CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
NULIDADES PROCESSUAIS
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
Sumário

1. A redacção do nº 2 do artigo 391º-B do CPP foi conferida pela Lei nº 26/2010, de 30/8, salvaguardando da obrigatoriedade de dedução de acusação no prazo de 90 dias ali previsto as situações de suspensão provisória do processo aquando do incumprimento das injunções impostas, circunstância em que aquele prazo se conta, conforme estabelece o nº 4 do artigo 384º, da verificação do incumprimento.
2. A revogação de uma suspensão provisória, pelo Ministério Público, não pode ser automática, devendo o arguido ser sempre ouvido, em ambas as situações do artigo 282º, nº 4 do CPP, de forma não presencial, dando-se, assim, cumprimento ao princípio do contraditório, constitucionalmente previsto, no artigo 32º, nº 5, da CRP, e concretizado no artigo 61º, nº 1, als. a) e b), do CPP.
3. Trata-se de uma nulidade dependente de arguição - a não audição do arguido redundou na omissão, em sede de inquérito, de um acto legalmente obrigatório, em resultado da qual se verificou uma nulidade dependente de arguição [cfr. artigo 120º, nos 2, alínea d), e 3, alínea c)].
4. No caso dos processos especiais, tal nulidade teria de ser arguida até ao início da audiência, sob pena de sanação [artigo 120º, nº 3, alínea d) do CPP].
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 5ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I – RELATÓRIO
           
             1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA

No processo abreviado nº 170/23.... do Juízo de Competência Genérica de Oliveira de Frades, por sentença datada de 15 de Março de 2024, foi decidido: 
· «Condenar o arguido AA como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artºs 292º, nº 1 e 69º, nº 1, al. a), ambos do CP, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 10 euros, num total de 600 euros, com 40 dias de prisão subsidiária, bem como na pena acessória de 5 (cinco) meses de proibição de conduzir veículos com motor».

            2. O RECURSO
Inconformado, o arguido recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1.ª) Entre os factos e a acusação decorreram 90 dias, razão pela qual não podia ser adoptada a forma especial do processo abreviado, conforme se alcança do artigo 319-B n.º 2 al. a) do CPP.
2.ª) Ocorre assim nulidade insanável por uso indevido do processo especial abreviado, nos termos do artigo 119.º, alínea f) do CPP.

Sem prescindir e por mera cautela

3.ª) Não consta dos factos provados na sentença que o arguido tenha conduzido veículo automóvel durante o período de tempo fixado na injunção, como proibição de conduzir, imposta na suspensão provisória e, consequentemente geradora de revogação desta.
4.ª) Sendo condição essencial que o tribunal de julgamento, após a revogação, adquira como facto provado a violação daquela injunção.
5.ª) É negado ao arguido o direito de usufruir da suspensão provisória do processo se esta vier a ser revogada e submetido a julgamento sem estar provado que violou alguma das injunções impostas.
6.ª) Sendo uma fraude à lei, sem que o arguido pudesse exercer o contraditório, imputar-lhe uma desobediência às imposições colocadas na suspensão provisória, sem que o tribunal de julgamento tenha adquirido como certo tal facto.
7.ª) A douta sentença recorrida fez incorreta interpretação e aplicação da lei e do direito, violando os artigos 281.º n.º 1 e 2 e 282.º n.º 4 alínea a) ambos do CPP.
TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, absolvendo-se o arguido».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.
Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões.
O recorrente NÃO impugna a MATÉRIA DE FACTO dada como provada, limitando-se a arguir nulidades processuais.
Assim sendo, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
a. Há nulidade de sentença por uso indevido do processo especial abreviado?
b. Antes da decisão do MP de acusar em processo abreviado, após revogação da suspensão provisória, deveria ter sido ouvido o arguido? Em caso afirmativo, foi cometida alguma nulidade? Está ela ou não sanada?

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA E SEUS ANTECEDENTES

            2.1. É esta a transcrição da sentença proferida:

«O MP requereu o julgamento, em processo especial abreviado, de
AA, solteiro, operário, filho de BB e de CC, nascido em ../../1994, natural da freguesia ..., concelho ..., residente na Rua ..., no Lugar ..., freguesia ..., deste concelho ...,
            imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artºs 292º, nº 1 e 69º, nº 1, al. a), ambos do CP.

*
            Em contestação escrita o arguido ofereceu o mérito dos autos – fl. 75.
*
            Discutida a causa, resultam provados os seguintes factos:

*
            Fundamentação:
*
            Atenta a factualidade supra exposta, cumpre proceder ao respectivo enquadramento jurídico:
            Ora, quanto a este, não podem restar dúvidas quanto ao cometimento, pelo arguido, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, posto que a sua conduta preencheu os pressupostos objectivo e subjectivo prevenidos no artº 292º, nº 1 do CP, incorrendo, outrossim, na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, atento o dispositivo constante do artº 69º, nº 1, al. a) do mesmo diploma.
*
            …».


2.2. Aqui se consigna que:
1. O Auto de notícia levantado pela GNR contra o arguido nestes autos foi redigido em 14 de Agosto de 2023, data dos factos ilícitos praticados pelo arguido e pelos quais acabou por vir a ser condenado na sentença recorrida.
2. Por despacho proferido nestes autos, em 14/8/2023, e havendo concordância do Exmo. Juiz de Instrução Criminal, foi decidido pelo MP proceder à suspensão provisória do processo pelo período de 7 (sete) meses, impondo ao arguido as seguintes injunções:
o Entregar, no prazo de 5 meses a contar do início do prazo de Suspensão Provisória do Processo, a quantia de € 500 (quinhentos euros), à Corporação dos Bombeiros Voluntários, comprometendo-se a juntar aos autos o comprovativo de tal entrega, devendo esse recibo mencionar que se trata de uma injunção imposta nestes autos até ao termo desse prazo;
o não conduzir veículos automóveis na via pública pelo período de 5 (cinco) meses, devendo entregar a sua carta de condução ou qualquer outro documento que o habilitem a conduzir veículos a motor,nestes serviços do Diap,no prazode 10 (dez) dias, após ser notificado do despacho que decretar a Suspensão Provisória do Processo.
3. A suspensão provisória do processo iniciou-se a 29 de Agosto de 2023 e terminaria a 29 de Março de 2024.
4. Em 5/12/2023, deu entrada nos serviços da Procuradoria do Juízo de Competência Genérica ..., um auto denotícia, elaborado pela GNR ..., no qual se dava conta que, no dia 26/11/2023, cerca das 14h40, o aqui Recorrente tinha conduzido um veículo automóvel, com a matrícula ..-..-NP, na via pública, concretamente na Estrada Municipal ...80, junto ao Restaurante “...”, em ..., o que veio a dar origem ao inquérito n.º 234/23.....
5. Por despacho datado de 14/12/2023, veio a ser revogada a suspensão provisória, nos termos do artigo 282º, nº 4, alínea a) do CPP, determinando o MP o prosseguimento do processo, no caso, acusando em PROCESSO ABREVIADO o arguido pela prática do crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, doravante CP.
6. Os autos foram remetidos para julgamento a 10/1/2024.
7. O tribunal de julgamento recebeu a acusação em 31/1/2024.
8. O arguido apresentou em 19/2/2024 uma CONTESTACÃO escrita com uma só página, oferecendo o mérito dos autos e tudo o que a seu favor em audiência de julgamento ficar provado, alegando ainda que «cumpriu todas as injunções que lhe foram impostas na suspensão provisória dos presentes autos».
9. Fez-se audiência de discussão de julgamento em 15/3/2024, tendo o arguido faltado ao mesmo (e foi condenado em multa processual por isso), sendo representado pelo seu ilustre defensor oficioso, hoje subscritor da peça de recurso.
10. Data a sentença recorrida de 15 de Março de 2024.
 
           3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, doravante CP.
O recurso do arguido não abrange a factualidade dada como provada, a subsunção dos factos ao Direito e o quantum da condenação efectuada, abarcando apenas nulidades processuais que, na sua óptica, devem justificar a sua absolvição.

3.2. Em primeiro lugar, alega a defesa que existe uma nulidade processual do artigo 119º, alínea f) do CPP – para si, foi empregue uma forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.
Argumenta assim:
· «conforme se alcança da acusação e da sentença, os factos imputados ao arguido ocorreram em 18 de agosto de 2024.
· A acusação do arguido em processo abreviado ocorreu em 14 de dezembro de 2024.
· E o seu recebimento pelo senhor juiz de julgamento ocorreu em 31 de janeiro de 2024.
· A submissão do arguido a julgamento em processo especial abreviado, conforme se alcança da acusação e da sentença não podia ter ocorrido.
· Na verdade, entre os factos e a acusação já tinham decorrido mais de 90 dias, razão pela qual não podia ser adoptada a forma especial do processo abreviado, conforme se alcança do artigo 319[1]-B n.º 2 al. a) do CPP».
Não tem razão a defesa.
Antes de mais, os factos da acusação datam de 14/8 e não de 18/8.
Mas o mais relevante é a deficiente leitura feita do preceituado no artigo 391º-B do CPP, referente a esta forma processual escolhida pelo MP (a forma especial de processo abreviado – artigos 391º-A a 391º-G do CPP)
Estipula tal normativo:

Artigo 391.º-B
Acusação, arquivamento e suspensão do processo

1 - A acusação do Ministério Público deve conter os elementos a que se refere o n.º 3 do artigo 283.º A identificação do arguido e a narração dos factos podem ser efectuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia.
2 -
Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 384.º, a acusação é deduzida no prazo de 90 dias a contar da:
a) Aquisição da notícia do crime, nos termos do disposto no artigo 241.º, tratando-se de crime público; ou
b) Apresentação de queixa, nos restantes casos.
3 - Se o procedimento depender de acusação particular, a acusação do Ministério Público tem lugar depois de deduzida acusação nos termos do artigo 285.º
4 - É correspondentemente aplicável em processo abreviado o disposto nos artigos 280.º a 282.º


Olhando para o nosso caso, sabemos que os factos ocorreram em 14/8/2023, tendo sido deduzida a acusação para além desse prazo de 90 dias (em 14/12/2023).
Contudo, a nossa situação cabe na excepção/salvaguarda referida no início do nº 2 do normativo em causa.
Dispõeo artigo 384º, nº4, do CPP que  “nos casos previstos no 4 do artigo 282º[2], o Ministério Público deduz acusação para julgamento em processo abreviado no prazo de 90 dias a contar da verificação do incumprimento ou da condenação”.
Esta redacção legal foi conferida pela Lei nº 26/2010, de 30/8, salvaguardando da obrigatoriedade de dedução de acusação no prazo de 90 dias ali previsto as situações de suspensão provisória do processo aquando do incumprimento das injunções impostas, circunstância em que aquele prazo se conta, conforme estabelece o nº 4 do artigo 384º, da verificação do incumprimento.
De facto, um dos casos referidos no nº 4, do artigo 282º, do CPP é precisamente a circunstância de o arguido violar alguma das regras injuntivas que lhe foram aplicadas em sede de suspensão provisória.
Se assim é, não releva para os presentes autos o facto de se ter ultrapassado o prazo de 90 dias estipulado para dedução de acusação sob a forma de processo especial abreviado – as normas mencionadas constituem uma excepção à regra constante do artigo 391º- B, nº 2, do CPP, até pelo uso da expressão “Sem prejuízo do disposto no artigo 4 do artigo 384”.
E assim os 90 dias contam-se desde a notícia do incumprimento, no caso, desde 26/11/2023 (a outra autuação feita no Pº 234/23....) – tendo sido deduzida acusação em 14/12/2023, tal prazo ainda não se havia completado, como é óbvio.
Improcede, assim, esta 1ª nulidade.

3.3. Quanto ao segundo argumento do recurso, há que dizer que conviveríamos melhor com a audição – não presencial[3] - do arguido quando se soube, em inquérito, da sua condução de 26/11/2023, e antes do despacho a revogar a suspensão provisória do processo, mesmo estando o processo na fase de inquérito dirigida pelo MP (que não é, já se sabe, o «tribunal» ou o «juiz de instrução»).
A lei é clara – o artigo 61º, nº1, alínea b) estipula que o arguido tem o direito de ser ouvido sempre que se tome qualquer decisão que pessoalmente o afecte.
E sufragamos aqui o que sentenciou esta Relação, por douto acórdão datado de 12/5/2021 (Pº 48/19.1GBGRD.C1):
«Conforme se assinala no Acórdão do STJ de 20-12-2006, “o princípio do contraditório tem uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspectiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar”.
No mesmo sentido, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio do contraditório abrange todos os actos susceptíveis de afectar a posição do arguido, devendo ser seleccionados “sobretudo de acordo com o princípio da máxima garantia de defesa do arguido”.
Ademais, como sustenta Maria João Antunes, “[a] participação processual penal que este princípio permite, correspondendo-lhe, em bom rigor, um verdadeiro direito de audiência, significará mesmo uma forma de participação constitutiva na declaração do direito do caso quando o participante tenha o estatuto de sujeito processual. Quando perspectivado da parte do arguido, este princípio é uma das garantias de defesa que o processo criminal lhe deve assegurar (artigo 32.º, n.º 1, da CRP)”.
O princípio do contraditório integra o estatuto processual do arguido, a quem são reconhecidos, em qualquer fase do processo, os direitos consagrados no artigo 61º, nº 1 do CPP, entre os quais o de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução, sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, e de intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias [alíneas b) e g) do artigo 61º, nº 1].
Não obstante da norma do artigo 32º, nº 5 da Constituição da República, ao subordinar a audiência de julgamento ao princípio do contraditório, se extraia o sentido de que este não tem de valer da mesma forma em todas as fases do processo, “o que é facto é que encontra expressão logo na de inquérito, nomeadamente por via do estatuto processual do arguido”.
Ora, a suspensão provisória do processo, pelas características que reveste, como solução de consenso e oportunidade, através da qual o arguido, ao manifestar a concordância exigida por lei, aceita respeitar determinadas injunções e regras de conduta e o Ministério Público se compromete a, caso elas sejam cumpridas, desistir da pretensão punitiva e a arquivar o processo../../../Data/fa00140/Desktop/15Maio21/48_19_1 Helena Bolieiro.docx - _ftn6, para além de que pressupõe também a intervenção de um juiz, apresenta-se como um dos institutos em que, logo na fase de inquérito, o princípio do contraditório, na vertente do direito a ser ouvido e a expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão, assume um particular significado e dimensão, já que se inscreve num âmbito em que as determinações do Ministério Público claramente afectam a pessoa do arguido e o atingem na sua esfera jurídica.
O que se verifica, quer com o decretamento da suspensão, propriamente dito, quer com a sua revogação e prosseguimento do processo.
(…) não pode deixar de se considerar que a revogação da suspensão provisória do processo implica a dedução de acusação e a consequente sujeição do arguido a julgamento e, nessa medida, é uma decisão que pessoalmente o afecta e sobre a qual tem o direito de ser ouvido.
A essencialidade do contraditório, mesmo num caso como o presente, em que a revogação tem como fundamento o cometimento, durante o prazo da suspensão, de crime da mesma natureza pelo qual o arguido veio a ser condenado, exige que o Ministério Público lhe dê a possibilidade de ser ouvido e se pronunciar sobre a preconizada revogação. O que deve ocorrer em sede prévia e (ainda) no inquérito, em ordem a ser considerado por quem nessa fase compete decidir da revogação – o Ministério Público.
Não bastando, pois, para tal efeito afirmar, como no recurso, que o arguido, não concordando com a revogação da suspensão provisória do processo e dedução de acusação, sempre poderá requerer a abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º do CPP.
(…)
É sabido que o fundamento de revogação previsto na alínea b) do artigo 282º, nº 4 do CPP, assenta na ideia de que, com o cometimento de crime da mesma natureza, durante o período da suspensão, o arguido revela que as finalidades da suspensão provisória do processo não foram alcançadas, sendo que não adequou o seu comportamento ao respeito pelo bem jurídico que já havia violado e, nessa medida, o cumprimento das injunções e regras de conduta não constitui resposta suficiente às exigências de prevenção.
É também sabido que, diversamente do que sucede com as causas de revogação previstas na alínea a) da mesma norma – incumprimento das injunções e regras de conduta –, o referido motivo da alínea b) determina o imediato prosseguimento do processo, sem depender de qualquer juízo sobre a culpabilidade do arguido, não havendo, pois, que proceder à confirmação de que se verificou incumprimento culposo e à averiguação dos motivos do mesmo, dando ao arguido a possibilidade de vir apresentar uma eventual justificação para o sucedido.
Ainda assim, tratando-se de acto que pessoalmente o afecta, a decisão de revogação deverá, também neste caso, ser precedida de audição do arguido, para cumprimento do princípio do contraditório que, como tal, assume relevância no plano essencialmente objectivo em que se move o fundamento da alínea b).
(…)
Como se constata, é possível equacionar a existência de eventuais razões objectivas que relevam para a decisão de revogação (ou não) da suspensão, pelo que no âmbito da exigência de contraditório que justificadamente se impõe para todo e qualquer acto susceptível de afectar a posição do arguido, ressalta a utilidade que se retira do atempado conhecimento, na fase própria, de eventuais vicissitudes como as acima exemplificadas.
Por fim, para além da jurisprudência que, abono da solução propugnada, foi citada no despacho recorrido, importa ainda referir o entendimento dos seguintes autores, para quem o dever de assegurar o contraditório constitui uma exigência quanto a todos os fundamentos de revogação, não podendo, por conseguinte, deixar de abarcar as situações da alínea b):
- Sónia Fidalgo – “Continua, no entanto, em aberto a questão de saber de que modo deve ser feita a revogação (seja qual for o fundamento) (…). Na nossa perspectiva a revogação não pode ser automática. O arguido terá, obviamente, de ser ouvido – trata-se de dar cumprimento ao princípio do contraditório, constitucionalmente previsto, no artigo 32.º, n.º 5, da CRP, e concretizado no artigo 61.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP”;
- João Conde Correia – “O prosseguimento do processo não é, mesmo nos casos mais graves, automático, pressupondo antes que ao arguido seja dada a possibilidade mínima de se pronunciar sobre a revogação/manutenção da suspensão provisória do processo [SÓNIA FIDALGO, 2008, p. 289; ac. RG, 28.1.2019 (MÁRIO SILVA); ac. RC, 18.10.2017 (INÁCIO MONTEIRO)]. À semelhança da revogação da suspensão da execução da pena de prisão (art. 495.º/2), exceto nos casos em que isso não seja possível [v.g. porque o próprio arguido não comparece ou porque inviabiliza a própria convocatória: ac. RC, 11.7.2017 (JORGE FRANÇA); ac. RP, 29.3.2017 (MARIA LUÍSA ARANTES)], o arguido deverá ser ouvido, pelo MP (ou pelo JI se a suspensão for aplicada em fase de instrução) assim se cumprindo o contraditório (SÓNIA FIDALGO. 2008, pp. 289/90)”».
No nosso caso, até estamos perante a alínea a) do nº 4 do artigo 282º do CPP [e não da alínea b)], estando longe de se considerar que a revogação deva ser automática perante a falta de cumprimento de uma injunção.
Tal revogação depende sempre de uma valoração da culpa do arguido nesse incumprimento por mais óbvio que ele nos possa parecer (e defendemos que o critério estabelecido é o do incumprimento das injunções e regras de conduta com culpa grosseira ou reiterada do arguido, tal como prevê o artigo 56º do CP - cfr. posição de Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do CPP, 3ª edição, Universidade Católica Portuguesa).
No nosso caso, o arguido não foi ouvido.
Trata-se de uma nulidade dependente de arguição - a não audição[4] do arguido redundou na omissão, em sede de inquérito, de um acto legalmente obrigatório, em resultado da qual se verificou uma nulidade dependente de arguição [cfr. artigo 120º, nos 2, alínea d), e 3, alínea c), com referência ao artigo 61º, nº 1, alínea b), do CPP e 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa].
Ora, nos nossos autos tal nulidade está sanada pois não foi arguida em tempo.
Tal nulidade deveria ter sido deduzida, estando como estamos perante um processo especial, até ao início da audiência [artigo 120º, nº 3, alínea d) do CPP].
Nos autos só houve silêncio por parte da defesa.
Nem após a sua notificação da acusação.
Nem em sede de contestação em que nada refere.
Nem em audiência algo vem a arguir.
Só algo diz a este propósito em recurso.
Já decidiu a Relação de Guimarães em 23/1/2023 (Pº603/21.0GBVVD.G1) que:
«Em processo abreviado, o arguido que pretenda reagir contra o despacho do MP que revogue a suspensão provisória do processo e deduz acusação, tem de suscitar expressamente tal questão, de forma a que a mesma seja avaliada aquando do julgamento».
 Quase nos leva a dizer: a posição processual assumida pelo arguido após a dedução da acusação permite concluir de forma inequívoca que aceitou que incumpriu as injunções impostas no âmbito da suspensão provisória do processo e, por isso, ser submetido a julgamento (cfr. artigo 121º do CPP).
Improcede, assim, o 2º argumento da defesa.

3.4. Improcede, assim, o recurso, aqui se recordando que não foi posta em causa de forma directa a subsunção dos factos ao Direito e a dosimetria encontrada da pena, tudo a ser validado, pois, por esta Relação.

3.5. Em sumário, diremos:
1. A redacção do nº 2 do artigo 391º-B do CPP foi conferida pela Lei nº 26/2010, de 30/8, salvaguardando da obrigatoriedade de dedução de acusação no prazo de 90 dias ali previsto as situações de suspensão provisória do processo aquando do incumprimento das injunções impostas, circunstância em que aquele prazo se conta, conforme estabelece o nº 4 do artigo 384º, da verificação do incumprimento.
2. A revogação de uma suspensão provisória, pelo Ministério Público, não pode ser automática, devendo o arguido ser sempre ouvido, em ambas as situações do artigo 282º, nº 4 do CPP, de forma não presencial, dando-se, assim, cumprimento ao princípio do contraditório, constitucionalmente previsto, no artigo 32º, nº 5, da CRP, e concretizado no artigo 61º, nº 1, als. a) e b), do CPP.
3. Trata-se de uma nulidade dependente de arguição - a não audição do arguido redundou na omissão, em sede de inquérito, de um acto legalmente obrigatório, em resultado da qual se verificou uma nulidade dependente de arguição [cfr. artigo 120º, nos 2, alínea d), e 3, alínea c)].
4. No caso dos processos especiais, tal nulidade teria de ser arguida até ao início da audiência, sob pena de sanação [artigo 120º, nº 3, alínea d) do CPP].

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs [artigos 513º, n.o 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].
Coimbra, 10 de Julho de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

 Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Rui Pedro Lima (com voto de vencido que segue anexo)
Adjunto: Alexandra Guiné
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VOTO DE VENCIDO do 1º Adjunto:
«É meu entendimento que a audição do arguido, previamente à decisão de revogação da suspensão provisória do processo, e entre o mais porque precisamente esta não se segue necessária e automaticamente à verificação dos pressupostos previstos pelo art. 282.º/4-a, do CPP (incumprimento de injunções e regras de conduta que a condicionam), deve ser presencial – por princípio e de resto em aplicação analógica do disposto pelo art. 495.º/2, do CPP.
Nessa conformidade, e em leitura que julgo ser a mais conforme à amplitude das garantias de defesa e direito ao contraditório constitucionalmente assegurados (art. 32.º(1/5, da CRP), considero que a omissão de uma tal audição, que no caso com efeito não teve lugar (nem presencial nem sem sê-lo…), importa verdadeiramente, nos termos dos art. 61.º/1-a-b, e 119.º/c, do CPP, uma nulidade insanável – o que de resto se mostra em linha com a gravidade de uma revogação decidida sem prévia audição alguma, como se na verdade fosse consequência necessária e automática da verificação dos pressupostos, coisa tanto mais censurável em se tratando especificamente dos da al. a) daquele art. 282.º/4.
Assim exposto tão sucintamente quanto o logro, sem necessidade aqui de maior aprofundamento de razões, um tal entendimento foi o que esteve subjacente à decisão tomada, ainda muito recentemente, no Ac. deste TRC de 08/05/2024, no processo 890/22.6PBCTB, em que fui 1.º adjunto, tendo sido relatora a desembargadora Carolina Cardoso, e em face de dados processuais paralelos aos que aqui relevam (decisão publicitada em www.dgsi.pt/jtrc, e na qual consta citação de doutrina e jurisprudência acompanhadas, para que aqui e a título ilustrativo remeto).
Aberto como tenho de manter-me à eventualidade de ser convencido a eventual alteração, mas não encontrando nas razões mobilizadas pela posição que agora faz vencimento, doutas como são, motivos que julgue bastantes para inverter a minha, mantenho enfim aquele entendimento. E desse modo e em coerência, levando-o aqui às suas evidentes consequências lógico-processuais, tendo em conta a cognoscibilidade oficiosa e em qualquer estado do procedimento que concita uma nulidade insanável, tê-la-ia declarado, dela extraindo a invalidade da revogação da suspensão provisória do processo e, com isso e sem resto, dos mais actos subsequentes, incluindo naturalmente a dedução da acusação, o recebimento dela, o julgamento e, enfim, a sentença em recurso (art. 122.º/1, do CPP) – tudo com o inerente regresso do processo a inquérito para que, desta feita precedida da omitida audição presencial do arguido (ou de ser-lhe dada tal possibilidade e sem prejuízo de inviabilidade – que no caso não coube equacionar), fosse tomada, então sim, decisão sobre revogar ou não a suspensão provisória do processo, como aliás na dita situação similar foi naquele outro referido aresto decidido.
É nisso e pelas razões expostas que fico vencido - Pedro Lima»        


[1] Leia-se antes «391».
[2] Incumprimento das injunções da SPP.
[3] Seguimos de perto a tese do Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 23/4/2024 – Pº 81/20.0PAOER.L1-5, opinando que as exigências processuais de «incidentes» numa fase de inquérito não podem ser as mesmas da tramitação por ocasião de uma revogação da suspensão da execução de uma pena transitada em julgado:
«I- A revogação da suspensão provisória do processo tem que constar de despacho fundamentado e após ser dada a oportunidade ao arguido de se pronunciar (ao abrigo do disposto no art. 61º, nº 1, alínea b) do Cód. Proc. Penal), o que se basta com a notificação ao arguido e ao advogado que o defende para o efeito, não sendo necessária uma audição presencial.
II- A falta dessa diligência não constitui a nulidade insanável prevista no art. 119º, alínea c) do Cód. Proc. Penal, mas a nulidade prevista no art. 120º, nº 2, alínea d) do Cód. Proc. Penal, que tem que ser foi invocada no prazo previsto na alínea c) do nº 3 do art. 120º do Cód. Proc. Penal».
[4] O que se basta com a notificação ao arguido e ao advogado que o defende para o efeito, não sendo necessária uma audição presencial.