RECURSO PER SALTUM
CÚMULO JURÍDICO
ERRO DE DIREITO
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário


Tendo a vítima desapossado o agente, toxicodependente, de alguns bens (v.g. das duas últimas doses de cocaína que tinha em seu poder) - situação que, aparentemente, já ocorrera noutras circunstâncias - e sendo essa a causa da discussão entre ambos, na sequência da qual o agente matou a vítima com várias facadas, não fica demonstrada a existência do motivo fútil a que alude a al. e, do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.

Texto Integral

ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:

A - Relatório

A.1. Decisão recorrida

Através de acórdão proferido a 09 de abril de 2024 o Juízo Central Criminal de ... condenou o arguido e ora recorrente AA pela prática, em autoria material, em concurso real, dos seguintes crimes e nas seguintes penas1:

• Crime de homicídio, previsto e punível pelos artigos 131º do Código Penal e 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na redação da Lei nº 50/2019, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão;

Detenção e uso de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, na redação da Lei nº 50/2019, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

• Em cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão supra referidas, nos termos do disposto no artigo 77.º do Código Penal, foi o arguido condenado na pena única de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão;

A.2. Recurso do Ministério Público

Não se conformando com essa decisão, dela interpôs recurso o Magistrado do Ministério Público, tendo concluindo a sua motivação da seguinte forma (transcrição integral):

“III Conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão condenatório de 28.02.2024, nos termos do qual o arguido AA foi, para além do mais, absolvido da autoria material do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea e), ambos do Código Penal, tendo sido, ao invés, condenado pela autoria material de 1 (um) crime de homicídio, p. e p. pelo art.º 131.º do Código Penal e art.º 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23-02 (na redacção vigente), na pena de 16 (dezasseis) anos de

prisão.

2. Face aos factos dados como provados, discorda-se da absolvição do arguido da autoria material do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea e), ambos do Código Penal, de que vinha acusado, tendo o tribunal a quo violado esta normas quando concluiu pelo não preenchimento da circunstância qualificativa da prática do crime por motivo fútil.

3. Adere-se, na íntegra, aos fundamentos do voto de vencido consignado no acórdão recorrido.

4. Resulta do elenco de factos provados que, em síntese, foi na sequência de uma discussão com a vítima relacionada com doses de cocaína que estavam na posse do arguido, que este retirou da mala que trazia consigo uma faca de cozinha, disse à vítima “Vou-te matar!” e desferiu dois golpes nas costas da vítima e ainda um outro golpe na zona do pescoço, sendo que no decurso dessa acção, a lâmina partiu-se e, após a vítima, esvaindo-se em sangue, deslocou-se ainda na rua, até cair no solo, inanimado, concluindo-se que, in casu, o agente teve como móbil da acção uma razão ridícula, face à gravidade do acto.

5. Se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem, a grande desproporção entre o que se elege como motivo da acção e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes da sociedade e a razão do cometimento do crime surge, pois, com um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com o mesmo.

6. Inexistindo qualquer processo de perturbação psíquica susceptível de afectar a capacidade do arguido reger a sua vontade de acordo com a realidade percepcionada, é manifesto que o quadro factual descrito revela um primitivismo de reacções em que emergem as pulsões mais primárias e uma conduta da vítima com um mínimo de relevância é interpretada como uma ofensa susceptível de justificar a sua morte.

7. À face do cidadão médio o quadro descrito não só revela uma desproporcionalidade entre o motivo que despoleta o itinerário criminoso, ou seja, entre a ofensa e a reacção, mas consubstancia antes uma ausência de um processo compreensível que minimamente convoque a lógica como explicação da conduta do arguido, a qual, de resto, foi executada com extrema violência.

8. Conclui-se, então, que o arguido deveria ter sido condenado para o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal, e agravado, em conformidade com o art.º 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23-02, na sua redacção actual.

9. Atenta a moldura penal abstracta prevista, de 16 a 25 anos, e ponderados os demais fatores referidos no acórdão, aos quais se aderem, o arguido deveria ser punido por este crime com a pena de 18 anos de prisão, em respeito do disposto nos art.ºs 40.º e 71.º do Código Penal.

10. Concordando-se com o douto acórdão recorrido no que toca à também condenação do arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida e, bem assim, concordando-se também com os demais factores de ponderação da medida da pena em relação aos crimes imputados devidamente enunciados e com a demais fundamentação jurídica, deveria ser de 18 anos e 6 meses de prisão a pena única a fixar pelos dois crimes que praticou, em respeito do disposto no art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, por ser a mesma adequada e proporcional.”

A.3. Resposta

Notificado das motivações de recurso o arguido não apresentou resposta

A.4. Parecer do Ministério Público no STJ

Neste Supremo Tribunal de Justiça o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer, o qual concluiu nos seguintes termos:

“Em conclusão:

A. - O recurso interposto pelo Ministério Público, na sequência do voto de vencido lavrado no acórdão recorrido, baseia a apreciação acerca da especial censurabilidade e perversidade da atuação do arguido (pedindo a qualificação do crime por ter na sua base ‘motivo fútil’) em factualidade diversa da que se mostra fixada no acórdão recorrido quanto à motivação do arguido para a prática dos factos integradores do crime de homicídio;

B. - Isto porque no acórdão foi dada credibilidade ao arguido quando o mesmo justificou a sua atuação por força de problemas já anteriormente existentes com a vítima, problemas que ali ficaram descritos em sede de fundamentação, enquanto a recorrente (e a autora do voto de vencido) expressamente referem não aceitarem a veracidade de tal motivação por parte do arguido;

C. - Assim sendo, partindo-se do que ficou referido no acórdão quanto àquela justificação, não se verifica o preenchimento dos requisitos necessários a entender-se pela qualificação do crime;

D. - Nem mesmo isso sucederia caso se entendesse que apenas teria estado na base da atuação uma única disputa acerca de doses de estupefacientes para consumo do arguido: É sabido que o consumo de estupefacientes potencia a agressividade dos seus utilizadores, muitos dos crimes tendo na sua base essa toxicodependência, não olhando os consumidores a meios para conseguirem a dose para consumo;

E. - Se bem que obviamente censurável a atividade de tirar a vida a outrem (censurabilidade inerente a qualquer ato que vá naquele sentido), não se pode entender, sem mais, pela especial censurabilidade da atuação de alguém que pratica os factos integradores do crime de homicídio no âmbito de disputa por estupefacientes, sendo destes produtos consumidor, tendo como último fito o manter-se na posse de tais produtos.

- Assim sendo, é parecer do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça que não deverá ser julgado procedente o recurso, antes se mantendo a decisão recorrida, aqui se incluindo as penas aplicadas ao arguido (sendo que, quanto à aplicada pela prática do crime de homicídio, já foi tomado em conta o motivo que esteve na base da sua prática e a sua gravidade: sendo certo que não foi entendido como fútil para efeitos de qualificação do homicídio, acabou por levar a que a pena mostre alguma severidade, dentro da moldura abstrata, atentas as necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir).

A.5. Contraditório

Devidamente notificado nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não apresentou resposta.


* * *


B - Fundamentação

B.1. âmbito do recurso

O âmbito do recurso delimita-se, como se sabe, pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença (artigo 379º, nº do Código de Processo Penal), podendo ainda conhecer-se oficiosamente de irregularidades que possa afetar o valor do ato praticado (artigo 123º, nº 2 do Código de Processo Penal).

As questões colocadas pelo recorrente e que cumpre apreciar neste recurso são a seguinte:

1 – Os factos e o S.T.J.

2 – Erro de direito

3 - Medida das penas

B.2. Matéria de facto dada como assente

O acórdão recorrido deu como assente a seguinte matéria de facto (transcrição integral):

1. Factos provados

Da discussão da causa e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 29 de Abril de 2023, cerca das 00h45, nas ..., em ..., o arguido e BB envolveram-se em discussão relacionada com doses de cocaína que estavam na posse do arguido.

2. Nessa data, o arguido AA era consumidor habitual de cocaína.

3. Assim como BB também era consumidor de cocaína e de canabinóides.

4. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, no quadro dessa discussão, o arguido retirou de uma mala que trazia consigo uma faca de cozinha com o cabo em madeira, de cor castanha, com uma lâmina em aço com 10,5 cm de comprimento, a qual empunhou na direcção de BB, ao mesmo tempo que lhe dizia: “Vou-te matar!”.

5. Com a referida faca, o arguido desferiu dois golpes nas costas de BB, e ainda um outro golpe, na zona do pescoço, sendo que no decurso dessa acção a lâmina partiu-se.

6. BB, esvaindo-se em sangue, caminhou até à Rua..., onde veio a cair ao solo, inanimado.

7. Nesse momento, o arguido retirou da mala que transportava uma outra faca de cozinha, com o cabo em madeira, de cor castanha, com 21cm de lâmina em aço, serrilhada.

8. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu, para além de dor, 1 (uma) ferida corto perfurante no pescoço, localizada superiormente ao trajecto da clavícula esquerda, na transição para a região cervical, medindo 1,7 cm x 0,5 cm, com bordo inferior anguloso e bordo superior reto; 1 (uma) ferida corto perfurante no tórax, localizada superiormente ao trajecto da clavícula esquerda, na transição para a região cervical, medindo 1,7 cm x 0.5cm, com bordo inferior anguloso e bordo superior reto; 1 (uma) ferida cortante, superficial, com 1,5cm de comprimento, sobre a região escapular esquerda e duas escoriações, a maior com 2,4 cm x0,5cm e a menor 2 cm x 0,5cm sobre a metade distal da clavícula esquerda.

9. Não obstante as manobras de reanimação realizadas pela elementos de emergência médica, BB veio a falecer no local, em consequência da lesão corto perfurante no tórax, localizada superiormente ao trajecto da clavícula esquerda, na transição para a região cervical, medindo 1,7 cm x 0.5cm, com bordo inferior anguloso e bordo superior reto, associada ao choque hemorrágico.

10. O arguido foi detido por elemento da Polícia Municipal, com recurso ao uso de gás pimenta, quando ainda mantinha na mão a faca serrilhada.

11. O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida de BB, num quadro de discussão, relacionada com doses de cocaína, bem sabendo que ao desferir golpes de faca nas zonas do corpo que visou – nas quais se encontram alojados órgãos vitais, como os pulmões e o coração e artérias sanguíneas de grande calibre – causaria lesões idóneas a causar a morte a BB, como veio a suceder.

12. O arguido agiu ainda com o propósito de deter as referidas facas, usando uma delas para desferir os golpes no ofendido, bem sabendo que embora as mesmas se destinassem ao uso doméstico, não podiam ser detidas fora dos locais do seu normal emprego, não tendo justificação para as ter consigo naquelas circunstâncias, o que quis.

13. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou, no que concerne à matéria do pedido de indemnização civil:

14. CC é pai de BB, nascido a ........1993.

15. BB faleceu, deixando vivos ambos os progenitores, que se mantinham a viver no ....

16. BB trabalhava em obras de construção civil e, por vezes, enviava dinheiro para seus pais.

17. As despesas como o funeral e repatriamento do corpo de BB foram suportadas por amigos.

18. As despesas com o funeral assumiram o montante de € 3.800,00.

Provou-se ainda:

19. AA nasceu em ..., onde viveu com os pais e os seis irmãos até aos 17 anos de idade, em ambiente familiar coeso, estruturado e organizado, com os pais integrados em mercado de trabalho, o pai (já falecido) como chefe do departamento da U..... e a mãe como funcionária numa empresa de confecção têxtil.

20. O arguido e os irmãos frequentaram a escola incentivados pelos pais, que tentaram proporcionar o melhor possível em termos de educação e transmissão de valores e regras.

21. Aos 17 anos o arguido veio para Portugal com a avó materna, na sequência de um problema de saúde e por necessidade de tratamentos médicos.

22. Após um ano, depois de concluir os tratamentos, o arguido abandonou os estudos a fim de se integrar no mercado de trabalho, na área da construção civil, onde esteve durante três anos.

23. Mais tarde começou a trabalhar como estafeta no C..., trabalho que manteve ao longo de sete anos.

24. Findo este tempo voltou à construção civil, como estucador, função que exercia na data dos factos.

25. Passado um ano após a sua chegada a Portugal a avó do arguido faleceu, passando este a viver nos estaleiros da obra onde trabalhava.

26. Mais tarde, o arguido conseguiu arrendar uma habitação na zona de ..., local onde viveu com uma companheira, relacionamento que manteve durante 12 anos.

27. Antes da sua reclusão a relação terminou, não mantendo o arguido qualquer contacto com a ex-companheira, que segundo o mesmo foi viver e trabalhar para a ....

28. Na data dos factos o arguido residia sozinho na referida habitação arrendada e trabalhava na construção civil, auferindo rendimentos que lhe permitiam fazer face às despesas gerais da habitação.

29. Desde há cerca de dois anos que o arguido mantinha consumos de cocaína.

30. Quando colocado em liberdade, o arguido pretende tratar da sua legalização em território nacional e reorganizar a sua vida, ao nível pessoal e profissional, referindo que terá o seu posto de trabalho assegurado pelo patrão.

31. Em meio prisional o arguido vem mantendo um comportamento normativo, de acordo com as regras institucionais, mantendo uma postura adequada e colaborante, encontrando-se a trabalhar como faxina, estando ainda integrado nas actividades desportivas.

32. Recebe visitas ocasionais de alguns familiares, nomeadamente um primo e duas tias, mantendo contactos telefónicos frequentes com a mãe, com os irmãos e com alguns amigos.

33. No certificado de registo criminal do arguido não se encontram averbadas condenações.

Da discussão da causa e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

34. No dia 29 de Abril de 2023, cerca das 00h45, nas ..., em ..., o arguido e BB envolveram-se em discussão relacionada com doses de cocaína que estavam na posse do arguido.

35. Nessa data, o arguido AA era consumidor habitual de cocaína.

36. Assim como BB também era consumidor de cocaína e de canabinóides.

37. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, no quadro dessa discussão, o arguido retirou de uma mala que trazia consigo uma faca de cozinha com o cabo em madeira, de cor castanha, com uma lâmina em aço com 10,5 cm de comprimento, a qual empunhou na direcção de BB, ao mesmo tempo que lhe dizia: “Vou-te matar!”.

38. Com a referida faca, o arguido desferiu dois golpes nas costas de BB, e ainda um outro golpe, na zona do pescoço, sendo que no decurso dessa acção a lâmina partiu-se.

39. BB, esvaindo-se em sangue, caminhou até à Rua..., onde veio a cair ao solo, inanimado.

40. Nesse momento, o arguido retirou da mala que transportava uma outra faca de cozinha, com o cabo em madeira, de cor castanha, com 21cm de lâmina em aço, serrilhada.

41. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu, para além de dor, 1 (uma) ferida corto perfurante no pescoço, localizada superiormente ao trajecto da clavícula esquerda, na transição para a região cervical, medindo 1,7 cm x 0,5 cm, com bordo inferior anguloso e bordo superior reto; 1 (uma) ferida corto perfurante no tórax, localizada superiormente ao trajecto da clavícula esquerda, na transição para a região cervical, medindo 1,7 cm x 0.5cm, com bordo inferior anguloso e bordo superior reto; 1 (uma) ferida cortante, superficial, com 1,5cm de comprimento, sobre a região escapular esquerda e duas escoriações, a maior com 2,4 cm x0,5cm e a menor 2 cm x 0,5cm sobre a metade distal da clavícula esquerda.

42. Não obstante as manobras de reanimação realizadas pela elementos de emergência médica, BB veio a falecer no local, em consequência da lesão corto perfurante no tórax, localizada superiormente ao trajecto da clavícula esquerda, na transição para a região cervical, medindo 1,7 cm x 0.5cm, com bordo inferior anguloso e bordo superior reto, associada ao choque hemorrágico.

43. O arguido foi detido por elemento da Polícia Municipal, com recurso ao uso de gás pimenta, quando ainda mantinha na mão a faca serrilhada.

44. O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida de BB, num quadro de discussão, relacionada com doses de cocaína, bem sabendo que ao desferir golpes de faca nas zonas do corpo que visou – nas quais se encontram alojados órgãos vitais, como os pulmões e o coração e artérias sanguíneas de grande calibre – causaria lesões idóneas a causar a morte a BB, como veio a suceder.

45. O arguido agiu ainda com o propósito de deter as referidas facas, usando uma delas para desferir os golpes no ofendido, bem sabendo que embora as mesmas se destinassem ao uso doméstico, não podiam ser detidas fora dos locais do seu normal emprego, não tendo justificação para as ter consigo naquelas circunstâncias, o que quis.

46. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou, no que concerne à matéria do pedido de indemnização civil:

47. CC é pai de BB, nascido a ........1993.

48. BB faleceu, deixando vivos ambos os progenitores, que se mantinham a viver no ....

49. BB trabalhava em obras de construção civil e, por vezes, enviava dinheiro para seus pais.

50. As despesas como o funeral e repatriamento do corpo de BB foram suportadas por amigos.

51. As despesas com o funeral assumiram o montante de € 3.800,00.

Provou-se ainda:

52. AA nasceu em ..., onde viveu com os pais e os seis irmãos até aos 17 anos de idade, em ambiente familiar coeso, estruturado e organizado, com os pais integrados em mercado de trabalho, o pai (já falecido) como chefe do departamento da U..... e a mãe como funcionária numa empresa de confecção têxtil.

53. O arguido e os irmãos frequentaram a escola incentivados pelos pais, que tentaram proporcionar o melhor possível em termos de educação e transmissão de valores e regras.

54. Aos 17 anos o arguido veio para Portugal com a avó materna, na sequência de um problema de saúde e por necessidade de tratamentos médicos.

55. Após um ano, depois de concluir os tratamentos, o arguido abandonou os estudos a fim de se integrar no mercado de trabalho, na área da construção civil, onde esteve durante três anos.

56. Mais tarde começou a trabalhar como estafeta no C..., trabalho que manteve ao longo de sete anos.

57. Findo este tempo voltou à construção civil, como estucador, função que exercia na data dos factos.

58. Passado um ano após a sua chegada a Portugal a avó do arguido faleceu, passando este a viver nos estaleiros da obra onde trabalhava.

59. Mais tarde, o arguido conseguiu arrendar uma habitação na zona de ..., local onde viveu com uma companheira, relacionamento que manteve durante 12 anos.

60. Antes da sua reclusão a relação terminou, não mantendo o arguido qualquer contacto com a ex-companheira, que segundo o mesmo foi viver e trabalhar para a ....

61. Na data dos factos o arguido residia sozinho na referida habitação arrendada e trabalhava na construção civil, auferindo rendimentos que lhe permitiam fazer face às despesas gerais da habitação.

62. Desde há cerca de dois anos que o arguido mantinha consumos de cocaína.

63. Quando colocado em liberdade, o arguido pretende tratar da sua legalização em território nacional e reorganizar a sua vida, ao nível pessoal e profissional, referindo que terá o seu posto de trabalho assegurado pelo patrão.

64. Em meio prisional o arguido vem mantendo um comportamento normativo, de acordo com as regras institucionais, mantendo uma postura adequada e colaborante, encontrando-se a trabalhar como faxina, estando ainda integrado nas actividades desportivas.

65. Recebe visitas ocasionais de alguns familiares, nomeadamente um primo e duas tias, mantendo contactos telefónicos frequentes com a mãe, com os irmãos e com alguns amigos.

66. No certificado de registo criminal do arguido não se encontram averbadas condenações.

1. Factos não provados

Com relevo para a decisão a proferir, não se provaram outros factos da acusação ou do pedido de indemnização civil, designadamente:

a. Com a faca de lâmina serrilhada, o arguido dirigiu-se de novo ao ofendido.

b. Tendo sido com esta faca que lhe desferiu o golpe no pescoço.

c. O arguido disse ainda à vítima “vou-te dar uma facada”.

d. Foi o assistente que assumiu o pagamento das despesas de funeral de seu filho e do repatriamento do corpo, incluindo a passagem de avião.

B.3. Motivação da matéria de facto dada como provada

Para o que ora interesse, o Tribunal a quo fez consignar sobre a motivação da decisão sobre a matéria de facto, o seguinte:

“Assim, considerando o que se deixou exposto, o Tribunal firmou a sua convicção na análise crítica da prova documental constante dos autos, com realce para a seguinte:

Auto de notícia de fls. 2-5;

Informação da Polícia Municipal de fls. 150-151;

Informação dos serviços de emergência médica de fls. 19;

Autos de apreensão de facas de fls. 20-21 e 22-23;

Auto de apreensão da roupa da vítima de fls. 88;

Autos de exame e avaliação das facas apreendidas de fls. 24-25 e 26-27;

Fotografia de fls. 29;

Auto de inspecção judiciária de fls. 65 a 83 (valorado apenas quanto aos elementos objectivos e fotográficos aí documentados, expurgando-se, naturalmente, quaisquer dados recolhidos junto de testemunhas e do arguido, bem como as conclusões aí vertidas);

Certidão de nascimento de fls. 305-306;

Recibo de fls. 268 verso;

Informação do SEF de fls. 330;

Relatório social de fls. 338-339;

CRC do arguido de fls. 347.

Tais elementos documentais foram concatenados com a prova pericial carreada para os autos, mais concretamente:

Relatório pericial de autópsia médico-legal de fls. 201-207, de análise de ADN de fls. 208-210 e de exame toxicológico de fls. 211-212, que permitiu o apuramento das lesões sofridas pela vítima e a forma como as mesmas foram provocadas, e ainda das substâncias estupefacientes que foram detectadas no organismo de BB, nomeadamente cocaína e canabinóides;

Relatórios de exame pericial e de recolha de objectos e de vestígios no local onde foi encontrada a vítima e, bem assim, de vestígios biológicos recolhidos ao arguido, juntos a fls. 114 a 136, e ainda o relatório pericial relativo à análise de tais vestígios biológicos, constante de fls. 195-196, o que permitiu apurar que os vestígios de sangue recolhidos da faca cuja lâmina se partiu tinham o perfil de ADN da vítima, contrariamente à faca serrilhada, na qual não foi encontrado qualquer vestígio de ADN de BB.

Os referidos elementos probatórios documentais e periciais foram ainda conjugados com a prova produzida em audiência de julgamento, que se reconduziu às declarações do arguido e aos depoimentos das testemunhas DD, transeunte que se encontrava no local em que ocorreram os factos, EE e FF, respectivamente tia e amigo de infância da vítima, GG e HH, empresários de construção civil, para quem o arguido trabalhou antes da situação em apreço nos autos.

O arguido prestou declarações reconhecendo em grande medida os factos, procedendo ao enquadramento da sua conduta.

Começou por dizer que “aquele homem chegou ao pé de mim a tirar aquilo que é meu, a tirar as minhas coisas, que estavam no meu bolso”, referindo que já em duas outras ocasiões anteriores isso sucedera, levando-o a que tivesse agido da forma como agiu. Afirmou, porém, que não tirou a vida daquele homem porque lhe quis tirar a vida, mas ele quis tirar-lhe o que era dele, tendo sido isto que o levou a actuar da forma que reconheceu, desferindo as facadas que vieram a determinar a morte de BB.

Relatou o arguido que no dia em questão, após sair do trabalho, cerca das 19 horas, deslocou-se até à zona do ... para adquirir cocaína, uma vez que era consumidor dessa substância. Comprou € 40,00 de cocaína (8 pequenos pacotes), tendo consumido parte nas ..., guardando duas das embalagens no bolso interior do blazer que envergava, onde tinha também o passaporte e cerca de € 60,00.

Efectuou o seu consumo sozinho e quando já se estava a ir embora surgiu BB – indivíduo que já conhecia de vista daquele local por ser também consumidor de cocaína – vindo de trás de um carro e que o viu com dinheiro (pois estava no local quando o arguido comprou a cocaína). Asseverou de BB o segurou pela gola do blazer, metendo-lhe a mão no bolso interior, daí lhe retirando as duas embalagens de cocaína e o dinheiro, retirando-lhe ainda do bolso das calças o telemóvel.

Perante essa conduta, pediu a BB que lhe devolvesse pelo menos o cartão do telemóvel, o que este negou, referindo o arguido que “aí deu-me uma fúria”, dizendo mais adiante que a vítima também lhe tinha dado um estalo na cara.

Depois de BB ter negado devolver-lhe o telemóvel/cartão e lhe ter dado “a fúria”, reconheceu que agarrou BB pela camisola, momento em que retirou da sua mala a faca de lâmina lisa, tendo desferido vários golpes no corpo da vítima, quando estavam de frente um para o outro, não sabendo bem como o atingiu, dizendo que “foi a fúria”. Depois disso, a vítima afastou-se de si, cambaleando alguns metros, vindo a ser amparado na queda por dois rapazes. Negou, contudo, ter proferido a expressão referida na acusação. Explicou ainda que segurou na faca pelo punho, cuja lâmina se partir quando estava a desferir os golpes.

Mais disse que só retirou do saco a segunda faca quando as pessoas que estavam no local se dirigiram para si com pedras e garrafas, asseverando que se tratava de uma faca que a antiga da dona da casa que estava a remodelar lhe dera.

Instado, esclareceu que não recuperou os seus pertences, pois quando a vítima lhe retirou os seus bens estava nas imediações das ... um outro indivíduo – com quem supôs que BB estivesse conluiado – para as mãos de quem a vítima passou os seus bens.

A testemunha DD prestou um depoimento desinteressado, não evidenciando qualquer interesse no desfecho da causa, não conhecendo nem a vítima, nem o arguido.

Explicou que na noite em causa se encontrava na Rua... com o marido, à porta do café localizado imediatamente ao lado das ..., o que concretizou com recurso à primeira fotografia de fls. 117 e às duas de fls. 118.

Referiu que quando viu a vítima e o arguido o primeiro já estava a sangrar, referindo que o arguido tinha na mão o que lhe pareceu ser uma garrafa. Mais disse que o arguido estava muito nervoso, dizendo “Eu vou-te matar!”, o qual retirou do saco que trazia consigo uma faca, seguindo no encalço da vítima, desferindo-lhe golpes nas costas. Esclareceu ainda que só depois de a faca que usou para atingir a vítima se ter partido é que o arguido voltou à sua mala, donde retirou a segunda faca. Todavia, não viu que o arguido a tivesse usado contra a vítima, concretizando ainda, com referência às fotografias supra referidas, o local onde a vítima ficou caída.

Já no que concerne aos acontecimentos que antecederam o momento em que visualizou a vítima já a sangrar, a testemunha nada soube esclarecer, o que se compreende, em face do local onde disse que se encontrava e a localização das escadinhas, sendo perceptível, designadamente das fotografias de fls. 116 (2ª foto) e 118 que a visibilidade para as escadinhas implicaria que a testemunha estivesse de frente para as mesmas.

Aqui chegados, sendo este o acervo probatório a considerar, pese embora o depoimento de DD se tenha reputado credível, certo é que não foi recolhido nenhum vestígio – quer no local dos factos, quer no próprio cadáver – que indicie que o arguido tivesse feito uso de uma garrafa de vidro para atingir, num primeiro momento, a vítima.

Na realidade, apenas a faca de lâmina lisa, que se partiu no corpo de BB evidenciava vestígios de sangue, na qual veio a apurar-se a existência do perfil de ADN da vítima, pelo que se concluiu que foi esta a única arma usada no crime.

Já no que concerne à dinâmica dos acontecimentos e motivação subjacente à conduta delituosa, subsiste apenas a versão que foi apresentada pelo arguido, a qual, aliás, o mesmo mantém desde o início deste processo, logo em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, onde reconheceu a prática dos factos, procedendo ao seu enquadramento nos termos idênticos aos que fez agora em sede de audiência de julgamento.

Aliás, tal versão foi mesmo validada pelo próprio Ministério Público na acusação que deduziu, pois que tendo os factos que antecederam a agressão com a faca ocorrido em local resguardado (nas ...), não tendo nenhuma testemunha assistido aos mesmos, foi apenas e só com base na versão apresentada pelo arguido que foi possível apurar o facto relativo à existência de uma discussão relacionada com doses de cocaína, que já se mostrava vertido na acusação.

Ou seja, não fora a credibilidade conferida à versão apresentada pelo arguido, não teríamos sequer apurado a existência de um qualquer motivo para o desencadear da conduta homicida.

Por outro lado, a versão apresentada pelo arguido e os concretos contornos enunciados assumem verosimilhança, considerando o local onde ocorreram, conotado com o consumo e tráfico de estupefacientes, local onde não raras vezes têm lugar actos de pequena criminalidade associada a tais consumos, como é o caso de furtos e roubos. Acresce que tal versão não foi infirmada por qualquer outro elemento probatório.

Assim, perante a ausência de outros elementos probatórios que infirmem a versão apresentada pelo arguido, aliada ao facto de a testemunha inquirida ter reconhecido que o arguido estava muito nervoso, considerando-se como plausível que o arguido acabara de ser desapossado de alguns dos seus bens, situação que, aparentemente, já ocorrera noutras duas ocasiões anteriores, entende-se que a dinâmica dos acontecimentos, tal como foi representada pelo arguido, no descrito contexto de discussão/disputa decorrente da subtracção de bens pela vítima ao arguido, não permite concluir pela existência de uma motivação frívola ou insignificante, como adiante melhor se explicitará em sede de fundamentação de direito.

Já no tocante à versão aventada pelo arguido para ter na sua posse as referidas facas, esta já não se mostra consentânea com o quadro de normalidade, não se afigurando plausível que trabalhando o arguido em obras de construção civil e estando a remodelar uma casa devoluta, como explicou, a antiga dona dessa casa lhe desse facas que aí tinham permanecido.

Perante o que se deixa exposto, no que tange à intencionalidade subjacente às condutas do arguido, apesar deste dizer que não tinha a intenção de matar a vítima, o Tribunal concluiu pela sua verificação de acordo com um juízo de verosimilhança, assente nas regras da experiência comum, no confronto com a demais factualidade objectiva apurada, com o percurso lógico supra enunciado, não se suscitando dúvidas quanto ao facto de o arguido ter actuado com dolo directo quanto a ambas as condutas. Acresce que ao desferir as facadas nas zonas corporais atingidas, com uma força tal que chegou a partir a lâmina da faca que empunhava, fê-lo com dolo homicida, ainda que se admita que o tenha feito num momento de raiva e descontrolo, como sucede, aliás, na maioria dos casos de idêntica natureza.

No que concerne à matéria dada como provada atinente ao pedido de indemnização civil, louvou-se o Tribunal nos elementos documentais supra referidos, designadamente na certidão do assento de nascimento da vítima, e no recibo de pagamento das despesas de funeral, conjugados ainda com os depoimentos de EE e FF. Ambas as testemunhas depuseram de forma serena e desinteressada, esclarecendo quanto ao relacionamento de proximidade que a vítima mantinha com seus pais, residentes no ..., tendo a última testemunha esclarecido que ele próprio e outros amigos procederam ao pagamento das despesas de funeral e repatriamento de BB, levando a que o Tribunal desse como não provado que tal custo tivesse sido suportado pelo assistente.

Já quanto à factualidade apurada relativa às condições pessoais e de vida do arguido, sopesaram-se os elementos documentais já referenciados, em particular o relatório social e CRC do arguido, conjugados com os depoimentos de GG e HH, que de forma sincera revelaram surpresa em ver o arguido nesta situação, o qual sempre consideraram um bom funcionário, que mantinha boas relações com os seus colegas de trabalho.

Por fim, a matéria dada como não provada, resultou da circunstância de se ter demonstrado realidade diversa, nomeadamente no tocante às alíneas b) e d), e também da insuficiência probatória verificada quanto às restantes alíneas, porquanto a prova produzida se mostrou insuficiente para persuadir o Tribunal a decidir de forma diversa.

Com efeito, da conjugação das declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha DD, conjugadas ainda com o relatório pericial de fls. 195-196, foi possível concluir que apenas a faca de lâmina lisa foi efectivamente usada nos golpes desferidos na vítima, a qual continha o perfil de ADN de BB, o mesmo não sucedendo com a faca de lâmina serrilhada, o que , aliás, se mostra consentâneo com o declarado pelo arguido e por DD, no que respeita ao uso das referidas facas.”

B.4. O voto de vencida

Para melhor se compreender o sentido e alcance do recurso apresentado e dado que o mesmo expressamente refere apoiar-se no voto de vencida de uma das Magistradas que formou o Tribunal Coletivo, a seguir se procede à sua transcrição integral:

“Votei vencida por considerar que, atenta a prova produzida, o arguido devia ser condenado pela prática do crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131º e 132º números 1 e 2 al. e) do Código Penal, cometido com arma (86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02 (na redacção vigente), pelos motivos que seguem.

O arguido admitiu que discutiu com a vítima BB, pelo facto de este lhe ter retirado duas doses de cocaína. É certo que nas suas declarações o arguido alegou um confronto físico com vítima e ainda que esta lhe tinha retirado o telemóvel e uma quantia em dinheiro tendo ocorrido contacto físico (com puxão da gola do casaco por parte da vítima e retirada do dinheiro e telemóvel dos bolsos). Alegou ainda que não recuperou os seus bens porquanto a vítima os entregou a terceira pessoa que estava no local e que não mais foi visto. Nessa sequência, o arguido desferiu golpes de faca em número que não se recorda bem como não se recorda das zonas do corpo que atingiu porquanto, nas suas palavras, teve uma fúria.

Ora, esta versão do arguido, de que tinha agido em defesa própria e da sua propriedade, é desmentida pelo depoimento para testemunha a DD e pela localização das lesões no corpo da vítima e bem assim pela própria dinâmica dos factos descrita nos factos provados.

De realçar que se provou que o arguido desferiu dois golpes nas costas da vítima, o que é compatível com o depoimento da referida testemunha que disse que viu o arguido a ir ter com a vítima munido com uma garrafa de vidro partida na mão e com uma faca, que a vítima já vinha ensanguentada e que após, o Arguido ainda lhe desferiu golpes de faca nas costas. Assim sendo, não havendo motivos para duvidar da credibilidade desta testemunha, em face destas incongruências entre as declarações do arguido e o depoimento da testemunha, discordo da valoração da credibilidade dada à versão apresentada pelo arguido, na parte em que declarou que teve um confronto físico com a vítima, antes das agressões. Nessa medida, entendo que a prova produzida permite concluir que o motivo para as agressões, como consta dos factos provados, foi a discussão por causa de duas doses de cocaína que estavam na posse do arguido mas sem qualquer confronto físico prévio com a vitima, que não foi visto por ninguém, tendo a vítima sido agredida pelas costas. Assim, atenta a ausência de qualquer reacção por parte da vítima é manifesto que o Arguido agiu de forma irracional e desproporcionada, o que remete para ter agido por motivo torpe ou fútil, nos termos imputados e melhor explanados infra.

No que toca à qualificação do homicídio nos termos previstos pelo art.º 132º/2 do Código Penal, são duas as operações a efetuar: averiguar se qualquer das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo em apreço se verifica no caso e em segundo lugar, se for caso disso, descortinar se não obstante a prova de algumas destas circunstâncias, não existirão outras com força e validade bastante para a afastar a sua censurabilidade ou perversidade que aquela ou aquelas evidenciam.

No caso do homicídio qualificado o resultado morte é produzido em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade, designadamente as previstas no n.º 2 deste artigo. Aqui trata-se de censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi produzida são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a um comportamento de acordo com os valores sociais. A especial censurabilidade refere-se a um maior grau de culpa e de ilicitude. 2

Perversidade remete para uma concepção emocional da culpa, o conjunto das ideias comuns de que o intérprete dispõe, a ideia de censurabilidade é o núcleo essencial da concepção normativa da culpa, consistindo na não determinação pela ordem jurídica, apesar de se poder determinar por ela. Neste caso o comportamento revela face à personalidade suposta e querida pela ordem jurídica, uma maior desconformidade da personalidade do agente manifestada no facto por referência à desconformidade já de si grande da personalidade subjacente à prática do homicídio simples.

Os factos relevantes para tal apreciação correspondem a todas as circunstâncias da conduta, quer na acção externa (instrumento utilizado, tipo e número das lesões, dinâmica do evento, etc.), quer nos aspectos relacionados com os motivos e objectivos que presidiram à acção (factos psíquicos), o que não se confunde com o dolo (sobre a distinção e em geral sobre a valoração jurídico - penal do móbil do crime vide, o Ac. do STJ de 9/11/94, in BMJ 441, pág. 36-52).

Em relação à alínea e) do n.º 2 do art.º 132º do Código Penal, como é pacifico na doutrina e jurisprudência, motivo fútil é o motivo de importância mínima. Será também o motivo «frívolo, leviano, a ninharia» que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, o que se apresenta notoriamente desadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática.

In casu, não existe qualquer outra razão explicitada que não o facto de o Arguido ter discutido com a vítima a propósito de duas doses de cocaína, afastado o confronto físico prévio ou qualquer acção de defesa. Ora, é manifesto que a disputa por duas doses de cocaína, ainda que o Arguido tivesse sido desapossado delas (e admitindo até, em tese, que tivesse sido desapossado de outros bens) não constitui motivo para lhe desferir dois golpes de faca pelas costas, um no pescoço e outro no tórax, sendo este último que lhe causou a morte

Por outro lado, a forma como foi utilizada a faca, tendo o Arguido admitido que desferiu os golpes segurando a faca com o punho fechado de cima para baixo as circunstâncias gratuitas em que tal utilização ocorreu, as zonas do corpo da vítima escolhidas pelo arguido, a indiferença em relação ao bem jurídico manifestada nas declarações do Arguido quando disse que isto são coisas que acontecem, todos estes factores apreciados em conjunto, criam um cenário de especial censurabilidade, entendida nos termos atrás expostos, aferidos assim por uma manifesta agravação da medida da culpa do arguido e do correspondente juízo de censura.

Inexistindo qualquer processo de perturbação psíquica susceptível de afectar a capacidade do arguido reger a sua vontade de acordo com a realidade percepcionada é manifesto que o quadro factual descrito revela um primitivismo de reacções em que emergem as pulsões mais primárias e uma conduta da vítima com um mínimo de relevância é interpretada como uma ofensa susceptível de justificar a sua morte. Aliás, o próprio arguido não soube motivar a sua conduta limitando-se a dizer que teve uma fúria, o que remete à irracionalidade supra referida que motivou a sua conduta.

À face do cidadão médio o quadro descrito não só revela uma desproporcionalidade entre o motivo que espoleta o itinerário criminoso, ou seja, entre a ofensa e a reacção mas, consubstancia antes uma a ausência de racionalidade ou, dito por outras palavras, uma ausência de um processo compreensível que minimamente convoque a lógica como explicação da conduta do arguido.

Está, assim, perfeitamente justificada a integração na alínea e) do artigo 132 do Código Penal.

Nessa medida, atenta a moldura penal abstracta prevista para o crime de homicídio qualificado p.p. pelos artigos 131º e 132º/1 e 2 al. e) e art.º 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02 (na redacção vigente), de 16 a 25 anos, e ponderados os demais fatores referidos no Acórdão, o Arguido deveria ser punido por este crime com a pena de 18 anos de prisão.

Concordo com o Acórdão no que toca aos demais fatores de ponderação da medida da pena em relação aos crimes imputados e com a demais fundamentação jurídica não incompatível com o presente voto de vencido e considero que a pena única adequada e proporcional a aplicar ao Arguido pelos dois crimes que praticou, é a pena de 18 anos e 6 meses de prisão.

B.5. Os factos e o Supremo Tribunal de Justiça

A impugnação da matéria de facto pode ser realizada, como se sabe, por duas vias: através do disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, quando ocorre erro de julgamento; ou através do disposto no artigo 410º, nº 2 do mesmo diploma legal quando a decisão enferma de vício.

Das motivações apresentadas e, sobretudo, da sustentação do recurso no voto de vencida acima transcrito, parece que o recorrente estará a querer usar a primeira via.

Contudo, face ao disposto nos artigos 434º do Código de Processo Penal, este Supremo Tribunal de Justiça não tem competência para apreciar tal recurso.

Por outro lado, o recorrente não alega nenhum dos vícios a que se reporta o artigo 410º nº 2 do mesmo diploma legal, nem este Alto Tribunal reconhece, lido o acórdão recorrido, a sua existência.

Assim, a apreciação do recurso tem de ser feita com base exclusivamente na matéria de facto apurada, lida à luz da motivação da respetiva decisão.

B.6. O erro de direito

O recorrente entende que, relativamente ao crime de homicídio, o tribunal a quo errou “quando concluiu pelo não preenchimento da circunstância qualificativa da prática do crime por motivo fútil.”

Ou seja, considera o recorrente que o arguido devia ter sido condenado pela prática do crime de Homicídio Qualificado, previsto e punido pelos arts 131º e 132º, nº 1 e 2, al. e) do Código Penal.

Contudo, para aí chegar, ignora todo um conjunto de informação que é relevante para tal apreciação, e que o Tribunal a quo consignou no acórdão recorrido, precisamente para justificar o afastamento dessa circunstância qualificativa.

Com efeito e recordando o que atrás se transcreveu: “Assim, perante a ausência de outros elementos probatórios que infirmem a versão apresentada pelo arguido, aliada ao facto de a testemunha inquirida ter reconhecido que o arguido estava muito nervoso, considerando-se como plausível que o arguido acabara de ser desapossado de alguns dos seus bens, situação que, aparentemente, já ocorrera noutras duas ocasiões anteriores, entende-se que a dinâmica dos acontecimentos, tal como foi representada pelo arguido, no descrito contexto de discussão/disputa decorrente da subtracção de bens pela vítima ao arguido, não permite concluir pela existência de uma motivação frívola ou insignificante, como adiante melhor se explicitará em sede de fundamentação de direito.

Entretanto, de acordo com Figueiredo Dias, motivo fútil “significa que o motivo da atuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (equivoca a repetida afirmação da nossa jurisprudência de que motivo fútil é o que não é ou nem sequer chega a ser motivo” cf. Por outros Ac. do STJ de 6-6-90, BMJ 398º 269), tudo que o facto surge com um produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.”3

Por outro lado, apenas para dar alguns exemplos do que se tem considerado “motivo Fútil e citando Paulo Pinto de Albuquerque:4 “Por exemplo, o motivo é fútil se o agente da PSP encosta uma arma à cabeça da vítima por mero exibicionismo e prime o gatilho, matando-a (ac. STJ de 26/10/1983, in BMJ, 330, 396); se o agente mata a vítima porque ela lhe disse” vou-me embora, não estou para aturar malucos que não conheço de lado nenhum” (Ac. STJ de 18/1/2012, in C.J., Acs. do STJ, XX,1,202); se o taxista dispara contra 3 jovens que não pagaram o serviço de transporte no valor de 7 € e se puseram em fuga (Ac TRE DE 7/4/2015, PROC 372/13.JAFAR.E1); se o arguido mata a mulher para a silenciar desagradado pelo tom de voz por ela utilizado para o chamar que entendia ser suscetível de ser alvo de comentário depreciativo dos vizinhos (Ac do STJ de 15/2/2023, in C.J., Ac. do STJ, XXXI,1,201)”

Ora perante este quadro, parece-nos evidente não existir fundamento para criticar o acórdão recorrido.

De qualquer forma, em nota complementar e servindo-nos do douto parecer do Digníssimo Procurador-geral-Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, acrescente-se breve nota sobre a relação entre a toxicodependência e a violência, feita em 1988 e publicada na revista “Toxicodendência”: 5

«Quando analisamos a relação entre violência e muito particularmente homicídio, e o fenómeno da droga, vários aspectos nos suscitam, de imediato, uma reflexão:

1. A droga (certas drogas) pode induzir no sujeito uma maior agressividade, uma maior impulsividade, um menor auto-controle das suas emoções e atitudes.

2. As alterações psicopatológicas induzidas pelas drogas podem ser de tal modo graves que, ainda sob os seus efeitos, o sujeito empreenda comportamentos de extrema violência, eventualmente compagináveis num quadro compatível com um estado de inimputabilidade (assinale-se, porém, que, ao contrário do conceito mais vulgarizado, o consumo de álcool ou drogas pode, eventualmente, concorrer para o agravamento da pena - ver, entre outros, 86, 87, 88 do Código Penal).

3. A droga contribui para criar ou agravar alterações psicopatológicas, que diminuirão as possibilidades de o sujeito se comportar de forma inteiramente adequada, e que se vão manter, mesmo após o desaparecimento da substância do organismo do indivíduo.

4. A necessidade (agudizada, ou não, por uma síndrome de abstinência) de procurar bens materiais origina toda uma criminalidade que engloba também a criminalidade violenta.

5. A violência surge na sequência da comercialização das drogas. O traficante que vende droga de fraca qualidade, o toxicodependente que falha pagamentos, 0 sujeito que dá ou é suspeito de fornecer informações à polícia, os polícias ou magistrados especializados na detenção de traficantes, etc., são mais propensos a serem vítimas de homicídio por motivos relacionados com a droga. Nas grandes cidades de alguns países a competição entre gangs para o controle do mercado chega a originar um número elevado de homicídios. Está em jogo muito dinheiro e os que interferem com o livre e bom curso do negócio arriscam-se»

Concluindo, face ao quadro contido no acórdão recorrido, não nos parece que a conduta do arguido/toxicodependente – reagir ao desapossamento das doses de cocaína, situação que gerou a discussão no âmbito da qual ocorreu o homicídio - seja enquadrável na definição de “motivo fútil” que vem sendo construído pela doutrina e pela jurisprudência.

B.7. Medida das penas

O recorrente assenta exclusivamente o pedido de agravação da pena parcelar relativa ao homicídio, bem o pedido de agravamento da pena única no pressuposto da obtenção vencimento no que concerne à qualificação do homicídio.

Com efeito, não foram apresentados quaisquer outros argumentos para justificar o agravamento dessas penas.

Assim e não tendo obtido sucesso naquele primeiro empreendimento, necessariamente também não o obterá no que concerne às penas parcelar e única acima referidas, que se entendem adequadamente ponderadas e adequadas às necessidades de prevenção geral e especial e que não ultrapassam a medida da culpa

C – Decisão

Por todo o exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.

Sem custas

D.N.

Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada

(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Celso Manata (Relator)

Vasques Osório

Leonor Furtado

____________________________________________________

1. O arguido foi ainda condenado a pagar ao assistente e demandante CC a quantia de € 30.000,00 a título de dano morte e sofrimento padecido por BB antes da morte
2. Teresa Serra – Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida a Pena, p. 64-65;
3. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 32/33 Coimbra Editora
4. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 6ª edição, UCP, pág. 596
5. Ano 4, nº 3- SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências do SNS), elaborado por Fernando Almeida (acessível no endereço https://www.sicad.pt/BK/RevistaToxicodependencias/Lists/SICAD_Artigos/Attachments/352/artigo%207.pdf),