PROVA
DEPOIMENTO TESTEMUNHAL
DEPOIMENTO INDIRECTO
ASSISTENTE
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
JUÍZO DE PROGNOSE
PERIGOSIDADE
GRAVIDADE E CONSEQUÊNCIAS DAS INFRACÇÕES
IMPUTABILIDADE
INIMPUTABILIDADE
LIVRE APRECIAÇÃO DO JULGADOR
Sumário

I - Assentando por natureza a viabilidade probatória, quer do depoimento da testemunha quer das declarações do assistente, na razão de ciência que os enforma, conclui-se ser o mesmo, portanto, o substrato fáctico-jurídico e teleológico, na função que representam para a necessidade de descoberta da verdade material, sem prejuízo das especificidades de valoração a jusante de um e outro meio de prova, à luz do princípio da livre apreciação da prova.
II - Assim, não se vislumbra possível, porque ademais sem um mínimo de apoio na letra da lei, afirmar-se que, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 145º, nº 3, do Código de Processo Penal, o regime legalmente previsto no art.º 128º, nº 1, para o depoimento direto da testemunha, é também aplicável ao assistente, mas reversamente, e no que redundaria numa aporia insuperável, o respeitante ao depoimento indireto a que alude o art.º 129º, nº 1, já não seja, quando o teria de ser como decorrência lógica inevitável da primeira ilação produzida, decorrência lógica essa que sai reforçada pela impossibilidade de se poder defender, em contrário do que exige o art.º 145º, nº 3, que tal regime do depoimento indireto, pela sua específica natureza, é manifestamente inaplicável às declarações do assistente, ademais porque também é certo que a lei sobre isso não dispõe diferentemente.
III - E resultando a aplicação do art.º 129º, nº 1, do Código de Processo Penal por imposição normativa do art.º 145º, nº 3 (norma de caráter remissivo), uma tal aplicação não é analógica, porquanto a solução jurídico-concreta assim alcançada é determinada por interpretação da própria lei.
IV - Sendo a perícia psiquiátrica essencial para a formulação do juízo de prognose sobre o fundado receio de o agente poder vir a praticar factos da mesma espécie da do ilícito-típico praticado, enquanto pressuposto de aplicação da medida de internamento a que alude o art.º 91º do Código Penal, é, todavia, não ao perito, mas sim ao tribunal que compete determinar a existência ou não de tal perigosidade, tendo por base não apenas tal perícia, mas também a gravidade dos factos na sua totalidade, não estando por isso um tal julgamento sujeito ao disposto no art.º 163º, nº 1, do Código de Processo Penal, ao estabelecer que “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”.
V - Se assim não fosse, isto é, se se atribuísse ao perito, para além da determinação da existência ou não da inimputabilidade do agente, esta sim matéria pericial da sua competência, também a determinação da perigosidade do agente, relativamente ao cometimento de novos factos ilícitos típicos, e assim a função de ser ele exclusivamente a fixar os pressupostos da aplicação de uma medida de segurança, isso seria conceder-lhe uma margem de função jurisdicional que apenas aos tribunais judiciais cabe exercer, sendo que uma tal solução, desde logo vista à luz do princípio do estado de direito, não poderia deixar de ser considerada inconstitucional.
VI - Demonstrada a perigosidade de repetição da prática de novos factos ilícitos típicos, e os demais pressupostos de aplicação da medida de internamento, esta deverá ser suspensa na sua execução, de harmonia com o disposto no art.º 98º do Código Penal, se for expectável que a prevenção de tal perigosidade pode ser alcançada com o arguido em liberdade, através da imposição de regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52.º do mesmo diploma, que sejam necessárias à prevenção de tal perigosidade, bem como ao dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados, o que ocorrerá quando o arguido disponha de apoio familiar, possua avançada idade, padeça de incapacidade motora, e haja entretanto experimentado tratamento médico, que anteriormente não tinha tido, e para o qual não possuía sequer conhecimento da respetiva doença, que agora passou a ter, e assim a possibilidade de se relacionar com ela de um modo novo.

Texto Integral

Proc.º nº 219/22.3GBSVV.P1 – 4ª Secção


Relator: Francisco Mota Ribeiro

Sumário

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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO

1.1. Após realização da audiência de julgamento no Processo nº 219/22.3GBSVV, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 2, Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por sentença de 24/04/2024, depositada na Secretaria na mesma data, foi decidido o seguinte:

a) Absolver o Arguido AA, da prática de um crime de perseguição agravada, p. e p. pelos artigos 154º-A, nºs 1, 3 e 4, ex vi art. 155º, nº1 al. a) ambos do Código Penal e de dois crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181º, n.º1, do Código Penal;

b) Declarar que o Arguido praticou factos típicos e ilícitos subsumíveis ao crime de perseguição agravada, p. e p. pelos artigos 154º-A, nºs 1, 3 e 4, ex vi art. 155º, nº1 al. a) ambos do Código Penal e ao crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, n.º1, do Código Penal, declarando-o  inimputável, em razão de anomalia psíquica, e socialmente perigoso para a prática de idênticos factos típicos;

c) Sujeitar o Arguido à medida de segurança de internamento em estabelecimento adequado à sua cura, tratamento e segurança, até que cesse o seu estado de perigosidade social, medida esta que deve ser revista nos termos legais, e com a duração máxima de 5 anos (cinco anos).

d) Absolver o Arguido/Demandado dos pedidos de indemnização civil deduzidos pela Assistente/Demandante, BB.

e) Declarar os objetos apreendidos à ordem dos presentes autos e constantes do auto de apreensão de fls. 270, perdidos a favor do Estado, determinando-se a sua destruição.


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Sem custas na parte penal.

Custas na parte cível repartidas por Demandante e Demandado, fixando-se o valor da causa em €7.000,00 (sete mil euros).


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Se for invocada a existência de causa justificativa da cessação do internamento, o tribunal aprecia a questão a todo o tempo, sendo a apreciação obrigatória, independentemente de requerimento, decorrido um ano sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o tiver mantido, até que cesse a perigosidade do arguido (com a consequente extinção da medida), ou se atinja o limite máximo definido (com a consequente extinção da medida), cabendo a competência para estes efeitos ao Tribunal de Execução de Penas (cfr. artigos 92º, n.º 1, e 93º, n.º 2, 98º, ambos do Código Penal e artigos 126º a 132º, e 138º, n.º 4, als. m) e s), todos do Cód. de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade).

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         A 26.01.2024 e ao abrigo do disposto nos art.ºs 191.º a 196.º, 202.º, n.º 1 al., 203.º/1 e 2, al. a) e 204.º, als. b) e c), todos do Código de Processo Penal, foi agravado o estatuto coativo do arguido e determinado que o mesmo aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, para além do Termo de Identidade e Residência já prestado.

         Por despacho proferido a 20 de fevereiro de 2024, foi determinado manter o arguido em prisão preventiva, mas em vez de prisão foi decidido o internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo, nos termos do disposto no art.º 202º, nº2 do Código de Processo Penal.

         Nos termos do disposto no art.º 213º, nº1, al. a) do C.P.P., “O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame.”

         Atendendo à primeira data, entende-se ser de proceder ao reexame da medida de coação aplicada ao Arguido.

         Na sentença que antecede, o Arguido foi considerado inimputável perigoso, tendo sido aplicada medida de segurança de internamento em estabelecimento adequado à sua cura, tratamento e segurança, até que cesse o seu estado de perigosidade social.

         Neste momento, pelos factos dados como provados, entende-se que se mantém o perigo da continuação da atividade criminosa por parte do Arguido, sendo o internamento preventivo a única medida adequada e suficiente a evitar esse perigo.

         Pelo exposto, decide-se manter a medida de internamento preventivo a que o Arguido se encontra sujeito.

         Notifique.”

1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:

“1.ª O arguido vem acusado de um crime de perseguição agravada, p.p. pelos artigos 154º, nºs 1, 3 e 4, ex vi art.º 155, nº 1, al. A), ambos do Código Penal;

2.ª Crime que o Tribunal a quo viria a dar como provado, nos termos constantes da acusação tendo, na medida em que deu como provado que “No dia 6 de janeiro de 2023, CC dirigiu-se ao estabelecimento da Assistente, sua irmã, e avisou-a para que tivesse cuidado, pois o Arguido, em casa, anunciara-lhe que a “iria matar um dia destes” – Facto 13.

3.ª Na apreciação crítica deste facto, sustenta a Meritíssima Juiz que “o facto descrito em 13. resulta das declarações da Assistente, sendo a data provada pela leitura das suas declarações prestadas a 14.02.2023, em sede de inquérito e que confirmam as declarações prestadas a 25.01.2023” (sublinhado nosso)

4.ª Acrescentando que “colocar-se-á a questão de ser ou não admissível o depoimento indireto prestado pela Assistente que, pese embora de forma indireta, ouviu da boca da irmã que o Arguido disse que um dia destes a matava (à Assistente), tal facto não veio a ser confirmado pela fonte”.

5.ª Cita, a propósito, orientação jurisprudencial e doutrinal que sustentam a sua posição, bem como outra que aponta para posição contrária.

6.ª Ainda assim, comete um claro vício de raciocínio, na medida em que valorou o depoimento indireto prestado pela Assistente (parte no processo), como se de depoimento indireto de uma testemunha se tratasse;

7.ª ignorando que estamos perante prova por DECLARAÇÕES DE ASSISTENTE que, desde logo, extravasa a inserção sistemática do artigo 129º do C.P.P. (Capítulo da “prova testemunhal”) e não podem, em circunstância alguma, ser, neste caso, valoradas como meio de prova válido.

8.ª Como bem refere, a respeito, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque: “o artigo 129º do C.P.P. uma norma excecional, não é analogicamente aplicável, não valendo, por isso, como meio de prova”, entre outros, “(…) ao depoimento indireto do assistente sobre o que ouviu dizer a outro assistente, um arguido, uma parte civil, uma testemunha ou um perito, sendo que, as limitações do regime do depoimento indireto decorrem do princípio constitucional da imediação. – cfr. “Comentário do Código de Processo Penal, anotações 1 a 10 ao art.º 129º, pág.345 e 347. (negrito e sublinhado nosso).

9.ª No mesmo sentido, a título meramente exemplificativo, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo nº 369/17.8GBPVL.G2, disponível em www.dgsi.pt que refere, expressamente que urge notar que a norma do art.º 129º do CPP (…) rege o depoimento indireto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer a outra testemunha, não sendo abrangido pelo seu específico e excecional campo de aplicação o caso de depoimento indireto de um assistente sobre o que ouviu dizer a outra pessoa, o qual não pode, em qualquer circunstância, valer como meio de prova.(negrito e sublinhado nossos)

Ainda no mesmo sentido, Luís de Lemos Triunfante em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, anot.do §17 ao mesmo artigo, pág. 94.

10.ª Assim, ao dar como provado o facto 13, que sustentou exclusivamente nas declarações prestadas pela Assistente, a Meritíssima Juiz recorreu a um meio de prova que lhe está vedado por lei para dar como provado o facto que que agravou o tipo legal do crime pelo qual vinha acusado.

11.ª A sentença recorrida violou, assim, o artigo 129º do C.P.P. (a contrario), tornando nula a sentença, nessa parte (art.º 379, nº 1c), do C.P.P.).

12.ª Acresce que a Meritíssima Juiz deu também como provado, o seguinte facto (16.): No dia 3 de fevereiro de 2023, após as 17,40h, o Arguido parou o seu veículo(…) junto ao estabelecimento comercial da Assistente, tendo a sua e quando se apercebeu da passagem desta e a mesma se dirigiu para a Rua ..., ficando de costas para si, o mesmo iniciou a marcha e acelerou em direção à mesma, com intenção de a atropelar, o que não logrou alcançar por razões alheias à sua vontade”. (negrito nosso).

13.ª Entendemos, contudo, que não foi feita a apreciação crítica em termos condizentes com as regras da experiência, atendo-se, com primazia, às declarações da Assistente e, só na parte em que com elas eram condizentes, também a prova testemunhal;

14.ª Foi o que aconteceu com as declarações da testemunha DD, a respeito da “tentativa de atropelamento dada como provada”, prestadas pela testemunha DD em Audiência, na sessão do dia 20.02.2024, e constantes da transcrição anexa ao presente recurso, bem como da gravação por sistema integrado de gravação digital;

15.ª Donde resultou, em sentido diverso à apreciação crítica do Tribunal, designadamente, que o arguido, que tinha à sua frente o carro da sua neta EE, manteve-se sempre parado, sem desligar o motor, mas parado; que o arguido não iniciou a marcha e acelerou em direção à Assistente e que o Arguido não chegou perto da Assistente;

16.ª Optando o Tribunal por dar como provado o que acima vai transcrito, sem sequer apreciar criticamente, nestes concretos pontos, as declarações prestadas pela testemunha DD que vão em sentido contrário ao que viria a ser fixado pelo Tribunal, Incorreu a sentença recorrida, quanto à tentativa de atropelamento, em erro de julgamento que também importa reparar.

17.ª Mais grave ainda é a posição assumida pelo Tribunal ao decidir, como decidiu, em sentido contrário à prova pericial e científica realizada, mormente do relatório pericial e esclarecimentos prestados em Audiência pelo Senhor Perito, com base na qual, aliás, o Tribunal deu como provados, com especial relevância para o presente recurso, os Factos 70 a 74.

18.ª Com efeito, ficou decidido que o arguido padece de Perturbação Delirante, mais concretamente, de ideação delirante persecutória ativa, estruturada, centrada em familiares o que, aliás, determinou a sua inimputabilidade, por anomalia psíquica;

19.ª O que, de resto, determinou a consequente absolvição do crime por que vinha acusado, por falta de preenchimento do seu elemento subjetivo.

20.ª Por sua vez, quanto à avaliação da perigosidade do arguido/examinado, em particular a probabilidade de repetição de crimes da mesma natureza, concluiu o Senhor Perito, nas conclusões que apresentou no seu relatório que a mesma “é função de vários fatores, tais como o histórico comportamental do doente, a adesão a medidas terapêuticas e a sua eficácia no controlo dos comportamentos agressivos. No caso em concreto, não são conhecidas intervenções psiquiátricas prévias, tanto no sentido do diagnóstico como de tratamento. O examinado, em virtude do quadro clínico apresentado beneficia de acompanhamento psiquiátrico regular, com eventuais medidas de apoio psicossocial associadas. Aparenta quadro familiar favorável e apresenta fragilidades físicas relevantes. A verificar-se o pressuposto desse acompanhamento, o risco de repetição de atos da mesma natureza, não podendo ser excluído, é reduzido”.

21.ª Contrariando a prova científica, decidiu Tribunal recorrido, ao invés, que o arguido não obstante ser inimputável, em razão de anomalia psíquica, é socialmente perigoso para a prática de idênticos factos típicos.

22.ª Ignorando os (exaustivos) esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito em Audiência, fundados também na sua experiência no tratamento de casos idênticos que apontaram o caminho de “acompanhamento ambulatório psiquiátrico”, para a neutralização do risco de repetição homótropa.

23.ª Mostrando-se o Senhor Perito firme no caminho que indicou para o tratamento do arguido e consequente neutralização da perigosidade social, diante dos piores cenários possíveis que lhe foram apresentados, designadamente, pela Meritíssima Juiz: Acompanhamento em meio aberto, ambulatório psiquiátrico ou mesmo domiciliário, se necessário for, com módico acompanhamento, seja da família, seja de algum técnico de uma instituição próxima, de um vizinho, de uma qualquer pessoa de referência, caso lhe falte retaguarda familiar.

24.ª E é incontornável que o arguido tem família próxima (a mulher, com quem vivia, e a neta EE que vive praticamente ao seu lado), que várias vezes o visitou na cadeia (facto 69 dos factos provados) que, sabendo agora que de uma patologia psiquiátrica se trata e não de uma teimosia ou maldade do arguido (como bem fez notar o Senhor Perito, designadamente, ao mn 20:33 do seu depoimento), poderá acompanhá-lo no tratamento, que pode, inclusivamente, ser injetável, com a mesma eficácia, sem necessidade de recurso aos “caminhos alternativos” também apontados pelo perito médico que nunca o internamento;

25.ª Defendendo, inclusivamente, que, em termos médicos, não se justifica minimamente o internamento (usando até uma expressão bem elucidativa: “credo”).

26.ª Ao arrepio de tudo isso, sem questionar a idoneidade da perícia realizada – bem pelo contrário, como melhor resulta do Despacho proferido na sessão de julgamento do dia 10.04.2024 aquando do indeferimento da segunda perícia requerida pela Assistente – a Meritíssima Juiz viria, afinal, a substituir-se ao juízo científico, sustentando, em sentido contrário, apenas que a perspetiva do perito médico quanto à não justificação (em termos médicos) do internamento do Arguido em clínica integrada num estabelecimento prisional e as questões referentes ao enquadramento familiar e a condição física do Arguido extravasam o parecer científico solicitado;

27.ª E, pior, que o Sr. Perito baseou-se unicamente na entrevista efetuada ao Arguido para tecer as conclusões aludidas no seu relatório, em clara oposição ao próprio Despacho que deu na sessão de Julgamento de 10.04.2024, e que consta da respetiva Ata para indeferir a realização de outra perícia requerida pela Assistente, onde realçou que a entrevista com o arguido é o elemento essencial e necessário para poder estribar as suas conclusões.

28.ª Decidiu, pois, contra a prova científica, quer na avaliação do risco de repetição de ilícitos semelhantes, quer na medida de segurança concretamente aplicada, de internamento.

29.ª Ao fazê-lo, cometeu a Meritíssima Juiz também um clamoroso erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova pericial.

30.ª Mais ainda: também num clamoroso vício de raciocínio, ao responsabilizar exclusivamente o arguido, culpando-o por não ter ido às consultas marcadas, pela sua falta de colaboração na obtenção do diagnóstico e tratamento antes da sua detenção(!!), concluindo que o arguido não só não respeita os compromissos assumidos como, por si só, nunca iria comparecer a consultas de psiquiatria regulares, nem cumpriria os tratamentos medicamentosos necessários.

31.ª Quando é facto insofismável que tudo isso aconteceu num período de descompensação, em que o Arguido não beneficiava de qualquer acompanhamento médico, nem vigilância institucional, ou seja, em total “em roda livre”;

32.ª Além disso, foi o próprio Tribunal que decidiu que o arguido agiu sem culpa e por isso o declarou inimputável, pelo que é inadmissível que tenha concluído pela sua responsabilização, culposa, da doença não lhe ter sido diagnosticada mais cedo?

33.ª Cremos, aliás, que neste conspecto o vício de raciocínio em que incorreu a Meritíssima Juiz, baseado em juízo ilógico e mesmo contraditório com a própria condição de inimputabilidade do arguido por si reconhecida e declarada, é de tal forma grave que traduz um erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, nº 2 c) do C.P.P.

34.ª Acresce ainda que sentença recorrida também não valorou a idade do arguido (com 77 anos de idade), e o facto de não ter quaisquer antecedentes criminais, factos que se impunha fossem valorados em favor do arguido, o que, por si, também consubstancia um erro de julgamento.

35.ª Para lá do que vai dito, afigura-se-nos que os factos ilícitos praticados pelo arguido não alcançarem o patamar de gravidade convocado pelo art.º 91º do C.P.P., em termos de legitimar a aplicação de uma medida de segurança, seja efetiva, seja suspensa na sua execução, na medida em que o disposto no art.º 98º do C.P.P., pressupõe a verificação dos requisitos previstos no artigo 91º do mesmo diploma legal.

36.ª Razão pela qual, a liberdade do agente aqui se mostra adequada às necessidades de prevenção especial de recuperação do inimputável e da neutralização da perigosidade criminal, através do tratamento da anomalia psíquica em ambulatório psiquiátrico e com acompanhamento, eventualmente, dos próprios serviços da D.G.R.S., assim também se satisfazendo as exigências de prevenção geral positiva de pacificação social.

37.ª Na circunstância de assim não se entender, a aplicação de medida de segurança sempre teria que ser suspensa na sua execução, mais não seja, em obediência aos princípios da subsidiariedade, adequação e proporcionalidade.

38.ª Como bem defende o Insigne Professor Figueiredo Dias (in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias editorial, 1993, pág.441) “o perigo em causa não se reporta à mera possibilidade ou potencialidade de verificação, de acordo com as regras da experiência comum, de um determinado evento no futuro, o que se exige, para a aplicação destas medidas de segurança, é a comprovação de uma séria probabilidade de repetição pelo agente, no futuro, de crimes da mesma espécie. Não basta, pois, a simples possibilidade de tal suceder, necessário é que tal possibilidade seja qualificada. Em face do exposto, se aquando da ponderação em sede de juízo de prognose se concluir pela mera probabilidade de repetição da conduta, não deverá o tribunal aplicar medida de segurança”.

39.ª Em conclusão, embora pugnemos pela libertação imediata e plena do arguido, sem restrições além daqueloutras apontadas pela prova científica dos autos, por ser essa a decisão que entendemos mais justa e adequada, que ao menos seja ordenada a SUSPENSÃO do seu internamento, por ser (pelo menos) razoavelmente de esperar que com tal suspensão se alcançará a finalidade dessa medida, nos termos previstos no artigo 98º do Código Penal.”

1.3. O Ministério Público respondeu, concluído pela negação de provimento ao recurso, nos seguintes termos:

1- A douta sentença recorrida não enferma de nulidade, tendo sido o depoimento indireto da assistente validamente valorado.

2- A análise da prova produzida em audiência de julgamento não impõe sentença distinta da proferida pelo Tribunal a quo.

3- As conclusões do Tribunal a quo quanto aos factos “provados” e “não provados” mostram-se devidamente fundamentadas, à luz das regras da experiência e da livre convicção a que se reporta o artigo 127º do Código de Processo Penal.

4- O Tribunal a quo não decidiu contra qualquer juízo científico reservado ao Senhor Perito, designadamente a existência ou não de reguarda familiar efetiva.

5- A garantia de que a perigosidade não ocorre não pode ficar dependente de um elemento cuja concretização é deixada a cargo do arguido, quando são fundados os riscos de que, atentas as características da sua personalidade, num processo terapêutico unicamente dependente da sua iniciativa para que se efetive, sem falhas nem interrupções, o mesmo se sujeite ao tratamento de que decisivamente carece para obstar à probabilidade de vir repetir a sua conduta típica e ilícita.

6- No caso dos autos os factos são objetivamente graves e impunha-se a não suspensão da execução da medida de segurança.”

1.4. Respondeu, por sua vez, a assistente ao recurso, concluindo pela sua improcedência, nos seguintes termos:

“A- O Tribunal a quo não fez uso de qualquer meio de prova ilegal para dar como provado o facto 13 dos FP, tendo observado rigorosamente o regime previsto no artigo 129º do CPP, que não foi violado, não se verificando, por conseguinte, a apontada nulidade da sentença prevista no artigo 379º, nº 1 al. c) do CPP.

B- A lei dispõe no artigo 145º, nº 3 do CPP que a prestação das declarações dos assistentes fica sujeita ao regime da prova testemunhal, sendo que esta remissão é genérica e não para uma ou outra disposição específicas daquele regime.

C- Nada resulta do elemento literal do artigo 129º do CPP que restrinja o seu campo de aplicação a testemunhas ou que afaste da sua dimensão normativa os assistentes ou partes civis.

D- Exatamente como sucede com as testemunhas, também os assistentes depõem com sujeição ao dever de verdade e à sua responsabilização criminal acaso violem esse mesmo dever, pelo que os riscos e preocupações inerentes à admissão do “depoimento indireto” ao rol dos meios de prova que vão suportar o julgamento de facto são praticamente os mesmos quer se esteja perante um ofendido que depõe como assistente, quer se esteja perante um ofendido que depõe como testemunha.

E- Do mesmo modo que as declarações do assistente, na parte em que constituem depoimento direto, são objeto de valoração pelo Tribunal, também o deverão ser na parte em que constituem depoimento indireto desde que, claro está, sejam observados os condicionalismos legais impostos pelo nº 1 do citado preceito, devendo entender-se que tal depoimento deve ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum, sem qualquer hierarquia de valoração entre um e outro.

F- No caso presente, porque a assistente declarou de forma sincera e verosímil o que ouviu dizer da sua irmã, esposa do arguido, que, uma vez chamada, se recusou validamente a depor nos termos da lei, declarações que, de resto, já tinha prestado em sede de inquérito ainda na qualidade de testemunha, e que foram lidas em audiência, podendo, por isso, ser também elas valoradas em sede de sentença, não vemos como tais elementos probatórios recolhidos, submetidos na audiência a ampla discussão e ao principio do contraditório, não possam ser avaliados conjuntamente com a demais prova produzida e examinada, em conformidade com o principio geral da livre apreciação da prova.

G- A decisão da matéria de facto no tocante à prova do ponto 16 dos FP não padece de erro de julgamento, inexistindo prova alguma a apontar em sentido contrário que fosse apta a deixar o julgador num estado de dúvida insanável e que impusesse julgar-se tal factualidade como não provada.

H- A prova do facto 16 dos FP emerge, não da sobrevalorização do depoimento da assistente, cujas declarações, aliás, mereceram inteiro crédito do julgador, mas da conjugação lógica e dialética dos diversos relatos produzidos e examinados em audiência, tanto da assistente, como das testemunhas DD e FF.

I- Omite o arguido aos Venerandos Desembargadores que a testemunha DD denotou grande insegurança quanto à sua lembrança, certamente também associada aos graves problemas de memória de que padece devido a um AVC que sofreu há cerca de 3/4 anos atrás e que a própria testemunha teve o cuidado de manifestar em audiência, logo no início do seu depoimento (cfr. depoimento da testemunha DD, registado na sessão de julgamento do dia 22-2-2024, entre as 12:01 horas e as 12:52 horas, aos minutos 19:17 e seg. 19:37 e seg., 20:47 e seg., acima transcrito).

J- A vulnerabilidade cognitiva em termos de memorização e reconstituição histórica do facto demonstrada pela testemunha DD, que espontaneamente verbalizou ‘não lembrar’ a dinâmica exata do acontecimento (vd. o depoimento da testemunha DD, registado na sessão de julgamento do dia 22-2-2024, entre as 12:01 horas e as 12:52 horas, aos minutos 19:17 e seg, 19:37 e seg., 20:47 e seg., acima transcrito), apenas cria um estado de incerteza sobre a fiabilidade do relato em si, mas não sobre a verdade do facto, que, no caso presente, encontra explicação lógica, coerente e consistente noutros recursos probatórios disponíveis, como o foram os depoimentos da assistente e da testemunha FF.

K- O Tribunal a quo teve a oportunidade de passar no local onde se desenrolou o evento elencado no ponto 16 dos FP, e pôde perceber com exatidão as suas características registadas nas fotografias juntas aos autos na audiência do dia 30-1-2024.

L- Como teve a oportunidade de analisar as mensagens trocadas entre a testemunha FF e a neta do arguido, EE, juntas aos autos em 28-1-2024, onde esta última, no próprio dia, às 18:03 horas, refere ter levado a avó consigo, que o arguido (seu avô) estava em casa mas que continuava “muito alterado”, pedindo insistentemente à testemunha FF para que ficassem atentas, dizendo que “agora ele já se vira contra mim também”, “fiquem atentas mesmo que ele continua nervoso”.

M- Como ouviu, ainda, as declarações isentas da testemunha GG, Militar da GNR que prestou serviço no Posto Territorial ..., o qual espontaneamente revelou ter-se deslocado ao local pouco depois do acontecimento, no seguimento de uma chamada para o Posto a pedir o auxílio da GNR justificada no facto de o arguido ter tentado atropelar a assistente a subir a rua junto ao estabelecimento (vd. a respetiva gravação, na sessão de julgamento do dia 20-2-2024, entre as 11:34 horas e as 11:54 horas, aos minutos 02:00 e seg, 05:57 e seg, 07:26 e seg, 15:19 e seg., acima transcrita).

N- Quanto à exata dinâmica do facto, o relato da assistente surge reforçado pelo depoimento da testemunha FF que, de forma segura, detalhada, objetiva e lógica, descreveu a forma como se deram os factos do dia 3-2-2023, o que de forma coerente e consistente com a globalidade da prova, sustenta com a necessária segurança a factualidade ínsita no ponto 16 da matéria provada (vejam-se as declarações da assistente, registadas na sessão de julgamento do dia 30-1-2024, entre as 11:42 horas e as 12:27 horas, aos minutos 21:03 e seg, e o depoimento da testemunha FF, prestado na sessão de julgamento do dia 20-2-2024,entre as 14:06 horas e as 15:32 horas, aos minutos 24:05 e seg e 54:29 e seg., transcritos no corpo da presente resposta).

O- No trabalho de ponderação sobre a perigosidade do arguido, o Tribunal a quo sustentou a convicção formada a partir da prova perante si produzida, que valorou segundo o princípio da livre apreciação previsto no artigo 127º do CPP e, no que particularmente tange à perícia, conforme o valor que lhe deve ser reconhecido nos termos impostos pelo artigo 163º, nº 1 do CPP, apresentando uma explanação racionalmente sustentada em premissas lógicas, objetivas e em consonância com o regime referido, seguindo um percurso decisório que se apresenta conforme com os princípios e regras fundamentais em sede probatória.

P- A decisão não vai contra qualquer juízo científico reservado ao perito, inexistindo violação da prova vinculada.

Q- A consideração da falta de colaboração do arguido no diagnóstico e tratamento da doença mental de que padece são fatores de ponderação da sua perigosidade, pelo que uma tal referência na sentença não conforma erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, nº 2, al. c) do CPP.

R- Diante os factos e circunstâncias em presença, o risco de o arguido praticar outros factos da mesma espécie contra a assistente e outros familiares desta, residentes no mesmo local, e até mesmo de vir a adotar condutas mais graves, é inequivocamente elevado, pelo que decidiu o Tribunal a quo acertadamente ao aplicar ao arguido uma medida de segurança de internamento.

S- O diagnóstico e tratamento do arguido são ainda embrionários, pelo que, nesta fase, as circunstâncias apelam a que a medida de internamento se inicie em regime de efetividade, sem prejuízo de revisão futura, que pode ser feita a todo o tempo, quando reunidas as condições para o arguido regressar ao exterior.

T- Em nosso modesto entender, deve manter-se a decisão recorrida.”

1.5.  O Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal, emitiu douto parecer, concluindo pela improcedência do recurso.

1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

1.7. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto, importa apreciar e decidir as seguintes questões:

1.7.1. Admissibilidade da prova por declarações da assistente, relativamente à factualidade dada como provada no ponto 13. da decisão de facto;

1.7.2. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada, relativamente ao ponto 16.;

1.7.3. Verificação do fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie, enquanto pressuposto da aplicação da medida de internamento, e possibilidade de suspensão da sua execução.

2.  FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Factos a considerar

2.1.1. Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

“1. O Arguido AA é casado com CC e reside na Rua ..., ... ..., ....

2. A Assistente BB é irmã de CC, reside na Rua ..., ..., em ..., ..., e explora o estabelecimento comercial “Café e Mercearia ...”, sito no Rés do Chão daquele edifício.

 3. Por questões relacionadas com partilhas, o Arguido diz que a Assistente lhe deve dinheiro e que “vai acertar contas”.

4. No dia 20 de outubro de 2022, cerca das 18H30, o Arguido entrou no referido estabelecimento e dirigiu-se à Assistente, perguntando-lhe quando é que queria acertar contas com ele, ao que a esta lhe respondeu que quando o Arguido quisesse pagar o que lhe devia estava disposta a acertar contas.

5. Ato contínuo, o Arguido munido de uma bengala de ferro maciço, pretendendo atingir a assistente com a mesma, tentou entrar na cozinha do café, levando a que esta se refugiasse na zona de venda da mercearia.

6. Uma vez ali, o Arguido atirou-lhe com a bengala, não logrando atingi-la.

7. De seguida, HH, cliente do café, intercedeu em auxílio da assistente, manietando o Arguido e retirando-o do interior do estabelecimento.

8. Uma vez no exterior do estabelecimento, o Arguido referindo-se à Assistente, disse em voz alta e em tom agressivo “EU VOU DAR-LHE A TROUXADA”.

9. No dia 22 de dezembro de 2022, cerca das 17H00, o Arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial da Assistente, pretendendo falar com a mesma.

10. Uma vez no seu interior, o Arguido, em tom de voz sério e agressivo, começou a chamar pela Assistente e a pedir para falar com a mesma, tendo esta respondido que não tinha nada para falar com ele.

11. De imediato, o Arguido seguiu atrás da assistente BB, com uma bengala de ferro e proferindo em tom sério e agressivo, as seguintes expressões: “PAGA O QUE ME DEVES, ÉS UMA LADRA, TU ASSALTASTE A GAVETA DO TEU AVÔ E ROUBASTE-LHE O DINHEIRO POR MAIS DE VINTE ANOS!” “ESTÁS A ESCONDER O FOCINHO SUA LADRA”.

12. Ato contínuo, a Assistente, com medo e temendo pela sua integridade física, tentou fugir pela porta das traseiras do estabelecimento, momento em que ali surgiu CC, esposa do Arguido, que logrou demovê-lo dos seus intentos e convencê-lo a abandonar o local.

13. No dia 6 de janeiro de 2023, CC dirigiu-se ao estabelecimento da Assistente, sua irmã, e avisou-a para que tivesse cuidado, pois o Arguido, em casa, anunciara-lhe que “a iria matar um dia destes”.

14. Desde 20 de outubro de 2022 até 10 de fevereiro de 2023, o Arguido, com uma frequência quase diária, sem qualquer intuito de adquirir qualquer produto do estabelecimento da Assistente, passava e parava com seu veículo junto do estabelecimento comercial da Assistente e, caso ali não se encontrasse nenhum cliente, saía do carro, entrava dentro do estabelecimento e dirigia-se à Assistente dizendo-lhe em tom sério e agressivo: "QUERO QUE ME PAGUES O QUE ME DEVES!", "LADRA!", “ANDASTE A ASSALTAR A GAVETA DO AVÔ DURANTE VINTE ANOS E A SUGAR O TEU PAI VINTE ANOS!"

15. No dia 2 de fevereiro de 2023, o Arguido, quando seguia com o seu veículo de matrícula ..-HZ-.., marca ..., modelo ..., de cor branca, parou em frente ao estabelecimento da Assistente e ficou ali cerca de 10 minutos à espera que a Assistente passasse.

16. No dia 3 de fevereiro de 2023, após as 17H40, o Arguido parou o seu veículo de matrícula ..-HZ-.., marca ..., modelo ..., de cor branca, junto ao estabelecimento comercial da Assistente, tendo a sua e quando se apercebeu da passagem desta e a mesma se dirigiu para a Rua ..., ficando de costas para si, o mesmo iniciou a marcha e acelerou em direção à mesma, com intenção de a atropelar, o que não logrou alcançar por razões alheias à sua vontade.

17. No dia 10 de março de 2023, cerca das 18H00, o Arguido passou junto ao estabelecimento da Assistente e apercebendo-se que a mesma se encontrava ali perto, no interior da garagem, conjuntamente com a sua filha e neta, imobilizou o seu veículo a cerca de um metro da entrada da mesma e ali permaneceu cerca de 20 minutos, com a viatura sempre ligada e dando algumas aceleradelas, até à chegada da patrulha da GNR, que ali se deslocou, o abordou e o questionou sobre os seus intentos, tendo o mesmo respondido “ESTOU À ESPERA DELAS PARA RESOLVER UNS ASSUNTOS.”

18. O Arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso.

19. Devido ao comportamento do Arguido, a Assistente teme pela sua segurança, pela sua integridade física e vida, pelo que sempre que tal é possível pede à sua irmã DD para estar junto de si no estabelecimento e passou a fechar a porta do estabelecimento todos os dias, por volta das 19h00, sempre que não tem clientes no seu interior, sendo que habitualmente só o fechava a partir das 23h00.

20. O Arguido agiu sempre com o propósito concretizado de anunciar um mal sobre a vida e integridade física da Assistente, de forma adequada a provocar-lhe medo, insegurança, inquietação e a prejudicar a sua liberdade de determinação, bem sabendo igualmente que a sua conduta era adequada a causar tal resultado, não se abstendo de agir do modo descrito.

21. Com a conduta acima descrita, o Arguido quis provocar medo e inquietação na Assistente e na sua família, levando-a a alterar as suas rotinas diárias, o que conseguiu.

22. Com a conduta acima descrita, o Arguido limitou a liberdade pessoal e de deslocação da Assistente ao fazê-la sentir-se vigiada e perseguida.

23. O Arguido atuou sempre com o propósito, concretizado, de constranger a Assistente, de lhe incutir terror permanente, de lhe limitar a sua liberdade pessoal e de movimentos, e de a molestar psicologicamente, bem como com o intuito, conseguido, de levá-la a sentir-se vigiada e perseguida.

24. No momento descrito em 4., ao dizer à Assistente que queria acertar contas, o Arguido insinuou que esta se havia apropriado ilicitamente de elevadas quantias de dinheiro.

25. No momento descrito em 4. e 11., o Arguido verberou as expressões de viva-voz e para quem quisesse ouvir, como efetivamente ouviu, com o manifesto intuito de ofender a Assistente na sua honra e consideração, o que quis e conseguiu.

26. Até hoje, o Arguido não se retratou, não pediu desculpa à Demandante, nem demonstrou qualquer arrependimento pelo seu comportamento, manifestando, pelo contrário, uma total indiferença pelas consequências nefastas que do mesmo decorrem para a vida e saúde da Demandante.

27. A Demandante, tem 73 anos de idade, é pessoa muito honrada, séria e de boas contas, que goza de uma reputação imaculada no seu meio social, sendo por todos os vizinhos e clientes estimada, respeitada e bem considerada.

28. Em consequência da descrita conduta do Arguido, a Demandante viu-se exposta a uma devassa da sua honra, sentindo-se gravemente ofendida na sua sensibilidade, honra e bom nome, experimentando sensações de profunda humilhação, raiva, mágoa, revolta e indignação, as quais ainda sente.

29. Em ambas as circunstâncias descritas em 4. e 11., a Demandante viveu momentos de grande ansiedade e nervosismo, tendo ficado psicologicamente abalada e angustiada.

30. Tudo isto que lhe causou, e causa, muita tristeza, mal-estar e sofrimento.

31. Esta situação prolongou-se por vários meses, incutindo na mente da Demandante um clima de terror permanente, o que lhe causou trauma psicológico, que hoje perdura.

32. Nesse período, a Demandante BB viveu em permanente estado de alerta e sobressalto, acometida por sensações terríveis de insegurança, medo e inquietação constantes.

33. Viveu momentos de pânico intenso, receando que o Arguido conseguisse fazer mal a si ou aos seus familiares, experimentando sensações de grande adrenalina, muito stress e nervosismo, com consequências prejudiciais para a sua saúde e integridade biológica.

34. Sentiu-se vigiada e controlada.

35. Sentiu os seus dias contados, receando pela sua vida mas também pela vida e integridade física dos seus familiares próximos, especialmente da sua filha e netos a quem o Arguido poderia fazer mal por vingança.

36. A Demandante viu a sua liberdade pessoal, de determinação e de deslocação, serem continuamente prejudicadas.

37.Foi forçada a alterar as suas rotinas de trabalho, passando a encerrar a porta do café muito mais cedo do que o horário normal de fecho do estabelecimento.

38. Passou a estar acompanhada, sempre que possível, pela sua irmã DD e pela sua filha, FF, para se sentir mais protegida.

39. E os familiares de ambos, residentes na mesma localidade, organizaram-se de molde a vigiar e controlar as movimentações do Arguido, e a colocar a Demandante de sobreaviso em relação às suas potenciais investidas.

40. O certificado de registo criminal do Arguido não apresenta condenações.

41. O Arguido é natural de ..., originário de um agregado familiar numeroso, de modesta condição socioeconómica e matriz familiar estruturada.

42. O Arguido figura como o último elemento, no elenco da fratria dos cinco descendentes dos progenitores.

43. A família sempre viveu em ..., exercendo os seus progenitores continuamente atividade profissional, na área da agricultura, situação que lhes permitiu suprir as necessidades essenciais, apesar dos baixos rendimentos da família, garantindo, assim, o processo educativo dos filhos.

44. No que concerne à frequência escolar AA iniciou o processo de escolarização na idade adequada, que frequentou até à conclusão do 4º ano de escolaridade e cuja frequência abandonou aos 13 anos de idade, com o intuito de ajudar no sustento da família.

45. Após o abandono do sistema de ensino, inicia-se no mundo laboral, na área da construção civil, onde se manteve até aos dezanove anos de idade, altura em que ingressa no serviço militar obrigatório, na cidade do Porto, durante três anos.

46. Posteriormente, na década de 80 emigrou para Arábia, passando por Barcelona e mais tarde Suíça, onde permaneceu até à idade da reforma.

47. O Arguido contraiu matrimónio, no ano de 1971, com CC, relação conjugal que mantém até ao presente.

48. Desta relação existem cinco descendentes (II, JJ, KK, LL e o MM), maiores e autonomizados, a viver e trabalhar no estrangeiro.

49. O agregado familiar de AA reside em casa própria, em meio ruralizado, com razoáveis condições de habitabilidade.

50. A nível económico, a subsistência do agregado provém das reformas auferidas pelo casal (média mensal de 700,00€), sinalizando como despesas mais significativas, a água e a luz (60,00€).

51. Na abordagem ao meio social residencial e aos elementos significativos na comunidade, recolhem indicadores de alguma conflituosidade, indiciando a adoção pelo Arguido de um padrão de comportamento inconveniente.

52. A 24 de abril de 2023, foram aplicadas ao Arguido as seguintes medidas de coação, para além do Termo de Identidade e Residência: a proibição de contactar, direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando quaisquer meio, a Assistente; proibição de se aproximar da residência e estabelecimento comercial da vítima, sito na Rua ..., ..., em ..., ...; obrigação de sujeição a tratamento ao alcoolismo, nisto tendo o Arguido consentido, ficando a DGRSP encarregue de diligenciar pelo agendamento de consulta e acompanhar a execução desta medida de coação.

53. O Arguido AA apresentou-se na Equipa da DGRSP, no dia 18/05/2023, manifestando, aparentemente, adesão ao acompanhamento médico para a sua problemática alcoólica.

54. De imediato a DGRSP diligenciou junto do Centro Saúde da área de residência do Arguido, tendo em conta as suas necessidades, no entanto, para dar cumprimento cabal aos utentes com estas patologias, os mesmos são encaminhados para o Centro Hospitalar ....

55. Assim, no dia 25/05/2023, a DGRSP enviou pedido de marcação de consulta, ao serviço de psiquiatria do Centro Hospitalar ....

56. Em sede de entrevista, no dia 26/09/2023, quando solicitado o comprovativo dessas mesmas consultas, o Arguido comunicou que, até à presente data, não teria recebido qualquer convocatória do Centro Hospitalar ....

57. Nesse mesmo dia, a DGRSP pediu esclarecimento ao serviço de psiquiatria, os quais informam que o Arguido faltou à consulta agendada para 28/06/2023, 08h30.

58. A DGRSP solicitou o reagendamento de consulta, desta vez, com conhecimento à Equipa da DGRSP, tendo sido agendada consulta para o dia 03/01/2024 pelas 08h30, à qual o Arguido também faltou.

59. No dia 04/01/2024, efetuado contacto telefónico com o Arguido, o qual justificou a sua ausência, com estado de saúde/internamento do cônjuge, CC (doente oncológica).

60. Ouvido a 26.01.2024, em sede de interrogatório judicial, o Arguido disse que faltou não por causa do estado de saúde da esposa, mas porque se recusava a ir à consulta ou fazer qualquer tratamento.

61. As medidas foram mantidas por despacho de 30.10.2023.

62. No dia 23.12.2023, cerca das 18h00, quando conduziu a sua viatura na Rua ..., ..., ao aproximar-se do estabelecimento comercial da Assistente, vendo que a porta do mesmo estava aberta e não havia viaturas estacionadas por perto, o Arguido imobilizou o seu veículo, sendo a terceira vez que fez rondas e parou em frente ao estabelecimento.

63. Em todas as vezes, seja a Assistente, DD ou FF fecharam a porta do estabelecimento, tendo o Arguido retomado viagem.

64. No dia 13.01.2024, por volta das 17h30, o Arguido entrou no estabelecimento comercial da Assistente onde a mesma não se encontrava, tendo aquele permanecido durante cerca de 10 minutos a questionar de modo atemorizante a DD, que lá se encontrava, onde a Assistente se encontrava e quando é que lhe paga os milhões que lhe deve.

65. O Arguido só foi embora quando DD disse que já tinha ligado para a GNR, que estava para chegar.

66. A residência do Arguido e o estabelecimento comercial da Assistente distam, entre si, 40m.

67. As residências de Arguido e Assistente distam entre si, cerca de 110m.

68. É necessária uma distância mínima de 250m para ser possível aplicar os equipamentos de vigilância eletrónica.

69. Desde 26.01.2024, no estabelecimento prisional, em sete datas diferentes, o Arguido recebeu sete visitas da esposa, seis visitas da neta, EE e, duas visitas, do marido desta, NN.

70. O Arguido desloca-se com apoio, por incapacidade dos membros inferiores.

71. O Arguido padece de Perturbação Delirante, mais concretamente, de ideação delirante persecutória ativa, estruturada, centrada em familiares.

72. No momento da prática dos factos, não obstante o Arguido apresentar capacidade preservada para avaliar a ilicitude dos atos praticados, encontrava-se e encontra-se significativamente limitado na capacidade de se determinar por essa avaliação, em função da sintomatologia delirante apresentada.

73. Não são conhecidas intervenções psiquiátricas prévias à detenção do Arguido em estabelecimento prisional (ocorrida a 26.01.2024), tanto no sentido do diagnóstico como do tratamento.

74. O Arguido encontra-se a realizar, na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental de Estabelecimento ..., tratamento medicamentoso diário, que pode ser substituído por tratamento mensal ou trimestral, injetável.”

2.1.2. Na mesma sentença foi considerada não provada a seguinte factualidade:

“A. No momento descrito em 11., o Arguido pretendia atingir a Assistente com a bengala de ferro.

B. O Arguido atuou sempre de forma livre, voluntária e conscientemente.”

2.1.3. O Tribunal a quo motivou a decisão de facto, nos seguintes termos:

“O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, filtradas pelas máximas da experiência comum e da livre convicção, aferindo-se, com esses parâmetros, do conhecimento de causa e isenção dos depoimentos prestados.

Consigna-se que os factos constantes na matéria dada como provada e não provada foram retirados das acusações pública e particulares juntas aos autos, dos pedidos de indemnização civil deduzidos, do certificado de registo criminal do Arguido, do relatório social junto, das atas de interrogatório judicial, dos despachos preferidos no processo, das informações oficiais prestadas pela DGRSP e do relatório médico legal apresentado, pela sua ordem de apresentação.

Foram, também, tidos em conta todos os documentos constantes nos autos, a saber:

- auto de notícia de 21.10.2022, de fls.5;

- auto de notícia de 20.10.2022, pelas 19:05, de fls.44;

- aditamento ao auto de notícia de 07.01.2023, de fls.87;

- cota de 06.02.2023, de fls.163;

- cota de 07.02.2023, de fls.169;

- manuscrito de fls.174 e 175;

- aditamento ao auto de notícia de 04.02.2023, de fls. 178;

- assento de nascimento de BB, de fls.199;

- assento de nascimento do Arguido, de fls. 201;

- assento de nascimento de CC, de fls. 204;

- email de fls.221, com novas queixas referentes a factos de 10.03.2023 e fotografias de fls. 223 a 225, da carinha com a matrícula ..-HZ-..;

- auto de contraordenação, de 10.03.2023, de fls.227;

- auto de contraordenação, de 10.03.2023, de fls.228;

- informação de serviço de fls. 236;

- registo automóvel do veículo ..-HZ-..;

- relatório de busca com relatório fotográfico de fls. 265;

- auto de apreensão de fls. 269;

- auto de exame direto e avaliação de fls. 270;

- relatório social de 12.12.2023;

- auto de interrogatório de 24.04.2023, de fls.288;

- auto de exame direto de fls.319;

- informação da DGRSP, de 16.01.2024;

- informação da DGRSP, de 19.01.2024;

- prints de mensagens juntos a 28.01.2024;

- fotografias juntas a 30.01.2024;

- relatório médico de 14.02.2024;

- certificado de registo criminal;

- relatório pericial de 15.03.2024;

- ficha biográfica;

- email junto pelo Arguido, do Banco 2...

- declaração junta pelo Arguido, da Banco 1..., de 09.09.2013;

- IMI de 2014 e 2020 a 2022;

- Habilitação de Herdeiros;

- registo das visitas ao recluso juntas a 08.04.2024.

Foi ouvido o Arguido que começou por confirmar que, já há 18 anos, está em conflito com a Assistente por causa das partilhas, não tendo nenhum advogado que aceite o seu caso, já tendo falado com o Dr. OO em Lisboa ou outro advogado em .... Afirma o Arguido que estes advogados estão condicionados pela sobrinha, que é advogada (referindo-se à Testemunha FF).

Confrontado com os factos que lhe são imputados, o Arguido admitiu confrontar a Assistente, pedindo que lhe dê o dinheiro das partilhas, pretendendo fazer contas.

Disse pensar nisso quase todos os dias.

No entanto, negou as situações mais gravosas, tal como o episódio do uso da bengala contra a Assistente ou a alegada tentativa de atropelamento, minimizando a gravidade da sua conduta.

Confrontado com o uso de uma bengala de ferro que o Tribunal tinha à sua frente na audiência de discussão e julgamento, o Arguido defendeu que tinha feito essa bengala para usar. No entanto, ouvida a restante prova (tais como os depoimentos da Assistente, de HH e de FF), dúvidas não há que o Arguido sempre se socorreu de uma canadiana, tendo passado a usar duas canadianas nos últimos tempos. Pese embora não tenha sido observado a fazer grandes caminhadas na rua, quando estava fora do seu veículo, o Arguido nunca foi visto a usar a dita bengala de ferro, à exceção da vez descrita em 5..

Perguntado ao Arguido quanto à catana que tinha em casa, em sede de audição em interrogatório judicial (cuja audição foi determinada em sede de audiência de discussão e julgamento), o mesmo disse que “era para a lavoura”. No entanto, em julgamento, admitiu não praticar agricultura.

Dito isto, concluiu-se que o Arguido tem capacidade para manipular os factos em seu proveito.

No entanto, no que respeita à insistência e à imposição da sua presença à Assistente, ao uso das expressões referidas nas acusações pública e particulares, assim como as esperas dentro do seu veículo automóvel, o Arguido falou como se tais comportamentos eram legítimos e necessários à defesa dos seus interesses (referentes à dita partilha da herança deixada por óbito dos pais da esposa), não demonstrando necessidade de justificar mais a sua conduta, ainda que a mesma tivesse ido contra ordens diretas do Tribunal.

Neste ponto, suscitaram-se sérias dúvidas sobre a capacidade do Arguido se autodeterminar perante a ilicitude daqueles factos que lhe são imputados, dúvidas essas que já tinham sido levantadas pela Mm.ª Juiz que procedeu ao último interrogatório judicial do Arguido, assim como à Médica Psiquiátrica que, entretanto, o consultou no estabelecimento prisional (ver relatório médico de 14.02.2024).

Posto isto, determinou-se a realização da perícia médico legal junta aos autos e prestaram-se esclarecimentos ao Sr. Perito.

Por todo o exposto, a confissão parcial exercida pelo Arguido foi valorada com as devidas cautelas e quando confirmada pela restante prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

No que respeita às declarações prestadas pela Assistente, consideraram-se as mesmas espontâneas, lógicas e suficientemente pormenorizadas.

Destarte, ainda que tenha prestado declarações de forma emocionada, do início ao fim, a Assistente respondeu a tudo quanto lhe foi perguntado de forma direta, sem tentar perceber o alcance das perguntas que lhe eram feitas, sendo as pequenas incongruências demonstrativas que não preparou o seu depoimento.

Pelas expressões corporais, coincidentes com as palavras proferidas, concluiu-se que a emoção demonstrada pela Assistente era sincera.

No que respeita à prova testemunhal, o Arguido disse nada ter contra HH ou este contra o mesmo, tendo esta Testemunha limitado o seu depoimento aos factos referentes ao dia 20 de outubro de 2022. Perguntado quanto à personalidade do Arguido, disse que se comentava que o mesmo teria feito cair uma pedra no trator do cunhado, a partir da sua janela, mas que não tinha assistido a esses factos.

De seguida, ouvido o Guarda Nacional Republicano, GG, pelo mesmo foi reportado o conhecimento que tinha do caso, nos seis meses em que esteve ao serviço do Posto Territorial ..., mais especificamente, quanto ao sucedido no dia 10.03.2023.

Quanto aos depoimentos das últimas Testemunhas ouvidas, por serem irmã e filha da Assistente, foram tais depoimentos analisados com as devidas cautelas e valorados nos pontos coincidentes com a restante prova produzida e constante nos autos.

É de sublinhar que DD tanto é irmã da Assistente, como de CC, esposa do Arguido e tanto aquela como a Assistente demonstraram nada terem contra a mesma, compadecendo-se pela sua atual condição de saúde.

Analisando facto por facto, o ponto 1. resulta dos assentos de nascimento juntos aos autos (fls. 201 a 205) e da morada constante do TIR.

O ponto 2. resulta do assento de nascimento de fls. 199 e das declarações da Assistente, não sendo matéria controvertida que a mesma é proprietária do estabelecimento comercial “Café e Mercearia ...”.

Arguido, Assistente, Guarda GG, DD e FF confirmaram o descrito em 3..

O descrito de 4. a 8. resultou da conjugação dos depoimentos da Assistente, com o depoimento de HH, o auto de apreensão de fls.269, auto de exame direto e avaliação de fls. 270 e auto de exame direto de fls.319.

É de referir que as pequenas incongruências entre os depoimentos da Assistente e HH resultam da perspetiva de cada um sobre o acontecimento. Sublinha-se ainda que, pelo descrito, o sucedido terá ocorrido em segundos.

Assim, descreve a Assistente que depois de mandar o Arguido embora, dirigiu-se ao balcão onde se encontrava a fazer a conta da Testemunha HH, ficando a um nível mais baixo do que as pessoas do outro lado do balcão. Nesse momento, sentiu a bengala a bater no balcão, junto da sua cabeça. De seguida, HH interveio e conseguiu levar o Arguido para o exterior do estabelecimento.

Segundo HH, depois da Assistente ter mandado o Arguido embora, este seguiu-a e levantou a bengala de ferro acima da sua cabeça, não tendo acertado na cabeça da Assistente, por 5cm. Segundo a Testemunha, o Arguido não acertou na Assistente porque esta se baixou e que o Arguido tentou acertar-lhe (na Assistente) por mais do que uma vez. Confirmou que intercetou o Arguido, agarrando a bengala com as duas mãos.

Quanto à expressão utilizada pelo Arguido, foi a mesma referida pela Testemunha, tendo sido as suas declarações complementadas pela leitura das prestadas em sede de inquérito, a 23.11.2022.

Os factos descritos de 9. a 12. foram dados como provados pela conjugação das declarações do Arguido e da Assistente, com o depoimento de DD. FF confirmou apenas o estado anímico que a mãe apresentava logo após os factos.

Assim, Assistente e DD descreveram o sucedido, assim como aquela mencionou as expressões proferidas pelo Arguido.

Num primeiro momento, DD disse que não ouviu expressões injuriosas da parte do Arguido, mas depois de confrontada com as suas declarações prestadas a 30.01.2023, em sede de inquérito (validamente lidas em julgamento, após contraditório), confirmou o descrito em 11., voltando a frisar que tinha problemas de memória por força do AVC que sofreu há poucos anos.

Quanto ao facto de CC ter ido buscar o Arguido ao estabelecimento, foi o próprio que confirmou esse facto em sede de declarações. A Assistente disse que não viu a irmã CC, tendo-lhe sido depois dito que tinha sido a mesma a ir buscar o marido e a levá-lo para casa.

O facto descrito em 13. resulta das declarações da Assistente, sendo a data provada pela leitura das suas declarações prestadas a 14.02.2023, em sede de inquérito e que confirmam as declarações prestadas a 25.01.2023.

Quanto a esta matéria, chamada CC a depor, esta recusou-se, ao abrigo do disposto no artigo 134º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Penal.

Assim, colocar-se-á a questão de ser ou não admissível o depoimento indireto prestado pela Assistente que, pese embora de forma direta, ouviu da boca da irmã que o Arguido disse que um dia destes a matava (à Assistente), tal facto não veio a ser confirmado pela própria fonte.

O depoimento indireto como meio de prova encontra-se regulado no artigo 129º do Código de Processo Penal, que dispõe da seguinte forma: “(…) Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas. (…) O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha. (…) Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.”

É verdade que a doutrina e a jurisprudência têm divergido sobre a interpretação deste preceito, sendo certo, porém, que, ao nível jurisprudencial, tem sido possível constatar uma convergência no sentido de limitar a impossibilidade de valoração do depoimento indireto prevista no seu nº 1 às situações em que, podendo fazê-lo, o tribunal decide não chamar a depor a testemunha fonte.

Segundo Carlos Adérito Teixeira, “Se o legislador pretendesse impedir a utilizibilidade do depoimento indireto ou restringir, drasticamente, o seu âmbito e valor deveria fazer depender o mesmo – para além das considerações procedimentais expressas na lei (indicação da testemunha-fonte e seu chamamento a depor) – de três condições adicionais que ali não constam: primeira, exigir a efetividade da prestação de depoimento direto, requisito que implicaria a irrelevância dos depoimentos indiretos cujas testemunhas-fonte não comparecessem ou, comparecendo, se recusassem, legitima ou ilegitimamente a depor, não podendo o tribunal socorrer-se, por coerência, do mecanismo previsto no art.º 135.º do CPP; segunda, exigir a confirmação pela testemunha-fonte da existência da conversa com a testemunha indireta ou reconhecimento de que prestara (perante esta ou por forma que esta pudesse ter ouvido) as declarações cuja autoria lhe é atribuída, havendo muitas situações reais em que a testemunha-fonte não se recorda ou não está em condições de garantir ter feito o relato à testemunha indireta; terceira, exigir a confirmação pela testemunha-fonte do conteúdo do depoimento indireto no sentido de se tornar necessário estabelecer uma sobreposição coerente e perfeita entre ambos os depoimentos, sendo certo que, as mais das vezes, ocorrerão imprecisões, incoerências e contradições.” Em sentido contrário, Paulo Pinto de Albuquerque defende que, para se poder valorar um depoimento indireto, as exigências do princípio da imediação impõem não só que a testemunha-fonte seja chamada a depor, mas que deponha efetivamente e ainda que, ao depor, confirme tal depoimento indireto, considerando, por isso, que não pode ser valorado o depoimento indireto quando a testemunha-fonte se recusa a depor. Não podemos concordar com esta última tese, pois que, tal como acima enunciámos, a mesma assenta numa exigência que transcende a previsão do artigo 129º nº 1 do Código de Processo Penal, não encontrando apoio nem na letra nem no espírito de tal norma. Na verdade, o que aí se exige para que o depoimento indireto possa ser valorado é tão somente que a testemunha-fonte seja chamada a depor – exceção feita aos casos de morte, de anomalia psíquica superveniente e de impossibilidade de a testemunha ser encontrada – não se exigindo que o depoimento daquela seja efetivamente prestado, nem que o mesmo confirme o depoimento indireto. Com efeito, o que o que legislador visou garantir com tal previsão legal foi que, por imperativo do princípio da imediação, o juiz faça o que estiver ao seu alcance para confrontar o depoimento indireto com o da testemunha-fonte, mas já não que tal confronto venha, efetivamente, a concretizar-se. Dito de outro modo, a lei não faz depender a possibilidade de valoração de um depoimento de ouvir dizer do conteúdo do depoimento da testemunha-fonte, limitando-se a exigir que o tribunal diligencie no sentido de obter o depoimento desta, posto o que, cessará de imediato a proibição de valoração inerente ao artigo 129.º do Código de Processo Penal, mesmo que posteriormente à sua convocação a testemunha originária se recuse legitimamente a depor. Entendimento diverso acabaria por se traduzir no reconhecimento à fonte de um poder de controlar a valoração da prova disponível, interferindo no ato de julgar que é exclusivo do tribunal. Não terá, certamente, sido esse o propósito visado pelo legislador com a consagração do direito de se recusarem a depor conferido a certas pessoas devido a laços familiares que tenham com o Arguido. O que com tal previsão legal, constante do artigo 134º, nº 1 do Código de Processo Penal, se terá pretendido não terá sido mais do que “(…) poupar a testemunha ao conflito de consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um Arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos (…)”. Assim, a faculdade conferida a algumas testemunhas de se recusarem a depor não poderá ter o alcance de impedir a valoração de todo e qualquer meio de prova que possa colidir com o exercício desse direito. E nem se diga que tal entendimento se traduz num alargamento do campo de aplicação da norma que permite a valoração do depoimento indireto, que sabemos assumir natureza excecional. Ao invés, o mesmo assenta na única interpretação que se no afigura conforme à letra do artigo 129.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respeitando as exigências que a mesma postula, mas não indo além das mesmas. Assim, desde que tenha havido convocação da testemunha-fonte, os elementos probatórios recolhidos através de depoimento indireto, uma vez submetidos na audiência a ampla discussão e ao princípio do contraditório, podem ser avaliados conjuntamente com a demais prova produzida ou examinada, em conformidade com o princípio geral da livre apreciação da prova. Ou seja, uma vez garantida a possibilidade de exercício do direito ao contraditório quanto ao conteúdo do depoimento indireto e de apresentação de meios de prova tendentes a infirmar a fidedignidade do mesmo, a sua valoração não contende de forma intolerável com os princípios do processo justo e equitativo, nem com o direito de defesa do arguido, garantidos pelos artigos 20º, nº 4 e 32º, nºs 1 e 5 da Constituição, tal como, aliás, foi já considerado pelo Tribunal Constitucional, quando referiu no seu acórdão nº 213/94 que a regulamentação consagrada na norma do nº 1 do artigo 129º CPP “(…) reflete uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law).”[sublinhado nosso]

Neste mesmo sentido e numa situação idêntica à dos autos, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que (…) a possibilidade de recusar o depoimento, nos termos do art.º 134.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP, não está relacionada com a intromissão na vida privada; a possibilidade de recusa relaciona-se tão-só com o facto de as pessoas mais intimamente ligadas ao arguido não serem obrigadas a depor contra ele, sujeitando-se à prestação de juramento e consequências inerentes (art.º 91.º do CPP). (…) A situação configurada nos autos [em que foi valorado depoimento prestado por testemunha, que, além do mais, relatou conversa tida com a mulher do arguido, que se recusou a depor em audiência], na perspetiva do depoimento indireto (art.º 129.º do CPP), não teria como consequência que o depoimento produzido, na parte identificada, não pudesse valer como prova. É que a recusa da mulher do arguido a depor, sendo embora legítima e impossibilitando o confronto com o declarado pela testemunha que validamente depôs, cairia no âmbito da exceção prevista na 2.ª parte do n.º 1 do art.º 129.º: não ser possível a inquirição da pessoa indicada.

Aqui chegado, reforça-se a posição tomada pelo facto da Assistente ter feito queixa logo após os factos (ver aditamento ao auto de notícia de fls.87, com a indicação de que a data de ocorrência deverá estar errada, por força do uso dos meios informáticos, como veio a acontecer com o aditamento ao auto de notícia de fls. 178, com cota de fls. 210 a corrigir) e explicado que a esposa do Arguido não se limitou a avisar a irmã das palavras proferidas pelo marido. Em diversas ocasiões, a esposa do Arguido preocupou-se com a Assistente, avisando-a à noite, quando é que o Arguido já se encontraria a dormir, pelo que já não precisava de temer que ele a fosse incomodar.

Do mesmo modo, segundo a Assistente, CC terá comentado que ainda o conseguia manter em casa na parte da manhã, mas caso fosse viver para a Suíça, com um dos filhos, ficando o Arguido cá sozinho, temia que ele começasse a beber pela manhã – conforme comprovam as mensagens escritas juntas a 28.01.2024.

Efetivamente, segundo a Assistente e FF, a rotina do Arguido dividia-se em ficar em casa pela manhã, sair depois de almoço para um café, em ... e voltar à tarde, onde parava no estabelecimento comercial da Assistente.

A Assistente disse ainda que aproveitava as manhãs para cuidar dos seus animais e quintal, pois como sabia que o Arguido estava em casa, não a iria incomodar no seu quintal.

DD confirmou que fazia companhia à irmã na parte da tarde, até cerca das 16h30, depois até as 17h30.

Do depoimento desta Testemunha, assim como das declarações da Assistente ficaram provados os factos descritos em 14.. O próprio Arguido admitiu pensar no sucedido quase todos os dias.

Todas as pessoas ouvidas afirmaram que o Arguido utiliza sempre as mesmas expressões, referindo-se ainda aos “milhares de milhões de euros” do avô, como, efetivamente, se constatou, tanto em sede de audiência de discussão e julgamento, como em sede de último interrogatório judicial.

O ponto 15. resulta das declarações prestadas pela Assistente, em sede de inquérito e validamente lidas em audiência de discussão e julgamento.

No que respeita ao descrito em 16., ouvida a Assistente, DD e FF e analisadas as fotografias juntas aos autos na primeira sessão de audiência de discussão e julgamento, entende-se ter ficado demonstrado o que se segue.

No dia e hora indicado, vendo o Arguido a rondar o local e numa rotina fixada pela Assistente e FF, que consistia em que aquela fosse abrir a porta da garagem antes da chegada desta, a Assistente acorreu até à dita garagem que fica do outro lado da estrada (ver portão preto de garagem numa das fotografias juntas) e esperou pela filha – declarações da Assistente.

Entretanto, o Arguido parou em frente ao estabelecimento comercial, com a frente já na entrada da Rua ..., tendo a sua neta, EE parado o seu automóvel mais à frente ao do avô (em frente ao chafariz, segundo FF), tendo ido falar com o mesmo, através da janela da carrinha – depoimento de DD, declarações da Assistente e depoimento de FF.

Nesse momento, chegado FF e advertida pela mãe, aproveitaram o facto do Arguido estar distraído para atravessar a estrada, tendo FF passado entre o chafariz e o carro de EE e a mãe, pela frente do carro, mesmo em frente ao carro do Arguido, em direção ao seu estabelecimento comercial – depoimento de FF.

Nesse momento, FF chama a mãe para junto de si, fazendo com que esta suba a rampa da Rua ... – depoimento de FF.

Ao mesmo tempo, o Arguido – que estava a ser distraído pela neta - dá conta da proximidade da Assistente e inicia a marcha do veículo, virando para a Rua ..., mesmo atrás da Assistente que se encontrava de costas (e que nem deu conta do movimento do Arguido) – declarações da Assistente e de FF.

No entanto, dada a proximidade que se encontrava do estabelecimento comercial, o Arguido não conseguiria subir a Rua ... sem bater com a lateral direita da carrinha no edifício, pelo que não prosseguiu contra a Assistente – depoimentos de DD e FF.

Entretanto, do alto da rampa, FF pega no telemóvel e tenta tirar uma fotografia ao Arguido, enquanto este volta a tentar subir a rampa com a carrinha, alargando a manobra, desistindo quando FF diz que está a ligar para a GNR – declarações da Assistente e depoimento de FF.

Assim, de forma resumida, ficou provado que o Arguido, depois de se perceber que a Assistente atravessou a estrada e se estava a dirigir para a Rua ... (porque chamada pela filha) iniciou a marcha e acelerou em direção à Assistente, com a intenção de a atropelar, ainda que de forma atrapalhada.

Atrapalhada, não só pela falta de habilidade do Arguido, como pela presença da neta que o distraiu dos seus intentos.

Concluindo-se deste modo que o Arguido só não conseguiu atropelar a Assistente porque tinha parado a carrinha muito perto da casa da Assistente e por força das características da Rua ... (rua em rampa de acentuado desnível e feita em paralelos irregulares).

Note-se que não está aqui em causa se o Arguido tinha a intenção de atropelar a Assistente antes desta fugir pela Rua ... acima, pese embora seja de presumir que só não o fez por intervenção da neta.

O que importa é que no momento descrito, o Arguido tinha o seu veículo parado e iniciou a marcha de forma propositada. O Arguido não tinha razões para subir a Rua ... e muito menos, no momento em que peões se encontravam no meio da via, pelo que virou o guiador para a direita, de forma propositada.

Por fim, se o Arguido não tivesse a intenção de atropelar a Assistente, perguntar-se-á a razão pela qual voltou a tentar subir a Rua ..., só não tendo prosseguido nos seus intentos após a ameaça da vinda das autoridades policiais.

O descrito em 17. foi explicado à exaustão pela Assistente, por FF e confirmado pelo Guarda GG.

No que respeita ao descrito em 18., ficou o mesmo provado pelo auto de contraordenação de fls. 227 e das declarações da Assistente que explicou que o Arguido já tinha estado internado, no passado, por força da dependência ao álcool. Mais explicou que o Arguido só a abordava depois de voltar de outro café, em ..., onde consumiria bebidas alcoólicas.

Na abordagem efetuada pelo Guarda GG, este verificou o hálito a álcool, pelo que determinou a realização de teste ao Arguido, tendo acusado a presença de álcool no sangue.

Desconhecendo-se se o Arguido padece mesmo de dependência ao álcool, entende-se, pelos factos acima descritos, que é lícito concluir que ingere bebidas alcoólicas em excesso. Confrontado com esse facto, concordou o Arguido com a medida de cocção de submissão a consulta e tratamento (ver despacho de 24.04.2023), assim como demonstrou interesse em colaborar com a DGRSP nesse sentido (ver informação de 16.01.2023).

 O ponto 19. resultou demonstrado das declarações da Assistente e do depoimento de DD.

Os factos 20. a 22. resultaram provados da conjugação das declarações da Assistente, com os depoimentos de DD e FF e as regras da experiência comum.

No que respeita à alteração de rotinas e condicionamento da liberdade da Assistente, esta e as Testemunhas referidas explicaram à exaustão as alterações na vida da Assistente – nos termos já supra aludidos - e, em boa parte, de grande número dos habitantes daquele local.

Com efeito, sendo a Assistente proprietária de um estabelecimento comercial de café e minimercado, numa aldeia, os seus horários de abertura influenciam a vida de todos os seus clientes.

Assim, foi explicado que, encontrando-se sozinha ao fim da tarde, a Assistente mantinha a porta do estabelecimento fechado, tendo os clientes de bater à porta para serem atendidos, sem entrarem. Isto de modo a evitar que o Arguido aproveitasse para aparecer.

Mais foi explicado que o café que outrora ficava aberto até às 23h00 (ou mais, segundo a Assistente), passou a fechar às 19h00.

O descrito em 23. resulta das regras da experiência comum, conjugadas com as declarações do Arguido que demonstrou que a sua vontade é obrigar a sua cunhada a prestar contas das partilhas efetuadas, deixando bem claro que o assunto não será esquecido. Para o efeito, impõe a sua presença, vigiando-a e interpelando-a de modo agressivo e ofensivo.

Os pontos 24. e 25. resultam da conjugação dos factos descritos em 4. e 11., com as declarações da Assistente e as regras da experiência comum e da lógica.

O próprio Arguido disse que a Assistente é que tinha de pensar no que fez, mantendo o seu intento de a envergonhar, até em tribunal.

O descrito de 26. resulta das declarações da Assistente e do depoimento de FF. O próprio Arguido demonstrou entender que não tem nada para se retratar ou arrepender.

O ponto 27. foi confirmado pelos depoimentos de HH, DD e FF. A idade resulta do assento de nascimento junto aos autos.

Destes depoimentos, assim como das declarações da Assistente resultaram provados os factos 28. a 39., nos termos já acima referidos quanto aos factos da acusação pública.

O descrito em 40. resulta do certificado de registo criminal do Arguido.

Os pontos 41. a 51. resultam do relatório social junto aos autos.

Quanto ao descrito em 51., foi confirmado pela Testemunha HH que é conhecido, em ..., uma história sobre o Arguido e segundo a qual, alegadamente, terá atirado uma pedra pela janela, quando o cunhado ia a passar de trator.

As medidas de coação referidas em 52. resultam do auto de interrogatório judicial realizado a 24.04.2023.

Os pontos 53. a 59. resultam da informação da DGRSP junta aos autos a 16.01.2024 e com a qual o Arguido foi confrontado em sede de interrogatório judicial.

O ponto 60. resulta do dito interrogatório judicial realizado a 26.01.2024.

O descrito em 61. decorre do próprio despacho proferido na data indicada e constante dos autos.

O descrito em 62. e 63. foi admitido pelo Arguido em sede de interrogatório.

DD confirmou o descrito em 64. e 65. (sendo que, do mesmo modo, o Arguido admitiu os factos indicados a 64., exceto quanto ao tempo em que esteve no estabelecimento).

A informação da DGRSP de 19.01.2024 determinou a prova dos factos 66. a 68..

O descrito em 69. resulta do registo de visitas junto aos autos, a pedido do Arguido.

O ponto 70. foi verificado pessoalmente pelo Tribunal, assim como pelo Sr. Médico Psiquiatra que fez constar tal facto do seu relatório pericial.

O conteúdo deste relatório, assim como os esclarecimentos prestados em audiência, determinaram a prova dos factos descritos de 71. a 74..

Quanto ao facto dado como não provado, não foi produzida prova que, no dia 22 de dezembro de 2023, o Arguido pretendesse atingir a Assistente com a bengala de ferro (ponto A.).

É de consignar que, pelas características da dita bengala de ferro, é lícito questionar-se a razão pela qual o Arguido se fazia acompanhar desse objeto e não da canadiana que habitualmente usava.

Efetivamente, constatou-se, em audiência de discussão e julgamento, que pese embora a dita bengala de ferro tenha uma borrachinha na sua ponta, a mesma não apresenta sinais de desgaste. Para além disso, os 1,186kg do ferro (pesando as muletas até 800g, por serem em alumínio) estão distribuídos por apenas 90cm de tubo, sem apoio para o antebraço, o que dificulta o seu manuseamento. Concluindo-se, deste modo, que o Arguido não usava aquela bengala apenas para apoio na deslocação.

O descrito em B. resulta da produção de prova em contrária, nomeadamente, pelo conteúdo do relatório pericial que concluiu pela falta de capacidade do Arguido de se determinar pela avaliação feita à ilicitude dos factos praticados, concluindo-se assim que a patologia de que padece condiciona o seu comportamento, não o permitindo agir de forma livre, voluntária e, muito menos, de forma consciente.”

2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos

A primeira questão colocada pelo recorrente diz respeito à admissibilidade probatória das declarações prestadas pela assistente em audiência de julgamento, tendo por objeto a factualidade dada como provada no ponto 13. da decisão de facto, acima transcrita, com fundamento na circunstância de a declarante não ter presenciado diretamente o comportamento do arguido ali descrito (o ter afirmado que “a iria matar um dia destes”), limitando-se a assistente a reproduzir o que lhe havia sido contado por terceira pessoa, a testemunha CC, que é sua irmã e mulher do arguido, e porque chamada pelo Tribunal a quo a depor em audiência de julgamento, a mesma recusou-se legitimamente a prestar depoimento, ao abrigo do disposto no art.º 134º, nº 1, al. a), do CPP. Não podendo, no entender do recorrente, ser valoradas aquelas declarações por não lhe serem aplicáveis as disposições legais sobre o depoimento indireto previsto no art.º 129º para o depoimento testemunhal.

Ora, nos termos do art.º 145º, nº 3, do CPP, “A prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis fica sujeito ao regime da prova testemunhal, salvo no que lhe for manifestamente inaplicável e no que a lei dispuser diferentemente”. 

Por seu turno, o art.º 129º, nº 1, do CPP, inserido no conjunto de normas que regulam a prestação do depoimento testemunhal, estabelece o seguinte: “Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas”.

  Nos termos do nº 1 do art.º 128º do mesmo diploma, disposição normativa também aplicável às declarações do assistente, por via do citado art.º 145º, nº 3, do CPP, a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto da prova. Ou seja, é apanágio quer do depoimento testemunhal quer das declarações do assistente que um e outras se refiram a factos que constituam objeto de prova e sejam ao mesmo tempo portadores de uma determinada razão se ciência, consistente no conhecimento direto que a testemunha ou o assistente tiveram desses mesmos factos, em regra obtido através da apreensão da realidade desses factos através dos seus próprios sentidos. Situação que logicamente não ocorrerá quando o facto objeto de prova haja vindo ao conhecimento do declarante apenas retrospetivamente, em função do que outra pessoa lhe relatou ter acontecido e não já através de uma relação presencial, direta, de imediação com o facto, no exato instante em que este aconteceu. Estando assim nós, neste caso, perante uma situação que a lei qualifica de depoimento indireto, nos termos já acima referidos. E por isso também a preocupação da lei em chamar a depor a pessoa que declarou à testemunha ouvida o facto ocorrido, a fim de o juiz apurar se há ou não fundamento para se convencer de que tal facto efetivamente aconteceu, procurando ouvir essa testemunha-fonte, se tal for possível, apurando também a sua razão de ciência, podendo até acontecer que essa testemunha-fonte, por sua vez, venha também a produzir um depoimento indireto, alegando que foi uma outra pessoa que lhe relatou a ocorrência do facto, fazendo assim com que essa pessoa tenha de ser chamada a depor, nos temos do art.º 129º, nº 1, do CPP, sob pena de os depoimentos indiretos assim prestados não poderem valer como prova, salvo, como resulta expresso na parte final do nº 1 do art.º 129º do CPP, se a inquirição das pessoas indicadas pelas testemunhas que prestaram depoimento indireto não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas, pois, nestes casos, a lei já não proíbe o depoimento indireto como meio de prova, e ao não proibi-lo faz com que prevaleça o princípio estabelecido no art.º 125º do mesmo diploma, isto é, de que é admissível qualquer prova, desde que não seja proibida por lei.

Dito isto, assentando por natureza a viabilidade probatória, quer do depoimento da testemunha quer das declarações do assistente, na razão de ciência que os enforma, isto é, no conhecimento direto que têm dos factos sujeitos a julgamento, sendo-lhes nessa medida aplicável a norma do art.º 128º, nº 1, do CPP, a ser lida no sentido de que tanto a testemunha como o assistente, este ex vi do art.º 145º, n º 3, do CPP, são inquiridos sobre factos de que possuam direto conhecimento, não vislumbramos como seja teleologicamente possível, relativamente a um depoimento indireto, isto é, apenas baseado no que se ouviu dizer a outra pessoa, sustentar-se que se deve chamar essa pessoa a depor, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 129º, nº 1, do CPP, porque as declarações de ouvir dizer foram proferidas por uma testemunha, mas já não quando essas declarações tivessem sido da autoria do assistente. E sendo o mesmo o substrato fáctico-jurídico e teleológico, na função que representa para a necessidade da descoberta da verdade material, em que assenta tanto o depoimento testemunhal como as declarações do assistente, obviamente sem prejuízo das especificidades de valoração a jusante, à luz do princípio da livre apreciação da prova, de um e outro meio probatório, não vislumbramos como seja possível, porque ademais sem possibilidade de um mínimo apoio na letra da lei, afirmar-se que, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 145º, nº 3, do CPP, o regime legalmente previsto para o depoimento direto da testemunha fosse aplicável também ao assistente, mas reversamente e no que redundaria numa aporia insuperável, o respeitante ao depoimento indireto da testemunha já não fosse, quando o teria de ser como decorrência lógica inevitável da primeira ilação produzida, decorrência lógica esta que sai reforçada pela impossibilidade de se poder defender, como o exigiria o art.º 145º, nº 3, do CPP, que tal regime do depoimento indireto, pela sua específica natureza, seria manifestamente inaplicável às declarações do assistente, porquanto certo é também que a lei sobre isso não dispõe diferentemente. Sendo fundamentalmente esta a razão por que, pese embora as divergências doutrinais e jurisprudenciais mencionadas na douta decisão recorrida, que seguimos o entendimento nesta perfilhado, não sendo, por outro lado, juridicamente sustentável, como defende o recorrente, que a aplicação do art.º 129º do CPP às declarações do assistente redunde numa aplicação analógica, porquanto esta pressuporia a existência de uma lacuna, ou seja, que uma pergunta tivesse de ser feita sobre o que fazer quando o assistente declarasse a existência de factos com base no conhecimento que lhe foi transmitido por uma terceira pessoa, e a essa pergunta a lei não desse qualquer resposta, quando é certo que a norma do art.º 145º, nº 3 (norma de caráter remissivo), a dá claramente, como vimos supra, e assim, não havendo qualquer lacuna não é possível, logicamente, falar-se em aplicação analógica do art.º 129º, porquanto uma tal aplicação é feita por determinação da própria lei.

Assim sendo, e tendo a testemunha-fonte sido chamada a depor, nos termos previstos no art.º 129º, nº 1, do CPP, e ainda que esta se haja recusado legitimamente a depor, pode e deve o Tribunal de julgamento extrair as consequências probatórias que julgar adequadas, em termos de formação da sua livre convicção sobre a realidade dos factos em causa, tendo em conta uma tal recusa e o depoimento indireto prestado, porquanto a exigência legalmente prevista de chamamento a depor da testemunha-fonte foi cumprida, mesmo que esta não haja prestado depoimento, assim como não o prestaria a testemunha-fonte que entretanto tivesse falecido ou a testemunha que supervenientemente viesse a padecer de anomalia psíquica que a impossibilitasse de prestar depoimento, ou não pudesse simplesmente ser encontrada. Determinante é que o Tribunal chame a depor a testemunha-fonte, que diligencie pela sua efetiva comparência, tendo em vista a possibilidade de a confrontar com o depoimento indireto prestado pela testemunha de ouvir dizer, e em função do resultado de tais diligências apreciar o valor probatório do depoimento indireto prestado, garantido sempre o princípio do contraditório, assim como ao máximo possível o princípio da imediação, mas sem que se imponha como necessário que o depoimento da testemunha-fonte seja efetivamente prestado, porque uma tal exigência não teria qualquer cobertura na letra da lei, nem se justificaria à luz do princípio da descoberta da verdade material, que sairia não raras vezes irremediavelmente sacrificado, sem plausível justificação, nomeadamente com a justa e proporcional salvaguarda dos princípios da imediação e do contraditório na produção e valoração da prova assim produzida.

No sentido da tese que consideramos ser a necessariamente conforme à lei, e por todos, Carlos Adérito Teixeira e Juiz Conselheiro Santos Cabral[1], e ainda Ac. do STJ, de 23/10/2008, do TRC, de 26/11/2008, e do TRP, de 25/05/2022[2].

Razão por que, nesta parte, irá ser negado provimento ao recurso.

Impugna ainda o recorrente a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada, relativamente ao ponto 16., dizendo que “não foi feita a apreciação crítica em termos condizentes com as regras da experiência, atendo-se, com primazia, às declarações da Assistente e, só na parte em que com elas eram condizentes, também a prova testemunhal.” Transcreve as declarações da testemunha DD, com base nas quais conclui que delas “resultou, em sentido diverso à apreciação crítica do Tribunal, designadamente, que o arguido, que tinha à sua frente o carro da sua neta EE, manteve-se sempre parado, sem desligar o motor, mas parado; que o arguido não iniciou a marcha e acelerou em direção à Assistente e que o Arguido não chegou perto da Assistente”. Acrescentando que o Tribunal optou “por dar como provado o que acima vai transcrito, sem sequer apreciar criticamente, nestes concretos pontos, as declarações prestadas pela testemunha DD que vão em sentido contrário ao que viria a ser fixado pelo Tribunal, Incorreu a sentença recorrida, quanto à tentativa de atropelamento, em erro de julgamento que também importa reparar”.

Recordemos que o Tribunal a quo sobre esta matéria motivou a decisão proferida nos seguintes termos:

“No que respeita ao descrito em 16., ouvida a Assistente, DD e FF e analisadas as fotografias juntas aos autos na primeira sessão de audiência de discussão e julgamento, entende-se ter ficado demonstrado o que se segue.

No dia e hora indicado, vendo o Arguido a rondar o local e numa rotina fixada pela Assistente e FF, que consistia em que aquela fosse abrir a porta da garagem antes da chegada desta, a Assistente acorreu até à dita garagem que fica do outro lado da estrada (ver portão preto de garagem numa das fotografias juntas) e esperou pela filha – declarações da Assistente.

Entretanto, o Arguido parou em frente ao estabelecimento comercial, com a frente já na entrada da Rua ..., tendo a sua neta, EE parado o seu automóvel mais à frente ao do avô (em frente ao chafariz, segundo FF), tendo ido falar com o mesmo, através da janela da carrinha – depoimento de DD, declarações da Assistente e depoimento de FF.

Nesse momento, chegado FF e advertida pela mãe, aproveitaram o facto do Arguido estar distraído para atravessar a estrada, tendo FF passado entre o chafariz e o carro de EE e a mãe, pela frente do carro, mesmo em frente ao carro do Arguido, em direção ao seu estabelecimento comercial – depoimento de FF.

Nesse momento, FF chama a mãe para junto de si, fazendo com que esta suba a rampa da Rua ... – depoimento de FF.

Ao mesmo tempo, o Arguido – que estava a ser distraído pela neta - dá conta da proximidade da Assistente e inicia a marcha do veículo, virando para a Rua ..., mesmo atrás da Assistente que se encontrava de costas (e que nem deu conta do movimento do Arguido) – declarações da Assistente e de FF.

No entanto, dada a proximidade que se encontrava do estabelecimento comercial, o Arguido não conseguiria subir a Rua ... sem bater com a lateral direita da carrinha no edifício, pelo que não prosseguiu contra a Assistente – depoimentos de DD e FF.

Entretanto, do alto da rampa, FF pega no telemóvel e tenta tirar uma fotografia ao Arguido, enquanto este volta a tentar subir a rampa com a carrinha, alargando a manobra, desistindo quando FF diz que está a ligar para a GNR – declarações da Assistente e depoimento de FF.

Assim, de forma resumida, ficou provado que o Arguido, depois de se perceber que a Assistente atravessou a estrada e se estava a dirigir para a Rua ... (porque chamada pela filha) iniciou a marcha e acelerou em direção à Assistente, com a intenção de a atropelar, ainda que de forma atrapalhada.

Atrapalhada, não só pela falta de habilidade do Arguido, como pela presença da neta que o distraiu dos seus intentos.

Concluindo-se deste modo que o Arguido só não conseguiu atropelar a Assistente porque tinha parado a carrinha muito perto da casa da Assistente e por força das características da Rua ... (rua em rampa de acentuado desnível e feita em paralelos irregulares).

Note-se que não está aqui em causa se o Arguido tinha a intenção de atropelar a Assistente antes desta fugir pela Rua ... acima, pese embora seja de presumir que só não o fez por intervenção da neta.

O que importa é que no momento descrito, o Arguido tinha o seu veículo parado e iniciou a marcha de forma propositada. O Arguido não tinha razões para subir a Rua ... e muito menos, no momento em que peões se encontravam no meio da via, pelo que virou o guiador para a direita, de forma propositada.

Por fim, se o Arguido não tivesse a intenção de atropelar a Assistente, perguntar-se-á a razão pela qual voltou a tentar subir a Rua ..., só não tendo prosseguido nos seus intentos após a ameaça da vinda das autoridades policiais.”

Os critérios de apreciação do mérito do recurso da decisão proferida sobre a matéria de facto resultam claramente enunciados no art.º 412º, nº 3, al. a) e b), do CPP, estando tal apreciação dependente da especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, assim como das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Todavia, este último requisito só resultará satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida[3]. E tendo tais provas sido gravadas, como dita o nº 4 do mesmo artigo, as especificações previstas na al. b) deverão ser feitas por referência ao consignado em ata, nos termos do disposto no nº 3 do art.º 364º, indicando o recorrente concretamente as passagens em que funda a impugnação. Sendo que, na ausência de consignação em ata, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 3/2012[4] do Supremo Tribunal de Justiça, determina que bastará a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da recorrida, desde que as mesmas sejam transcritas. Resultando ainda da fundamentação do mesmo Acórdão que essencial é que o recorrente faça a “indicação do ponto onde começam e onde acabam os depoimentos e do local e momento concreto dos excertos, dos segmentos dos depoimentos ou declarações que têm a virtualidade pretendida”, ou seja, de por via deles se concluir que se impõe decisão diversa da que foi proferida relativamente aos factos também especificadamente indicados. É esse também o entendimento perfilhado pelo Professor Paulo Pinto de Albuquerque, ao dizer que “A especificação das ‘concretas provas’ só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”[5], sendo “insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa”. Acrescentando que o cerne do dever de especificação está ainda na explicitação por parte do recorrente da razão pela qual essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida[6].

Subjacente às disposições normativas do art.º 412º, nºs 3, al. a) e b), e 4, do CPP, está a circunstância de o recurso da decisão da matéria de facto visar a correção de erros de julgamento concretamente identificados e não um novo julgamento ou a repetição do julgamento já realizado, porquanto nesse novo julgamento o tribunal de recurso não gozaria das vantagens advenientes da oralidade e da imediação na produção da prova de que gozou o tribunal da primeira instância, estando nessa medida menos apetrechado que este para formar devidamente a sua convicção e com ela alcançar eficazmente a descoberta da verdade material.

Só, portanto, nos casos devidamente descriminados, baseados numa análise segmentada e cirúrgica da prova concretamente produzida, face à qual se imponha clara e necessariamente decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo, é que será possível alterar-se o que por este foi decidido. Sendo neste sentido que também vai o entendimento adotado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, como a título de exemplo o Acórdão do STJ, de 12/06/2008[7], segundo o qual “Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações:

- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorretamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorretamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;

- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;

- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a atividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;

- a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.”

Ora, não há dúvida de que o recorrente especificou o concreto ponto de facto da decisão recorrida que considera ter sido erradamente julgado. Fê-lo, porém, com uma amplitude tal, quanto aos meios de prova invocados, que a reapreciação do decidido seria tudo menos cirúrgica, comportando, pelo contrário, um verdadeiro novo julgamento, com uma abordagem dispersa e ao mesmo tempo global da prova escolhida pelo recorrente e, sobretudo, das ilações que o mesmo pretende fazer prevalecer sobre as que o Tribunal a quo produziu para formar a sua convicção, apontando assim, claramente, não para a existência de um erro específico sustentado num específico segmento probatório que indubitavelmente fundamentasse a existência de um tal erro, mas um erro de julgamento assente numa convicção alternativa à que foi formada pelo Tribunal a quo, procurando dar relevo probatório a meio de prova relativamente a outros que foram atendidos e valorados pelo Tribunal recorrido, baseando-se sobretudo o recorrente numa convicção por si formulada, a si naturalmente favorável, que se pretende concorrente com a que o Tribunal a quo formou. Prova disso é a alegação de que “a sentença recorrida sobrevalorizou in totum as declarações da Assistente, para lá do que aconselham as regras da experiência comum, contrariando-as mesmo em alguns aspetos…”. Acrescentando o seguinte, depois de transcrever as declarações de DD, na parte relevante para a factualidade em causa: “Refira-se, ainda, que na apreciação crítica deste facto, à semelhança do que fez com muitos outros, a Meritíssima Juiz valorou, acima de tudo, as declarações da assistente, carregadas, em grande parte, por um dramatismo excessivo e notoriamente empolado. Mesmo se, algumas das declarações por si prestadas foram em parte desmentidas pelas próprias testemunhas. E sempre prevaleciam as declarações da assistente!

Ou seja, o depoimento da testemunha DD, a propósito do facto em causa, por observação direta e pormenorizada, foi suficientemente claro para que a Meritíssima não saísse do patamar da dúvida quanto ao efetivo propósito do arguido.

Concedemos que a Assistente até poderia pensar que ele teria a intenção de a atropelar, mas facilmente perceberia que seria impossível fazê-lo, quer porque tinha o carro da neta EE à frente, quer porque tinha uma esquina pela frente que não lhe permitiria iniciar a marcha sem bater, fosse no carro, fosse na parede.”

A tessitura argumentativa que o recorrente expõe na motivação do recurso, fundamentalmente baseada na valoração probatória das declarações de DD, revela tudo menos a invocação de um concreto erro, ainda que relativamente a um concreto facto, baseado num específico meio de prova, com o sentido já acima referido, mas a procura da formação de uma nova convicção relativamente a esse mesmo facto dado como provado, procurando um novo julgamento relativamente a ele, alternativo àquele que foi efetuado pelo Tribunal a quo, julgamento esse que está vedado a este Tribunal fazer, pelas razões também já supra referidas. O que perpassa, portanto, na motivação do recurso, é que o recorrente pretende uma alteração da decisão recorrida, baseando-se para tal em ilações probatórias que, além de parciais, a si favoráveis, são inócuas para alcançar um tal desiderato, porquanto não logrou demonstrar a existência de um erro, relativamente ao qual se impusesse (e não apenas pudesse ou fosse plausível) afirmar que o Tribunal a quo errou ao decidir como decidiu, mas apenas afirmar uma convicção alternativa, a si favorável e sobrepô-la à que imparcial e objetivamente foi espelhada na motivação da decisão de facto pelo Tribunal recorrido.

Razão por que, neste segmento, irá ser julgada improcedente a impugnação da decisão de facto deduzida pelo arguido.

Alega ainda o arguido que, no tocante à factualidade dada como provada nos pontos 70 a 74, “todo o raciocínio expendido na sentença recorrida, a propósito da perigosidade do Arguido, está eivado de vícios que determinaram um claro na apreciação da prova e um erro de julgamento”.

O que o recorrente põe em causa não é, usando as suas palavras, a “inimputabilidade, por anomalia psíquica e consequente absolvição do crime por que vinha acusado, por falta de preenchimento do seu elemento subjetivo”, mas sim a “avaliação da perigosidade do arguido/examinado, em particular a probabilidade de repetição de crimes da mesma natureza”. E para tal serve-se das conclusões constantes do relatório pericial junto aos autos. Arrematando de seguida que, “concatenando o relatório pericial apresentado, com os (exaustivos) esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito em Audiência, fundados também na sua experiência no tratamento de casos idênticos não resta qualquer dúvida de que, no caso sub judice, o caminho apontado pela prova científica para a neutralização do risco de repetição homótropa, é o caminho de “acompanhamento ambulatório psiquiátrico”. E baseando-se no relatório pericial, bem como nos esclarecimentos prestados pelo respetivo perito em audiência de julgamento, cujos excertos transcreve na motivação do recurso, conclui o recorrente que o Tribunal a quo:

Ignorou, pois, a prova científica que impunha decisão diversa da recorrida, decidindo contra ela, quer na avaliação do risco de repetição de ilícitos semelhantes, quer na medida de segurança concretamente aplicada, de internamento.

Com isso, e determinando a medida de internamento efetivo ao arrepio da prova científica, cometeu a Meritíssima Juiz também erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

Bem como, fez uma avaliação incorreta da situação concreta do arguido, nomeadamente ao nível da sua perigosidade, tendo, em virtude de tal erro, determinado um regime de internamento desproporcional e desnecessário ao caso.

Como se não bastasse, a decisão recorrida nem sequer valorou a idade do arguido, que tem 77 anos de idade e, pior ainda, o facto de não ter antecedentes criminais (embora o tivesse elencado nos factos provados, em 40).

Sucessivos erros cometidos que importa reparar.”

Concluindo que “a liberdade do agente aqui se mostra adequada às necessidades de prevenção especial de recuperação do inimputável e da neutralização da perigosidade criminal, através do tratamento da anomalia psíquica em ambulatório psiquiátrico e com acompanhamento, eventualmente, dos próprios serviços da D.G.R.S., assim também se satisfazendo as exigências de prevenção geral positiva de pacificação social” e que “Na circunstância de assim não se entender, a aplicação de medida de segurança sempre teria que ser suspensa na sua execução, mais não seja, em obediência aos princípios da subsidiariedade, adequação e proporcionalidade.

Importará referir, em primeiro lugar, que a pertinência da argumentação tecida pelo recorrente desemboca fundamentalmente na questão de saber se é ou não de aplicar ao arguido, uma vez que este praticou um facto ilícito típico e foi considerado inimputável, a medida de segurança prevista no art.º 91º do CP, isto é, de internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança.

Diz o art.º 91º, nº 1, do CP que “Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.”

São assim pressupostos da medida de internamento, enquanto medida de segurança privativa da liberdade que é, a prática de um facto ilícito típico, a inimputabilidade do agente declarada nos termos do art.º 20º do CP e a existência de fundado receio, em virtude da anomalia psíquica de da gravidade do facto praticado, de que o mesmo agente venha a cometer outros factos. Sendo certo que tal medida, nos termos previstos no art.º 40º, nº 3, do CP, só poderá ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do autor dele.

 Estando os primeiros requisitos dados como assentes no processo, importa agora apurar apenas o preenchimento do terceiro pressuposto, isto é a perigosidade do agente, e em função desta determinar ainda se a medida de internamento aplicável, enquanto restrição que representa para o direito fundamental à liberdade, respeita ou não o princípio jurídico-constitucional da proibição do excesso, apurando-se se a mesma se mostra adequada, necessária e proporcionada à finalidade preventiva especial que a determina, que é, fundamentalmente, fazer face àquela concreta perigosidade.

Segundo o Professor Jorge de Figueiredo Dias, “perigosidade criminal capaz de justificar, face a exigências da estadualidade de direito, a aplicação de medidas de segurança só existe quando se verifique o fundado receio de que o agente possa vir a praticar factos da mesma espécie da do ilícito-típico que é pressuposto daquela aplicação”, acrescentando o mesmo autor que isso implica a emissão de um juízo de prognose e que do ponto de vista jurídico-penal “o que  se exige é a probabilidade de repetição, não a mera possibilidade, nem obviamente a certeza de que ela irá ter lugar. Isto significa, no âmbito do processo penal, que o tribunal  - pressuposta a verificação dos restantes requisitos - aplicará a medida de segurança se tiver alcançado a convicção da probabilidade de repetição; não a ordenará se se tiver convencido de que a repetição é possível, mas não provável; como igualmente a não ordenará, de acordo com o princípio in dubio pro reo, se tiverem persistido no seu espírito dúvidas inultrapassáveis quanto à probabilidade de repetição.” Dizendo o mesmo Il. Professor que para efeitos da formulação de tal juízo de prognose é absolutamente fundamental o resultado da perícia criminológica, psiquiátrica ou psicológica que porventura venha a ter lugar, mas que apesar disso “não é ao perito, nem à ciência criminológica, que pertence decidir a questão da perigosidade, mas apenas estabelecer as bases da decisão, cabendo esta sempre, em último termo, ao tribunal[8].             

É neste último ponto que claudica a argumentação do recorrente, centrada na circunstância de, na formulação do juízo de prognose relativamente à probabilidade de o arguido voltar a incorrer na prática de novos factos ilícitos típicos, não ter o Tribunal a quo seguido a interpretação que o recorrente faz relativamente ao que disse o perito em audiência de julgamento, assim como das conclusões do relatório pericial junto aos autos, transmutando-as de base de decisão que devem ser para uma solução interpretativa que encarnaria a própria decisão, olvidando ademais outros elementos a ter em conta, nomeadamente a gravidade dos factos na sua totalidade, porquanto o que está em causa, desde logo como “ponto de partida”, como refere o Professor Jorge de Figueiredo Dias, “é o pensamento lógico da possibilidade ou potencialidade de verificação, segundo as regras da experiência comum, de um determinado acontecimento no futuro”, com o grau de exigência de probabilidade já acima referido, e assim, concomitantemente, porque é ao tribunal que cabe fazer um tal juízo e não ao perito, não tem aplicação o disposto no art.º 163º, nº 1, do CPP, quando estabelece  que “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”, para que por essa via também se pudesse invocar, como agora faz o recorrente, a existência de um erro notório na apreciação da prova, a que alude o art.º 410º, n º 2, al. c), do CPP, pois o que tem aplicação ao caso é o princípio geral estabelecido no art.º 127º do mesmo diploma, segundo o qual, e não dispondo a lei em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

Se assim não fosse, isto é, se se atribuísse ao perito, para além da determinação da existência ou não da inimputabilidade do agente, esta sim matéria pericial da sua competência, também a determinação da perigosidade do agente, relativamente ao cometimento de novos factos ilícitos típicos, e assim a função de ser ele exclusivamente a fixar os pressupostos da aplicação de uma medida de segurança, isso seria conceder-lhe uma margem de função jurisdicional que apenas aos tribunais judiciais cabe exercer, sendo que uma tal solução, quando vista à luz do princípio do estado de direito, não poderia deixar de ser considerada inconstitucional.

Coisa diferente é, porém, no juízo de prognose que com toda a independência e imparcialidade terá de se produzir sobre a probabilidade do cometimento de novos factos ilícitos típicos, ter o tribunal, necessariamente, de se basear também ou essencialmente no que a perícia trouxe ao processo, e assim com a “liberdade para a objetividade”[9] que deve caraterizar a formação da sua convicção, fundamentadamente decidir se aquele perigo, em concreto, naquele caso e naquele preciso momento da decisão, existe ou não. E neste ponto o Tribunal a quo respondeu correta e afirmativamente. Não deixando de realçar o facto de resultar do relatório da perícia médico-legal psiquiátrica que o risco de repetição de atos da mesma natureza, não podendo ser excluído, é reduzido, e que  o internamento do arguido, em clínica integrada num estabelecimento prisional não se justificava, a verdade é que um tal juízo do senhor perito assentou em condições práticas cuja verificação se mostra difícil assegurar, como resulta do processo e o Tribunal a quo realçou, na hipótese de o arguido se manter, sem mais, em liberdade, como seja a difícil possibilidade da sua sujeição voluntária a um futuro acompanhamento psiquiátrico regular, acompanhado de medidas de apoio psicossocial a ele associadas e de um enquadramento familiar favorável, sobretudo porque tais circunstâncias andariam associadas a fragilidades físicas relevantes (o deslocar-se o arguido com apoio, por incapacidade dos membros inferiores). Não sendo, todavia, de olvidar que esta última condicionante não impediu o arguido de praticar os factos em causa nos autos. Sublinhando-se ainda na decisão recorrida que não são conhecidas intervenções psiquiátricas prévias ao arguido, e que só a partir da sua detenção é que o mesmo veio a beneficiar de um diagnóstico e de tratamento, mas não antes, pois o arguido não colaborou na sua realização quando se encontrava sujeito a outras medidas de coação, faltado a duas consultas marcadas pela DGRSP, justificando as respetivas faltas de forma enganadora ou contraditória, afirmando numa delas que “faltou porque se recusava a ir à consulta ou fazer qualquer tratamento (à eventual dependência alcoólica), pese embora tenha anteriormente dito à DGRSP que tinha faltado por causa do estado da saúde da esposa”. Referindo ainda o Tribunal a quo que quanto à necessária retaguarda familiar, de modo a controlar os passos do Arguido e assegurar a sua comparência nas consultas e tratamentos, que este  vive com a esposa, CC, doente oncológica, tendo desse relacionamento nascido cinco descendentes (II, JJ, KK, LL e o MM), maiores e autonomizados, todavia, todos eles a viver e a trabalhar no estrangeiro, o que leva a crer que os mesmos não façam parte ativa da vida do arguido. Além disso, o arguido violou a medida de coação aplicada, de proibição de aproximação de residência e estabelecimento comercial da vítima, violação que implicou a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, a 26.01.2024.

A factualidade referida levou o Tribunal a quo a afirmar não ser possível “concluir que, neste momento, estejam reunidas as condições indicadas como necessárias para que os riscos de repetição de atos da mesma natureza sejam reduzidos”, e que, pelo contrário, “será lícito concluir que nas circunstâncias atuais - em que o Arguido não beneficia de retaguarda familiar suficiente e, sozinho não tem capacidade para acatar as ordens que lhe são dadas pelo Tribunal, cumprindo um tratamento rigoroso da medicação prescrita, com presença nas consultas marcadas - os riscos de repetição de atos da mesma natureza por parte do Arguido, são elevados”. Considerando para tal ainda “os factos referentes à gravidade da conduta do Arguido, nomeadamente, na prática do crime de perseguição agravada, tendo este atemorizado a Assistente durante meses a fio, tentado agredi-la fisicamente, ameaçado de morte e, deste modo, limitado a sua liberdade de determinação e deslocação”. E que “Salvo melhor opinião, tais factos tornam-se ainda mais graves se atendermos à idade da Assistente – 73 anos”.

Ou seja, podemos concluir que a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a determinação recalcitrante com que sempre agiu, a forma como se recusou a estar presente em consultas que lhe haviam sido marcadas ou violando as medidas de coação aplicadas, se associadas tais circunstâncias à doença psiquiátrica de que padece é bom de ver que o risco de cometimento de novos factos ilícitos típicos como os praticados nos autos é de séria probabilidade. Não se vislumbrando assim, ao contrário do pretendido pelo recorrente, razão ou fundamento para se pôr em causa a existência de fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie no futuro. Porém, onde o recurso ou o questionamento suscitado pelo recorrente bate verdadeiramente o ponto é na questão de saber se há ou não fundamento para suspensão da execução da medida de internamento aplicada, ao abrigo do art.º 98º do Código Penal, e sobretudo quando tal medida seja acompanhada, como resulta do nº 3 do mesmo artigo, da imposição ao arguido de regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52.º, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados. Sendo aqui que nos afastamos do entendimento do Tribunal a quo, não só porque desvaloriza sem razoável fundamento a idade do arguido ou a sua incapacidade motora, assim como o número e a qualidade das visitas que teve no estabelecimento prisional, nomeadamente por parte da sua mulher e da sua neta, e do marido desta, como ainda a circunstância de o mesmo ter entretanto experimentado tratamento médico, que anteriormente não tinha tido, e para o qual não tinha sequer conhecimento da respetiva doença, e agora passou a ter, e assim a possibilidade de se relacionar com a doença de um modo novo, sendo ademais expectável que para tal conte com o apoio dos familiares mais próximos, nomeadamente os que o visitaram durante a sua reclusão. Circunstâncias que justificam objetivamente “a esperança de que a finalidade da medida (a prevenção da perigosidade) ainda possa ser alcançada em liberdade[10], sujeitando-se o arguido a tratamento ambulatório.

 Razão por que, nesta parte, irá ser concedido provimento ao recurso, determinando-se a suspensão da medida de internamento em estabelecimento adequado à sua cura, tratamento e segurança, pelo período de 5 anos, na condição de o arguido frequentar as consultas médicas e de se submeter ao tratamento médico-psiquiátrico que lhe for prescrito, assim como à vigilância tutelar e ao acompanhamento pelos técnicos da DGRS.


2.1.3. Responsabilidade pelo pagamento de custas

Não sendo o arguido responsável pelo pagamento de taxa de justiça e custas, dado ter obtido vencimento parcial no recurso interposto, estas ficarão apenas a cargo da assistente, por ter decaído, ainda que parcialmente, na oposição que deduziu ao recurso, devendo a respetiva taxa de justiça ser fixada no mínimo legal - art.ºs 513.º, nº 1, a contrario, 515º, nº 1, al. b), do CPP, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a este anexa (nos termos da última disposição normativa citada e tabela anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii, e tendo em conta a complexidade do processo, sendo que, no presente caso, atendendo ao âmbito do decaimento na oposição que o assistente deduziu ao recurso, julga-se adequado fixar essa taxa no mínimo legal).


3. DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, determinar a suspensão da medida de internamento aplicada ao arguido, pelo período de 5 anos, na condição de o mesmo  frequentar as consultas médicas e de se submeter ao tratamento médico-psiquiátrico que lhe forem prescritos, assim como à vigilância tutelar e ao acompanhamento pelos técnicos da DGRS;

Custas a cargo da assistente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.



Porto, 2024-9-04
(Francisco Mota Ribeiro)
(José Piedade)
(Maria Deolinda Dionísio)

______________________
[1] Carlos Adérito Teixeira, “Depoimento Indirecto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova”, Revista do CEJ, 1º semestre, 2005, nº 2, pgs. 140 e 141 e Santos Cabral in: António Henriques Gaspar et al., Código do Processo Penal Comentado, 4ª edição revista, Almedina, Coimbra, 2022, p. 445 e 446.
[2] Respetivamente, Processos nºs 08P1212, 27/05.6GDFND.C1 e 71/20.3KRMTS.P1.
[3] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 1144.
[4] Publicado no Diário da República nº 77, Série I, de 2012-04-18.
[5] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 1131.
[6] Ibidem.
[7] Proferido no Proc.º nº 07P4375, disponível in www.dgsi.pt.
[8] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 443 e 444.
[9] Cf. António Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Dactilografados por João Abrantes, Coimbra 1969, p. 50.
[10] Jorge de Figueiredo Dias, Idem, p. 518.