CONCORRÊNCIA
ACÇÃO POPULAR
LEI N.º 23/2018 DE 5.06
REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS
Sumário

(da responsabilidade do relator):
I. A isenção parcial de custas prevista no art.º 20. da Lei n.º 83/95 foi revogada com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 34/2008, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais.
II. O exercício de direitos no âmbito do regime das ações populares goza da isenção de custas prevista no art.º 4º, n. 1, al. b), do Regulamento das Custas Processuais.

Texto Integral

Acordam na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO:

I. ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS tendo sido notificada da Sentença que fixou as “[c]ustas totalmente a cargo da Requerente”, recorreu da mesma, nesta parte.

Formulou as seguintes conclusões:

A. A jurisprudência tem vindo a entender que o regime do artigo 20.º da Lei n.º 83/95 deixou de ser aplicável com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 34/2008, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais.
B. Esta posição dos Tribunais alicerça-se, inter alia, na interpretação de que o artigo 25.º do referido Decreto-Lei revogou a isenção de custas estabelecida no artigo 20.º da LAP.
C. Esta interpretação foi confirmada pelo DL n.º 114-A/2023, que transpõe a Diretiva (UE) 2020/1828 relativa a ações coletivas para proteção dos interesses dos consumidores, ao consagrar no seu artigo 18.º a mesma regra de isenção de custas processuais, por remissão para o RCP.
D. A recente jurisprudência dos tribunais superiores é clara na aplicação às ações populares totalmente improcedentes do regime de isenção de custas do RCP.
E. Os tribunais têm vindo a aplicar maioritariamente o artigo 4.º(1)(b) do RCP, embora tenham aplicado ocasionalmente as alíneas (f) e/ou (g) do mesmo artigo, como fundamento normativo para isentar de custas os Autores no exercício do direito de ação popular, mesmo em caso de improcedência total do pedido.
F. A isenção de custas prevista no artigo 4.º(1)(b) do RCP apenas conhece a exceção contemplada no n.º 5 do mesmo artigo 4.º: a parte isenta é responsável pelo pagamento das custas, nos termos gerais, quando se conclua pela manifesta improcedência do pedido.
G. No caso em apreço, o tribunal recorrido não concluiu – e bem – pela manifesta improcedência do pedido deduzido pela Requerente, ora Recorrente. A sua conclusão baseou-se na aplicação da norma da LAP a uma situação de improcedência total, e não a uma situação de improcedência manifesta.
H. Pelo que não tem aplicação, in casu, a exceção prevista no artigo 4.º(5) do RCP, estando a Recorrente isenta de custas ao abrigo do disposto no artigo 4.º(1)(b) do RCP.

Termina pedindo que deve “a Sentença ser revogada na parte em que a Recorrente foi condenada em custas, substituindo-se esse segmento decisório pela declaração de que não há lugar a custas por a Requerente delas estar isenta”.

II. Para o que importa, resulta do autos e o tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade:

1. A ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS veio, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho  (“LPE”), no exercício do direito de acção popular previsto nos artigos 52.º, n.º 3 e 60.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, no artigo 19.º da Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho, nos artigos 2.º, n.º 1 e 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, rectificada pela Rectificação n.º 4/95, de 12 de Outubro, e revista  pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro e no artigo 31.º do Código de Processo Civil (CPC), intentar a presente PROVIDÊNCIA para decretamento de medidas provisórias de preservação de meios de  prova, solicitando que sejam notificadas as Requeridas da obrigação de conservação de todos os documentos identificados no ponto 3 do requerimento inicial, na sua versão confidencial, ou, subsidiariamente, na sua versão não confidencial, sob cominação de aplicação das consequências jurídicas previstas no artigo 18.º da LPE.

2. Por sentença, foi julgada “totalmente improcedente a presente providência antecipatória intentada pela Requerente ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS e, em consequência, absolvo as Requeridas GESTVINUS - INVESTIMENTOS E SERVIÇOS VITIVINÍCOLAS E COMERCIAIS, S.A. e ACTIVE BRANDS – DISTRIBUIÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE MARCAS,          S.A., dos pedidos contra si deduzidos consistente na obrigação de conservação de todos os documentos identificados no ponto 3 do requerimento inicial, sob cominação de aplicação das consequências jurídicas previstas no artigo 18.º da LPE”.

3. Mais se decidiu:
 “Custas totalmente a cargo da Requerente, no valor que fixo em ¼ das que 1400 normalmente seriam devidas, tendo em vista a ausência de elementos que atestem a situação económica da Requerente e por isso cingindo-me especialmente à razão formal ou substantiva da improcedência, onde se considerou a complexidade do procedimento – artigo 539.º, n.º 1 do CPC e n.º 3 do artigo 20.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.

4. A Requerente ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS é uma associação de direito  privado, com personalidade jurídica, constituída em Lisboa em 6 de Março de 2020, por escritura pública exarada de folhas cento e duas a folhas cento e quatro do livro de notas para escrituras diversas, número oitenta e dois do Cartório Notarial da notária Rita Costa e respectivo documento complementar, tendo sido inscrita junto do Registo Nacional de 151 Pessoas Colectivas em 10 de Março de 2020, com o NIPC 515807753, e tendo estes Estatutos entretanto sido revistos por assembleia geral de 22 de Abril de 2022;
Segundo o n.º 1 do artigo 2.º dos seus Estatutos, a Requerente é “uma entidade sem fins lucrativos que tem como fim a defesa dos consumidores na União Europeia, visando em especial o aumento do bem-estar dos consumidores, e em geral a promoção do Estado de Direito, do ambiente 158 e da economia da União Europeia”;
Segundo as alíneas h), i) e m) do referido artigo 2.º dos seus Estatutos, “Na prossecução dos fins referidos nos números anteriores, a Associação tem o poder de praticar todos os actos jurídicos adequados para o efeito, incluindo:
(…)
Promover e intentar ações judiciais, ou recorrer a meios alternativos de resolução de litígios, para defesa dos direitos e interesses coletivos e individuais dos consumidores na União Europeia, na medida do permitido pelas leis aplicáveis, nomeadamente, com recurso a ações representativas de modelo “opt-in” ou “opt-out” (incluindo a ação popular) ou a qualquer outro meio processual de defesa de direitos e interesses difusos, coletivos ou individuais homogéneos, podendo ter por objetivo, entre outros, a obtenção da declaração da existência de direitos e obrigações, da imposição de comportamentos e/ou da indemnização de danos sofridos pelos consumidores resultante de uma  violação dos seus direitos ou interesses;
(…)”.

II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cf. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Assim, a única questão a decidir no presente recurso é a de saber se a sentença que condenou as recorrente nas custas processuais se mostra errada por a recorrente gozar da invocada isenção legal.

Como resulta dos factos acima descritos, a recorrente agiu ao abrigo do regime previsto na da Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho. Ou seja, no exercício de ação popular.
Reconhecida a sua legitimidade para tal ação (no caso, providência para decretamento de medidas provisórias de preservação de meios de prova), foi a mesma condenada, a final, nas custas processuais ao abrigo do disposto nos artigos 539.º, n.º 1 do CPC e n.º 3 do artigo 20.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.

Estabelece o primeiro (Custas dos procedimentos cautelares, dos incidentes e das notificações) que:
 “A taxa de justiça dos procedimentos cautelares e dos incidentes é paga pelo requerente e, havendo oposição, pelo requerido.”
A segunda das indicadas normas (Regime especial de preparos e custas) estabelece que:
 “1 - Pelo exercício do direito de acção popular não são exigíveis preparos.
2 - O autor fica isento do pagamento de custas em caso de procedência parcial do pedido.
3 - Em caso de decaimento total, o autor interveniente será condenado em montante a fixar pelo julgador entre um décimo e metade das custas que normalmente seriam devidas, tendo em conta a sua situação económica e a razão formal ou substantiva da improcedência.
4 - A litigância de má-fé rege-se pela lei geral.
5 - A responsabilidade por custas dos autores intervenientes é solidária, nos termos gerais.”
 
Deste modo, atendendo ao decaimento total, a autora foi condenada de acordo com os pressupostos previstos no n. 3, desta norma.

Segundo a recorrente, a condenação em custas mostra-se desacertada visto que “o regime do artigo 20.º da Lei n.º 83/95 deixou de ser aplicável com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 34/2008, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais”.
Na verdade, estabelece o art.º 25º do DL n.º 34/2008, de 26 de fevereiro (que aprovou o Regulamento das Custas Processuais), no n. 1, que “São revogadas as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estejam previstas no presente decreto-lei”.
Uma vez que, para estes efeitos, o DL 34/2008 entrou em vigor no dia 20 de abril de 2009 (art.º 26.º) é aplicável ao presente procedimento.

Perante o regime em vigor com a aprovação do Regulamento das Custas Processuais, a isenção (parcial) prevista no art.º artigo 20.º da Lei n.º 83/95 não é aplicável.
Atendendo ao decaimento total da autora a sua responsabilidade pelas custas seria, assim, total. Contudo, tal como alega, atuou no âmbito do regime da ação popular.
Estabelece o art.º 4º, n. 1, al. b), do Regulamento das Custas Processuais que:
1 - Estão isentos de custas:
(…)
b) Qualquer pessoa, fundação ou associação quando exerça o direito de acção popular nos termos do n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa e de legislação ordinária que preveja ou regulamente o exercício da acção popular;
(…)” .

É pois, para nós, evidente a isenção da recorrente que atua ao abrigo do regime da ação popular, como é reconhecido ela sentença, independentemente da improcedência total ou parcial das pretensões deduzidas. O que, de resto, é pacificamente reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça[1]:
“O artigo 20.º da Lei n.º 83/95 encontra-se revogado pelo Regulamento das Custas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro; da al. b) do n.º 1 do respectivo artigo 4.º, conjugado com o n.º 5, resulta que a parte que exerça o seu direito de acção popular está isenta de custas, salvo se o pedido for julgado “manifestamente improcedente”, caso em que é responsável “nos termos gerais”.
Pode ainda acrescentar-se, como nota a recorrente, que a intenção do legislador, expressa no Regulamento das Custas Processuais é reafirmada DL n.º 114-A/2023, que transpõe a Diretiva (UE) 2020/1828 relativa a ações coletivas para proteção dos interesses dos consumidores, ao consagrar no seu artigo 18.º, n. 1, que
Para efeitos de imputação das custas processuais aos titulares do direito de ação coletiva previstos no artigo 5.º, é aplicável o regime de isenção previsto no Decreto-Lei n.º 34/2008, de 24 de fevereiro, na sua redação atual, que estabelece o Regulamento das Custas Processuais”.
           
III. DECISÃO:
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando a sentença recorrida na parte em que condenou a recorrente em custas.
Sem custas.
 
Lisboa, 2024-09-11
A.M. Luz Cordeiro
Alexandre Au-Yong Oliveira
Bernardino Tavares
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[1] Cf., Ac. STJ de 12.11.2020 (processo 7617/15.7T8PRT.S2), e o Ac. STJ de 23.3.2021 (processo 42/08.8TBMTL.E3.S1), disponíveis in www.dgsi.pt