GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONCURSO DE CREDORES
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
CRÉDITO PIGNORATÍCIO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Sumário


.1- Por força do disposto no artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social ,o crédito da Segurança Social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora deve graduado à frente de qualquer crédito pignoratício, concorram ou não outros créditos privilegiados, por tal resultar claro da letra e espírito daquele normativo, que reforçou no nº 1, e manteve, no nº 2, um regime especial para tais créditos, protegendo a sustentabilidade da Segurança Social, a qual, pela sua enorme repercussão social, sobreleva aos direitos conferidos pelos restantes créditos.
.2- A dificuldade na sua conjugação com outros privilégios (nomeadamente os referidos no nº 1 deste normativo) não justifica que se faça letra morta do nº 2 do artigo 204º do do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, havendo, sim, que perante as normas em confronto, fazer uma interpretação que permita salvaguardar todos os interesses e motivos que estiveram subjacentes à sua criação.

Texto Integral


.I - Relatório

Reclamantes:    
-- Instituto de Segurança Social, I.P.;
-- Estado, representado pelo Ministério Público

Executados:
-- AA
-- BB e
-- EMP01... – Fumeiro E Produtos Regionais, Lda.

Exequente:  
-- Banco 1... SA

autos de:
 reclamação de créditos por apenso a execução

requerimentos executivos
.1-- o Exequente apresentou como título executivo, uma livrança, subscrita pela sociedade comercial “EMP01..., Lda.” e avalizada por AA e BB, a qual lhe fora entregue   para titular e garantir o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do Contrato de mútuo com penhor mercantil, celebrado em ../../2020, com a sociedade EMP01... – Fumeiro e Produtos Regionais, informando que aquela sociedade tinha um plano de recuperação aprovado e homologado pelo que só executava os avalistas.
.2-- No decurso do processo veio informar que a sociedade incumpriu com o plano de recuperação, pelo que a interpelou nos termos e para os efeitos do artigo 218.º do CIRE e a execução pode passar a prosseguir também contra ela, o que foi admitido.
.3—Nesse requerimento explanou que a sociedade comercial “celebrou com o Banco Exequente um contrato de mútuo com penhor mercantil, em 7 de fevereiro de 2020, pelo montante de € 75.000,00 e que para garantia do cumprimento do referido contrato de mútuo foram prestadas as seguintes garantias: a)  Entrega de uma livrança em branco subscrita pela mutuária “EMP01..., Lda.” e avalizada por AA e BB; b) Penhor mercantil sobre os bens livres de ónus e encargos que se encontram nas instalações da mutuária “EMP01..., Lda.” no valor de € 90.000,00, conforme documento que juntou.
.4-- Nesse documento, figurando a sociedade executada como mutuária, lê-se, como título “CONTRATO DE MÚTUO COM PENHOR MERCANTIL,”, e, entre outras, as seguintes cláusulas: “ARTIGO PRIMEIRO O banco concede à mutuária um empréstimo no montante de € 75.000,00 ARTIGO DÉCIMO SEGUNDO (Garantias do Cumprimento) A) LIVRANÇA Os valores que se mostrarem em dívida ao banco ficam caucionados pela livrança em branco subscrita pela mutuária e avalizada  por (os primeiros executados], destinada a garantir o pagamento de todas as responsabilidades, assumidas ou a assumir pela MUTUÁRIA perante o banco, por crédito concedido ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados até ao limite de setenta e cinco mil euros, acrescido dos respetivos juros, despesas e encargos, incluindo, por isso, os valores emergentes deste contrato; juntamente com a livrança, a mutuária entrega ao BANCO a correspondente autorização de preenchimento, assinada por si e pelos avalistas. B)     PENHOR MERCANTIL Para garantia do bom pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela mutuária, esta constitui a favor do Banco 1..., SA, e este aceita, penhor mercantil sobre os bens livres de ónus ou encargos, que se encontra nas instalações da mutuária, no valor de € 90.000,00 (noventa mil euros) s/ IVA, cuja cópia se anexa a este contrato e que dele faz parte integrante para todos os efeitos legais.
  .5-- Mais juntou documento com o seguinte título “CONSTITUIÇÃO DE PENHOR MERCANTIL” onde se lê, além do mais “Para garantia do bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações e/ou responsabilidades assumidas e/ou a assumir pela sociedade… aquela constitui a favor do banco e este aceita, penhor mercantil sobre os seguintes bens livre de ónus ou encargos e que se encontram nas instalações da sociedade [3ª executada]: - Máquina de Embalar ..., no valor global de € 90.000,00 (s/ IVA) constante da Fatura no ...02 datada de 02/01/2014, cuja cópia se anexa a este documento e que dele faz parte integrante para todos os efeitos legais.”

penhora
.6-- Em 4-07-2023, na execução de que estes são apenso, foi realizada penhora de uma máquina de embalar de marca ..., na sede da sociedade executada.

reclamação de créditos
.7-- Em 3-11-2023,o Instituto da Segurança Social, I.P., reclamou um direito de crédito no montante de 130.656,95€, alegando que a sociedade executada é contribuinte do reclamante, e que nessa qualidade não procedeu ao pagamento das contribuições devidas à Segurança Social. A este valor acrescem os juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
 .8- Em 06-11-2023, foi deduzida pelo Ministério Público, em representação do Estado Português, nos termos do disposto no artigo 788.º, nº 2 do Código de Processo Civil, a reclamação do crédito relativo a IVA que ascende ao montante de € 12.719,33.
.9 --Não foram apresentadas impugnações.
10. -- Foi proferida sentença pela qual se decidiu:
Pelo exposto, decido julgar procedente a reclamação de créditos e, em consequência, reconheço os direitos de créditos reclamados pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional e pelo ISS, procedendo à graduação dos créditos, para efeitos de pagamento pelo produto da venda dos bens penhorados nos autos principais de execução, da seguinte forma:
I – O Crédito do Estado Português relativo a IVA. 
II – O Crédito do ISS. 
III - A quantia exequenda.”

*
É desta decisão que o exequente apela, formulando, para tanto, as seguintes
conclusões:

“. 1.O presente recurso vem interposto da Douta Sentença de Verificação e Graduação de Créditos que, reconhecendo os créditos reclamados pela Fazenda Nacional, pelo Instituto da Segurança Social e ainda o crédito exequendo, procedeu à respetiva graduação, olvidando o penhor que garante o crédito exequenda e as respetivas prioridades legais.
2.O Banco 1... deu entrada da presente ação executiva para cobrança da quantia exequenda de € 68.130,64, tendo por base uma livrança no valor de € 67.770,40, subscrita por “EMP01... – Fumeiro e Produtos Regionais, Lda.” e avalizada por AA e CC.
3. O crédito exequendo encontra-se garantido por penhor mercantil, constituído em 7 de fevereiro de 2020, sobre os bens localizados na sede da sociedade comercial EMP01... Lda, nomeadamente, uma máquina de embalar Flowpack “PFM” Tornado LD n.º  de série ...05, no montante de € 90.000,00, a qual foi penhorada nos presentes autos a 4 de julho de 2023.
4.A 3 de julho de 2023 foi apresentada reclamação de créditos pela Segurança Social no montante de € 130.656,95, sendo € 107.224,81 relativos a contribuições devidas entre os anos de 2016 e 2023 e o restante € 23.432,14 relativo a juros de mora.
5.A 6 de novembro de 2023 foi apresentada reclamação de créditos pelo Estado, no montante de € 12.719,33, relativo a IVA, garantido por privilegio mobiliário geral nos termos do artigo 735.º, n.º 2 e 736.º, n.º 1, ambos do CC.
6.Não tendo sido apresentadas impugnações, os referidos créditos reclamados foram reconhecidos pela sentença de que ora se recorre, a qual procedeu à seguinte graduação dos créditos:
1.º Crédito do Estado relativo a IVA;
2.º Crédito da Segurança Social relativo a contribuições;
3.º Crédito exequendo.
7.O Banco 1..., S.A. não concorda com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, uma vez que a sentença recorrida olvida quer o penhor que garante o crédito exequendo, quer as respetivas disposições legais de prioridade da garantia.
8.Para além do Douto Tribunal a quo não se referir ao atual diploma legal aplicável às contribuições da Segurança Social, o mesmo olvidou totalmente o penhor de que goza o crédito exequendo e o facto do mesmo ter preferência sobre os demais créditos garantidos por privilégios mobiliários gerais. 
9. Encontra-se demonstrado nos autos que, por um lado, se encontra penhorado um bem móvel correspondente a uma máquina de embalar e, por outro, o Exequente tem constituido a seu favor um penhor mercantil sobre esse mesmo bem móvel. 
10. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 666.º do CC, o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetiveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro. 
11. Resulta também dos autos que o Estado Português e o Instituto da Segurança Social reclamaram créditos referentes, respetivamente, a IVA e a contribuições, os quais gozam de privilégio mobiliário geral nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 736.º do CC e no n.º 1 do artigo 204.º da Lei n.º 110/2009.
12. Importa aferir qual a prioridade de graduação entre os créditos em concurso, ou seja, o crédito exequendo garantido por penhor e os créditos reclamados garantidos por privilégio mobiliário geral. 
13.O n.º 1 do artigo 749.º do CC dispõe que o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente. 
14.O privilégio mobiliário geral, não incidindo sobre coisa certa e determinada, mas sobre o património do devedor, não é um verdadeiro direito real, mas de crédito que confere ao seu titular a prevalência sobre os credores comuns do devedor.
15. Os privilégios creditórios mobiliários gerais são meras preferências de pagamento, incidindo sobre a generalidade dos bens móveis do devedor e assumindo a eficácia que lhes é própria aquando do acto da penhora.
16. Considerando que o privilégio mobiliário geral não incide sobre bens determinados e, como tal, não goza da sequela que é própria dos direitos reais de garantia, em caso de conflito entre tal privilégio mobiliário geral e o direito real de gozo ou de garantia dum terceiro, oponível ao exequente, é este último que prevalece  nos termos do referido artigo 749.º do C. Civil, o qual resolve o conflito “bilateral” entre o privilégio geral e o direito real de gozo ou de garantia de terceiro.
17. No confronto dum direito de crédito garantido por privilégio mobiliário geral e um direito de crédito garantido por penhor, é este que prevalece na ordem de graduação (cfr. art. 666.º/1 do C. Civil). 18.O n.º 2 do artigo 204.º da Lei 110/2009 dispõe que o privilégio mobiliário geral da Segurança Social prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
19.A jurisprudência mais recente tem vindo a entender que a referida norma tem uma aplicação restritiva, ou seja, apenas se aplica quando a graduação de créditos envolve exclusivamente créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social. 
20. Quando a graduação implica unicamente uma díade formada pelo credor pignoratício e pelo crédito da Segurança Social (conflito bilateral), a graduação respeita o disposto no n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS e prevalece o crédito da Segurança Social sobre o crédito garantido por penhor. 
21. Quando estamos perante um conflito multilateral, ou seja, quando a graduação abrange o crédito pignoratício, o crédito da Segurança Social, mas também outros créditos privilegiados, como sejam, os créditos do Estado e das autarquias locais ou os créditos dos trabalhadores, já não se aplica o referido n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS. 
22. Nos casos de conflito multilateral, a jurisprudência mais recente tem entendido que prevalece o crédito pignoratício sobre todos os créditos com privilégio mobiliário geral, incluindo o crédito da Segurança Social – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de abril de 2022.
23. Tal entendimento assenta no facto de não serem apenas os créditos da Segurança Social de interesse público e social, mas também os interesses creditórios do Estado e das autarquias locais, por impostos e, ainda, os interessos creditórios laborais.
24. Numa situação de conflito multilateral, o legislador remeteu a solução das preferências para as regras que enformam a traça normal dos créditos em confronto, procurando obviar à preterição desproporcionada dos interesses de um conjunto mais alergado de credores, nomeadamente, do Estado e dos trabalhadores. 
25. Num conflito “trilateral”, em que haja créditos garantidos por penhor, créditos por impostos com privilégio mobiliário geral e créditos da SS com privilégio mobiliário geral, a graduação é feita com a prevalência dos créditos garantidos por penhor, já que se trata de uma garantia de natureza real que beneficia da sequela e é oponível erga omnes.
26. No caso em apreço, estamos perante um confronto multileteral de créditos, uma vez que são chamados à graduação os créditos reclamados pela Segurança Social com provilégio mobiliário geral (contribuições), os créditos reclamados pelo Estado com privilégio mobiliário geral (IVA) e o crédito exequendo com penhor. 
27. Como tal, o crédito exequendo, garantido por penhor, deve ser graduado em primeiro lugar, quanto ao produto da venda do bem móvel penhorado, seguido dos créditos do Estado e da SS, garantidos por privilégio mobiliário geral.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta Sentença de verificação e graduação de créditos, por manifesta violação das disposições legais previstas para preferência do penhor sobre o privilégio mobiliário geral e, em consequência, ser subtituída por outra que proceda à graduação do crédito exequendo em primeiro lugar, nos termos supra referidos., com todas as consequências”.

Contra, o Ministério Público respondeu, com as seguintes
conclusões
“I– O crédito exequendo apenas beneficia da garantia resultante da penhora realizada a 04/07/2023.
.II- Os créditos reclamados a título de IVA são relativos a impostos indirectos e gozam de privilégio mobiliário geral nos termos dos artigos 735º, nº 2, 736º, nº 1, ambos do Código Civil.
.III- Os créditos reclamados pelo MºPº em representação da Fazenda Pública (a título de IVA) foram graduados com preferência em relação aos demais créditos.
IV – Não foi violado qualquer preceito legal.”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas forem de conhecimento oficioso ou se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Assim, é a seguinte a questão a apreciar:
1 se o crédito exequendo beneficia da garantia do penhor;
2- se o crédito pignoratício prevalece, ou não,  sobre o crédito da Segurança Social ou sobre todos os demais créditos com privilégio mobiliário geral.

III- Fundamentação de Facto
No relatório já foram descritos todos os factos relevantes para a decisão.

IV -Fundamentação de Direito
Os créditos reclamados não foram impugnados, pelo que se têm como reconhecidos, nos termos do artigo 791º nº 4 do Código de Processo Civil.
Há que graduá-los.
A questão da  graduação dos créditos da Segurança Social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora em concurso com o penhor é questão que tem sido debatida há muito na doutrina e jurisprudência, desde pelo menos a publicação do Dec. Lei 103/80 de 9 de maio (diploma que aprovou o Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência), substituído pela atual   Lei 110/2009 de 16 de setembro, que instituiu o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social (CRCSPSS), mantendo a mesma norma nesta matéria.

--Vejamos algumas noções prévias à discussão.
O privilégio creditório é a possibilidade que a lei confere a direitos créditos de serem pagos com preferência a outros, independentemente de registo, diz-nos o artigo 733º do Código Civil. Classificam-se como mobiliários ou imobiliários, em função do tipo de bens sobre que incidem e como gerais ou especiais, conforme abranjam  o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de ato equivalente; são especiais, quando compreendem só o valor de determinados bens  (artigo 735º do Código Civil).
Por outro lado, na construção do Código Civil – artigo 749º, n.º 1, do Código Civil-  “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.”
O artigo 736º deste diploma, por seu turno, afirma que Estado e as autarquias locais têm privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indiretos, e também pelos impostos diretos inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou ato equivalente, e nos dois anos anteriores.
Também gozam deste direito os réditos emergentes do contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato, pertencentes ao trabalhador, nos termos do artigo 737º l d) do Código Civil.
Os privilégios mobiliários gerais conferem uma preferência de pagamento “fraca”, cedendo sempre perante qualquer outro que tenha um direito real de gozo ou de garantia sobre o mesmo bem, objeto do privilégio (nº 1 do artigo 749º CC), levando a doutrina a negar-lhes o estatuto de direitos reais de garantia que atribuem aos privilégios especiais.
O regime do Código Civil quanto aos privilégios creditórios, no entanto, tem sofrido vários desvios introduzidos por normas especiais que visam proteger determinados créditos.
Como é consabido o privilégio mobiliário geral, como a própria denominação indica, não incide sobre coisa certa e determinada, mas sobre o património do devedor em geral, pelo que trata-se de um direito de crédito, que limita-se a conceder prevalência ao seu titular sobre os credores comuns, no que se refere aos bens móveis do devedor, cuja eficácia, mormente em relação a terceiros, depende necessariamente do ato de penhora ou de ato equivalente desses bens móveis (art. 735º, n.º 2, do C. Civil).
Já no que se refere ao penhor o mesmo goza da sequela, própria dos direitos reais de garantia, pelo que, em caso de conflito entre tal direito real de garantia (ou de gozo) de terceiro e o direito de crédito garantido por privilégio mobiliário geral, o legislador deu prevalência ao primeiro (art. 749º, n.º 1, do C. Civil).
É esta, pois a regra resultante do disposto no art. 749º, n.º 1, do C. Civil, mas que, porém, comporta algumas exceções.” ( cf acórdão, não publicado, deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 06.05.2021, do qual fomos adjunta, proferido no processo 1584/19.5T8VNF-E.G1, pelo relator António Barroca Penha  e que seguiremos frequentemente).

--Do penhor:
 O penhor é o negócio jurídico que confere uma garantia real a determinadas obrigações e que incide sobre certa coisa móvel ou sobre créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro. Confere ao credor o direito de ser pago com prioridade face a todos os outros credores através do produto da venda do bem empenhado. Como se determina no nº 1 do artigo 666º do Código Civil atribui ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros se os houver, com preferência sobre os demais credores. Vencida a obrigação garantida pelo penhor, o credor adquire “o direito de se pagar pelo produto da venda executiva da coisa empenhada...” (artigo 675.º, n.º 1, aplicável ao penhor de direitos por força do artigo 679.º).
O penhor de coisas produz efeitos  pela entrega da coisa empenhada, ou de documento que confira a exclusiva disponibilidade dela, ao credor ou a terceiro (artigo 669º do Código Civil).
Como vimos, a regra geral relativamente à graduação de créditos é de que o penhor, enquanto garantia real é oponível erga omnes, preferindo aos privilégios mobiliários gerais (disposições conjugadas dos artigos 666º e 749º do CC).

--Dos créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora da Segurança Social
Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil - nº 1 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de setembro).
São hoje graduados a par com aos créditos, com privilégio mobiliário geral, do Estado por impostos: se no regime do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, artigo 10º, nº 1, eram graduados «logo após os créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil» hoje, nos termos do artigo são 204.º, n.º 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, que substituiu essa norma, graduam-se “nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil” (como salientou o acórdão do Tribunal desta Relação,  em 21 de outubro de 2021 no processo 4407/20.9T8VNF-J.G1).
Até por aqui se verifica a intenção legislativa (do último diploma dos que estão aqui em confronto)  de reforçar a garantia destes créditos da Segurança Social, que foi ainda além do anterior diploma.
No nº 2 deste artigo 204º manteve-se uma norma especial que já vinha do anterior diploma (artigo 10º, nº 2 do Decreto-Lei n.º 103/80): afasta-se este crédito do regime geral estipulado no Código Civil para estes privilégios, impondo-se que “Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.”
 A exceção à graduação tem já longo caminho histórico no nosso sistema jurídico (mais de quarenta anos), visto que foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de maio, mantendo-se continuamente desde então.
Visa salvaguardar a importância fundamental das contribuições para a sustentabilidade da Segurança Social, fundamental no nosso Estado de Direito, sendo manifesto o interesse público por ela prosseguido.
Como se escreveu no acórdão   do Supremo Tribunal de Justiça de 22/9/2021, no processo 775/15.2T8STS-C.P1.S1 (que seguiu a tese restritiva que infra se abordará), “…quando a graduação implique unicamente uma díade formada pelo crédito pignoratício e pelo crédito da Segurança Social, a solução não poderá desconsiderar o estabelecido no n.º 2 do citado art.º 204.º: o crédito da Segurança Social prefere ao crédito pignoratício. (…) Não pode haver dúvidas de que no confronto desses dois tipos de créditos a lei pretendeu dar prioridade ao crédito destinado a cumprir um desígnio social sobre um crédito destinado a cumprir um desígnio puramente (pelo menos na esmagadora maioria dos casos) particular e quase sempre brotado do espaço empresarial. Como nos dizem Pires de Lima-Antunes Varela - Código Civil Anotado, I, anotação ao artigo 666.º -, “O penhor encontra-se industrializado e é de constituição rara como acto de direito civil” (…). Na ponderação dos dois interesses em jogo, o legislador entendeu definir desse modo as coisas, privilegiar o público (social) sobre o particular, e não cabe ao intérprete discutir essa opção. Trata-se aqui, todavia, de um singular desvio à regra que vale para a normalidade, pois que essa regra (tal como fixada no Código Civil) estabelece o princípio da prioridade do penhor sobre todo e qualquer privilégio creditório mobiliário geral…”.
Foi já contestada a  constitucionalidade desta norma  por diversas vezes e por isso apreciada pelo Tribunal Constitucional que concluiu pela sua admissibilidade face aos princípios que regem o nosso direito, tendo em atenção que também o penhor não é sujeito a registo. Veja-se, embora também seguindo a tese restritiva restritiva,  o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/08/2020, no processo 159/15.2T8VLN-B.G1, o qual explana: “Dentre outros, pronunciou-se neste sentido, o Acórdão n.º 64/2009, de 10/02/2009, que ponderou: o limite temporal do privilégio, imposto pelo art.º 97.º, n.º 1, alínea a), do C.I.R.E.; que a Segurança Social não dispõe relativamente aos bens móveis do meio equivalente ao previsto no art.º 12.º do Dec.-Lei 103/80 (hipoteca legal sobre imóveis existentes no património das entidades patronais); desvalorizou a falta de publicidade, que fundou o juízo de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 363/2002, por, diferentemente do que se passa com a hipoteca, o penhor não estar sujeito a registo; e, reconhecendo, embora, que o princípio da confidencialidade tributária tem repercussões na publicidade daquele privilégio, fez ressaltar que o legislador vem permitindo “a divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontra regularizada”. Relativamente ao princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de Direito Democrático, consagrada no art.º 2.º da Constituição, refere ainda aquele Aresto (seguindo o Acórdão n.º 287/90) que “A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:a ) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e, ainda b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se aqui ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo 18º da Constituição, desde a 1ª revisão).Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária”. Ora, conclui, “relativamente à norma em apreciação não se pode sequer afirmar uma mutação na ordem jurídica. Por um lado, de há muito que o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior; por outro, na falta de registo público, a ordem jurídica instituída não criou expectativas jurídicas atinentes à segurança do comércio jurídico que a norma impugnada tenha alterado”, pelo que o referido art.º 10.º, n.º 2 do Dec.-Lei n.º 103/80 “não viola o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição da República Portuguesa), enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros de mora – privilégio creditório com justificação constitucional por referência ao artigo 63º da CRP.” (in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, Cons.ª Maria João Antunes).
É pois norma de natureza especial, tal como foi já salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/08/2022, no processo 857/21.1T8VFX-A.L1-1, “O art. 204º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, aprovado pela Lei 110/2009 de 16-09, ao estabelecer que os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral (nº1) e dispondo o seu nº2 que “[e]ste privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior” é uma norma que tem natureza especial, pelo que prevalece sobre a regra geral vertida no artigo  747º do Cód. Civil, inexistindo verdadeiro conflito de normas, atenta a referida classificação.”
No entanto, este desvio imposto pelo nº 2 do 204º da Lei 110/2009 (e anteriormente pelo nº 2 do artigo 10º do DL nº 103/80) não é conciliável com as normas dos artigos 666º e 749º Código Civil, as quais, por um lado, imporiam a prevalência do penhor sobre os demais créditos com privilégios mobiliários gerais (inclusivamente, sobre os créditos por impostos, sobre os créditos dos trabalhadores e sobre os créditos da segurança Social).
 “Assim, perante este “imbróglio jurídico”, importa então apurar como graduar o crédito garantido por penhor, dado que, por aplicação concatenada das normas citadas, os créditos da segurança social devem ser graduados depois dos créditos laborais dos trabalhadores e a par dos créditos do Estado ou autarquias locais por impostos, sendo certo, porém, que os créditos da segurança social prevalecem, como vimos, sobre o penhor, o que já não sucede com os demais créditos.
 “Como é consabido o privilégio mobiliário geral, como a própria denominação indica, não incide sobre coisa certa e determinada, mas sobre o património do devedor em geral, pelo que trata-se de um direito de crédito, que limita-se a conceder prevalência ao seu titular sobre os credores comuns, no que se refere aos bens móveis do devedor, cuja eficácia, mormente em relação a terceiros, depende necessariamente do ato de penhora ou de ato equivalente desses bens móveis (art. 735º, n.º 2, do C. Civil).
Já no que se refere ao penhor o mesmo goza da sequela, própria dos direitos reais de garantia, pelo que, em caso de conflito entre tal direito real de garantia (ou de gozo) de terceiro e o direito de crédito garantido por privilégio mobiliário geral, o legislador deu prevalência ao primeiro (art. 749º, n.º 1, do C. Civil).
É esta, pois a regra resultante do disposto no art. 749º, n.º 1, do C. Civil, mas que, porém, comporta algumas exceções.” ( como se escreveu no  acórdão que já citámos com a menção que seguiremos frequentemente do qual fomos adjunta, do relator António Barroca Penha, de 06.05.2021, no processo 1584/19.5T8VNF-E.G1)
É quase pacífico que concorrendo entre si apenas o crédito da Segurança Social e o crédito pignoratício, aquele deve ser graduado em primeiro lugar.
A questão coloca-se quando concorrem outros créditos garantidos, por se tornar necessária a harmonização do sistema: em regra os privilégios mobiliários gerais não conferem ao respetivo titular direito de sequela sobre os bens em que recaiam, conferindo apenas preferência no pagamento em relação aos credores comuns, não preferindo, pois, ao penhor. Assim, porque os privilégios do Estado estão a par com os da segurança social (por força da remissão que o artigo 204º nº 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, faz para o artigo 747.º, nº 1, alínea a) do  Código Civil), mas cedem sobre o   crédito pignoratício (por força dos artigos  666.º n.º 1 e 749.º n.º 1 do Código Civil), mas o crédito da segurança social tem prevalência sobre o crédito pignoratício (artigo 204º nº 2 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social), torna-se difícil ordenar estes três tipos de créditos.
O mesmo ocorre, aliás, também quando concorrem os créditos laborais emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam de privilégio mobiliário geral (artigo  333.º, nº 1, alínea a) do Código do Trabalho), por deverem ser graduados antes do crédito do Estado, por impostos (artigo  333.º, nº 2 do Código do Trabalho e artigo 747.º, nº1, alínea a) do Código Civil).
Continuando a seguir o acordão que subscrevemos como adjunta:Assim, perante este “imbróglio jurídico”, importa então apurar como graduar o crédito garantido por penhor, dado que, por aplicação concatenada das normas citadas, os créditos da segurança social devem ser graduados depois dos créditos laborais dos trabalhadores e a par dos créditos do Estado ou autarquias locais por impostos, sendo certo, porém, que os créditos da segurança social prevalecem, como vimos, sobre o penhor, o que já não sucede com os demais créditos.
Uma primeira corrente na doutrina e na jurisprudência defende que se deverá dar prevalência absoluta ao penhor, pagando-se em primeiro lugar o crédito por ele garantido, designadamente tendo em conta a natureza excecional que revestem as normas que conferem privilégios creditórios gerais, a determinar que não possam ser aplicadas por analogia e que, quanto a elas, deva prevalecer o critério da sua interpretação restritiva (art. 11º, do C. Civil).
Nesta medida, concluem que, no confronto entre o direito de crédito garantido por penhor e os direitos de créditos garantidos por privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho, derivados de impostos da titularidade do Estado e das autarquias locais e da titularidade das instituições de segurança social derivados de taxa contributiva, a prevalência deve operar por essa ordem (Por todos, cfr. Ac. do STJ de 30.05.2006, proc. 06A1449, relator Urbano Dias; Ac. STJ de 08.06.2006, proc. 06B998, relator Oliveira Barros; Ac. RG de 13.10.2016, proc. 764/11.6TBBCL-I.G1, relatora Maria dos Anjos Nogueira; Ac. RG de 08.07.2020, proc. 159/15.2T8VLN-B.G1, relator Fernando Fernandes Freitas; e Ac. RP de 11.09.2018, proc. 1211/17.5T8AMT-E.P1, relator Vieira e Cunha, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Na doutrina, vide Salvador da Costa, O Concurso de Credores, Almedina, 2ª edição, pág. 257; e António Carvalho Martins, Concurso de Credores – Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 109, nota 147)
Uma outra corrente conclui, ao invés, que os créditos do Estado serão pagos em primeiro lugar, seguidos dos créditos da segurança social e, finalmente, o crédito pignoratício.
Para esta corrente, só graduando os créditos do Estado em primeiro lugar, se respeita a proteção concedida aos créditos da segurança social expressamente consignada no n.º 2 do art. 204º do CRCSPSS e, em simultâneo, se harmoniza com a hierarquia implicitamente e logicamente decorrente do disposto no art. 204.º, n.ºs 1 e 2, do CRCSPSS, e art. 747º n.º 1, al. a), do C. Civil, devendo, como é próprio do funcionamento do sistema jurídico, as regras gerais contidas nos artigos 666.º n.º 1 e 749.º n.º 1, do C. Civil, ceder perante o regime especial supra descrito ([1] Por todos, vide Ac. STJ de 26.09.1995, proc. 087303, relator Martins da Costa; Ac. STJ de 20.04.1999, proc. 99A200, relator Garcia Marques; Ac. RL de 09.05.2019, proc. 2540/16.0T8STB-A.L1-2, relator Jorge Leal, disponíveis em www.dgsi.pt. E ainda Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 40/90, de 07.11.1991, disponível em https://www.ministeriopublico.pt/pareceres-pgr/8519. Na doutrina, vide Rui Pinto, A Ação Executiva, AADFL Editora, 2018, pág. 853.)
Por último, para uma terceira corrente, em que se filia a sentença recorrida, conclui-se que, em tal situação, deve ser graduado em primeiro lugar o crédito da segurança social, em segundo lugar o crédito garantido por penhor e só depois os créditos laborais e os créditos do Estado por impostos. (Por todos, cfr. Ac. RG de 31.03.2016, proc. 565/14.0T8VCT-B.G1, relator António Santos; Ac. RE de 30.04.2015, proc. 1277/13.7TBCTX-B.E1, relatora Conceição Ferreira; Ac. RC de 21.05.2019 e Ac. RC de 28.05.2019, ambos já citados; Ac. RL de 02.07.2019, proc. 2789/14.0T8SNT-K.L1, relator Manuel Marques; e Ac. RP de 14.07.2020, proc. 2645/19.6T8STS-A.P1, relatora Fátima Andrade, todos disponíveis em www.dgsi.pt.)
Desde já, adiantamos que se nos afigura ser esta a corrente que de forma mais adequada interpreta as normas em questão.
Senão vejamos.
Desde logo, cabe dizer que a tarefa da interpretação das normas legais em confronto não deverá cingir-se à letra da lei, sendo certo que, partindo dela e tendo-a como limite, deve reconstituir-se o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a norma foi elaborada e as condições específicas de tempo em que é aplicada (art. 9º, n.º 1, do C. Civil); havendo sempre que seguir o pensamento legislativo que tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art. 9º, n.º 2, do C. Civil); partindo ainda da presunção que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, n.º 3, do C. Civil).
Pois bem, a ser assim, chegamos a uma primeira afirmação: não vemos em que medida é possível graduar os créditos garantidos por penhor à frente dos créditos da segurança social, quando é certo que tal solução viola claramente norma legal expressa (art. 204º, n.º 2, do CRCSPSS), que assim, igualmente, não tem qualquer correspondência com a letra da lei e com o próprio pensamento e vontade do legislador.
Enfatize-se ainda que a prevalência dos créditos da segurança social em relação aos créditos pignoratícios já resultava anteriormente do D.L. n.º 103/80, de 09.05 (cfr. art. 10º, n.º 2), sendo certo que “a transposição da norma em questão para a legislação atualmente em vigor evidencia o claro e firme propósito do legislador em assegurar a prevalência dos créditos por contribuições devidas à segurança social relativamente ao penhor, propósito que se insere na necessidade de assegurar a sustentabilidade da segurança social e o direito à segurança social que a todos é garantido pelo artigo 63º da Constituição da República.” (Ac. RC de 28.05.2019, já citado; realçando igualmente “o valor extraordinariamente decisivo que hoje assume para o Estado e para os cidadãos a sustentabilidade da segurança social, a qual, pela sua enorme repercussão social, sobreleva aos direitos individuais decorrentes dos restantes créditos.” Ac, RC de 21.05.2019, já citado
Por outro lado, a graduação do crédito garantido por penhor atrás dos créditos laborais e do Estado por impostos, ambos garantidos por privilégio mobiliário geral, também não encontra na letra da lei qualquer apoio, para além de contrariar claramente o pensamento e a vontade do legislador, tanto quanto é certo que, por força do disposto no art. 749º, n.º 1, do C. Civil, ficou expressamente estabelecido que tais privilégios mobiliários gerais não prevalecem sobre o penhor.
Nesta sequência, temos então os créditos da segurança social graduados à frente dos créditos garantidos por penhor (art. 204º, n.º 2, do CRCSPSS), sendo que estes, por sua vez, serão graduados com preferência relativamente aos demais créditos garantidos por privilégio mobiliário, designadamente os créditos laborais e os créditos do Estado (art. 749º, n.º 1, do C. Civil).
   Por sua vez, salienta-se que se deverá prevalência aos créditos laborais sobre os créditos do Estado por impostos (ambos com privilégio mobiliário geral), assim se respeitando o disposto no art. 333º, n.º 2, al. a), do Código do Trabalho).
Assim, a única dificuldade que surge diz respeito à posição dos créditos laborais em relação aos créditos da segurança social (ambos com privilégio mobiliário geral), quando, em termos gerais, aqueles seriam graduados à frente dos créditos da segurança social, porquanto estes são graduados nos termos referidos no art. 747º, n.º 1, al. a), do C. Civil (art. 204º, n.º 1, do CRCSPSS) e, nessa medida, atrás dos créditos laborais (art. 333º, n.º 2, al. a), do C. Trabalho).
   No entanto, como é fácil de ver, esta conclusão, chega-se não por via direta da letra da lei, mas por via remissiva da conjugação de normas, quando é certo que o disposto no art. 333º, n.º 2, al. a), do C. Trabalho, apenas determina que os créditos laborais são graduados antes dos referidos no art. 747º, do C. Civil, norma que nem sequer se refere aos créditos da segurança social, mas que a estes apenas lhe é aplicável por remissão de outra norma vigente em diferente diploma legal (art. 204º, n.º 1, do CRCSPSS).
Podemos assim dizer, que a graduação dos créditos da segurança social antes dos créditos laborais não afronta abertamente o disposto no art. 333º, n.º 2, al. a), do C. Trabalho, tanto quanto é certo que, pelos menos de forma expressa, esta norma não manda graduar os créditos laborais à frente dos créditos da segurança social, permitindo assim ao intérprete retirar a interpretação que melhor se adequa à unicidade do sistema jurídico (art. 9º, n.º 1, do C. Civil), sobretudo quando em confronto com normas legais, em que o legislador previu expressamente qual era a sua vontade (arts. 204º, n.º 2, do CRCSPSS e art. 749º, n.º 1, do C. Civil). “ Mais cita acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2019: ““Efectivamente, em tal Ac. STJ (de 16/12/2009, publicado in CJ Online), relatado pelo Conselheiro Costa Soares, firmou-se o seguinte entendimento:
- O penhor prevalece contra e em relação aos privilégios creditórios mobiliários gerais de que gozam os créditos laborais (377.º, a), do C. T.) e os créditos do Fundo de Garantia Salarial;
- Outro tanto, porém, não acontece em relação aos créditos do ISS que gozam de privilégio creditório mobiliário geral, uma vez que a lei – art. 10.º/2 do DL 103/80 – determina, imperativamente, que este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior;
- Pelo que, perante o conflito (de disposições legais) que assim se estabelece entre o art. 377.º do C. T. (ao dizer que os créditos laborais tem preferência sobre os créditos do ISS), o art. 10.º/1 e 2 do DL 103/80 (quando diz que os créditos do ISS se graduam logo após os referidos na alínea a) do n.º 1 do 747.º do CC) e a referida prevalência do penhor sobre os créditos laborais e do FGS, a solução está em efectuar (quando concorram na mesma graduação os 3 créditos) a seguinte graduação: 1.º: O crédito do ISS; 2.º: O crédito garantido por penhor; 3.º: Os créditos laborais e do FGS.”
Claro está que esta solução, sufragada por este tribunal ad quem, não está isenta de críticas, tanto mais que estamos perante um conflito de normas legais, sendo certo, porém, que se nos afigura que é aquela que se apresenta mais coerente e consentânea com a interpretação legal que devemos retirar das disposições em confronto, mormente em prol da unidade do sistema jurídico. 
Tal como se concluiu no citado Ac. RC de 28.05.2019, esta afigura-se ser “a solução que melhor respeita – ou que menos desrespeita – a letra da lei e o pensamento e a vontade do legislador corresponderá a graduar os créditos pela ordem seguinte: créditos com privilégio da segurança social, créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio dos trabalhadores e créditos com privilégio do Estado. Qualquer outra solução (seja a de graduar o crédito garantido por penhor em 1º lugar e, portanto, antes do crédito com privilégio da Segurança Social, seja a de graduar o crédito garantido por penhor em último lugar e após os créditos com privilégio dos trabalhadores e do Estado) violaria e desrespeitaria, aberta e frontalmente, a letra da lei e a vontade do legislador quando determinou que o privilégio da segurança social prevalece sobre o penhor e quando determinou que o penhor prevalece sobre os demais privilégios mobiliários.”
Seguimos, pois, a posição seguida no voto de vencido proferido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de  04/05/2022, no processo 1855/17.5T8SNT-A.L1.S1 “Ademais, continuo a entender que o disposto no art. 204.º/2 do CRCSPSS (e, antes, no art. 10.º/2 do DL 103/80 de 9/05) exprime o valor decisivo e a importância que hoje assume para o Estado e para os cidadãos a sustentabilidade da Segurança Social, a qual, pela sua enorme repercussão social, sobreleva aos direitos conferidos pelos restantes créditos: o legislador – ciente de que, sem um preceito como o do art. 204.º/2 do CRCSPP, o penhor ficaria sempre no primeiro lugar de qualquer graduação (entre os 4 referidos créditos) – veio dizer que o privilégio mobiliário geral da Seg. Social “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”, ou seja, o legislador, no art. 204.º/2 do CRCSPSS, veio dizer que o privilégio mobiliário geral da Seg. Social é que passa a fica sempre à frente e em primeiro lugar (e para tal disse que passa a ficar à frente, a “prevalecer”, sobre o crédito/garantia que até ali ficava sempre à frente e em primeiro lugar: o penhor).Daí que confirmaria a graduação do acórdão recorrido, com o identificado crédito da SS em 1.º lugar e com o crédito garantido por penhor logo a seguir, em 2.º lugar. (António Barateiro Martins)”
Com efeito, custa-nos fazer letra morta da ordem de graduação prevista no artigo 204º nº 2 do  CRCSPSS  em função de uma circunstância aleatória, como o existirem outros créditos em concurso, esquecendo a intenção legislativa reiterada ao longo de décadas de defender o interesse social da sustentabilidade da Segurança Social.
O legislador, que estipulou que os créditos da Segurança Social (então Previdência) por contribuições e quotizações prevaleciam sobre o penhor em 1980, como vimos, manteve-a aquando da criação do Código do Trabalho,  e renovou-a, já após este Código, aquando da publicação do CRCSPSS. Pode, por razões ideológicas,  não se concordar com a solução e  considerar-se a proteção exagerada; mas entendemos que não há nada na lei permite que se limite a proteção dada a estes créditos da Segurança Social atenta a forma categórica como foi importa. Entendemos que não será a dificuldade na sua conjugação com outros privilégios que justifica que se faça letra morta da norma quando concorram créditos com diferentes garantias à graduação, havendo, sim, que perante as normas fazer uma interpretação que permita salvaguardar todos interesses e motivos pelo qual foram estipuladas que lhe estiveram subjacentes.
A letra do art. 204.º/2 estipula que  o crédito da SS prevalece sobre qualquer penhor,   independentemente das circunstâncias e data (!) que rodearam a constituição desse penhor: daqui resulta-nos claro que por esta norma se pretendeu impor  que o mesmo prevalecesse sobre este, também independentemente da concorrência de créditos fiscais ou laborais com privilégios que não se impõem ao penhor.
Como escreveu Catarina Leandro e Vasconcelos in Créditos da Segurança Social, Penhor, Trabalhadores e impostos, observatorio.almedina.net “Na verdade, atenta a exiguidade dos bens objeto de penhor, por contraposição com o valor elevado do crédito pignoratício, sempre será indiferente para os créditos por impostos ou laborais ser graduado à sua frente apenas o crédito pignoratício, ou também antes o crédito da SS, pois dificilmente os trabalhadores ou o Estado irão receber algum montante. Parece, assim, artificial afastar a prevalência do crédito da SS sobre o penhor, com o argumento que se deve prevalecer a ordem de graduação prevista para os créditos laborais, por impostos e SS, quando, analisada a situação concreta, é mais que manifesto que para esses créditos laborais e fiscais será inócua essa graduação e acabando-se por beneficiar exclusivamente com essa interpretação restritiva o credor pignoratício, precisamente aquele que o legislador claramente quis preterir em favor da SS.Em súmula, afigura-se-nos não existirem argumentos suficientemente ponderosos que justifiquem a não aplicação do art. 204.º/2, quando também concorram créditos laborais ou por impostos com os créditos da SS e penhor.”
Esta posição mantém fortes seguidores na jurisprudência recente, citando-se tão só aqueles aos quais se não resiste a citar trechos: “Pensamos, portanto, que o legislador pretendeu – e disse-o de modo claro, expresso e sem margem para qualquer dúvida – que os privilégios da segurança social prevalecessem sobre o penhor e, perante a clareza e assertividade da norma em questão sem qualquer ressalva ou restrição, pensamos não ser viável qualquer interpretação que contrarie esse pensamento e essa vontade e restrinja o seu âmbito de aplicação.”  cf acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de  9 de abril de 2024, no processo  1871/23.8T8LRA-B.C1  e  “I - Numa graduação de créditos em processo de insolvência em que coexistam créditos privilegiados reconhecidos ao “Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P.”, um crédito reconhecido por penhor e créditos laborais verifica-se uma aparente incompatibilidade na aplicação conjugada dos art.º 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, dos art.º 749.º e 666.º do Código Civil e do art.º 333.º, n.º 2, alínea a) do Código do Trabalho.II - Analisando todas estas normas legais à luz do princípio da unidade do sistema jurídico, e dando prevalência à vontade do legislador de, através de uma norma especial, dar prevalência aos créditos da Segurança Social face aos créditos garantidos por penhor, concluímos que a única interpretação conjugada das mesmas é a de dar preferência aos créditos da Segurança Social ou do Instituto de Emprego e Formação Profissional sobre os créditos garantidos por penhor e, num segundo momento, dar preferência a estes últimos sobre os demais créditos garantidos por privilégio mobiliário, designadamente sobre os créditos laborais. “ cf acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de março de 2023 no processo 682/22.2T8AVR-B.P1.

concretização
Como decorre do relatório efetuado supra, a exequente e executada acordaram por escrito, junto aos autos na execução, constituir penhor sobre o bem penhorado, tendo sido entregue ao exequente documento que lhe atribuía tal direito.
Assim, dúvidas não há que esta garantia não foi posta em causa na execução, nem na reclamação de créditos, desde logo retratada nos requerimentos executivos que enformaram a execução que estes autos são apenso.
Posto isto, só por lapso, dado que nenhuma justificação foi dada em contrário, se pode entneder que a mesma não foi considerada.
Quanto à graduação de créditos, atento todo o já exposto, fazendo uma interpretação das normas em colisão, mas sem restringir a aplicação da norma especial, concluímos que a mesma deve seguir a ordem exposta: “1º- créditos da segurança social; 2º- créditos garantidos por penhor; 3º- créditos do Estado por impostos.”

V- Decisão

Por todo o exposto, julgam-se a apelação parcialmente procedente e em consequência revoga-se a sentença proferida na parte em que graduou os créditos exequendo e os reclamados, substituindo-se a decisão pela seguinte graduação:

-Em 1º lugar:
-------- o primeiro crédito reclamado pela Segurança social
-Em 2º  lugar:
-------- a quantia exequenda garantida pelo penhor
-Em 3º  lugar:
------- o crédito reclamado pelo Estado relativo a impostos
 
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.

Guimarães, 11 de julho de 2024

Sandra Melo
José Manuel Flores
Maria Amália Santos, que apresenta o seguinte voto de vencida:

Declaração de voto (da Relatora):
Com todo o respeito pelos argumentos expendidos no acórdão proferido, não posso concordar com os mesmos (na parte relativa à graduação do crédito da Segurança Social antes do crédito do recorrente), e daí a razão pela qual, enquanto relatora (vencida), apresento a presente declaração de voto – na qual, por razões de economia processual, reproduzo, em parte, o projeto de acórdão que apresentei aos Exmos Adjuntos:
Como resulta da matéria de facto assente, o crédito exequendo goza da garantia do penhor sobre o bem penhorado, constituído em 7 de fevereiro de 2020 (em data anterior à penhora) - penhor esse incidente sobre os bens localizados na sede da executada, a sociedade comercial EMP01... Lda, nomeadamente, uma máquina de embalar ..., no montante de € 90.000,00, a qual foi penhorada nos autos a 4 de julho de 2023.
Por seu turno, a Fazenda Nacional e o Instituto da Segurança Social reclamaram créditos referentes, respetivamente, a IVA, e a contribuições à Segurança Social, os quais gozam de privilégio mobiliário geral, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 736.º do CC, e no n.º 1 do artigo 204.º da Lei n.º 110/2009, de 16.9.
Dispõe o art.º 604º nº 1 do Código Civil, intitulado “Concurso de credores”, que “Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos”, acrescentando o nº 2 do mesmo preceito, que “São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção”.
E dispõe o art.º 666.º nº1 do CC, que “o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”.
O penhor traduz-se assim numa garantia real completa, “incidente ab initio sobre uma coisa ou direito em concreto, oponível erga omnes” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, p. 609-610; Ac. RL de 9.5.2019, e Ac. RC de 21.05.2019, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Por seu turno, o “Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros” (artigo 733.º do CC). “Os privilégios mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de ato equivalente” (nº 2 do art.º 735.º do CC).
Dispõe por sua vez o n.º 1 do artigo 749.º, intitulado “Privilégio geral e direitos de terceiro”, que “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”.
Ora, o privilégio mobiliário geral, não incidindo sobre coisa certa e determinada, mas sobre o património do devedor, não é um verdadeiro direito real, mas um direito de crédito que confere ao seu titular a prevalência sobre os credores comuns do devedor. Ou seja, os privilégios creditórios mobiliários gerais são meras preferências de pagamento, incidindo sobre a generalidade dos bens móveis do devedor, e assumindo a eficácia que lhes é própria aquando do acto da penhora.
Como tem sido efetivamente considerado, e é referido nomeadamente por Salvador da Costa (O Concurso de Credores, 5ª Ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 129), os privilégios mobiliários gerais (à semelhança dos imobiliários) “…uma vez que, em razão da sua indeterminabilidade, não são envolvidos na sequela, a qualificação que melhor lhes quadra é a de mera preferência de pagamento”.
Nos dizeres daquele Autor, “eles assumem-se como meros direitos de prioridade que apenas têm algo de parecido com a eficácia própria dos direitos reais na medida em que prevalecem contra os credores comuns na execução do património do devedor.” “Consequentemente, ao contrário do que sucede com os privilégios especiais, os quais, nos termos do art.º 750.º do CC são suscetíveis de prevalecer sobre o direito de terceiro garantido por uma causa de preferência, os privilégios gerais não são, ex vi do art.º 749.º CC, oponíveis a outros direitos reais, como é o caso do penhor” (Ac. RL 09.05.2019, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, considerando que o privilégio mobiliário geral não incide sobre bens determinados e, como tal, não goza da sequela que é própria dos direitos reais de garantia, em caso de conflito entre tal privilégio mobiliário geral e o direito real de gozo ou de garantia dum terceiro, oponível ao exequente, é este último que prevalece nos termos do referido artigo 749.º do C. Civil, o qual resolve o conflito “bilateral” entre o privilégio geral e o direito real de gozo ou de garantia de terceiro.
Dito de outro modo, no confronto dum direito de crédito garantido por privilégio mobiliário geral e um direito de crédito garantido por penhor, é este que prevalece na ordem de graduação (art.º 666.º/1 do C. Civil).
*
O artigo 204.º da Lei 110/2009, de 16.9 (Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social - CRCSPSS), dispõe no entanto no seu nº 1, que “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil”, acrescentando o nº 2 daquele preceito, que “Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.
Assim, à primeira vista, no confronto entre o crédito do exequente e o crédito da Segurança Social, ao abrigo do disposto no citado art.º 204º nº 2 da Lei 110/2009, prevaleceria o crédito da Segurança Social.
E assim tem sido entendido maioritariamente (pela doutrina e pela Jurisprudência), no caso em que se verifica a díade Segurança Social/penhor, caso em que não há fundamento para a interpretação restritiva do artigo 204, n.º 2 da Lei 110/2009, sendo de prevalecer o crédito da Segurança Social sobre o credor pignoratício (Pires de Lima-Antunes Varela - Código Civil Anotado, I, anotação ao artigo 666.º, e Acs. do STJ, de 22-09-20219 e da RL de 05-04-2022, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Não parece haver assim qualquer óbice interpretativo a que, neste caso (de conflito bilateral), deva prevalecer a regra especial imperativa contida no n.º 2 do artigo 204º da lei 110/2009, por se tratar de uma norma especial (Ac. do STJ de 22/9/2021 e Ac. RL de 08.02.2022, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Já nas situações em que estão em concurso mais do que duas categorias de credores que gozam de garantias cobertas por regras de valor normativo equivalente, a Jurisprudência mais recente tem vindo a entender que a referida norma tem uma aplicação restritiva, ou seja, apenas se aplica quando a graduação de créditos envolve exclusivamente créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social.
Nos casos de conflito multilateral, a jurisprudência mais recente tem entendido que prevalece o crédito pignoratício sobre todos os créditos com privilégio mobiliário geral, incluindo o crédito da Segurança Social (Acs. do STJ de 22.9.2021, 5.4.2022, 6.7.2022, e 22.2.2024; desta RG de 13-02-2014, 08-07-2020, 11.1.2021 e de 5.5.2022; da RC de 21.5.2019; da RP de 11-09-2018, 9.5.2019, e de 5.3.2024; da RL de 09-11-2021, de 24-11-2020, e de 8.2.2022; e da RE de 05-11-2015, e de 24-03-2022, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Assim, numa situação de conflito multilateral, o legislador remeteu a solução das preferências para as regras gerais (do Código Civil) que enformam a traça normal dos créditos em confronto, procurando obviar à preterição desproporcionada dos interesses de um conjunto mais alargado de credores, entre eles o interesse do credor pignoratício.
Donde, num conflito “trilateral”, como é o caso dos autos, em que haja créditos garantidos por penhor, créditos por impostos com privilégio mobiliário geral, e créditos da SS com privilégio mobiliário geral, a graduação deve ser feita com a prevalência dos créditos garantidos por penhor, já que se trata de uma garantia de natureza real (firmada necessariamente por contrato, e sobre a qual a parte credora estabeleceu as suas legítimas expetativas garantísticas), que beneficia ademais da sequela e é oponível erga omnes - enquanto o privilégio mobiliário geral (que não tem natureza real) está talhado para conferir uma mera preferência de pagamento relativamente aos créditos comuns.
É tudo isto que representa a normalidade do sistema em sede de preferências creditórias, sendo de presumir, em caso de conflito de normas e na dúvida, que o legislador adotou a solução que está estabelecida como constituindo a normalidade, e não a solução decorrente da exceção ou desvio a essa normalidade (citação do Ac. STJ de 22.9.2021).
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Em suma, no caso em apreço estamos perante um confronto multilateral de créditos, uma vez que são chamados à graduação de créditos os créditos reclamados pela Segurança Social, com privilégio mobiliário geral (contribuições), os créditos reclamados pelo Estado com privilégio mobiliário geral (IVA) e o crédito exequendo com penhor.
Como tal, e quanto ao produto da venda do bem móvel penhorado, o crédito exequendo, garantido por penhor, deve ser graduado em primeiro lugar, seguido dos créditos do Estado e da SS, garantidos por privilégio mobiliário geral (entidades reclamantes que não interpuseram recurso da graduação dos seus créditos, tendo a sentença transitado em julgado quanto aos mesmos).
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Em nosso entendimento seria de proceder a Apelação, com a revogação da sentença recorrida, na qual deveria ser graduado o crédito exequendo em primeiro lugar, seguido dos créditos da Fazenda Nacional e da Segurança Social.
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Guimarães, 11.7.2024

Maria Amália Santos (Relatora, vencida)”