DECISÃO SURPRESA
SANEADOR-SENTENÇA
ACORDO
Sumário


Não há decisão -surpresa relativa a um saneador-sentença se:
- No despacho que designou a audiência prévia foi dada nota de que seria possível conhecer, pelo menos em parte, do mérito da causa.
- No dia designado para realização da audiência prévia as partes requereram a suspensão da instância por 30 dias e declararam prescindir da “designação de nova data para a marcação de Audiência Prévia e que nada têm a opor a que seja proferido despacho saneador por escrito”.
- Frustrada a hipótese de acordo, nenhuma das partes podia desconhecer que tal saneador poderia contemplar, como efectivamente contemplou, o conhecimento parcial do mérito da causa, tendo dado a sua anuência a esta agilização do processado, bem como o seu reconhecimento quanto à desnecessidade de alegarem de facto e de direito antes da prolação da decisão que, conhecendo do fundo da causa, definiria (parcialmente) a sorte do pleito.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


ACÓRDÃO

I. RELATÓRIO

1. SILVEIRA & OUTROS, LDA. demandou VIMIGRANITOS – EXTRACÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DE GRANITOS, LDA. pedindo que se considere resolvido o contrato de pesquisa e exploração de pedreira celebrado entre Autora e Ré na data de 02/03/2022, e que a Ré seja condenada na entrega da parcela de 87470 m2 (oitenta e sete mil quatrocentos e setenta metros quadrados) do prédio misto denominado “Herdade ...”, onde se situa a pedreira, livre e devoluto de bens da Ré, bem como no pagamento de €50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso na entrega da parcela do prédio, a título de sanção pecuniária compulsória, desde a data do trânsito em julgado da decisão; pedindo ainda a condenação da Ré no pagamento de indemnização por enriquecimento sem causa, equivalente ao adiantamento e matagem mínima mensal, nos mesmos termos em que se venceriam de acordo com o contrato de pesquisa e exploração de pedreira, desde dia 02/03/2022 até à efetiva entrega da pedreira, atualmente no valor de €4.493,70 (quatro mil, quatrocentos e noventa e três euros e setenta cêntimos), acrescida de juros desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese, que no dia 27/03/2003, mediante escritura pública, Autora e Ré celebraram o Contrato de Pesquisa e Exploração de Pedreira, através do qual a primeira cedeu à segunda, para a atividade de pesquisa e exploração do granito existente no subsolo, de uma parte do prédio misto denominado “Herdade ...”, sito na freguesia ..., do concelho ..., de que a Autora é dona, tendo ficado convencionado pelas partes que como contrapartida a Ré pagaria à Autora, no início de cada ano e como adiantamento, a quantia de €7500,00 (sete mil e quinhentos euros), atualizável anualmente por acordo ou conforme o índice de inflação. Mais ficou convencionado que a Ré pagaria até ao dia 8 (oito) de cada mês a matagem, ou seja €11,43 (onze euros e quarenta e três cêntimos) por cada metro cúbico de pedra desbastada, fixando-se um mínimo mensal devido de 50 m3 (cinquenta metros cúbicos), valor a atualizar anualmente por acordo ou conforme o índice de inflação.

Alegou ainda a Autora que desde janeiro de 2017 que a Ré nada paga à Autora, seja a título de adiantamento, seja a título de matagem, seja a título de qualquer outra das obrigações contratadas. Desde essa data a Ré também não informa a Autora sobre o apuramento mensal da extração para que esta possa calcular o valor da matagem a entregar por aquela.

Mais acrescentou a Autora que em 15/02/2022, interpelou a Ré para pagar as quantias em atraso no prazo de 10 (dez) dias, porém, a Ré nada disse nesse prazo, nem liquidou as quantias em dívida, consequentemente, em 02/03/2022, a Ré foi notificada da resolução do Contrato de Pesquisa e Exploração de Pedreira por parte da Autora, atenta a objetiva perda de interesse na manutenção do contrato por parte desta.

Terminou, assim, a Autora pedindo se considere resolvido o contrato de pesquisa e exploração de pedreira celebrado entre Autora e Ré na data de 02/03/2022, e que a Ré seja condenada na entrega da parcela de 87470 m2 (oitenta e sete mil quatrocentos e setenta metros quadrados) do prédio misto denominado “Herdade ...”, onde se situa a pedreira, livre e devoluto de bens da Ré, bem como no pagamento de €50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso na entrega da parcela do prédio, a título de sanção pecuniária compulsória, desde a data do trânsito em julgado da decisão; pedindo ainda a condenação da Ré no pagamento de indemnização por enriquecimento sem causa, equivalente ao adiantamento e matagem mínima mensal, nos mesmos termos em que se venceriam de acordo com o contrato de pesquisa e exploração de pedreira, desde dia 02/03/2022 até à efetiva entrega da pedreira, atualmente no valor de €4.493,70 (quatro mil, quatrocentos e noventa e três euros e setenta cêntimos), acrescida de juros desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

2. Regularmente citada, a Ré contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação, alegando, em síntese, que:

- A Autora não tinha legitimidade para celebrar o contrato de exploração de pereira, uma vez que não era titular de licença de pedreira, sendo que a Ré só teve condições para iniciar a sua atividade seis meses depois do início do contrato;

- A partir de 2012 a Ré começou a sentir dificuldades económicas e por isso os seus pagamentos à Autora deixaram de ser pontuais;

- Em julho de 2017 as partes acordaram que a Ré deixaria de pagar à Autora o direito de matagem e a Ré poderia fazer pagamentos parcelares da renda estipulada;

- Além disso, o valor das benfeitorias e investimentos efetuados pela Ré na propriedade da Autora são superiores ao montante das rendas em dívida, devendo ser feita a respetiva compensação;

- A Ré rececionou a carta aludida no artigo 12.º da p.i. e respondeu à mesma, no sentido de que deveria ser considerada a alteração acordada entre as partes quanto ao pagamento da contrapartida da Autora e que deveria existir um encontro desses valores com o valor do trespasse da pedreira, de cuja licença a Ré é titular; em resposta a Autora respondeu, dirigindo à Ré a comunicação aludida no artigo 14.º da p.i.;

- Inexiste, pois, fundamento para a resolução do contrato por incumprimento definitivo;

- Além disso, a Ré tem direito de retenção sobre o imóvel até lhe serem pagas as quantias que despendeu com as benfeitorias realizadas, nos termos do artigo 1273.º do Código Civil;

- Salienta, por fim, que não existe qualquer fundamento para a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa;

Termina, assim, concluindo pela improcedência de todos os pedidos formulados pela Autora, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos.

A Ré pede ainda que a Autora seja condenada como litigante de má fé, em multa e em indemnização à Ré de montante não inferior a €5.000,00

3. Por requerimento apresentado em 03.11.2022, a Autora exerceu o contraditório quanto à litigância de má fé invocada pela Ré.

Ainda em sede de contraditório, a A. pugnou pela improcedência das excepções arguidas pela Ré, tudo conforme decorre do requerimento apresentado em 22.03.2023 (cfr. referência n.º 3573378) e que por razões de economia processual aqui se dá por inteiramente reproduzido.

4.Conhecendo parcialmente dos pedidos, foi proferido despacho saneador, julgando a “presente ação parcialmente procedente, em consequência:

a) Declarar resolvido o contrato celebrado pelas partes desde 02.03.2022, condenando a ré a entregar à Autora o referido prédio, livre e devoluto de quaisquer pessoas e bens;

b) Absolver a Ré do pagamento de €50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso na entrega da parcela do prédio, a título de sanção pecuniária compulsória, desde a data do trânsito em julgado da decisão;

c) Julgar improcedente, por não provada, as exceções de ilegitimidade substantiva e o direito de retenção invocados pela Ré. (…)”.

5. É desta decisão que pela Ré foi interposto recurso, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

1. - O presente recurso de Apelação vem interposto da, aliás, mui douta sentença de fls. ….. e seg.s, dos autos, que decidiu julgar a presente acção parcialmente procedente, em consequência:

a) Declarar resolvido o contrato celebrado pelas partes desde 02.03.2022, condenando a ré a entregar à Autora o referido prédio, livre e devoluto de quaisquer pessoas e bens;

b) Absolver a Ré do pagamento de €50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso na entrega da parcela do prédio, a título de sanção pecuniária compulsória, desde a data do trânsito em julgado da decisão;

c) Julgar improcedente, por não provada, as exceções de ilegitimidade substantiva e o direito de retenção invocados pela Ré;

d) Condenar a Ré a suportar as custas da ação na proporção de 80% (cf. artigo 527.º do CPC).

2. Com o respeito devido - que é muito - afigura-se-nos que aquela douta sentença recorrida violou o disposto nos art.s 3.º, n.ºs 3 e 4, 4.º, 411.º e 607.º, n.ºs 4 e 5, todos do Cód. Proc. Civil,

3. Porquanto, a decisão ora recorrida fundamenta-se na matéria de facto, ALEGADAMENTE, dada como provada, nos pontos 1 a 13, daquela douta sentença.

4. Ora vejamos, o Tribunal a quo não fundamentou quais os factos não provados, nem a razão pela qual não considerou os documentos juntos pela Ré, desconhecendo-se, por completo, o iter cognoscitivo do Tribunal recorrido para nada decidir sobre o facto da Ré ter alegado que a cedência havia sido nula por inexistência de licença de exploração.

5. Mais, na nossa modesta opinião, a presente decisão, considerando os meios de prova carreados para os autos, que incluía o depoimento de testemunhas e a decisão do douto Tribunal a quo, esta foi, sem qualquer pejo, uma Decisão surpresa.

6. A DECISÃO RECORRIDA FOI PROFERIDA, NA NOSSA MODESTA OPINIÃO, EM TOTAL ARREPIO DA DESCOBERTA DA VERDADE, DESIGNADAMENTE, SEQUER PUGNA POR APURAR SOBRE A EXISTENCIA OU NÃO DE LICENÇA PARA VALIDAR O CONTRATO SUB JUDICE.

7. TUDO, SEM PREJUÍZO DA PRIMEIRA INSTÂNCIA SEQUER EXAMINAR E SE PRONUNCIAR DE FORMA CRITICA, COMO LHE CABIA, SOBRE OS DOCUMENTOS JUNTOS PELA RÉ.

8. Aliás, o Tribunal a quo sequer analisa, criticamente ou não, essa prova documental junta pela R.; desconhecendo estes qual o iter cognoscitivo que levaram aquele Tribunal a não considerar os documentos juntos por esta parte, cuja falsidade não foi apurada em sede de incidente próprio, a favor de meras alegações escritas da A..

9. VENERANDOS JUIZES DESEMBARGADORES A SENTENÇA RECORRIDA FOI O QUE SE APELIDA DE UMA VERDADEIRA DECISÃO SURPRESA.

10. Destarte, ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido, violou o disposto nos art.s 3.º, n.ºs 3 e 4, 4.º, 607.º, n.ºs 4 e 5, todos do Cód. Proc. Civil, sendo manifesto que se verificou uma total ausência de analise dos documentos juntos, quanto mais critica.

11. Termos em que, pelas razões atras aduzidas, deve a decisão em crise ser revogada, com as demais consequências legais.

12. Neste sentido: Ac. RL de 22/03/2018, Proc. n.º 207/14.3TVLSB-2, Ac. RL, de 11/10/2018, Proc. n.º166/17.0T8AND.L1-6.

13. Ademais, salvo o devido respeito por opinião diversa, cabe ao Tribunal recorrido ordenar e realizar todas as diligências necessárias para a demanda da verdade e justa composição do litígio, nos termos do disposto no art. 411.º, do Cód. Proc. Civil, dever que o Tribunal a quo também violou, pois que, não cuidou de apurar se a licença de exploração, pressuposto da validade do contrato subjudice , estava ou não válida à data da contratação, eximindo-se a essa tarefa e sufragando a versão não provada da A.

14. Neste sentido: vd. Ac RP, de 10/01/2008, Proc. n.º 0734846.

15. Termos em que, pela violação do dispositivo legal sobredito, deve a sentença recorrida ser revogada, com as demais consequências legais.

Assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!”.

6. Contra-alegou a Autora defendendo a improcedência do recurso.

7. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões da recorrente (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se apenas à questão de saber se o estado dos autos comportava o conhecimento do mérito no saneador e, em caso afirmativo, se se configura como uma “ decisão-surpresa”.

II. FUNDAMENTAÇÃO

8. Considerando que a recorrente não impugna verdadeiramente a decisão de facto inserta no saneador-sentença, conclui-se, portanto, que a mesma se mantém incólume, tendo a mesma o seguinte teor:

“1. A Autora é uma pessoa coletiva que se dedica a gestão de empresas agrícolas, exploração de propriedades rústicas próprias ou por arrendamento, prestação de serviços de qualquer natureza no campo agrícola, pecuária e florestal; exploração, criação e comercialização de caça, exploração turística de caça e pesca, piscicultura e comercialização de peixe.

2. A Ré é uma pessoa coletiva que se dedica à extração, transformação, comércio, importação e exportação de granitos.

3. A Autora é dona e do prédio misto denominado “Herdade ...”, sito na freguesia ..., do concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...49, com a área de 608,9 (seiscentos e oito virgula nove) hectares, e inscrito na matriz rústica sob o artigo ...2 da secção ... e na matriz urbana sob o artigo ...35.

4. No dia 27/03/2003, mediante escritura pública, Autora e Ré celebraram acordo escrito, intitulado “Contrato de Pesquisa e Exploração de Pedreira”, através do qual o representante da Autora declarou que “…pela presente escritura, em nome da representada, dão de arrendamento à sociedade que o segundo outorgante representa, para pesquisa e exploração de pedreira de granito uma parcela de terreno com a área de oito hectares (…) o presente contrato regula-se pelas cláusulas constantes do documento complementar elaborado nos termos do n.º 2 do artigo 64.º do Código do Notariado, o qual fica a fazer parte integrante da presente escritura …”, tudo conforme decorre do teor do documento n.º 6 junto com a p.i., que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

5. Convencionaram ainda as partes, na cláusula 3.ª do referido documento complementar, que “… – A exploradora da pedreira pagará:

Um - Adiantamento, ou seja, no início de cada ano de vigência do contrato, a renda anual de sete mil e quinhentos euros;

Dois – A quantia de onze euros e quarenta e três cêntimos por cada metro cúbico de pedra desbastada, sendo sempre devida a matagem correspondente ao mínimo mensal de cinquenta metros cúbicos.

Três- O pagamento da matagem será feito mensalmente até ao dia 8 do mês seguinte à extração. (…)

m) A renda e a matagem por metro cubico de pedra extraída, serão actualizadas por acordo entre a proprietária e a exploradora da pedreira, ou anualmente pela aplicação do índice oficial de inflação em Portugal no ano imediatamente anterior.

n) A exploradora da pedreira não terá direito a indemnização por qualquer benfeitoria que fizer. (…)” tudo conforme decorre do teor do documento complementar junto com o documento n.º 6 da p.i. e que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

6. Na cláusula 4.ª do referido documento complementar também foi convencionado que “O não cumprimento pela exploradora dos prazos estipulados para o pagamento das rendas obriga-a ao pagamento de juros sobre as importâncias em atraso à taxa legal em vigor, ou implicará a rescisão do contrato caso os atrasos nos pagamentos ultrapassem três meses.”

7. Em 20 de janeiro de 2014, mediante escrito particular, com reconhecimento de assinaturas, foi acordado entre as partes uma adenda ao referido contrato, que estipulou que a parcela objeto do contrato referido no facto n.º 4 corresponderia a 87470 m2 (oitenta e sete mil quatrocentos e setenta metros quadrados) do prédio acima referido, tudo conforme decorre do teor do documento intitulado por “ADENDA” junto com o documento n.º 6 da p.i., e que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

8. A Ré não pagou à Autora as rendas anuais vencidas nos anos de 2018 a 2022.

9. Em 15/02/2022, a Ré rececionou a carta remetida pela Autora, mediante a qual esta reclama daquela o pagamento das rendas anuais e matagem dos anos de 2017 a 2022, e interpela-a para “…no prazo de 10 (dez) dias, efetuar o pagamento da quantia de € 92.012,40 (noventa e dois mil e doze euros e quarenta cêntimos), sob pena de a subscritora perder todo o interesse na manutenção do contrato, não tendo outra solução senão proceder à sua resolução.”, tudo conforme consta do teor do documento n.º 7 da p.i. e que aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.

10. Em resposta à sobredita comunicação escrita, a Ré dirigiu à Autora, que a rececionou, a carta datada de 21.02.2022, que se encontra junta sob a referência n.º 3421933 (de 03.11.2022) cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.

11. No prazo fixado pela Autora na comunicação escrita referida em 8., a Ré não pagou qualquer quantia.

12. Em 02/03/2022, a Ré rececionou a carta remetida pela Autora comunicando-lhe a resolução do Contrato de Pesquisa e Exploração de Pedreira, tudo conforme decorre do teor do documento n.º 8 da p.i. e que aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.

13. A Ré não entregou à Autora a parcela do prédio objeto do contrato referido nos factos n.ºs 4 e 7.

*

Da consulta dos autos emergem igualmente as seguintes ocorrências processuais:

- Em 21.6.2023 foi proferido o seguinte despacho : “Uma vez que se afigura possível conhecer, pelo menos em parte, do mérito da causa, cumpre realizar a audiência prévia, que terá por objeto os fins a que aludem as alíneas a) a g) do n.º 1 do artigo 591.º do Código de Processo Civil. designando-se para o efeito o dia 20 de setembro de 2023, pelas 13h30m.

Cumpra-se o disposto no artigo 151.º, n.º 1, do CPC.”.

- No dia designado, teve lugar a audiência prévia na qual as partes requereram a suspensão da instância por 30 dias, tendo na mesma sido proferido o seguinte despacho: "Sem prejuízo da suspensão da instância solicitada pelas partes e de que infra se conhecerá, desde logo cabe proferir decisão com vista a convidar a ré a clarificar questões que se afiguram ser essenciais para a causa o que se passa a fazer nos seguintes termos:

A Ré veio alegar nos artigos 24.º a 27.º da contestação que em julho de 2017 celebrou um acordo de pagamentos com a Autora, sem especificar, no entanto, os concretos termos e âmbito desse acordo.

Assim, tratando-se aquela de uma defesa por exceção perentória, cuja factualidade é essencial para o conhecimento da causa, antes de mais, convido a Ré a clarificar:

- se o referido acordo incidiu apenas sobre as rendas já vencidas até essa data (ou seja, julho de 2017) e, nesse caso a que concreto período temporal se reportavam as rendas abrangidas nesse acordo, qual o respetivo montante e modo de pagamento fixado no acordo alcançado pelas partes; ou se o referido acordo incidiu também sobre as rendas vincendas e, nesse caso, qual a concreta forma de pagamento estipulada pelas partes, nomeadamente quanto ao respetivo valor e datas de vencimento;

- se o mencionado acordo incidiu igualmente sobre a cobrança do direito de matagem e nesse cado em que termos foi definido.

Nestes termos fixa-se à ré o prazo de 10 dias para prestar os esclarecimentos acima enunciados.


*

Uma vez que as partes requereram a suspensão da instância, atenta a fase processual em que se encontra o processo e o acordo de autor e ré quanto a esta matéria, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, defere-se o requerido e consequentemente suspende-se a instância pelo prazo de 30 dias.

Notifique".


*

Auscultadas as partes as mesmas declararam que prescindem da designação de nova data para a marcação de Audiência Prévia e que nada têm a opor a que seja proferido despacho saneador por escrito. “.

9. Do mérito do recurso

9.1. O conhecimento parcial dos pedidos no saneador

Insurge-se a apelante contra tal conhecimento prematuro com o argumento de que foi privada de produzir prova testemunhal que no seu entender era susceptível de influir na decisão da causa.

Entendeu-se na decisão recorrida que o estado dos autos comportava o conhecimento (parcial) do mérito da acção no saneador, opção que a alínea b) do nº1 do art.º 595º do CPC contempla quando não haja necessidade de produzir mais provas.

Como proficientemente se afirma no Acórdão da Relação de Coimbra de 21.1.2014 (proferido à luz do revogado CPC mas que neste conspecto mantém perfeita actualidade) o “conhecimento do mérito em sede de despacho saneador pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisão - afinal quando as partes só discordem da solução jurídica da questão a dirimir -, mas não se coaduna com decisões que, em nome de pretensas celeridades – que, depois, dão em vagares –, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura - apresentando-se a audiência de julgamento como o momento processual propício à clarificação da factualidade invocada.

Por isso, tal conhecimento só deve ocorrer se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.”.

O Tribunal “a quo” salientou que “perante o quadro factológico apurado, afigura-se estarem reunidas as condições para que o tribunal aprecie e tome decisão quanto àqueles dois primeiros pedidos”.

E entendeu bem, já que perante tal matéria assente por via de documento, acordo e confissão, era possível conhecer da (i) licitude da resolução do contrato ajustado entre as partes e da consequente restituição do que por via do mesmo havia sido cedido à Ré- parte do prédio misto denominado “Herdade ...”.

Outrossim, o quadro fáctico assente permitia conhecer da excepção de ilegitimidade substantiva da Autora invocado pela Ré e da improcedência do direito de retenção pela mesma igualmente suscitado.

Estavam, pois, reunidos os pressupostos do julgamento imediato destes dois pedidos no saneador o que, como salienta Paulo Ramos de Faria[1] , “não é apenas um poder do tribunal de primeira instância. É um dever tributário do princípio da economia processual.”.

E explanando esta sua afirmação acrescenta o mesmo autor: “É absolutamente despropositado e inaceitável sujeitar os intervenientes processuais a uma actividade instrutória demorada e onerosa – envolvendo testemunhas, peritos e profissionais forenses, por exemplo –, quando o juiz dispõe de total jurisdição (definitiva) para fazer valer a sua abordagem firme e escrupulosa da questão de direito, se para a resolução do caso de acordo com esta abordagem é totalmente irrelevante tal actividade.”.

No caso subjudice o ganho em economia processual – com tudo o que a aplicação de tal princípio determina – é evidente porque o estado dos autos, perante a manifesta improcedência das “ excepções” invocadas e, por consequência, a irrelevância dos factos alegados para as sustentar, são determinantes da desnecessidade de processo prosseguir para julgamento.

Em suma: o processo comportava o conhecimento do mérito no saneador como, também, bem se decidiu.

9.2. A questão da “decisão-surpresa”

A apelante insiste reiteradamente que o saneador-sentença em apreço se configura como uma “decisão-surpresa” denotando perplexidade por ter ocorrido o conhecimento de alguns dos pedidos nessa fase.

Cremos, porém, que tal reacção tem origem no facto de ter desconsiderado o despacho que designou a audiência prévia, no qual foi dada nota de que seria possível conhecer, pelo menos em parte, do mérito da causa.

E não nos podemos esquecer que as partes frustraram o propósito de realização da audiência prévia designada para esse efeito, enveredando por requerer a suspensão da instância por 30 dias, o que foi inevitavelmente deferido.

Não tendo as partes alcançado acordo nesse período seguir-se-ia nova marcação de audiência prévia para prolação do saneador, não fosse as partes terem declarado prescindir na “designação de nova data para a marcação de Audiência Prévia e que nada têm a opor a que seja proferido despacho saneador por escrito”.

Ora, nenhuma das partes poderia desconhecer que tal saneador poderia contemplar, como efectivamente contemplou, o conhecimento parcial do mérito da causa, tendo dado a sua anuência a esta agilização do processado, bem como o seu reconhecimento quanto à desnecessidade de alegarem de facto e de direito antes da prolação da decisão que, conhecendo do fundo da causa, definiria a sorte do pleito.[2]

Por isso, não pode afirmar-se ter ocorrido um desfecho inesperado do processo no saneador e, por consequência, uma “decisão-surpresa”.

III. DECISÃO

Por todo o exposto se acorda em julgar improcedente a apelação e em confirmar o saneador- sentença recorrido.

Custas pela apelante.

Évora, 11 de Julho de 2024

Maria João Sousa e Faro (relatora)

Manuel Bargado

Mário Branco Coelho

_________________________________________________[1] In “Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito” in Julgar Online, outubro de 2019, pag. 11.

[2] Neste sentido, Ac. do STJ de 16.12.2021 (Luís Espírito Santo) que expressa o seu entendimento favorável a esta situação.