ACIDENTE DE TRABALHO
DECLARAÇÕES DE PARTE
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
MORTE
CAUSA NATURAL
Sumário


I. As declarações prestadas por uma das partes interessada no processo devem ser analisadas com especial rigor e exigência, embora nada impeça que sejam consideradas para provar factos que lhe são favoráveis, quando corroboradas por qualquer outro elemento de prova, isento e credível.
II. O artigo 72.º do Código de Processo do Trabalho confere poderes inquisitórios ao juiz laboral, ou seja, a lei atribui-lhe o poder-dever de diligenciar pelo apuramento da verdade material podendo, para o efeito, atender aos factos essenciais ou instrumentais que resultem da discussão da causa, mesmo que não tenham sido articulados e desde que tais factos não impliquem uma nova causa de pedir, nem a alteração ou ampliação da causa ou causas de pedir iniciais.
III. Todavia, os poderes conferidos pelo aludido artigo são exclusivos do julgamento em 1.ª instância, não competindo à Relação ampliar o elenco dos factos provados com outros, que não tendo sido alegados, adquira por força da reapreciação da prova, nem pode ordenar à 1.º instância que o faça, na medida em que o poder de reenviar o processo à 1.ª instância para ampliação da matéria de facto está reservado para as situações em que os factos foram alegados.
IV. O conceito de acidente de trabalho é delimitado por três elementos cumulativos: um espacial – o local de trabalho – outro temporal - o tempo de trabalho – e, por último, um causal – o nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença.
V. De acordo com a regra geral prevista no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, cabe ao trabalhador, ou ao beneficiário legal, a prova dos elementos que integram o conceito de acidente de trabalho.
VI. O artigo 10.º, n.º 1, da LAT prescreve que a lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior - o artigo 9.º da LAT diz respeito à extensão do conceito de acidente de trabalho – presume-se consequência de acidente de trabalho.
VII. Resulta deste artigo que a presunção iuris tantum estabelecida é uma presunção de nexo de causalidade, pelo que o sinistrado, ou o beneficiário legal, não fica isento de provar o próprio evento causador das lesões.
VIII. De acordo com o artigo 11.º, n.º 1, da LAT a predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada, mas tal situação só se aplica desde que se tenha verificado, a montante, um acidente de trabalho.
IX. Tendo ficado demonstrado que a morte do trabalhador, motorista de veículos pesados de transporte internacional de mercadorias, ocorreu por causa natural e não por se ter verificado qualquer evento súbito e de natureza exógena ocorrido antes da sua morte, nomeadamente esforço físico elevado ou stress intenso e violento, não se pode considerar que a arritmia cardíaca por cardiopatia isquémica que o mesmo sofreu seja caracterizável como acidente de trabalho.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


P. 511/20.1T8STR.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
Na presente ação especial emergente de acidente de trabalho que AA, BB e CC, na qualidade de beneficiárias legais de DD, sinistrado falecido, movem contra FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., foi prolatada sentença que julgou a ação totalmente improcedente.

-
As autoras vieram interpor recurso para esta Relação, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões:
«a) As recorrentes não se conformam com a decisão recorrida, entendendo que a mesma padece de erro na apreciação da prova, insuficiência da matéria de facto provada e contradição entre a mesma e a decisão proferida.
b) Vão impugnados os pontos a), b) e c) dos Factos Não Provados da Sentença Recorrida, bem como a matéria de facto provada por não conter os factos constantes destas alíneas.
c) Mais se impugnam os elementos de facto que levaram a que o Tribunal tivesse considerado provada e não provada a matéria constante dos ditos pontos, bem como a respetiva fundamentação de facto e de direito da sentença recorrida.
d) O Tribunal praticou ilações e estabeleceu presunções em manifesta violação do disposto no nº 5 do artigo 607º do CPC, uma vez que presumiu a “existência de patologia ou condição que fizesse antever o resultado verificado”,
e) Conforme resulta do disposto nos artigos 342º, nºs 1 e 2 e artigos 435º nºs 1 e 3, ambos do Código Civil, é sobre a Ré Seguradora que se impõe o ónus da prova de um alegado facto impeditivo dos direitos das Autoras,
f) Além da violação do ónus da prova, a sentença recorrida padece de erros graves de julgamento,
g) Para fundamentar a sua convicção quanto à factualidade que considerou como não provada em a), o Tribunal não atendeu ao facto de em ../../2019, o sinistrado ter saído de ..., em ..., conforme Mapa de Viagens junto aos autos em ../../2023, com o articulado da entidade patronal, A..., Lda., com a referência ...56,
h) Sendo que da declaração da entidade patronal do sinistrado, junta como documento nº 5 da petição inicial, resulta que nos dias ... e ../../2019, a viatura conduzida pelo sinistrado percorreu, em cada um desses dias, 740 quilómetros.
i) Matéria que a Mma. Juiz do Tribunal A Quo deveria ter considerado como assente,
j) Mais, do Mapa de Viagens anexo ao requerimento da entidade patronal, junto aos autos em ../../2023, com a referência ...56, resulta que os quilómetros da viatura conduzida pelo sinistrado aquando da sua saída em ... cifrava-se em ...44 e à chegada a ..., ..., já conduzido por colega do sinistrado, a viatura tinha ...50 quilómetros,
k) Matéria que a Mma. Juiz deveria, igualmente, ter considerado como provada, face à prova documental junta aos autos.
l) De acordo com o depoimento da testemunha EE, o percurso de um motorista que vem do ..., com destino ao ..., será pela ..., passando ainda pela ... e ..., reforçando ainda que a ... entre ... e ..., no Inverno, encontra-se, sempre, com neve,
m) E que, caso as condições climatéricas não se encontrem favoráveis, a condução exige mais esforço,
n) Clarificando que, em face do número de quilómetros percorridos pelo sinistrado (740 km em cada um dos dois últimos dias que antecederem o seu óbito), o mesmo deveria estar com alguma pressão para descarregar ou com atraso, vide declarações prestadas em sede de audiência de julgamento, realizada em ../../2024
o) Segundo a Informação da Agência ..., junta aos autos, no dia ... existia uma cota de neve a 1200 metros, com ventos do nordeste, com rajadas de vento forte e no dia ../../2019, ocorreu uma descida ligeira das temperaturas, com geadas nas zonas altas do sistema central e ventos de este e nordeste,
p) Das declarações de parte da Autora CC, que a Mma. Juiz do Tribunal A Quo considerou que foram prestadas de “jeito espontâneo e colaborante”, resulta que no dia ../../2019, o pai havia se queixado que o clima estava muito chuvoso e que por tal facto tinha de estar mais atento na estrada,
q) Referindo ainda que o pai “havia tido alguns sustos na estrada”, que estava fatigado, por ter de estar muito mais atento na condução, confirmando que o sinistrado não fumava, que era saudável e que apenas bebia socialmente
r) Para justificar ter considerado como não provado o facto elencado no ponto “a”, a Mma. Juiz alicerçou-se na informação emitida pela Agência ..., o mesmo documento que contém os elementos climatérios a que acima fizemos alusão,
s) Ao desconsiderar os aludidos meios probatórios e ignorar o teor da página dois da informação emitida pela Agência ..., a Mma. Juiz cometeu um manifesto erro de julgamento e apreciação da prova,
t) No que concerne ao facto constante do ponto B dos factos não provados, resulta da própria sentença recorrida que a filha do sinistrado “CC, declarou que no dia .../.../2019 falou com o seu pai pelo telefone e que ele comentou sentir-se cansado, que o tempo estava chuvoso e húmido, o que requeria mais atenção na condução, que não dormia bem, preocupado com a segurança da mercadoria que transportava e com os prazos que tinha para cumprir a entrega da mercadoria que transportava”, vide segundo parágrafo da página 9 da sentença recorrida.
u) As declarações da Autora e o depoimento da testemunha EE, aliados à prova documental junta aos autos, atestam o percurso percorrido pelo sinistrado entre os dias ... e ../../2019,
v) Num total de mais de 1480 quilómetros, em pleno período de Inverno, circulando, há data, pela ... e ... a ..., que a viatura encontrava-se carregada, o sinistrado estava em stress e com a preocupação de cumprir o prazo de entrega de mercadoria e períodos obrigatórios de descanso,
w) E que teve alguns sustos na estrada.
x) Logo, de acordo com a prova documental, testemunhal e fazendo ainda alusão às regras da experiência comum, o Tribunal devia ter dado como assente “Que o sinistrado, nesse período, tenha conduzido sempre com a preocupação acrescida de não conseguir cumprir com os horários e datas de cargas e descargas escaladas pela segunda Ré, sujeito a uma carga de stress acrescido e com um desgaste e fadiga física acima da média”,
y) Ressalte-se que do depoimento da testemunha EE, que a Mma. Juiz do Tribunal A Quo considerou como “colaborante e crível”, resulta que os motoristas são confrontados com stress acrescido pela dificuldade que sentem em encontrar um estacionamento adequados para a viatura que conduzem e por terem de paralisar da viatura por imperativos legais que, em caso de incumprimento, acarretam para os mesmos e para as suas entidades patronais, coimas elevadas,
z) No que concerne ao ponto C dos factos não provados, dir-se-á que caberia à Ré Seguradora fazer prova de que o sinistrado padecia de uma qualquer patologia ou condição que fizessem antever o resultado verificado,
aa) Salientando que, segundo o Perito FF, pós-graduado em avaliação de dano corporal, autor do relatório pericial anexo à petição inicial como Documento 3, “existe uma relação direta entre a lesão que provocou a morte do sinistrado e o desenvolvimento da sua atividade como motorista profissional, já que foi o stress (causa exógena) da condução após períodos diários de 740 Km em condução internacional (conforme registos da empresa), que foi precipitante da lesão que lhe causou a morte”.
bb) Mais, de acordo com as declarações do referido Perito, o seu Relatório foi elaborado com base no Atestado de Doença, datado de ../../2021, anexo à petição inicial como Documento nº 4, nas declarações da viúva do sinistrado, que atestou que o mesmo tinha uma vida ativa, não bebia, não fumava e não tinha antecedentes de problemas cardíacos e com base na idade teria uma aterosclerose típica, e na declaração da entidade patronal do sinistrado, da qual resulta que o mesmo havia percorrido, nos dois últimos dias de vida, uma média diária de 740 Km.
cc) Por sua vez, a testemunha GG, a quem a Mma. Juiz do Tribunal A quo decidiu atribuir “uma maior credibilidade”, não conhecia o sinistrado, não teve qualquer contacto com os familiares do mesmo, desconhecia o histórico clínico do sinistrado e baseou o seu relatório/parecer e depoimento prestado em tribunal na premissa, errada, de que o sinistrado apenas havia percorrido cerca de 431 quilómetros diários.
dd) Das declarações prestadas pela testemunha HH, médico com a especialidade de medicina familiar, resulta que o mesmo consultou o processo clínico do sinistrado, confirmando que não existem registos de quaisquer patologias crónicas que demonstrem problemas relacionados com o foro cardíaco e que os resultados dos exames de Tas (138 e 179), são valores normais e a frequência cardíaca de 78, está dentro dos parâmetros normais.
ee) Mais declarou que o stress é um fator desencadeante e que alguma situação de excesso de trabalho pode dar origem a um enfarte, confirmando que as placas de ateroma são também compostas por linfócitos (glóbulos brancos), sendo que o stress dá origem a uma alteração celular e a um aumento de glóbulos brancos,
ff) No que diz respeito às declarações da testemunha II, médico com a especialidade de Medicina do Trabalho, a Mma. Juiz não atendeu ao facto de o mesmo ter confirmado que o exame que fizera ao sinistrado não fora em jejum, incidindo em sangue capilar, e que a glicémia poderia estar inflacionada devido a uma refeição com mais ou menos hidratos de carbono,
gg) Salientando ainda esta testemunha que, em autópsias realizadas em crianças de 12 anos, já foram detetados bolsas que iriam dar origem a placas de ateroma.
hh) Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 10º da Lei 98/2009 de 4 de Setembro, “A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho.”
ii) O facto de o sinistro em causa ter ocorrido dentro da viatura conduzida pelo sinistrado, não afasta que tal lesão se considere como ocorrida no local e tempo de trabalho,
jj) Uma vez que a paragem da viatura no local e data dos factos consubstancia um período de “descanso forçado”, estando o sinistrado, naquele momento e local, sujeito ao controlo e direção da entidade empregadora, logo é de considerar que o sinistro ocorreu no local e tempo de trabalho,
kk) No que diz respeito à qualificação do evento como acidente de trabalho, parece-nos que também não existem dúvidas, uma vez que o sinistrado não padecia de qualquer patologia ou doença que fizesse prever o resultado verificado,
ll) E fora sujeito, nos dois últimos dias que antecederem o seu óbito, a um esforço físico elevado, devido a ter percorrido, com a viatura por si conduzida (veículo pesado de mercadorias), carregada, mais de setecentos e quarenta quilómetros diários,
mm) Por vias muito acidentadas, nomeadamente na ... e na ... a ..., com neve nos percursos situados acima dos 1200 metros, chuva e vento forte, estando cansado, fatigado, em stress e com a pressão de ter de cumprir os prazos de carga e descarga, tudo aliado ao esforço físico acrescido na condução, devido ao mau tempo que se fazia sentir.
nn) Não obstante o acima exposto, mesmo considerando que os motoristas de transportes de veículos pesados de mercadorias estão sujeitos a stress diário e a fadiga, tal facto não justifica que o sinistro em causa não fosse de qualificar como acidente de trabalho.
oo) A título de exemplo veja-se o caso dos jogadores de futebol, que são sujeitos, no exercício da sua profissão, a um constante esforço físico, e o facto de existir esta “normalidade” de esforço físico na profissão de futebolista não determina que não seja de qualificar como acidente de trabalho o óbito de um futebolista durante a sua atividade,
pp) Tal como sucedeu no famoso caso do futebolista JJ, jogador do ..., que veio a falecer durante um jogo e, apesar de ter sido posteriormente identificado que o mesmo já sofria de uma doença genética que fora a causa do seu óbito,
qq) Entenderem, e bem, os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, que a relação de trabalho acabou por ser determinante no resultado verificado, isto é, a morte do sinistrado, vide sumário do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 10.11.2010, no âmbito do processo 383/04.3TTGMR.L1-4, que pode ser visualizado in www.dgsi.pt.
rr) Mesmo que se entendesse que o sinistrado já se encontrava fatigado, em stress e que os eventos a que o mesmo fora sujeito nos seus últimos dias de vida são uma consequência da sua profissão,
ss) Certo é que também ficou demonstrado e provado que o sinistrado fora, de facto, sujeito a um stress acrescido face ao percurso percorrido e ao tempo que se fazia sentir.
tt) Face ao acima exposto e sem prejuízo de outro entendimento, duvidas não nos assistem em como o óbito do sinistrado deverá ser qualificado como acidente de trabalho,
uu) Devendo a sentença recorrida ser revogada e substituída de forma a considerar o sinistro em causa como acidente de trabalho e a declarar procedente, por provado, a ação instaurada pelas aqui Recorrentes e condenar a Ré Seguradora nos pedidos formulados.».
-
Contra-alegou a demandada seguradora, propugnado pela improcedência do recurso.
-
A 1.ª instância admitiu o recurso como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
-
Tendo o processo subido à Relação, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho.
A digníssima procuradora-geral adjunta emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso.
As partes responderam ao parecer.
O recurso foi mantido e, depois de elaborado o projeto de acórdão, foram colhidos os vistos legais.
Cumpre, em conferência, decidir.
*
II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso podem ser assim elencadas:
1.ª Impugnação da decisão fáctica.
2.ª Ocorrência de um acidente de trabalho.
*
III. Matéria de facto
A 1.ª instância julgou como provados os seguintes factos:
1. No dia ../../2019, o sinistrado DD, prestava o seu trabalho de motorista de pesados de transporte internacionais de mercadorias, por conta e ordens da A..., Lda., o que o fazia na região de ..., ....
2. No mesmo dia, pelas 16h55m, enquanto efetuava um transporte de mercadorias por ordens expressas da A..., Lda., o sinistrado, a fim de cumprir as pausas obrigatórias, estacionou o veículo que conduzia na área de Serviço ..., ..., ....
3. No dia ../../2019, pelas 9h00, data e hora previstas para a retoma da viagem, o sinistrado não o fez, continuando a viatura por si conduzida estacionada na mesma área de serviço.
4. Perante a ausência de contacto e paralisação da viatura, foi solicitada a intervenção das Autoridades ..., as quais dirigiram-se ao local acima identificado e depararam-se com o ora sinistrado/trabalhador já em estado de cadáver.
5. Em .../.../2019 foi realizada autópsia ao sinistrado no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses de ..., constando do respetivo relatório as seguintes conclusões:
a) Que a morte do Sinistrado “reconhece” uma etiologia médico-legal natural;
b) Que a causa da morte é uma arritmia cardíaca por cardiopatia isquémica;
c) Que a data da morte se pode estabelecer entre 24 e 36 horas anteriores ao momento da realização da diligência de levantamento e inspeção ocular, que ocorreu na 1.ª hora do dia .../.../2019.
6. Em ../../2019 a A..., Lda. tinha a sua responsabilidade de reparação de acidentes de trabalho transferida para a ré Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., mediante contrato de seguro de acidente de trabalho, com a apólice nº ...43.
7. Como contrapartida do seu trabalho, o sinistrado auferia uma remuneração ilíquida de € 630,00 x 14 meses por ano de salário base, acrescida da quantia de € 1 814,50 x 1m/ano, correspondente a “ajudas de custo”; da quantia de € 478,93 x 1m/ano, correspondente a “outras remunerações” e da quantia de € 1372,98 x 1m/ano, no total de € 12 485,51 por ano. O sinistrado faleceu no estado de casado com a Autora AA.
8. Da constância do matrimonio nasceram, em ../../1997, CC e, em ../../2008, BB.
9. O sinistrado nasceu no dia ../../1967.
10. O sinistrado era beneficiário da Segurança Social com o número ...46.
11. O Centro Nacional de Pensões/Instituto de Segurança Social, IP pagou à autora AA a quantia de € 1.307,28 a título de despesas de funeral do sinistrado.
12. Na sequência da morte do sinistrado, o Centro Nacional de Pensões/Instituto de Segurança Social, IP atribuiu à autora AA uma pensão de sobrevivência no valor mensal de € 436,43.
13. Na sequência da morte do sinistrado, o Centro Nacional de Pensões/Instituto de Segurança Social, IP atribuiu uma pensão de sobrevivência às filhas CC e BB no valor mensal de € 116,69 a cada uma.
14. O Centro Nacional de Pensões/Instituto de Segurança Social, IP pagou à autora AA a quantia total de € 13.704,80, a título de pensão de sobrevivência, no período de .../2020 a .../2022.
15. O Centro Nacional de Pensões/Instituto de Segurança Social, IP pagou às autoras CC e BB a quantia total de € 3.561,60, a cada uma, a título de pensão de sobrevivência, no período de .../2020 a .../2022.
16. Entre os dias ../../2019 a .../.../2019 (dia em que ocorreu o óbito), num total de 20 dias, o sinistrado conduziu a viatura pesada de mercadorias onde fora encontrado já sem vida, sempre ao serviço e direção da segunda Ré, num total de 8.624 Km.
17. Nesse intervalo de dias, o sinistrado gozou de dois dias seguidos de descanso (... e .../.../2019) e um dia de descanso interpolado (.../.../2019).
18. Nos quatro dias que antecederam o óbito, o sinistrado, conduzindo a viatura, percorreu 1.991 km.
19. CC, à data do óbito do sinistrado e posteriormente (até ao dia ../../2023), encontrava-se a estudar na Universidade ..., matriculada no curso de ..., especialidade em ..., com o número de estudante ...38.
20. CC fazia parte do agregado familiar do sinistrado e dependia financeiramente do mesmo.
21. AA deslocou-se ao Juízo do Trabalho ... no dia .../.../2021.
22. CC deslocou-se ao Juízo do Trabalho ... no dia .../.../2021.
-
E julgou como não provados os seguintes factos:
a. Que nos quatro dias que antecederam o óbito, o sinistrado conduziu a viatura em causa com condições meteorológicas adversas, nomeadamente com neve, chuva, nevoeiro.
b. Que o sinistrado, nesse período de tempo, tenha conduzido sempre com a preocupação acrescida de não conseguir cumprir com os horários e datas de cargas e descargas escaladas pela segunda Ré, sujeito a uma carga de stress acrescido e com um desgaste e fadiga física acima da média.
c. Que o sinistrado não padecia de qualquer patologia ou condição que fizessem antever o resultado verificado.
d. Que AA pagou a título de despesas de Funeral (com transladação) o montante de € 3.834,69.
e. Que AA, quando se deslocou ao Juízo do Trabalho ... no dia .../.../2021, despendeu a quantia de € 30,00.
f. Que CC, quando se deslocou ao Juízo do Trabalho ... no dia .../.../2021, despendeu a quantia de € 30,00.
*
IV. Impugnação da decisão fáctica
As recorrentes impugnaram a decisão fáctica proferida relativamente às alíneas a), b) e c) do conjunto dos factos não provados.
Entendem que a materialidade descrita nestas alíneas deve considerar-se provada, em virtude dos meios probatórios que convocam.
Também pretendem que seja aditada factualidade ao elenco dos factos provados.
Foi observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Assim sendo, nada obsta ao conhecimento da impugnação.
Analisemos então.
As alíneas do conjunto dos factos não provados visadas pela impugnação têm o seguinte teor:
a. Que nos quatro dias que antecederam o óbito, o sinistrado conduziu a viatura em causa com condições meteorológicas adversas, nomeadamente com neve, chuva, nevoeiro.
b. Que o sinistrado, nesse período de tempo, tenha conduzido sempre com a preocupação acrescida de não conseguir cumprir com os horários e datas de cargas e descargas escaladas pela segunda Ré, sujeito a uma carga de stress acrescido e com um desgaste e fadiga física acima da média.
c. Que o sinistrado não padecia de qualquer patologia ou condição que fizessem antever o resultado verificado.
No segmento da sentença recorrida respeitante à motivação da convicção, escreveu-se o seguinte:
«A factualidade não provada elencada sob os pontos «a.» a «f.» resultou da falta de prova bastante que nos levasse a concluir de modo diferente.
Com efeito, quanto ao facto elencado no ponto «a.», tendo sido junta informação emitida pela Agência ... acerca das condições climatéricas que se faziam sentir nos quatro dias que antecederam o óbito do sinistrado, da mesma resulta que não foram emitidos avisos por fenómenos meteorológicos adversos nos dias em causa, que não foram detetadas descargas elétricas nem relâmpagos e que a visibilidade quando baixa ocorreu por períodos breves, não tendo sido registados aguaceiros de relevo, muito menos queda de neve. Ou seja, as condições atmosféricas que se fizeram sentir nos quatro dias que antecederam o óbito do sinistrado não eram adversas, nem anormais face à estação de inverno vivenciada à data. Daí que, tendo em conta o sentido com que tal facto foi articulado na petição inicial, o Tribunal deu-o por não provado.
Quanto ao facto elencado no ponto «b.» qualquer prova foi produzida que nos levasse a concluir que o sinistrado, nos dias que antecederam o seu óbito, estivesse sob uma condição de stress acrescido, de preocupação acrescida de não conseguir cumprir com os horários e datas de cargas e descargas escaladas pela sua entidade empregadora, padecendo de um desgaste e fadiga física acima da média. Com efeito, a este respeito, apenas a beneficiária, filha do sinistrado, CC, declarou que no dia .../.../2019 falou com o seu pai pelo telefone e que ele comentou sentir-se cansado, que o tempo estava chuvoso e húmido, o que requeria mais atenção na condução, que não dormia bem, preocupado com a segurança da mercadoria que transportava e com os prazos que tinha para cumprir a entrega da mercadoria que transportava. Sucede que, de acordo com o depoimento colaborante e crível prestado pela testemunha EE, gerente de uma empresa de transportes e também ele motorista de pesados, foram relatadas as dificuldades inerentes à profissão de motorista de pesados: responsabilidade pela mercadoria transportada; prazos de entrega a cumprir; pausas e descansos obrigatórios a cumprir; privação e falta de qualidade do sono; falta de segurança quando os motoristas dormem nas viaturas, descrevendo ainda a profissão de motorista como sendo desgastante, quer a nível físico, quer emocionalmente.
Ora, as queixas relatadas pelo sinistrado à sua filha, na véspera do seu infortúnio, são queixas comuns a todos os motoristas e que já eram notadas pelo próprio em momentos anteriores aos dias que antecederam o infortúnio. Com efeito, KK, amiga das beneficiárias e do sinistrado, depondo com espontaneidade e simplicidade, referiu que costumava conviver com o sinistrado aos fins de semana, momentos em que ele já se queixava de cansaço e de stress. Ora, o estado de cansaço e de stress partilhado pelo sinistrado à sua filha na véspera do seu óbito não era um estado anormal diante as dificuldades que a profissão de motorista evidencia. A par, a circunstância evidenciada de, nos últimos quatro dias que antecederam o seu óbito, o sinistrado ter conduzido 1991 km, também não se extrai que tenha feito um percurso anormalmente longo e desgastante, sobretudo, sem o respeito pelos tempos de pausa e de descanso, que são obrigatórios precisamente para acautelar o descanso e a segurança dos motoristas. Não foi feita prova, por exemplo, que a entidade empregadora do sinistrado, para quem desempenhava as suas funções no contexto espácio-temporal em que se deu o infortúnio, tenha obrigado/exigido que o sinistrado não cumprisse os tempos de pausa e de descanso para cumprir os prazos de entrega da mercadoria que transportava e que este não os tivesse efetivamente cumprido, quedando-se, assim, numa situação de risco acrescido para a sua segurança e saúde. Pelo que, diante a prova produzida, não se evidenciou que o sinistrado, nos dias que antecederam o seu óbito, estivesse sob uma condição de stress acrescido, de preocupação acrescida de não conseguir cumprir com os horários e datas de cargas e descargas escaladas pela sua entidade empregadora, padecendo de um desgaste e fadiga física acima da média.
Quanto ao facto elencado no ponto «c.», não se fez prova que o sinistrado, à data do seu óbito, não padecesse de qualquer patologia ou condição que fizessem antever o resultado verificado. Destarte, a prova produzida a respeito não teve a virtualidade de evidenciar que assim fosse, quando, ademais, do relatório da autópsia resulta que o sinistrado evidenciava uma cardiopatia isquémica que provocou a arritmia cardíaca, tendo esta sido a causa do seu óbito. O deposto pelo seu médico de família, HH, no confronto com a declaração médica por si subscrita junta como documento 04 à petição inicial, não foi bastante para se concluir que o sinistrado, à data do seu óbito, não padecia de qualquer patologia ou condição que permitisse antever o resultado verificado, quando, segundo o deposto por esta testemunha, o sinistrado nunca foi por si observado, quando já desempenhava funções de médico de família no Centro de Saúde ... desde ../../2020; ou seja, desde pelo menos ../../2020 que o sinistrado não era observado pelo seu médico de família, desconhecendo-se, por conseguinte, se, pelo menos, desde então e até à data do seu óbito, o sinistrado não contraiu qualquer patologia que tivesse conduzido à cardiopatia isquémica constatada, como por exemplo níveis de colesterol altos e não controlados. Por outro lado, desconhece-se se o sinistrado, quando foi observado pelo seu médico de família ou outro médico tivesse sido submetido a exames médicos próprios para diagnosticar designadamente a patologia cardiopatia isquémica constatada no sinistrado à data do óbito. Repare-se que a testemunha LL, médico com especialidade em medicina do trabalho, de forma escorreita e espontânea, lembrou que consultou o sinistrado no dia .../.../2019, no âmbito de uma consulta de medicina do trabalho aquando da sua admissão para a sua última entidade empregadora e que as análises feitas, pese embora não realizadas em jejum, revelaram um nível de colesterol alto, tendo-o aconselhando-o a repetir as análises em jejum e, à cautela, ter hábitos saudáveis na alimentação e com a prática de exercício físico. Pelo que, mostra-se possível que o sinistrado, já em .../.../2019, tivesse o colesterol alto associado à cardiopatia isquémica observada aquando o seu óbito. A respeito da associação da cardiopatia isquémica com o colesterol alto, o Tribunal atendeu ao depoimento da testemunha GG, professor catedrático na Faculdade de Direito da Universidade ... e médico com especialidade em medicina do trabalho e avaliação de dano corporal. Esta testemunha, autora do parecer técnico junto pela Ré Seguradora, de forma muito segura e sabedora, reiterou o aí vertido e explicou que, em teoria, o stress pode causar/influenciar um enfarte, mas, no caso, para sustentar a tese das Autoras, relevaria evidenciar o nexo de causalidade entre o stress e a profissão de motorista de pesados desempenhada pelo sinistrado, para o que seria necessário ter ocorrido uma situação excecional, anormal face à rotina diária do sinistrado, geradora de um estado de stress acrescido, em nível elevado tal, que causasse, um enfarte, o que o caso em apreço não evidencia. Pelo contrário, diante o relatório de autópsia realizado, concluiu-se que o sinistrado tinha uma patologia prévia, normalmente insidiosa, sem sintomas evidentes, que causou uma cardiopatia isquémica (obstrução coronária causada por níveis de colesterol altos provocados por falta de hábitos saudáveis e não pelo stress), tendo esta, por seu turno, causado a arritmia cardíaca que culminou na morte do sinistrado. Concluiu, reconhecendo que os motoristas de veículos pesados sofrem de stress, tal como muitos outros profissionais, mas que tal não constituiu, por si, causa para a morte, mas apenas com efeitos no bem-estar psicológico dos profissionais, designadamente quando esse stress não é particularmente violento, intenso, como de resto os autos não evidenciam. De referir ainda que, do depoimento prestado pela testemunha FF, médico com especialidade em ortopedia a pós-graduado em avaliação de dano corporal, autor do relatório médico junto pelas Autoras à petição inicial como documento 03, não teve a virtualidade de infirmar a resposta negativa que o Tribunal deu a tal facto, porquanto, para além de o depoimento prestado pela testemunha GG ter conferido maior segurança sobre a factualidade em causa, face ao seu notório saber/conhecimento sobre estas matérias, o relatório médico elaborado por esta testemunha partiu da declaração médico de família do sinistrado, da qual, como vimos, não é possível descartar a existência de uma qualquer patologia prévia, designadamente aquela que se observou no relatório de autopsia e que a testemunha desconsiderou, afirmando apenas que o stress causado pela atividade profissional desempenhada pelo sinistrado foi a causa da sua morte, quando para tal teria sido necessário que tivesse ocorrido uma situação anormal, intensa e violenta, o que, no caso, não se evidenciou nos termos que já deixamos expressos a respeito da resposta negativa dada aos factos elencados sob os pontos «a.» e «b.».
Inquiriu-se ainda a testemunha MM, colaborador da Ré Seguradora na gestão dos processos de acidentes de trabalho desde 1982, que referiu apenas, com conhecimento direto sobre os factos sobre os quais depôs, que realizada a averiguação sobre o sinistro em causa nos autos, face ao teor do relatório de autópsia realizado ao corpo do sinistrado, do qual resulta que este faleceu de causa natural, enfarte miocárdio, num período de descanso, e não por causa externa, a seguradora declinou a sua responsabilidade.».
Ouvimos, na íntegra, a gravação da prova produzida em julgamento e analisámos a documentação junta ao processo.
Após ponderação, eis o que nos oferece referir.
No que respeita à materialidade relatada na alínea a), desde já se adianta que, no nosso entender, não existe suporte probatório suficientemente consistente para que se considere tal factualidade provada.
Vejamos.
A autora CC, no âmbito das declarações de parte que prestou, afirmou que conversou ao telefone com o sinistrado no dia .../.../2019, e que este lhe contou que o tempo estava muito chuvoso e muito húmido, o que o obrigava a conduzir com mais calma e muita atenção.
Tratando-se de declarações prestadas por uma das partes interessada no processo, as mesmas devem ser analisadas com especial rigor e exigência, embora nada impeça que sejam consideradas para provar factos que lhe são favoráveis, quando corroboradas por qualquer outro elemento de prova, isento e credível – cf. Acórdão desta Secção Social de 23-04-2024 (proc. n.º 2323/22.9T8STR.E1), acessível em www.dgsi.pt.
Ora, relativamente ao depoimento prestado pela testemunha EE, que foi convocado pelas recorrentes, o que se constatou é que esta testemunha nada sabia sobre a factualidade impugnada. A testemunha limitou-se a afirmar (genericamente) que no Inverno era habitual nevar na ..., possível percurso assumido pelo sinistrado, mas em concreto não revelou saber se nos 4 dias que antecederam o óbito do sinistrado tinha nevado naquele local ou em qualquer outro local por onde o sinistrado tenha conduzido (aliás, nem sabia que concreto percurso rodoviário o sinistrado tinha feito).
Quanto à informação sobre a meteorologia prestada pela “Agência ...” espanhola, a mesma é restrita à região de ..., e em particular a ..., e retira-se da mesma que entre os dias ... e .../.../2019 não foram emitidos avisos por fenómenos meteorológicos adversos. No que respeita à precipitação apenas foram registadas precipitações apreciáveis no dia ... (dia em que o sinistrado não conduziu). Quanto aos dias ..., ... e ..., o quadro constante do anexo do documento (“...”) assinala “zero” precipitação.
No que respeita à visibilidade, infere-se do dito documento que no dia ... foi inferior a 1 Km entre as 20h e as 20h30, e no resto do dia, por períodos breves, foi inferior a 3Km. Já nos dias ..., ... e ..., a visibilidade em ... foi, pelo menos, de 5 Km.
Aliás, nas previsões meteorológicas que constam do anexo do documento, refere-se que nos dias ... e ... (altura em que o sinistrado presumivelmente estaria a conduzir mais perto da região de ...), a previsão era de céu pouco enevoado.
Por fim, quanto à neve, o que ressalta do documento é que não nevou nos dias que são objeto de apreciação e que a cota de neve, de acordo com as previsões, desceria de 1400 metros para 1200, entre os dias ... e ....
Ponderando e em síntese, o testemunho de EE foi absolutamente irrelevante face ao desconhecimento manifestado sobre a factualidade descrita na alínea a) dos factos não provados. Em relação à informação meteorológica prestada por entidade espanhola competente, não só a mesma é restrita a uma determinada zona (e de acordo com os quilómetros efetuados pelo sinistrado – cf. ponto 18 dos factos assentes – o mesmo não terá estado nos 4 dias que antecederam o seu óbito sempre nessa zona), como não se extrai do teor do documento que o sinistrado tenha conduzido sob condições meteorológicas adversas, nomeadamente com neve, chuva e nevoeiro.
Em suma, o relatado pela autora CC, não foi corroborado ou complementado por outra prova isenta e credível.
Nesta conformidade, afigura-se-nos que não existe suporte probatório consistente para julgar provada a factualidade descrita na alínea a) dos factos não provados.
Improcede, nesta parte, a impugnação.
Avancemos…
Terá resultado demonstrado que o sinistrado, nesse período de tempo (4 dias que antecederam o óbito), conduziu sempre com a preocupação acrescida de não conseguir cumprir com os horários e datas de cargas e descargas escaladas pela empregadora, sujeito a uma carga de stress acrescido e com um desgaste e fadiga física acima da média?
A declarante CC referiu que o sinistrado sentia sempre muita pressão com o ter de cumprir os horários das cargas e descargas e de ter de conjugar tais horários com os tempos de condução e de descanso. O sinistrado já lhe tinha dito, imensas vezes, que se sentia cansado.
Ora, é evidente que as declarações prestadas não foram circunscritas aos 4 dias que antecederam o óbito do sinistrado, mas pode-se considerar que também integraram esses 4 dias.
Vejamos então se o declarado pela autora foi corroborado por prova isenta e credível.
O perito NN, que elaborou o relatório médico apresentado como documento n.º 3 junto com a petição inicial, nunca conheceu o sinistrado e só ouviu falar do mesmo por via de uma consulta feita pela autora AA (viúva do sinistrado), que lhe pediu que elaborasse um relatório médico.
O que se depreendeu das declarações que prestou foi que se limitou a fazer suposições fundamentadas nos elementos de pesquisa que recolheu respeitante à profissão de motorista TIR.
Mas, em concreto, não revelou conhecimento direto da factualidade impugnada.
A testemunha KK, amiga das autoras e do falecido, também não demonstrou qualquer conhecimento sobre a factualidade em causa. Apenas referiu que, por vezes, no fim de semana, quando estavam no café juntos, o sinistrado dizia que se ia deitar para descansar um pouco.
A testemunha EE, gerente de uma empresa de transportes rodoviários internacionais e que já exerceu funções como motorista TIR, mencionou generalidades sobre a profissão, referindo o stress normal que é inerente ao cumprimento dos regulamentos de condução e da pressão do tempo para a entrega das mercadorias.
Digamos que fez uma referência global e coincidente com a perceção que, mais ou menos, todos temos do stress inerente à profissão de motorista TIR.
Contudo, em relação à concreta situação vivenciada pelo sinistrado, a testemunha nada revelou saber.
A testemunha OO, ex-trabalhador da seguradora Fidelidade e que continua a colaborar com a mesma na gestão de processos de acidente de trabalho, também não revelou conhecimento da materialidade que se analisa.
A testemunha GG, que elaborou o relatório de “opinião medico-legal” apresentado pela seguradora, denotou o mesmo desconhecimento.
As testemunhas HH e II, ambos médicos, mantiveram-se no mesmo registo de desconhecimento da factualidade que se aprecia.
Acresce que inexiste prova documental da qual seja possível inferir a verificação da factualidade em causa. Os mapas de viagem apresentados e a declaração da empregadora quanto ao número de quilómetros efetuados pelo sinistrado são insuficientes para concluir pela verossimilidade do facto.
Enfim, mais uma vez não foi apresentada prova que corroborasse o declarado pela autora CC.
E perante a ausência de suporte probatório firme que permitisse concluir pela elevadíssima probabilidade de a factualidade em causa ter ocorrido, bem andou o tribunal a quo ao decidir pela inclusão no conjunto dos factos não provados da materialidade narrada na alínea b).
Concluindo, também nesta parte, improcede a impugnação da decisão fáctica.
Importa agora analisar se foi feita prova de que o sinistrado não padecia de qualquer patologia ou condição que fizesse antever o resultado verificado – alínea c) dos factos não provados.
A declarante CC afirmou que o pai (o sinistrado), com exceção de alguma gripe, nunca apresentou nenhum problema grave de saúde.
A amiga da família, a testemunha KK, que conhecia o sinistrado há cerca de 9/10 anos, mencionou que o mesmo era uma pessoa com um aspeto saudável e que não se queixava de problemas de saúde.
As testemunhas EE e PP não revelaram conhecimento do facto impugnado.
A testemunha HH, referiu que consultou, com vista à emissão da declaração que constitui o documento n.º 4 junto com a petição inicial, o processo clínico do sinistrado e que não havia registo de qualquer patologia médica ou da toma de medicação crónica.
A testemunha II, que consultou o sinistrado em 26-08-2019, no âmbito da medicina do trabalho e para emissão de ficha de aptidão quando o mesmo foi admitido na empregadora, referiu que o sinistrado não mencionou ter qualquer patologia, porém, as análises realizadas na altura revelaram um nível de colesterol alto, pelo que aconselhou a sua repetição em jejum e, cautelosamente, aconselhou a adoção de uma alimentação saudável e a prática de exercício físico.
No relatório da autópsia feita ao sinistrado consta que nos vasos coronários (artéria descendente anterior esquerda) existiam placas ateromatosas importantes.
Os autores dos relatórios médicos juntos, o perito FF e a testemunha GG, explicaram em que consistiam tais placas.
O primeiro, médico ortopedista reformado e detentor de pós-graduação em dano corporal, acabou por admitir que o sinistrado provavelmente teria aterosclerose, embora tenha minimizado a situação referindo que provavelmente não seria uma aterosclerose para além do que qualquer pessoa com a idade do sinistrado tem.
Já a testemunha GG, professor catedrático na Faculdade ..., médico, com especialidade em Medicina Legal, Medicina do Trabalho e com competências na avaliação do dano e peritagem médica, foi extremamente assertiva ao declarar que as placas detetadas revelam que o sinistrado tinha aterosclerose e que essa não é uma patologia que surja de um momento para o outro ou que surja em virtude de um pico elevado e intenso de stress.
Mais explicou que a aterosclerose coronária consiste numa acumulação de colesterol nas artérias coronárias e que o colesterol tem a ver com errados hábitos de vida e não com o stress profissional. Aliás, destacou a testemunha, que a aterosclerose demora anos a instalar-se e é insidiosa e que os exames normais de rotina ao coração não a detetam.
Concluiu, que o sinistrado sofria de uma patologia que originou a sua morte natural.
Ora, refletindo sobre todos estes meios probatórios e tendo em consideração a causa de morte anotada no relatório de autópsia – cf. ponto 5 dos factos assentes – não resulta dos mesmos que se verifique uma elevadíssima probabilidade de o sinistrado não padecer de qualquer patologia ou condição que tivesse originado a sua morte.
Por isso mesmo, sufragamos a decisão do tribunal a quo de ter considerado que a factualidade descrita na alínea c) não foi demonstrada.
Improcede, assim, também nesta parte, a impugnação.
Por último, reclamam as recorrentes que seja aditada ao elenco dos factos provados, a seguinte factualidade:
«Que em ../../2019, o sinistrado iniciou a sua viagem em ..., ...;
Local onde carregou a viatura que conduzida, com a matrícula ..-RQ-.., cujo peso da mercadoria transportada cifrava-se em 16068 KG.
Que entre os dias ... e ../../2019, percorreu mais de 1480 Km,
Perfazendo uma média de 740 quilómetros diários percorridos entre os dias ... e o dia ... de ... de 2019,
Que tal média de quilómetros não é habitual e que o sinistrado deveria estar sujeito a pressão e a stress para proceder à descarga da mercadoria ou com atraso,
E que durante o percurso apanhou alguns sustos na estrada.».
Sucede que esta factualidade não foi alegada nos articulados.
É certo que o artigo 72.º do Código de Processo do Trabalho confere poderes inquisitórios ao juiz laboral, ou seja, a lei atribui-lhe o poder-dever de diligenciar pelo apuramento da verdade material podendo, para o efeito, atender aos factos essenciais ou instrumentais que resultem da discussão da causa, mesmo que não tenham sido articulados e desde que tais factos não impliquem uma nova causa de pedir, nem a alteração ou ampliação da causa ou causas de pedir iniciais – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-02-2008 (proc. n.º 07S2898), consultável em www.dgsi.pt.
Todavia, os poderes conferidos pelo aludido artigo são exclusivos do julgamento em 1.ª instância, não competindo à Relação ampliar o elenco dos factos provados com outros, que não tendo sido alegados, adquira por força da reapreciação da prova, nem pode ordenar à 1.º instância que o faça, na medida em que o poder de reenviar o processo à 1.ª instância para ampliação da matéria de facto está reservado para as situações em que os factos foram alegados – cf. Hermínia Oliveira e Susana Silveira no “VI Colóquio sobre Direito do Trabalho”, realizado no Supremo Tribunal de Justiça em 22/10/2014, in “Colóquios”, disponível em www.stj.pt, e, também, acórdãos da Relação de Évora de 31-10-2018 (proc. n.º 2216/15.6T8PTM.E1) e de 26-04-2018 (proc. n.º 491/17.0T8EVR.E1), publicados em www.dgs.pt.
Em face do exposto, inexiste fundamento para aditar a materialidade não alegada que se reclama.
Concluindo, a impugnação da decisão fáctica improcede na totalidade.
*
V. Da alegada ocorrência de um acidente de trabalho
Com base na visada alteração da matéria de facto, concluíram as recorrentes que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra em que se considere que a morte do sinistrado é qualificável como acidente de trabalho, condenando-se a seguradora nos pedidos formulados.
Ora, estando o invocado dependente da procedência da impugnação da decisão fáctica, que não se verificou, a pretensão deduzida não pode ser reconhecida pela via reclamada.
E também não pode ser reconhecida com apoio nos factos provados.
Passamos a explicar porquê.
Estatui o artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (doravante LAT) que é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Assim, o conceito de acidente de trabalho é delimitado por três elementos cumulativos: um espacial – o local de trabalho – outro temporal - o tempo de trabalho – e, por último, um causal – o nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença.
Recorrendo às palavras de Victor Ribeiro, in Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, Rei dos Livros, 1984, pág. 219 e seguintes: «acidente de trabalho é pois uma cadeia de factos em que cada um dos respetivos elos estejam entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem que resultar da relação de trabalho; como a lesão, perturbação ou doença, terão que resultar daquele evento; e, finalmente, a morte ou incapacidade para o trabalho deverão filiar-se causalmente na lesão, perturbação ou doença».
De acordo com a regra geral prevista no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, cabe ao trabalhador, ou ao beneficiário legal, a prova dos elementos que integram o conceito de acidente de trabalho.
Importa ainda destacar o artigo 10.º, n.º 1, da LAT que prescreve que a lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior - o artigo 9.º da LAT diz respeito à extensão do conceito de acidente de trabalho – presume-se consequência de acidente de trabalho.
Resulta deste artigo que a presunção iuris tantum estabelecida é uma presunção de nexo de causalidade, pelo que o sinistrado, ou o beneficiário legal, não fica isento de provar o próprio evento causador das lesões – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-06-2017 (proc. n.º 919/11.3TTCBR-A.C1.S1); Acórdão da Relação de Évora de 11-07-2013 (proc. n.º 159/10.9TTEVR.E1); e Acórdão da Relação do Porto de 30-05-2018 (proc. n.º 1718/16.1T8TMTS.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.
Por último, importa salientar o disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LAT que estipula que a predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada.
Todavia, infere-se deste preceito legal que a predisposição patológica não exclui o direito à reparação desde que se tenha verificado um acidente de trabalho.
Dito de outro modo, a caracterização da situação como acidente de trabalho é um pressuposto deste artigo.
Exposto, assim, o quadro legal essencial, foquemos agora a nossa atenção nos factos.
E, no vertente caso, com arrimo nos factos assentes, apurou-se o seguinte:
- DD (sinistrado) em ../../2019 prestava o seu trabalho de motorista de pesados de transporte internacional de mercadorias, por conta e ordem da empresa A..., Lda., que tinha a sua responsabilidade de reparação de acidentes de trabalho transferida para a seguradora demandada.
- Nesse dia, o sinistrado prestou o seu trabalho na região de ..., ....
- Pelas 16h55m, enquanto efetuava um transporte de mercadorias por ordens expressas da empregadora, o sinistrado, a fim de cumprir as pausas obrigatórias, estacionou o veículo que conduzia na área de Serviço ..., ..., ....
- No dia seguinte, pelas 9h00, data e hora previstas para a retoma da viagem, o sinistrado não o fez, continuando a viatura por si conduzida estacionada na mesma área de serviço.
- Perante a ausência de contacto e paralisação da viatura, foi solicitada a intervenção das Autoridades ..., as quais dirigiram-se ao local acima identificado e depararam-se com o sinistrado já em estado de cadáver.
- Em ... de ... foi realizada autópsia ao sinistrado no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses de ..., constando do respetivo relatório as seguintes conclusões:
a) Que a morte do sinistrado “reconhece” uma etiologia médico-legal natural;
b) Que a causa da morte é uma arritmia cardíaca por cardiopatia isquémica;
c) Que a data da morte se pode estabelecer entre 24 e 36 horas anteriores ao momento da realização da diligência de levantamento e inspeção ocular, que ocorreu na 1.ª hora do dia .../.../2019.
- Entre os dias ../../.... e ../../2019 (dia em que ocorreu o óbito), num total de 20 dias, o sinistrado conduziu a viatura pesada de mercadorias onde fora encontrado já sem vida, sempre ao serviço e direção da empregadora, num total de 8.624 Km.
- Nesse intervalo de dias, gozou de dois dias seguidos de descanso (... e ... de ...) e de um dia de descanso interpolado (... de ...).
- Nos quatro dias que antecederam o óbito, o sinistrado, conduzindo a viatura, percorreu 1.991 km.
Da factualidade descrita resulta que o sinistrado faleceu devido a uma arritmia cardíaca por cardiopatia isquémica, tendo o relatório da autópsia “reconhecido” uma etiologia médico-legal natural.
O sinistrado foi encontrado morto na 1.ª hora do dia .../.../2019, dentro da viatura por si conduzida, que se encontrava estacionada desde as 16h55m do dia ... de ..., na área de Serviço ..., ..., ..., onde o sinistrado tinha parado para cumprir as pausas obrigatórias.
Não resultou demonstrado que tenha ocorrido qualquer evento súbito, de natureza exógena ao sinistrado, antes da sua morte, nomeadamente que o mesmo tenha sido sujeito a um esforço físico elevado ou a stress intenso e violento.
Os quilómetros de condução realizados pelo sinistrado, por si só, não são suficientes para se extrair a verificação de um evento de natureza exógena ao sinistrado.
Enfim, o que se provou foi que a morte do sinistrado ocorreu por causa natural.
O presente caso lembra-nos um caso anteriormente decidido por esta Secção Social, que se encontra publicado na base de dados da dgsi, cujo acórdão já foi anteriormente mencionado (proc. n.º 159/10.9TTEVR.E1). Escreveu-se nesse aresto:
«Ora, tendo a morte do sinistrado ficado a dever-se a enfarte agudo do miocárdio, não é possível estabelecer qualquer nexo de causalidade entre a referida morte e o local ou tempo de trabalho.
Ou seja, verificando-se que morte do sinistrado teve origem apenas numa causa endógena (enfarte agudo do miocárdio), e não em qualquer fator que se prendesse com o local e tempo de trabalho (como resulta da análise dos depoimentos efetuada supra, o enfarte de miocárdio podia ocorrer a qualquer momento, independentemente do sinistrado se encontrar no local e no tempo de trabalho e a realizar trabalho/esforço) não é possível afirmar que a morte do trabalhador foi consequência de um acidente de trabalho indemnizável à luz da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.».
Finalizando, a arritmia cardíaca por cardiopatia isquémica sofrida pelo sinistrado não é caracterizável como acidente de trabalho, por não ter ficado demonstrado que tivesse ocorrido qualquer evento súbito, de natureza exógena ao trabalhador.
A falta de prova da ocorrência do evento impede a aplicação dos artigos 10.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, ambos da LAT.
Nesta sequência, resta-nos concluir pela improcedência do recurso quanto à segunda questão suscitada.
-
Concluindo, o recurso mostra-se totalmente improcedente.
As custas do recurso deverão ser suportadas pelas recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário que beneficiam – artigo 527.º do Código de Processo Civil.
*
VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelas recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido. Notifique.

Évora, 11 de julho de 2024
Paula do Paço
João Luís Nunes
Emília Ramos Costa
__________________________________________________
[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: João Luís Nunes; 2.ª Adjunta: Emília Ramos Costa