com a denúncia (fls. 23 e seguintes), tendo relevado para a prova dos factos atinentes ao pedido de indemnização civil e ainda do ponto 20., da factualidade provada, cabendo assinalar que os mesmos não resultaram infirmados com base na demais prova produzida, designadamente, do depoimento da testemunha KK (irmã do arguido e constabilista), a qual referiu, ainda que de forma vaga e genérica, que os trabalhos da pousada não foram concluídos e que a empresa que os estava a realizar deixou de aparecer. Com efeito, afigura-se-nos mais coerente e consentâneo com as regras da experiência comum o relatado pela testemunha quanto ao contexto em que saíram da obra (após a falta de pagamento e de tentativas frustradas de contacto com o arguido).

Esta testemunha, KK, referiu que foi o TOC da B... e C..., EE, que elaborou a candidatura do projecto de construção do hotel e que foi o mesmo que indicou que para viabilizar a construção do hotel teriam que efectuar transferências de capital da conta da B..., sendo que posteriormente esta ficaria com participação naquela empresa, salientando que o seu irmão confiava no LL porque era uma pessoa muito qualificada. Confirmou, por outro lado, que o principal cliente da B... era a C... e que a B... não tinha activos.

Ora, dos referidos elementos de prova produzidos, analisados à luz das regras da experiência comum, resultou sustentada a factualidade acima dada como provada, proveniente da acusação pública e do pedido de indemnização civil.

Na verdade, perante a prova produzida nos termos supra expostos, livremente avaliada e apreciada, de acordo e segundo as regras da experiência, nenhuma dúvida subsistiu para o Tribunal no que respeita aos factos que deu como provados.

Com efeito, os referidos factos mostram-se sustentados na prova produzida, com destaque para a prova pericial e documental, conjugada com os depoimentos produzidos, que foram, em maior ou menor medida, merecedores de credibilidade, nos termos acima enunciados.

Por outro lado, decorre da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum, a prova da factualidade integradora dos elementos subjectivos do ilícito, uma vez que os factos provados permitem e impõem concluir pela sua verificação. Com efeito, no que concerne aos factos atinentes à intensão e motivação do arguido, importa salientar o explanado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.02.93, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, em anotação ao artigo 14º, que refere que «o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência».

In casu, analisando e apreciando todo o circunstancialismo fáctico segundo as regras da experiência comum, foi possível ao Tribunal formar a convicção quanto à actuação intencional do arguido, praticando actos que sabia serem prejudiciais aos credores da devedora B....

No que respeita aos antecedentes criminais, valorou-se o Certificado de Registo Criminal do arguido junto aos autos, sendo que quanto às condições económicas e pessoais do arguido, valoraram-se as suas próprias declarações, que, porque prestadas, neste particular, de forma coerente e espontânea, não viu o Tribunal razões para nas mesmas não fazer fé.

Quanto aos factos não provados, para além das considerações já supra tecidas designadamente quanto ao inserto em j), importa notar que a escassa prova produzida se revelou vaga e imprecisa, suscitando no Tribunal sérias dúvidas quanto à sua efectiva verificação.

Com efeito, no que concerne aos factos vertidos nos pontos a) a i), a prova que se produziu resumiu-se ao depoimento da testemunha KK, prestado quanto a tal matéria de forma vaga e genérica, bem como a documento isolado junto com o requerimento de 31.05.2023, correspondente a e-mail cujo contexto se desconhece, não revelando a mesma consistência suficiente que nos permitisse concluir positivamente, sendo que o próprio interveniente, EE não foi ouvido como testemunha.

Quanto ao vertido em j), conforme acima se assinalou, para além das declarações do arguido, os extractos bancários documentam a entrada nesse dia de tal quantia na conta bancária da B.... No entanto, desconhece-se a proveniência de tal valor, sendo que da análise dos extractos bancários não resulta que o mesmo tenha sido depositado/transferido por CC, pelo que, ante a ausência de qualquer outro elemento de prova relevante, foi tal factualidade considerada não provada.

O vertido em k) resultou de ausência de prova, não resultando do teor da respectiva certidão de registo comercial junta aos autos.

Por fim, importa salientar que o depoimento da testemunha MM não relevou para a prova ou não prova dos factos aqui em causa, por não ter conhecimento directo dos mesmos.

III -  OBJECTO DO RECURSO

1 – Nulidade da sentença

A primeira questão suscitada pelo Recorrente consiste em saber se a sentença recorrida condenou o arguido por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos artigos 358.º e 359.º, do Código Penal, enfermando assim, da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.

Dispõe o artigo 358.º do Código de Processo Penal:

«1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.».

Por seu turno preceitua o artigo 359.º do mesmo diploma:

«1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.

3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.».

Da conjugação destes preceitos ressalta que se, no decurso de audiência vieram a ser apurados factos diferentes dos narrados na acusação ou pronúncia se a houver, só podem ser considerados na sentença, para efeitos de condenação criminal, se observado o regime da alteração substancial ou não substancial dos factos dos artigos 359.º e 358.º transcritos.

A alteração substancial supõe uma modificação de factos essenciais que tenham por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», enquanto que a segunda [artigo 1.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal], enquanto que a alteração não substancial se verifica quando os factos modificados não implicam uma incriminação diversa ou agravamento dos limites máximos das penas ou medidas de segurança.

Pressuposto de aplicação deste regime é que haja uma alteração – suprimento, aditamento ou modificação – da facticidade descrita no despacho de acusação ou da pronúncia, posto que são estes que delimitam o objecto do processo – o thema decidendum - assim se garantindo, por regra, que o arguido não poderá ser julgado e condenado por outros factos que não aqueles de que tomou prévio conhecimento.

No caso vertente, confrontados os factos provados n.ºs 32 a 41 e 47 com os elencados na acusação e pronúncia, logo se constata que se reportam exclusivamente ao pedido e condenação cível, não lhes dendo aplicável as regras da alteração substancial ou não substancial de factos.

Em primeiro lugar, porque como resulta da própria sentença recorrido e do pedido de indemnização civil enxertado nos presentes autos pelo demandante, os factos alegados não surgiram na audiência, nem são novos para o arguido, que, sobre eles se pronunciou, na contestação deduzida com a referência 20466343, pugnando pela sua absolvição.

Em segundo lugar porque aqueles factos não foram considerados na condenação criminal, seja no preenchimento dos elementos tipo, seja na determinação da medida concreta da pena.

Com efeito, todos os factos da acção típica objectiva e subjectiva do crime de insolvência dolosa pelo qual foi condenado têm correspondência exacta na acusação e despacho de pronúncia.

Daqui resulta, que os factos provados enunciados nos n.ºs 32 a 47 não serviram como fundamento para a prática do crime previsto e punido pelo artigo 227.º do Código Penal, não se podendo falar em alteração substancial ou não substancial dos factos regulados nos artigos 35.º e 359.º, do Código de Processo Penal, nem de alteração do objecto do processo.

Tais factos foram alegados pela demandante civil no exercício do direito de indemnização fundada na responsabilidade civil por factos ilícitos (v.g. artigos 483.º a 498.º e 562.º a 566.º, do Código Civil, aplicáveis por força do artigo 129.º, do Código Penal), direito esse que, se fundado na prática de um crime, deve ser reclamado e apreciado em processo penal, mesmo em caso de absolvição criminal [artigos 71º a 84.º e 377.º do Código de Processo Penal].

E isto por força do principio de adesão [artigo. 71.º do Código de Processo Penal], nos termos do qual o lesado tem de fazer valer o seu direito no processo penal, só o podendo fazer em separado perante o tribunal civil, nas situações excepcionais previstas no artigo 72.º n.º 1 do Código de Processo Penal.

A obrigação de indemnizar fundada na prática de um crime tem por fonte a responsabilidade criminal e cível e, por conseguinte, duas causas de pedir autónomas, mas conexas entre si. Na vertente substantiva, a parte criminal influi na parte cível, na vertente processual, têm tratamento unitário, no sentido de serem julgadas num único processo, o penal.

A causa de pedir da responsabilidade civil por factos ilícitos com a consequente obrigação de indemnizar é, nos termos do artigo 483.º, do Código Civil, complexa, constituída pelos seguintes elementos: (i)   a existência de um facto voluntário do agente; (ii) que esse facto do seja ilícito; (iii) que haja um nexo de imputação desse facto voluntário e ilícito ao agente em termos de dolo ou mera culpa; (iv) que dessa violação decorrente de actuação voluntária, ilícita, culposa, decorram danos para terceiros e (v)  que se demonstre existir um nexo de causalidade adequada entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de forma a poder concluir-se que o dano é resultante do facto ilícito e culposo.

O artigo 483.º, do Código Civil contempla «vários pressupostos que condicionam, no caso da responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, cabendo a cada um desses pressupostos um papel especial na complexa disciplina das situações geradoras do dever de reparação do dano» [Pires e Lima e Antunes Varela, Código Civil, anotado, pg. 444]. A falta de um destes elementos conduz desobriga o lesante de indemnizar o lesado.

No caso em apreço, foi o que sucedeu.

A demandante, A..., para além dos factos da causa criminal (factos provados n.ºs 1 a 30), alegou os factos constitutivos O que quer dizer que o pedido civil deduzido em processo penal, não pode deixar de incluir todos os pressupostos de facto e de direito que constituem a responsabilidade civil - facto ilícito, o dano, a sua quantificação, o nexo causal, a imputação daquele ao agente - o que só se logrará se ao lesado civil for assegurada a possibilidade de discutir todos os factos integrantes da causa de pedir, todos aqueles que constituem e fundamentam o pedido indemnizatório.

do dano e respectiva quantificação (factos provados n.ºs 32 a 55), factos estes que serviram apenas e só para o conhecimento do pedido civil.

Termos em que não se verifica qualquer condenação do arguido por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º, não tendo sido cometida a nulidade da sentença inscrita no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.

Falecem, pois, os argumentos da Conclusão B. 1 do Recurso.

E, nem se diga, como faz o Recorrente (conclusões B. 14 e B.18) que foram violados os direitos de defesa garantidas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, porquanto: (i) o arguido foi notificado do pedido cível, com oportunidade de sobre ele se pronunciar nos termos em que bem entendesse; (ii) a fundamentação da condenação penal e medida da pena não têm suporte em factos diferentes dos que constavam no despacho de acusação e de pronúncia e (iii) a condição de pagar ao lesado a quantia de 2 500,00€ (muito superior ao valor da condenação (17 933,50€) , especialmente prevista nos artigos 50.º, n.º 3, e 51.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal é autónoma e  independente de qualquer acção ou pedido cível.

Improcedem, assim, as Conclusões B.1, B.14 e B.18.

2. Nulidade da sentença por omissão da análise critica da prova

Invoca o Recorrente a nulidade da sentença por omissão da fundamentação critica da prova documental, pericial e testemunhal.

É por demais sabido, que o dever de fundamentação das decisões judiciais tem consagração constitucional [artigo 205.º, da Constituição da República Portuguesa], assume especial relevância na sentença e consiste «na enumeração dos factos provados e não provados, bem como numa exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal » [artigo 374º, nº 2,do Código de Processo Penal]. 

A omissão deste dever é causa de nulidade de sentença, nos termos do artigo 379º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.

A fundamentação de facto não se basta com a enumeração dos factos provados e não provados, devendo, também, descrever, da maneira mais completa possível, as razões que justificaram a decisão, fazendo a análise critica, global e conjugada da prova que foi utilizada para formar a convicção do tribunal – o aludido exame o crítico das provas.

A análise crítica consiste na elucidação do processo de formação do convencimento do julgador, consubstanciado nos motivos pelos quais e em que medida um ou mais meios de provas foram valorados em determinado sentido e outros o não foram.

A fundamentação tem como objectivo «a sindicância da legalidade do acto, por uma parte e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina»  Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume III, pág. 294 – sendo, através dela, que se poderá avaliar o processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador.

Contudo, não se exige, uma análise crítica e exaustiva dos meios de prova, nomeadamente, com apelo sistemático ao conteúdo concreto da prova para cada facto julgado.

Esta vertente apenas se impõe na medida do necessário para a compreensão da decisão, da sua lógica intrínseca, de modo a que não possa apresentar-se como arbitrária ou injustificada, não porque o fosse, mas porque demonstrada a sua justificação.

Se é verdade que a fundamentação não se basta com a simples indicação de provas, também é verdade que a análise critica destas deve apenas ser necessária e suficiente para dar a conhecer porque decidiu o tribunal em determinado sentido. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de abril de 2000, processo nº 141/2000-3ª, SASTJ, nº 40, 48.

Definido o exacto sentido e alcance do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal e compulsada a sentença recorrida verificamos que cumpre o dever de fundamentação, sendo claro e inteligível o caminho lógico do processo de formação da convicção. 

A  convicção do tribunal fundou-se, além do mais, nos seguintes elementos probatórios:

Termos em que se conclui, que ao contrário do alegado pelo Recorrente, a sentença recorrida evidencia a as razões da formação da convicção, numa análise critica e perceptível ao destinatário, observando, por isso, todos os requisitos enunciados no artigo 374.º, n. º 2, do Código de Processo Penal, não enfermando do vicio da nulidade por omissão do dever de fundamentação apontado no Recurso.

Sem razão, pois, a pretensão exarada nas Conclusões B.2 e B.3.

3. Erro notório na apreciação da prova/ contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

Para o Recorrente, a sentença recorrida incorre em três erros notórios na apreciação da prova, um relativo ao de a B... ser ou não credora da C... (factos 14 e 15) e dois relativos à capacidade financeira da B... (facto 18 e 20 vs 18, 43 e 44).

Assente que nos termos do artigo 410.º do Código de Processo Penal, os vícios elencados nas diversas alíneas do n.º 2 - a) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) erro notório na apreciação da prova – tem de resultar do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe são externos, para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes no processo, advindos do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, p.822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, p. 77).

Tendo presente que a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão  se verifica quando, na decisão sobre um mesmo assunto, se assume posições opostas e inconciliáveis,  «quando se dão como provados factos contraditórios, quando se dá ao mesmo tempo, como provado e não provado o mesmo facto, quando existe incompatibilidade entre factos provados e a respectiva fundamentação probatória e, além,  disso, quando a contradição se revela de tal sorte no contexto da matéria de facto que não pode ser ultrapassada, sanada, através do que mais consta na decisão recorrida ou do uso de regras da experiência comum». Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Fevereiro de 1998, Colectânea de Jurisprudência [(CJ), 1998, Tomo I, página 195).

E que o erro notório na apreciação da prova é um vicio de raciocínio que ressalta de uma simples leitura da decisão e que consiste, essencialmente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido, ou quando facilmente se percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

Logo ressalta da sentença recorrida a inexistência dos vícios de contradição insanável e/ou de erro notório.

Não podemos olvidar que o que está em causa é saber se os factos inscritos na documentação relativa às operações contabilísticas e financeiras, aos fluxos e transferências monetárias correspondem ao que sucedeu na realidade, melhor dizendo, se o conteúdo documentado nas operações contabilísticas das empresas exclusivamente geridas pelo arguido, traduz o exercício efectivo e real da actividade económica desenvolvida pela B... entre 2010 e 2014.

Assim:

Da redacção dos factos 14 e 15, resulta claro, que entre anos 2010 e 2012, a B..., Lda. emitiu facturas à C..., S.A., no valor global de €5.087.446,68 euros, tendo recebido da mesma sociedade a quantia de €5.372.996,68 euros, sendo que a “C..., S.A.” constituía 94% da sua facturação, concretizando-se que, em 2012, a B... tinha créditos da sua principal cliente, no valor de €631.385,45 euros.

Ou seja, apesar do volume de negócios facturado (e não realmente recebido) entre a B... e a C... entre 2010 e 2012, ainda assim, em 2012, a B... apresentava créditos sobre a C..., no valor de 631 385, 45 €, o que no contexto das operações contabilísticas realizadas pelo arguido em representação das sociedades que geria se revela lógico e coerente, não se detectando qualquer erro ou contradição.

O facto provado n.º 18 - à data da declaração de insolvência, a “B..., Lda.” não possuía qualquer património móvel ou imóvel, resumindo-se o seu activo aos créditos que possuía sobre a empresa “D..., S.A.”, já indicados, e sobre o seu sócio/arguido, pelo que o processo de insolvência acabou por ser declarado encerrado por insuficiência da massa, por decisão judicial de 4.5.2017, sendo que a empresa “C..., S.A.”, da qual o arguido era administrador, também se encontrava numa situação de insolvência – traduz a síntese genérica dos actos praticados pelo arguido e que conduziu à declaração de insolvência da B..., em 4 de maio de 20017 e ao encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente. A existência de créditos da B... sobre a D... é, neste quadro irrelevante, dado que eram insuficientes para solver o passivo contraído pelo arguido.

Pelo que, também, aqui, não se detecta o erro e a contradição alegada pelo Recorrente.

De igual modo, inexiste erro notório ou contradição entre facto provado n.º 18 em contraponto com os factos provados n.ºs 20, 18, 43 e 44.

Na verdade, o facto provado n.º 20 surge por efeito e concretização dos factos provados n.ºs 10 a 19, reportando-se este último, ao modo de actuação do arguido para realizar o negócio com a A..., em nome da B..., fazendo incidir sobre esta o pagamento de serviços de restauro dos quais não beneficiou, quer porque à data já não exercia qualquer actividade, quer porque a dona do edifício da Pousada ... e a beneficiária da prestação de serviços era a D....

Além de se inferir dos factos provados n.ºs 14 a 17 e 21 a 25, que o comportamento do arguido anterior a 2104, deixou a B... despida de qualquer património ou capital, por isso, com incapacidade financeira não só, para solver o pagamento da totalidade do preço das obras contratadas à demandante civil, mas também as dividas dos demais credores, o que causou o encerramento do processo de insolvência por insuficiência de massa.

Pelo que também, aqui inexiste qualquer erro notório ou contradição entre os factos provados 18, 20, 43 e 44. 

4 – Erro de julgamento

Pretende o Recorrente impugnar os factos provados n.ºs 16, 20, 28 a 30, 32 a 41 e 46 a 55 e o facto provado na alínea j).

Antes de mais, importa reter que o recurso da matéria de facto, não visa suprir ou substituir o juízo sobre a formado pelo Tribunal sustentado na imediação acerca da maior ou menor credibilidade dos declarantes, mas a corrigir erros que devem concretamente apontados.

Esse o motivo pelo qual o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal impõe ao sujeito processual que impugne a decisão sobre a matéria de facto, o ónus da especificação, indicando (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; (ii) as concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida e (iii) as provas que devem ser renovadas.

Impor decisão diversa da recorrida não é o mesmo que admitir prova diversa, assente em outros juízos de credibilidade.

O que significa que, havendo prova produzida em audiência que consinta duas ou mais decisões de facto, e o julgador, fundamentadamente optar por uma delas em detrimento de outra ou de outras, a decisão que proferir sobre a matéria de facto é, em principio inatacável, ainda que o recorrente faça uma leitura diversa.

E, em sede de apreciação pelo Tribunal Superior, o recorrente não lhe poderá opor a sua convicção e reclamar que por ela opte ou a sufrague, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova.

No caso concreto pretende o Recorrente impugnar, entre outros, os factos 32 a 40 e 46 a 53 (Conclusão B.13 por referência ao ponto A.3.2 da Motivação) sem que, quanto eles, observe o dever de especificação, na vertente de omissão do dever de indicar o meio de prova que imponha decisão diversa [artigo 412.º, nº 3, alínea, b) do Código de Processo].

Tal omissão conduz à rejeição da impugnação de facto desta matéria, o que se decide.

Quanto aos demais: 

Improcedem, assim, as Conclusões n.º B8 (esclarecendo-se que o facto impugnado é o 16 e não o 6) e B.9.

Os factos provados n.º 28 a 30 respeitam ao elemento subjectivo do tipo,

Para prova dos mesmos, o Tribunal recorrido a quo convocou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.02.93, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, em anotação ao artigo 14º, para concluir que o dolo, pertencente à vida interior de cada um, é, por isso, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só sendo «possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência».

E, diga-se, bem.

O dolo [elemento subjectivo do tipo] consiste no conhecimento, incluindo aqui, a representação e a previsão [elemento cognitivo ou intelectual do dolo] e vontade, no sentido de abranger a intenção ou aceitação [elemento volitivo do dolo] de realização da ação típica.

O conhecimento e vontade são actos do foro intimo, interno ou psíquico do agente de difícil comprovação por terceiros (prova directa), não se comprovam em si mesmos, mas mediante prova indirecta, indiciária ou por presunção.

Como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 23 de fevereiro de 1983, [BMJ n.º 324, p. 620], cuja jurisprudência se mantém, sem dúvida, actual, o «o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência».

As presunções - ilações que a lei (presunções legais) ou o julgador (presunções judiciais, simples ou de experiência) retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349º do Código Civil) -  constituem um meio de prova legalmente permitido, podendo, por isso, ser produzido, em processo penal – artigo 125.º do Código de Processo Penal  - e, dele se socorrer o julgador para formar a sua convicção para julgar como provado ou não provado determinado facto que servirá, posteriormente, para fundamentar a solução de direito, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351º do Código Civil).

A presunção judicial permite que, de entre uma categoria de circunstancias e por meio do método indutivo decorrente das regras da experiência comum, se aceda aos factos ocultados, constituindo, assim, uma prova legalmente admissível em processo penal, como decorre do artigo 125.º do Código de Processo Penal, que, como se sabe, nos termos do artigo 127.º, do mesmo diploma, é, apreciada segundo sua livre convicção do julgador.

Os factos que integram o dolo constituem o exemplo mais frequente da prova indirecta ou por presunção. O plano intimo do agente raramente se prova directamente. Na maioria das vezes, só é alcançável através de juízos indutivos do comportamento exterior e visível do agente idóneo a revelá-lo. São as circunstâncias e elementos revelados nos actos externos que identificam os vários elementos do dolo, o conhecimento, a vontade e o propósito da actuação do agente.  Dos actos objectivos conhecidos inferem-se os actos subjectivos.

Foi o que fez o Tribunal recorrido.

Da evidencia da prova produzida em audiência, analisada à luz, das regras da experiência comum, julgou provados os provados n.ºs 1 a 27 e de tudo conclui que o arguido:

- Conhecia a situação financeira e patrimonial da B... e a elaboração do plano para nada pagar aos credores, designadamente, não cobrando as receitas que lhe eram devidas pela sociedade “D..., S.A.” e não cobrando atempadamente as que lhe eram devidas pela “C..., S.A”, bem como fazendo transferências dos valores que receberam da C..., S.A. para terceiras pessoas e empresas que nada tinham a ver com a sociedade e às quais nada devia, fazendo desaparecer todo o património que lhe restava e que pudesse responder pelas dívidas que tinha contraído resultam objectivamente de toda a conduta do arguido.

- Actuou com o propósito conseguido de fazer desaparecer todo o património da “B..., Lda.”, privando dessa forma os seus credores de verem cobrados os seus créditos, incluindo trabalhadores, o que efectivamente ocorreu, tendo o processo de insolvência da “B..., Lda.” acabado por ser declarado encerrado por insuficiência da massa insolvente, no ano 2017.

- Agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, aceitando o resultado das suas condutas, com o propósito conseguido de atentar contra os direitos patrimoniais dos credores da sociedade comercial “B..., Lda.” bem sabendo que tal actuação era proibida e punida por lei.

Relativamente aos factos provados n.ºs 54 e 55, o Tribunal recorrido atendeu à prova indicada na Motivação de recurso para considerar demonstrada a factualidade n.ºs 32 a 53, do que inferiu:

- Omitiu deliberada, voluntária e conscientemente à demandante a situação da B...; 

- Agiu com intenção deliberada e consciente de prejudicar patrimonialmente a demandante.

Assim sendo, nenhuma censura merece a decisão da primeira instância que julgou provados os factos n.ºs 28 a 30 e 54 e 55, dado que a presunção extraída pelo julgador não é arbitrária, mas sustentada nas regras da experiência comum e de bom sendo, com respeito pelos princípios da livre convicção e da presunção de inocência.

Soçobra, assim, a matéria das Conclusões B.10 a B12.    

Finalmente insurge-se o Recorrente contra a decisão que julgou não provado que dia 30/01/2013, CC depositou/transferiu o montante de 280.000.00€ para a conta bancária da (alínea j).

O Recorrente porque discorda desta valoração da prova, pretende que esta Relação reaprecie estes meios de prova, e reconheça que o tribunal recorrido deveria ter acreditado no relato dos factos ele trouxe a julgamento.

Porém, como já se disse, esta Relação não reaprecia a matéria de facto realizando um novo julgamento, devendo cingir-se, nos termos do já citado artigo 412º, do Código de Processo Penal, aos pontos concretamente impugnados e aos meios de prova que, para cada um, imponham (e não apenas justifiquem ou possibilitem) decisão diferente da proferida em primeira instância.

A impugnação de facto destina-se a reparar incorrecções ou ilegalidades pontuais e concretas assinaladas pelo recorrente, o que implica a alegação de erros de julgamento no processo de formação de convicção do julgador.

E quanto a esta, não podemos esquecer que a apreciação da prova, fora das excepções relativas à prova vinculada, assenta na livre convicção e nas regras da experiência [artigo 127.º, do Código de Processo Penal, formada sob a égide da imediação e oralidade, inacessível ao Tribunal de recurso.  

No nosso caso, constata-se que a sentença recorrida formou a sua convicção na apreciação conjugada e crítica dos testemunhos e elementos documentais e periciais juntos aos autos, tendo explicado em que medida foram ou não valorados e por que motivos lhe mereceram, ou não, credibilidade.

A fundamentação da decisão recorrida explica os motivos pelos quais não considerou a versão do arguido nem os extratos bancários, sendo claramente perceptível a linha de raciocínio seguido na formação da convicção do Tribunal, sem qualquer erro de julgamento.

Consequentemente, mantem-se como não provado o facto impugnado, improcedendo a Conclusão B.15.


*

De todo o exposto, se conclui que a fundamentação da convicção formada pelo julgador (acima transcrita) revela um raciocino lógico e racional na apreciação da prova, sem conclusões incongruentes, arbitrárias ou violadoras das regras da experiência comum na apreciação das provas disponíveis, tendo a convicção expressa pelo tribunal suporte razoável nas mesmas.

O Recorrente não concorda como o modo como o tribunal alicerçou a sua convicção sobre os factos dados como provados, não porque existe qualquer erro de julgamento, mas porque, contrapondo à análise do tribunal o seu modo de ver e apreciar a prova produzida e naquilo que tanto enfatiza para sustentar a todo o custo a credibilização das declarações que prestou em julgamento.

Por outro lado, os meios de prova invocados para sustentar as razões da discordância da decisão proferida pela primeira instância não tinham a virtualidade de impor uma decisão diferente daquela a que chegou o Tribunal recorrido, repete-se, não violou nenhuma das regras da experiência comum, da lógica ou da racionalidade.

De todo o modo, revisitados os meios de prova produzidos em audiência concatenada com as regras da racionalidade e senso comum, só podemos concluir que a decisão sobre a matéria de facto impugnada não merece qualquer reparo, mantendo-se, na íntegra o decidido na sentença recorrida. 

5 -  Qualificação jurídico-penal 

O arguido foi condenado como autor material pela prática de um crime de insolvência dolosa agravado previsto e punido pelo artigo 227.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 e pelo artigo 229.º A do Código Penal.

Discordante, argumenta o recorrente, que não sendo ele o devedor, mas a sociedade B... a devedora, a sua conduta não preenche o n.º 1, da norma incriminadora, mas o n.º 2, atenta a qualidade de terceiro.

Importa apreciar e decidir:

Dispõe o artigo 227.º, do Código Penal:

«1 - O devedor que com intenção de prejudicar os credores:

a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;

b) Diminuir ficticiamente o seu ativo, dissimulando coisas ou animais, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexata, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;

c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou

d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente;

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 - O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.º 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em benefício deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.

3 - Sem prejuízo do disposto no artigo 12.º, é punível nos termos dos n.ºs 1 e 2 deste artigo, no caso de o devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva e houver praticado algum dos factos previstos no n.º 1.».

O crime de insolvência dolosa é um crime de execução vinculada e um crime especifico próprio, na medida em que a ilicitude das acções típicas descritas depende de determinadas qualidades do agente, que o coloca numa relação especial com o bem jurídico protegido, em concreto o devedor cuja insolvência  possa ser objecto de reconhecimento judicial [c.f. Paulo Pinto de Albuquerque,  Comentário do Código Penal, p. 627, Maia Gonçalves, Código Penal Português – anotado e comentado, p. 707 e Pedro Caeiro, Sobre a Natureza dos Crimes Falenciais (o património,a  falência e a sua incriminação e a reforma dela), p. 173 e Anotações aos artigos 227.º e 229.º do Comentário Conimbricense, p. 408] .

As condutas previstas no n.º 1, do artigo 227.º, mesmo quando materialmente levadas a cabo por qualquer pessoa, só consubstanciam ilícitos típicos quando realizadas pelo devedor (originário ou derivado do artigo 12.º). O devedor detém em exclusivo o poder de lesar ou colocar em perigo os direitos dos seus credores. – Teresa Quintela e Brito, Domínio da Organização para a Execução de Facto: Responsabilidade penal pelos Entes Colectivos, dos seus Dirigentes e “actuação em nome de outrem, p. 1606 1 607.

Porém, prevendo que grande parte das condutas típicas podem ser praticadas por terceiros, quis o legislador, com o n.º 2, do artigo 227.º, do Código Penal, punir o terceiro que as praticar com conhecimento do devedor e em benefício deste, posto que de outra forma, o terceiro não seria punível se não se provasse a comparticipação. 

No caso em apreço, tendo sido dado como provado que a sociedade B... foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado no dia 8 de março de 2016, detendo a qualidade típica de devedor, qualidade que o arguido não detém, coloca-se a questão de saber se, exercendo o ora recorrente a gerência e administração de facto e de direito da insolvente, a qualidade de devedor a ele se estende por via da representação ou de terceiro.

Neste particular, releva o artigo 12.º do Código Penal que reza assim:

«1 - É punível quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, mesmo quando o respectivo tipo de crime exigir:

a) Determinados elementos pessoais e estes só se verificarem na pessoa do representado; ou

b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.

2 - A ineficácia do acto que serve de fundamento à representação não impede a aplicação do disposto no número anterior.».

Este dispositivo legal permite responsabilizar criminalmente quem actua voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, ainda que o tipo de crime exija elementos pessoais que se verificam directamente na pessoa do representado, a saber, na sociedade [alínea a)]; ou exige que agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado [alínea b)].

A qualidade de devedor da sociedade pode repercutir-se nas pessoas humanas que pratiquem as condutas típicas como titulares dos seus órgãos ou como seus representantes, de acordo com o artigo 12º, n.º 1, al. a) do Código Penal Como, (Pedro Caeiroin ob. cit. Comentário (…), p. 409,,  sendo exigível que o agente actue como se da sociedade se tratasse, em nome dela e por ela, nos termos da al. b) do mesmo preceito [Fernanda Palma, Aspectos Penais da Insolvência e da Falência, RFDUL, vol. XXXVI, n.º 2, p. 412]..

Como ensina Germano Marques da Silva «a lei utiliza um critério formal para alargar o âmbito dos agentes do crime, mas pressupõe um critério material baseado no acesso ao exercício do domínio social e a assunção de garante nele fundamentada». O que releva é a disponibilidade do agente sobre os poderes ou faculdades que permitam a ofenda ao bem jurídico protegido, ou seja o domínio que exercem esses agentes sobre a vulnerabilidade jurídico-penalmente relevante do bem jurídico.  «Não basta invocar a qualidade de titular de órgão ou representante da sociedade, mas que o agente actue do mesmo modo, exercendo as mesmas funções, substituindo-se e exercendo as funções correspondentes, ou seja que actue funcionalmente na qualidade de titular ou órgão ou em representação.». -  Germano Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administrado9res e Representantes, p.308 a 315.

Desta feita, por força da cláusula de extensão do tipo prevista no artigo 12º do Código Penal, a qualidade da sociedade da devedora insolvente exigida pelo n.º 1, do artigo 227.º do Código Penal, transmite-se às pessoas singulares que, em nome daquela, exerçam a respectiva gerência ou administração de facto e/ou de direito, podendo, assim, ser responsabilizados criminalmente como autores imediatos do crime de insolvência dolosa.

Mas se esta posição obteve consenso em relação aos legais representantes, o mesmo não sucedeu relativamente aos administradores de facto, havendo quem defendesse que, à luz do artigo 12.º, não eram susceptíveis de responsabilidade criminal.

Para Pedro Caeiro, «(…) o artigo 12.º ao referir as pessoas que actual como titulares (…) não pretende responsabilizar aqueles que, não o sendo, se fazem passar por tal, mas sim os agentes que praticam as condutas proibidas enquanto titulares», enquadrando na qualidade de terceiro (artigo 227.º, n.º 2) as hipóteses de «consilium fraudis entre a pessoa jurídica e o agente não titular do órgão ou de poderes de representação» (gestão de facto) e as «hipóteses de “gestão real” por sócios não dotados aqui daquela titularidade ou daqueles poderes que actuem em beneficio de uma pessoa gerida por “testas de ferro”.» - Pedro Caeiro, Anotações aos artigos 227.º e 229.º do Comentário Conimbricense, p. 411. 

Neste sentido pronunciou-se, também, Maria João Antunes no voto de vencido proferido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 128/2010 de 13 de abril de 2010 (www.tribunalconsitucional.pt),  para quem o artigo 12.º citado, ao referir a punibilidade de quem age voluntariamente como titular de órgão de pessoa colectiva,  reporta-se necessariamente ao legal administrador de direito.

Em sentido oposto, Maria Fernanda Palma, socorrendo-se da ideia da aparência da titularidade do órgão ou poderes de representação, defende que «aparência jurídica permitirá (…) que meros sócios ou outros agentes que não sejam titulares, do ponto de vista jurídico, dos órgãos da pessoa colectiva, mas o sejam de facto, realizem o tipo».  [Fernanda Palma, Aspectos Penais da Insolvência e da Falência, RFDUL, vol. XXXVI, n.º 2, p. 412].

Seja como for, a questão de saber se o administrador de facto pode ser responsabilizado criminalmente pelos actos voluntariamente praticados em nome sociedade acabou por ser resolvida com a introdução no artigo 227.º, do n.º 5 da Lei n.º 65/98, de 2 de setembro (actual n.º 3), a estabelecer que, «sem prejuízo do disposto no artigo 12º, é punível nos termos dos n.ºs 1 e 2 deste artigo, no caso de o devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva e houver praticado algum dos factos previstos no n.º 1.».

Deste modo, pode afirmar-se que a prática das condutas prevista no n.º 1, do artigo 227.º, do Código Penal, por uma pessoa singular é punida como autor imediato, em caso de ser o devedor insolvente (n.º 1) ou terceiro (n.º 2). 

Quando o devedor for uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação, a incriminação recai no agente que actue voluntariamente como titular do respectivo órgão, ou em representação legal ou voluntária do mesmo, [por extensão da qualidade de devedor, ao abrigo do disposto no artigo 12.º e 227.º, n.º 1] ou  exercer de facto a gestão ou tiver a direcção efectiva do ente colectivo, nos termos do artigo 227, n.º 3, ou, ainda se não tendo nenhuma das qualidades descritas, agir com o conhecimento do devedor e em beneficio deste.

Com esta extensão, assegurou o legislador, como era sua intenção, a tutela do património dos credores, pois, se o agente físico – rectius administrador – não fosse punido, os crimes insolvenciais ficariam desprovidos de qualquer tutela, na medida em que a pessoa colectiva não é responsável pelos mesmos. Neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal Relação de Coimbra de 13 de março de 2019 (Relatora: Desembargadora Elisa Sales)

Já quanto ao terceiro  - aquele que praticar as condutas descritas como conhecimento do devedor ou em beneficio deste – a incriminação não resulta da extensão da qualidade de devedor, mas da autonomia que lhe é conferida pelo artigo 227.º, n.º 2, do Código Penal. 

Terceiro, para efeitos de responsabilidade criminal, é  «alguém para quem não é transferível juridicamente a caracterização objectiva do autor e que, portanto, não possui (ou pode não possuir) sequer o elemento subjectivo especial da ilicitude (a intenção de prejudicar os credores); assim a sua responsabilidade atenuada adequa-se a um menor desvalor da acção relativamente ao património dos credores» [Fernanda Palma, Aspectos Penais da Insolvência e da Falência, RFDUL, vol. XXXVI, n.º 2, p. 412]..

Por consequência, o terceiro a que alude o artigo 227.º, n.º 2, do Código Penal, não pode ser nem o titular do órgão ou representante do devedor (punido pelo artigo 12.º); nem administrador/gerente de facto do devedor (punido pelo n.º 3, do artigo 227.º); nem o comparticipante do devedor nos termos dos artigos 26.º a 28, a Código Penal. – [Pedro Caeiro, Anotações aos artigos 227.º e 229.º do Comentário Conimbricense, p. 430-431]. 

Na base desta incriminação parecem estar – escreve Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, 410 – «específicas razões de política criminal: com efeito, grande parte das condutas típicas podem ser praticadas, com êxito, por terceiros ao serviço da vontade do devedor ou com ele concertados – e por isso se exige que as condutas sejam conhecidas do devedor ou levadas a cabo em seu benefício – tornando-se, todavia, muito difícil provar a autoria mediata do devedor ou a co-autoria para efeitos do art.º 28 do CP. Assim, o legislador decidiu punir a título de autor imediato o terceiro que não seria punido por não se provar a comparticipação (…)».

No nosso caso, o arguido exerceu funções de gerente e de direcção efectiva da sociedade B..., Lda. – factos provados n.ºs 1 a 4 e 8 –  e praticou, enquanto titular do órgão de gerência e em representação daquela, os factos provados n.ºs 9 a 14, 18, 20, 22 a 24, 26, 28 a 30.

Ou seja, apesar da qualidade de devedor pertencer à sociedade insolvente, B..., foi o Recorrente quem, convocando a qualidade de gerente, seu legal representante, agiu em nome da mesma, no âmbito dos poderes que lhe foram atribuídos, praticando os actos típicos que integram a prática do crime de insolvência dolosa. Esta conduta faz repercutir sobre o arguido a qualidade de devedor da B..., por força da extensão da tipicidade prevista nos artigos 12.º e 227.º, n.º 3, do Código Penal.

Dito de outro modo, o Recorrente, ao praticar os factos típicos respetivos voluntariamente e em nome da sociedade, como gerente de facto e de direito, constituiu-se autor imediato do crime de insolvência dolosa pelo qual foi condenado, em conformidade com o disposto nos artigos 11º. e 12.º e 227.º, n.º 3, todos do Código Penal.

Temos, assim, alguma dificuldade em compreender a argumentação do Recorrente de que, por falta da qualidade de devedor necessária ao preenchimento do ilícito em causa, actuou como terceiro.

Do que precede facilmente se constata que não assiste razão ao Recorrente, improcedendo, pois, a Conclusão B.16.

6 -  Medida da Pena

Finalmente insurge-se o Recorrente contra a medida da pena.

Se bem percebemos os argumentos recursivos a dissidio com a medida da pena aplicada assenta em duas razões fundamentais: a procedência da impugnação de facto com a absolvição do arguido e a procedência da condenação do arguido como terceiro, nos termos do n.º 2, do artigo 227.º, do Código Penal, com a consequente atenuação especial da pena.

Porém, nenhuma destas pretensões obteve provimento, ficando, assim, prejudicado o conhecimento da medida da pena.

Mas se outra for a intenção do arguido, diga-se a determinação da pena de dois anos e seis meses de prisão, entre uma moldura abstracta um mês e dez dias a seis anos e oito meses de prisão – artigos 41.º, n.º 1, 227.º, n.º 1 e 229.º A do Código Penal – se mostra adequada às finalidades da punição (artigos 40.º e 71.º, n.º 1 e 2, do Código Penal), não merecendo, por isso, qualquer censura.    

V. DECISÃO

Nestes termos, os Juízes, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, acordam em julgar não provido o Recurso interposto por AA, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCS.

Notifique.

Coimbra, 10 de julho de 2024