MATÉRIA DE FACTO
INSPECÇÃO JUDICIAL
CONFISSÃO JUDICIAL
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário


I- É incorrecta a utilização na decisão sobre a matéria de facto de afirmações genéricas, conclusivas (que são que a lógica ilacção de premissas) e que comportem matéria de direito.
II-O auto de inspecção judicial serve para as partes ficarem cientes daquilo que, na perspectiva do julgador, se pode constatar, ou não, no local inspecionado e a Assentada é a redução a escrito do depoimento de parte considerado confissão judicial.
III- Se nem a assentada nem o auto da inspeção não foram postos em causa assumem força probatória plena.
IV- O direito de preferência é afastado quando “um dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura”, mas uma vez que a lei civil não conhece o conceito de prédio misto, que é um “tertium genus” ( já que os prédios, devem sempre que possível ser considerados de harmonia com a sua parte principal e essa, a priori, ou é rústica ou urbana) a classificação assenta, pois, numa avaliação casuística.
V- O critério a considerar é o da afectação autónoma e da relevância funcional e económica das partes habitacional e agrícola.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral



Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.
AA intentou a presente acção comum contra BB, CC (entretanto falecida e representada por BB), DD e EE, pedindo que seja reconhecido ao autor o direito de preferência na venda do prédio rústico denominado ..., sito no lugar ..., com a área de 4.600 m2, inscrito na matriz cadastral rústica sob o artigo ...90 da Secção CCC, a confrontar a norte com FF, de sul com AA, de nascente com Herdeiros de GG e de poente com Estrada Municipal, composto por cultura arvense de sequeiro, substituindo-se, assim, aos réus DD e EE na escritura de compra e venda, com a consequente entrega do prédio e cancelamento dos registos.
Alega, em síntese, que é dono e legítimo proprietário do prédio misto denominado ..., sito no lugar ..., a confrontar a norte com CC, a sul com ..., a nascente com Herdeiros de GG e poente com Estrada Municipal e que as rés BB e CC eram proprietárias do prédio rústico que confronta com o prédio de sua propriedade a sul e que procederam à sua venda aos réus DD e EE, por escritura outorgada em 11 de Novembro de 2019, sem que previamente lhe tenham dado conhecimento da intenção de vender o prédio e das condições de venda.
Por fim alega que, o seu prédio e o prédio vendido pelas primeiras rés têm natureza rústica, aptos para o mesmo tipo de cultura, confinantes e com área inferior à unidade de cultura estabelecida para a região, que é de 48 ha, pelo que beneficia o autor do direito de preferência que não foi respeitado pelos réus.
A Ré BB contestou, alegando, em síntese, que o prédio lhe foi oferecido através de um familiar pelo mesmo preço pelo qual foi vendido e que o autor recusou dizendo que terra já tinha muita e não queria mais.
Mais alega que, o prédio do autor não tem natureza rústica e mesmo que os dois prédios se juntassem não teriam viabilidade económica para a agricultura.
O autor procedeu ao depósito do preço acrescido do valor das despesas (referência ...72).
Os réus DD e EE também contestaram, alegando que, um mês antes de outorgarem a escritura de compra e venda do terreno se apresentaram ao autor como futuros vizinhos e na conversa que mantiveram perceberam que as primeiras rés haviam transmitido ao autor a pretensão de venda e o preço.
Mais alegam que, o autor utiliza o prédio para sua habitação, não fazendo na parte rústica qualquer exploração agrícola, inexistindo, assim, o direito de preferência invocado pelo autor.
A Ré BB contestou, alegando que, o negócio foi directamente oferecido ao autor nas mesmas condições do celebrado e o mesmo não manifestou qualquer interesse na aquisição, o que levou a que não lhe comunicasse os termos da venda que fizeram, além de que, o autor confessa que o seu prédio é misto e não o utiliza para qualquer actividade agrícola e a parte rústica não goza de autonomia funcional relativamente à parte urbana.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento.
Foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência absolveu os réus BB, CC (entretanto falecida e representada por BB), DD e EE do peticionado pelo autor AA.
Inconformado com a sentença, o Autor veio interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição parcial):
« (…) 12 - O que está em causa é determinar se o autor é preferente sobre a venda do prédio das rés BB e CC aos réus DD e EE, sendo certo que, apesar de estar assente que estamos em presença de prédios confinantes e estão reunidos os requisitos da preferência a que alude o artigo 1380º do Código Civil, o tribunal a quo entendeu que o direito de preferência do Autor fica afastado por o terreno preferente não se destinar à cultura (agrícola ou florestal), mas antes à habitação do autor.
13 - O apelante não concorda com tal conclusão, uma vez que o terreno que lhe pertence está, efetivamente, afeto a fins agrícolas.
14 - Atente-se que, para a determinação da utilização dada ao terreno do apelante, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, não considerou o depoimento de parte do autor e os depoimentos das testemunhas HH e II.
15 – No seu depoimento de parte (que se encontra gravado e que consta da ata de audiência de discussão e julgamento de 02/11/2023, cuja audição se iniciou pelas 15h22), o Autor AA “Referiu que é agricultor, apenas se dedicando ao cultivo do arroz e que, naquele terreno está implantada a sua casa de habitação e um barracão que utiliza para parquear equipamentos. Uma vez que tem cerca de 10 veículos e várias alfaias agrícolas, designadamente, cinco tractores, duas ceifeiras, uma escavadora, cinco reboques, grades de discos e charruas, que não cabem todos no interior do barracão, muitas vezes utiliza a parte de terreno, que se situa após a vala para parquear esses veículos, uma vez que essa parcela não tem dimensão suficiente para o cultivo do arroz.” e que “A aquisição do terreno que foi vendido poderia permitir fazer uma instalação de secagem de arroz.”
16 – Do depoimento da testemunha HH transcrito supra, em 2.2. (cfr. depoimento constante do Ficheiro 20240130152058, transcrito no documento anexo como doc. nº 1) resulta que o autor é agricultor há muitos anos e que utiliza o terreno em questão essencialmente para fins agrícolas, uma vez que é naquele terreno que guarda todas as máquinas e equipamentos agrícolas e que faz a reparação e manutenção das mesmas. A testemunha referiu ainda que o autor não tem qualquer outro local onde possa exercer estas atividades relacionadas com a sua exploração agrícola e que pretendia adquirir o terreno confinante, identificado em 2. dos Factos Provados, para construir um secador de arroz. Mencionou também, no seu depoimento, que, para além das atividades relacionadas com a sua exploração agrícola, o recorrente não dá aquele terreno qualquer outro uso, sendo certo que não existe sequer, um jardim.
17 – Do depoimento da testemunha II, transcrito supra em 2.2 (cfr. depoimento constante do Ficheiro 20240130153024, transcrito no documento anexo como doc. nº 2) resulta que o autor é agricultor há muitos anos e que utiliza o terreno em questão essencialmente para fins agrícolas, uma vez que é naquele terreno que guarda todas as máquinas e equipamentos agrícolas e que faz a reparação e manutenção das mesmas. A testemunha II, companheira do arguido, referiu que residem naquele local, mas que o uso que dão ao terreno é agrícola, uma vez que o recorrente, que é agricultor há muitos anos, trabalha naquele local, pois é ali que tem todo o apoio à sua atividade agrícola e que parqueia as máquinas e equipamentos agrícolas, que são muitos. Referiu também que não tem qualquer outro local onde possa guardar as máquinas, fazer a sua manutenção, reparações e lavagens.
18 – Na fundamentação de facto, resulta da sentença proferida pelo tribunal a quo que “quanto ao facto provado em 8. o Tribunal deu o mesmo como provado por ter resultado da confissão do Autor, em sede de depoimento de parte, conforme consta na respetiva assentada. Relativamente a este facto o Tribunal também atendeu ao resultado da inspeção ao local realizada, da qual resulta que o terreno do autor tem implantada uma casa de habitação, e que o mesmo se encontra inserido em aglomerado urbano, situando-se perto do centro da ..., sendo visíveis casas de habitação ao longo da extensão da rua onde se situa o terreno, quer de um lado, quer do outro”.
19 - Ora, do depoimento de parte do Autor também resulta que é agricultor e que o terreno identificado em 1. dos Factos Provados é utilizado para parquear equipamentos relacionados com a sua atividade agrícola, uma vez que tem cerca de 10 veículos e várias alfaias agrícolas, designadamente cinco tratores, duas ceifeiras, uma escavadora, cinco reboques, grades de disco e charruas. Resulta, igualmente, deste depoimento que o autor tem intenção de fazer uma instalação de secagem de arroz.
20 – Considerando o mencionado supra, nos pontos 18 e 19, entende o apelante que, da mesma forma que o tribunal a quo deu como provado que o autor tem implantada a sua casa de habitação no terreno rústico identificado no ponto 1. dos Factos Provados, por tal facto ter resultado da confissão do Autor, também devia ter dado como provado que “o terreno identificado em 1. dos Factos Provados é utilizado para parquear equipamentos relacionados com a atividade agrícola do autor, que tem cerca de 10 veículos e várias alfaias agrícolas, designadamente cinco tratores, duas ceifeiras, uma escavadora, cinco reboques, grades de disco e charruas” e que “é sua intenção fazer uma instalação de secagem de arroz, uma vez que se dedica ao cultivo de arroz” (cfr. depoimento de parte do Autor AA que consta da ata de audiência de discussão e julgamento do dia 02/11/2023, iniciado às 15:22).
21 – No entanto, o tribunal a quo apenas valorou o depoimento de parte de autor para fundamentar a conclusão a que chegou no ponto 8. dos factos provados, ou seja, que o autor utiliza o terreno que identificou no Ponto 1. dos Factos Provados predominantemente para sua habitação, o que não corresponde à verdade e resulta, desde logo, do referido depoimento de parte.
22 - Caso tivesse sido feita a adequada valoração da prova, o tribunal de que se recorre teria de dar como provado que “o autor usa o prédio identificado em 1. predominantemente para fins agrícolas”, uma vez que tem nesse terreno todo o apoio logístico que necessita no exercício da sua atividade de agricultor, sendo certo que aquele terreno é parte integrante da sua exploração agrícola.
23 – Resulta também da sentença de que se recorre que, no que respeita ao Ponto 8. Dos Factos Provados, que o tribunal a quo também atendeu ao resultado da inspeção ao local realizada, da qual resulta que o terreno do autor tem implantada uma casa de habitação, e que o mesmo se encontra inserido em aglomerado urbano, situando-se perto do centro da ..., sendo visíveis casas de habitação ao longo da extensão da rua onde se situa o terreno, quer de um lado, quer do outro.
24 – Também quanto a este meio de prova (inspeção ao local), entende o apelante que o tribunal a quo devia, da mesma forma, ter valorado a restante informação que resulta da inspeção ao local realizada e valorada pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo apenas para justificar a conclusão de que o autor o usa o seu terreno predominantemente para sua habitação.
25 - Resulta da referida inspeção ao local que “junto à Estrada Principal (EM ...03), no prédio do autor, encontra-se implantada uma casa de habitação e, nas traseiras dessa casa, um barracão com um portão elétrico onde se encontram parqueados dois veículos ligeiros, um veículo de mercadorias, um trator agrícola e diversos utensílios” e que “atrás do barracão, encontra-se uma ceifeira-debulhadora de arroz, um freixo e uma vala de escoamento de águas”. Podemos ainda ler que “o terreno dos réus DD e JJ situa-se a norte do terreno do autor, sendo possível de transpor a pé entre os prédios, encontrando-se com erva baixa e, após a vala, tem quatro oliveiras”.
26 – Não existem assim, quaisquer dúvidas, da análise adequada dos mencionados depoimento de parte do autor e inspeção ao local, de que o autor utiliza o seu terreno essencialmente para o exercício da sua atividade de agricultor, ou seja, para fins agrícolas. De outra forma, não se alcança a necessidade de construir um barracão agrícola, com a dimensão daquele que o autor construiu no seu terreno.
27 - De referir ainda que um secador de arroz está afeto à cultura do arroz, atividade agrícola que o apelante desenvolve no âmbito da sua atividade profissional e que a sua intenção de instalar esse equipamento no terreno alienado, confinante com o seu, é manifestamente reveladora de que pretende restruturar e ampliar a sua exploração agrícola.
28 - No que respeita ao facto provado em 9. dos Factos Provados (O autor não faz qualquer exploração agrícola na parte rústica do prédio identificado em 1.), o tribunal a quo fundamentou a sua decisão no depoimento de parte do Autor, conforme a respetiva assentada, conjugada com o resultado da inspeção ao local realizada, bem como do depoimento das testemunhas HH, amigo do autor, e II, bem como à análise crítica das fotografias de fls. 105 a 110.
29 - Dos mencionados meios de prova, valorados pelo tribunal a quo para fundamentar a sua decisão relativamente ao facto provado em 9. dos factos provados (O autor não faz qualquer exploração agrícola na parte rústica do prédio identificado em 1), resulta exatamente o oposto, ou seja, resulta provado que o prédio do autor, identificado em 1. dos Factos Provados é parte integrante da sua exploração agrícola, sendo certo que é nesse terreno que tem todo o apoio logístico que necessita para o exercício da sua atividade agrícola.
30 - Esta fundamentação é igualmente adequada para dar como provado o facto considerado não provado em a. dos factos não provados (O prédio identificado em 1. É utilizado pelo autor para fins agrícolas) porque, efetivamente, como se demonstrou supra, o autor utiliza o seu terreno par fins agrícolas.
31 - O pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência atribuído pelo artigo 1380º do Código Civil aos proprietários de terrenos confinantes é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura, não sendo necessário que eles sejam efetivamente agricultados, pelo que a justificação dada pela Meritíssima juiz do tribunal a quo para dar como provado que o autor não faz qualquer exploração agrícola na parte rústica do prédio identificado em 1.), não pode, de forma alguma, proceder, na medida em que se considerou tão somente que o autor não faz qualquer exploração agrícola no seu terreno por não o cultivar.
32 – Deve ser considerado que uma “exploração agrícola” não se esgota no cultivo dos terrenos. Para além do cultivo das terras, complementa-se com toda a logística necessária ao seu desenvolvimento, designadamente a aquisição, manutenção e reparação de todas as máquinas e equipamentos necessários para amanhar as terras, cultiva-las, cuidar das culturas e proceder às colheitas.
33 - Para além do depoimento de parte do Autor e dos depoimentos referidos supra, importa também atender aos documentos juntos aos autos a fls. 100 (informação obtida no Portal da Finanças); fls. 102 a 104 (planta do barracão agrícola construído pelo apelante no seu terreno); fls. 112 e 113; e fotografias de fls. 105 a 110, 114 e 115.
34 - Deve também ser considerada a certidão emitida pela Câmara Municipal ... em 14/11/2023, junta aos autos a fls. 145 e 146, onde se refere que os terrenos identificados em 1. e 2. dos Factos Provados estão inseridos em área de RAN (Reserva Agrícola Nacional).
35 - O documento junto aos autos pelo recorrente de fls. 102 a 104 (planta do barracão agrícola), e as fotografias de fls. 105 a 110 são bastante esclarecedores quanto à utilização que o apelante dá ao seu terreno. Na verdade, não se vislumbra qualquer outro uso dado a um barracão agrícola com a superfície coberta de 301,44 m2, que não a necessidade de criar um espaço com uma dimensão considerável, não só em área coberta como também em altura, para ser utilizado na exploração agrícola do apelante.
36 - Até porque, se a utilização dada à mencionada construção fosse outra que não a relacionada com a exploração agrícola do recorrente, sempre seria de questionar a necessidade de construir um armazém agrícola com uma área coberta de 301,44 m2.
Ora, não parecem restar quaisquer dúvidas de que o recorrente apenas construiu aquele barracão agrícola porque a sua exploração agrícola assim o exigiu, devido ao elevado número de máquinas pesadas que usa na sua atividade agrícola.
37 - Os factos identificados supra, em 9. das presentes conclusões, foram incorretamente analisados e julgados, porquanto face à prova produzida, havia que ter sido dado como provado que o terreno do apelante é utilizado para fins agrícolas.
38 - O facto do terreno do apelante ter implantada a sua casa de habitação não afasta, como se concluiu na sentença de que se recorre, a finalidade agrícola a que o mesmo se destina.
39 - Uma vez que o destino do terreno do apelante é a exploração agrícola, como se demonstrou supra, não se mostra verificada a situação excecional prevista na al. a) do art. 1381.°, pelo que não se mostra afastado o direito de preferência que assiste ao autor na aquisição do prédio identificado em 2. dos factos provados na fundamentação de facto constante da sentença de que se recorre.
40 – Importa referir que o pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência pelos proprietários de terrenos confinantes é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura, não se impondo que estejam efetivamente cultivados. Não existe assim, qualquer impedimento ao reconhecimento do mencionado direito de preferência ao Autor.
41 - No que respeita ao facto de no terreno do recorrente, identificado em 1. dos factos provados, existir a sua casa de habitação com a superfície coberta de 161 m2 e logradouro com 16 m2, importa referir que esta situação, só por si, não é suficiente para se concluir como concluiu o tribunal a quo no Ponto 8. dos factos provados (O autor usa o prédio identificado em 1. predominantemente para sua habitação). Aliás, esta conclusão é, desde logo, contrariada com o restante texto do mesmo facto (o autor utiliza a parte rústica do prédio identificado em 1. para parqueamento de viaturas e alfaias agrícolas que não cabem no interior do artigo urbano nº ...66).
42 - Resulta ainda da transcrição do depoimento da testemunha HH (transcrita em 2.2 e junta ao presente recurso como doc. nº 1), que não é possível deixar as máquinas e alfaias nos campos de cultivo porque, se assim for, no dia seguinte não está lá nada, o que demonstra a necessidade de residir no local onde estão todos os equipamentos, máquinas e alfaias agrícolas, utilizados pelo recorrente na sua exploração agrícola.
43 - Atentos o depoimento de parte do autor e os depoimentos das testemunhas HH e KK, devidamente valorados, será forçoso concluir que o recorrente utiliza o seu terreno predominantemente para o exercício da sua atividade agrícola, pois é naquele prédio que mantém uma parte essencial da sua exploração agrícola. É certo que reside naquele local, mas esta também é uma circunstância essencial ao são desenvolvimento da sua exploração agrícola.
44 - Não restam assim, quaisquer dúvidas de que o terreno pertencente ao recorrente (prédio rústico inscrito na matriz cadastral da União de Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ...96 da Secção CCC, com a área de 3.150 m2) se destina efetiva e potencialmente ao exercício de atividades agrícolas, uma vez que está afeto ao desenvolvimento habitual da agricultura por parte do recorrente, através do trabalho próprio deste.
45 - No caso concreto do prédio rustico propriedade do recorrente, importa salientar que, para além da efetiva utilização do mesmo (exploração agrícola do recorrente), o prédio em apreço não só é apto para a agricultora e é a ela destinado, como também se situa em zona de RAN (Reserva Agrícola Nacional), conforme certidão emitida pela Câmara Municipal ..., junta aos autos a fls. 145 e 146.
46 - O tribunal a quo formou a sua convicção apenas com base na existência da casa de habitação do recorrente no terreno onde este exerce a sua atividade de agricultor.
47 - Tal conclusão extraída pelo tribunal a quo foi contrária à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, designadamente o depoimento de parte do autor e os depoimentos das testemunhas HH e II, constante das transcrições que se anexam.
48 - Tendo em consideração as provas indicadas, não existem quaisquer dúvidas de que estas impõem decisão diversa da recorrida. Na verdade, desde que apreciadas globalmente e aferidas pelas regras da lógica e da experiência comum, deve haver lugar à modificação da matéria de facto nos seguintes termos:
a) Os factos descritos em 8. e 9. dos Factos Provados devem ser alterados, como infra se indica:
8. O autor usa o prédio identificado em 1. predominantemente, na sua exploração agrícola, utilizando-o para parqueamento de viaturas e alfaias agrícolas, bem como para reparação e manutenção das mesmas.
9. O autor utiliza o prédio rústico identificado em 1. dos factos provados exclusivamente no exercício das atividades relacionadas com a sua exploração agrícola.
b) O facto descrito em 1. dos Factos Não Provados deve ser dado como provado: “O prédio identificado em 1. é utilizado pelo autor para fins agrícolas”.
49 – Como já se referiu supra, com a presente ação, pretendeu o apelante exercer a preferência na venda de um prédio confinante com um outro de que já era proprietário.
50 - Nos termos do disposto no artigo no artigo 1380º, nº 1 do Código Civil, os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.
51 - São assim, pressupostos do direito real de preferência atribuído pela mencionada disposição legal: que tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; que o preferente seja dono de prédio confinante com o prédio alienado; que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura; e que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.
52 - No caso em apreço, tal como resulta da fundamentação de direito da sentença proferida pelo tribunal a quo, considerando os factos provados em 1. a 5. dos Factos Provados na fundamentação de facto, não subsistem dúvidas de que se encontram preenchidos todos estes requisitos.
53 - No entanto, decorre da sentença de que se recorre que “de acordo com o artigo 1381º do Código Civil, sob a epígrafe «casos em que não existe o direito de preferência», dispõe (al. a)) que não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes, para além do mais que aqui não tem relevo, quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura.”
54 - E, baseando-se nos factos que resultaram provados em 8. e 9., considerou o tribunal a quo que “está definitivamente comprometido o fim essencialmente agrícola ou florestal do prédio do autor, que tem uma componente essencialmente urbana, sendo a parte rústica utilizada como logradouro para parqueamento de viaturas. E ainda que essas viaturas possam ser essencialmente agrícolas, tal não consegue desvirtuar o fim essencialmente urbano do prédio do autor, que o utiliza essencialmente para habitação própria, e não como complemento da atividade agrícola exercida na parte rústica, uma vez que não exerce qualquer atividade agrícola na parte rústica do prédio, conforme resultou provado.”
55 - No entanto, tal como já se demonstrou supra, no recurso sobre a matéria de facto, devem ser alterados os factos considerados provados em 8. e 9., no sentido de passar a constar que o autor utiliza o seu terreno para fins agrícolas, na sua exploração agrícola, pelo que não se aplica ao caso dos autos a exceção prevista no artigo 1381º, alínea a) do Código Civil e, em consequência, reconhecer que assiste ao autor o direito de preferência na venda do prédio dos réus BB e CC aos réus DD e EE.
56 – Importa aqui, fazer referência ao Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3.11.2011 (Proc. 7712/05.0TBBRG.G2.S1), do qual consta que “Pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência atribuído pelo art.1380º do Código Civil aos proprietários de terrenos confinantes, é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura”.
57 - Quer isto dizer que a existência ou não de efetiva exploração agrícola do terreno não é necessária para este efeito. Ora, no caso dos presentes autos, para além de ambos os terrenos serem aptos para cultura, uma vez que, quer o terreno do autor, quer o terreno confinante, adquirido pelos réus DD e EE a BB e CC, são compostos por cultura arvense de sequeiro, ficou sobejamente demonstrado, na medida em que resultou da prova produzida nestes autos, que o apelante utiliza o seu terreno para fins agrícolas, na sua exploração agrícola.
58 - Face à alteração da matéria de facto, considerando-se o supra exposto, deve ser revogada a sentença recorrida e devem os Réus ser condenados no pedido.
59 - Sendo ambos os prédios (identificados em 1. e 2. dos factos provados) de natureza rústica, ambos com área inferior à unidade mínima de cultura e confinantes entre si, a alienação do prédio inscrito sob o artigo ...90 da Secção CCC da União de Freguesias de ..., ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...30 da Freguesia ... está sujeita ao regime da preferência previsto no artigo 1380º do Código Civil, estando o recorrente em condições de preferir na sua alienação. 60 - Conforme resulta das matrizes prediais dos mencionados prédios rústicos, ambos têm áreas inferiores à unidade mínima de cultura, uma vez que, sendo terrenos de sequeiro, a unidade mínima de cultura para a zona onde estão inseridos é de 48,0000 ha, de acordo com a Portaria nº 219/2016 de 9 de agosto.
61 - O recorrente alegou e provou os factos constitutivos do direito de preferência que lhe assiste na aquisição do prédio identificado em 2. dos Factos Provados da douta sentença de que se recorre e resulta desta que “à luz dos factos provados em 1.a 5., dúvidas não subsistem de que estão preenchidos todos os requisitos previstos no artigo 1380º do Código Civil”.
62 - Os réus invocam uma das excepções contempladas no artigo 1381.º do Código Civil, nomeadamente a de que não gozam de direito de preferência os proprietários confinantes quando a venda de terreno de cultura seja feita a proprietário não confinante, destinada a algum fim que não seja a cultura - caso contemplado na alínea a), 2.ª parte.
63 - No entanto, não fizeram prova da mencionada exceção, sendo certo que o simples facto do recorrente ter implantada no seu prédio rústico uma casa de habitação com a superfície coberta de 161 m2 e logradouro com 16 m2, não afasta a natureza rústica do prédio, como já se demonstrou supra.
64 - Importa ainda referir que o barracão agrícola com a área coberta de 301,44 m2 não pode considerar-se prédio urbano, mas sim componente do prédio rústico, uma vez que não só não tem autonomia económica, como constitui parte integrante da exploração agrícola do recorrente.
65 - Nos termos do disposto no artigo 1381º, alínea a) do Código Civil “Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura”.
66 - Ora, os réus não lograram provar que o prédio do recorrente se destina a um fim que não fosse a cultura, sendo certo que o termo “cultura” é usado no sentido de terreno apto para o exercício de atividades agrícolas e/ou florestais.
67 - Em suma, não foram demonstrados os requisitos necessários à procedência da exceção prevista no artigo 1381º, alínea a) do código Civil, pelo que se fez incorreta aplicação deste preceito legal.
68 – Deve assim, a sentença recorrida ser revogada, alterada a matéria de facto nos termos supra indicados e, consequentemente, ser reconhecido ao Autor o direito de preferência sobre o prédio rústico denominado ..., sito no lugar ..., União das Freguesia ..., ... e ..., concelho ..., com a área de 4.600 m2, inscrito na respectiva matriz cadastral rústica sob o artigo ...90 da Secção CCC, a confrontar de norte com FF, de sul com AA, de nascente com Herdeiros de GG e de ponte com Estrada Municipal, substituindo-se aos réus DD e EE e, em consequência, serem estes réus condenados a entregarem o prédio ao apelante, livre e desocupado e ordenando-se o cancelamento dos registos que aqueles réus hajam feito a seu favor em consequência da compra que fizeram às rés BB e CC.
Termos em que, e invocando o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, deverá ser concedido inteiro provimento à presente Apelação, em conformidade com o disposto nas precedentes conclusões,ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA.»
Nas contra-alegações, a Ré BB conclui o seguinte (transcrição):
« I - A sentença revidenda nenhum erro contém, pelo que deve ser mantida.
II - DO OBJETO DO RECURSO, em 4- e 5-, refere a Recorrente, “.. No entanto, não consta da sentença proferida pelo tribunal a quo, como devia, que o autor, na resposta que apresentou, alegou a finalidade dada ao seu prédio, designadamente que o mesmo é efetivamente utilizado para fins agrícolas, uma vez que é agricultor desde 1991 e utiliza o seu prédio para o exercício da sua atividade agrícola; que, em 2001, concluiu no seu terreno, a construção de um armazém agrícola com a superfície coberta de 301,44 m2, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo artigo urbano nº ...66, destinado ao exercício da sua atividade de agricultor e que, quer o prédio que lhe pertence, quer o prédio vendido pelas rés CC e BB aos Réus DD e EE são atravessados por uma linha de água e estão inseridos na área de RAN (Reserva Agrícola Nacional)…”,
III-Bem andou o tribunal a quo, pois, tratam-se de factos, alegados apenas no seu articulado de Resposta, não os tendo feito constar no seu pedido e na causa de pedir da sua PI.
IV - Em 7-, refere a Recorrente “…que o tribunal a quo devia ter fixado como questão essencial a ser submetida à apreciação do tribunal “determinar se o autor é preferente sobre a venda do prédio dos réus BB e CC aos réus DD e EE” …”
V- Ora, dito de outa forma, isso é exatamente o que consta da sentença proferida pelo tribunal a quo “…. Á apreciação do tribunal estão submetidas as seguintes questões:, a) Determinar se o prédio do autor tem natureza rústica;, b) se as rés BB e CC não comunicaram ao autor os concretos termos do negócio que celebraram com os réus DD e EE;,c) e, em consequência, se foi preterido o direito de preferência do autor. ….”
VI - Em 9-, refere a Recorrente, que mal andou o tribunal a quo, por ter dado como Factos Não Provados e Factos Provados, contrariamente á posição assumida pela Recorrente, apenas e só, porque os pretendia ver provados de forma diferente.
VII – DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO, refere a Recorrente que “… A questão nuclear que cumpre resolver no presente recurso é a de saber, ao fim ou cabo, se o terreno do Autor se destina a fins agrícolas.…”
VIII - O que não corresponde de todo á verdade, uma vez que a questão levada a juízo pelo próprio Recorrente na sua PI, é a do reconhecimento do direito de preferência, que na opinião deste lhe assiste.
IX – Em causa está a questão de apurar se existe ou não direito de preferência, por parte do Recorrente, nos termos do disposto no art.º 1380 do C.C., tal qual única pretensão invoca pelo Recorrente na sua PI, ou se contrariamente, assiste razão aos Recorridos, ao invocarem como fundamento das suas pretensões, o disposto no art.º 1381º, al. a) do C.C.
X- FACTOS QUE O RECORRENTE CONSIDERA INCORRETAMENTE JULGADOS
a) O autor usa o prédio identificado em 1. predominantemente para sua habitação, utilizando a parte rustica para parqueamento de viaturas e alfaias agrícolas que não cabem no interior do artigo urbano nº ...66 (Ponto 8 dos Factos Provados);
Insurge-se o Recorrente contra o facto de ser dado como provado que autor usa o prédio (identificado em 1. dos factos provados), predominantemente para sua habitação, utilizando a parte rustica para parqueamento de viaturas e alfaias agrícolas que não cabem no interior do artigo urbano nº ...66; o Tribunal diz que se fundamentou e deu o mesmo como provado, em sede de depoimento de parte, conforme consta na respetiva assentada. Relativamente ao mesmo facto provado em 8. o Tribunal também atendeu ao resultado da inspeção ao local realizada, da qual resulta que o terreno do autor tem implantada uma casa de habitação, e que o mesmo se encontra inserido em aglomerado urbano, situando-se perto do centro da ..., sendo visíveis casas de habitação ao longo da extensão da rua onde se situa o terreno, quer de um lado, quer do outro.
E sobre essa questão foram ouvidas testemunhas, nomeadamente a testemunha HH, que como se retira da transcrição junta pelo Recorrente disse:
TESTEMUNHA: então, é a casa, ele, ele tem uma casa de habitação assim que entramos no, no, no local dele. E depois tem um, tem um, atrás, uma arrumação, um arrumo, um pavilhão grande onde faz a arrumação das máquinas com que trabalha na agricultura. E tem mais um pedaço de terreno junto, junto a, que confina também com, com o espaço que ele tem coberto.
Da audição das testemunhas, conjugadas com o depoimento de parte do Autor, o resultado da inspeção ao local, bem como todos os documentos juntos aos autos, deu a Mma. Juiz os argumentos suficientes para decidir no sentido em que decidiu, pelo que nada existe para alterar.
b) O autor não faz qualquer exploração agrícola na parte rústica do prédio identificado em 1 (Ponto 9. dos Factos Provados).
Para dar este facto como provado, o Tribunal formou a sua convicção baseado no que resultou do depoimento de parte do Autor, conforme a respetiva assentada, acima transcrita, conjugada com o resultado da inspeção ao local realizada, bem como do depoimento das testemunhas HH, amigo do autor, e II, companheira do autor, que efetuaram um depoimento espontâneo e referiram que o Autor não faz qualquer cultivo na parcela rústica do terreno referido em 1., uma vez que desenvolve a sua atividade agrícola na zona da .... Mais atendeu à análise crítica das fotografias de fls. 105 a 110.
MANDATÁRIA da Ré BB: ele faz ali algum tipo de cultura
TESTEMUNHA: não, ali não faz
MANDATÁRIA da Ré BB: aonde é que ele faz a catividade de agricultura, aonde é que ele faz as culturas propriamente ditas, já percebemos que é o arroz
TESTEMUNHA: è na ...
Portanto nada há a alterar ao que a Mmº. Juiz decidiu.
c) O prédio identificado em 1. é utilizado pelo autor para fins agrícolas (alínea a) dos Factos Não Provados), A Mmª. Juiz deu como não provado este facto, uma vez que o mesmo resultou contrariado pelo facto provado em 9., foram ouvidas as testemunhas, e nada ficou provado a esse respeito, mais concretamente que o Autor utiliza o prédio indicado em 1. Para fins agrícolas.
Nada se provou, que leve agora a qualquer alteração pelo que se deve manter este facto como não provado.
XI - Não vislumbra a Requerida, qualquer razão para alterar a matéria de facto, até porque não cumpre o ónus imposto pelo Código de Processo Civil. Deve manter-se inalterada a matéria de facto dada como provada e como não provada. Sendo que a decisão final é a mesma.
XII - Não existindo alteração da matéria de facto, pode a Relação aplicar outra interpretação às leis e alterar a decisão de Direito, no entanto, a Recorrente não invoca os artigos da Lei que considera violados, nem o sentido com o qual deviam ser aplicados e a que factos.
XII – O Recorrente não invoca na sua PI, para fundamentar o seu direito de preferência, o disposto no artigo 26º do DL nº 73/2009, de 31/03, no entanto vem em sede de Alegações de recurso requerer que seja considerada a certidão emitida pela Câmara Municipal ... em 14/11/2023, junta aos autos a fls. 145 e 146, onde se refere que os terrenos identificados em 1. E 2. dos Factos Provados estão inseridos em área de RAN (Reserva Agrícola Nacional, pelo que de novo o Recorrente vem repristinar a referencia a documentos e matéria, que não juntou com a PI, e aproveitou o articulado de resposta, apesar de extravasar a matéria que podia ser objeto desta para o fazer.
XIII – No RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO, basicamente o Recorrente limita- se a dizer que estão preenchidos os requisitos do disposto no artigo 1380º nº 1 do C.C., enumerando os mesmos.
XIV - Entende que o terreno objeto do exercício do direito de preferência por parte do Autor, é essencialmente agrícola, pois nele faz parqueamento de algumas alfaias agrícolas, uma vez que é agricultor de profissão, logo pugna pela procedência da ação nos termos do referido artigo 1380 nº 1 do C.C.
XV - O artigo 1381º do Código Civil, sob a epígrafe «casos em que não existe o direito de preferência», dispõe (al. a)) que não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes, para além do mais que aqui não tem relevo, quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura.
XVI - O prédio do autor encontra-se descrito como um prédio misto, esta expressão é comumente usada para definir prédios que, para além de uma parte rústica, possuem também uma parte urbana. A distinção assenta, pois, numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afetação económica, ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano.
Pelo que deve manter-se afastado o direito de preferência que o autor pretendia exercer, invocando o artigo 1380 nº 1 do C.C., devendo tal como decidido pelo Tribunal a quo ser aplicado a regra do artigo 1381º, al. a), do Código Civil.»
Nas contra-alegações, DD e EE concluem o seguinte (transcrição):
«O recorrente pretende que da prova produzida resulte provado que o seu prédio é utilizado para fins agrícolas,
2. Sendo proferida decisão no sentido de julgar improcedente a exceção a que alude o artigo 1381.º. al. a) do Código Civil,
3. E, consequentemente, considerar provados os factos consubstanciadores do direito de preferência que alegou.
4. Para tal, veio o recorrente invocar os factos em que, no essencial, baseou a sua resposta às contestações e que, por consistirem em alteração da causa de pedir, para o que não houve acordo, não foram conhecidos pelo tribunal recorrido – art.º 265.º, n.º 1 do CPC.
5. Ora, a douta sentença recorrida não foi expressamente impugnada pelo recorrente nessa parte, pelo que não deverão tais factos serem conhecidos pelo tribunal de recurso.
6. Mais, o recorrente alicerça a sua pretensão em excertos dos depoimentos das testemunhas, as quais mencionaram intenções de o recorrente vir a instalar no seu terreno uma unidade de secagem de arroz, assim como a existência de um barracão onde são guardados veículos e equipamentos agrícolas.
7. Pretende também o recorrente que sejam considerados provados factos resultantes das suas declarações prestadas no âmbito de depoimento de parte,
8. Esquecendo-se, parece, que o propósito do depoimento de parte é o da eventual confissão pelo depoente.
9. Toda a matéria do depoimento de parte que não constitua confissão é livremente apreciada pelo tribunal.
10. Ora, a verdade é que foi produzida prova por inspeção judicial,
11. De cujo auto resulta que:
- o prédio do recorrente se compõe de casa de habitação (na qual o recorrente fixou a sua residência habitual, tal como resultou do seu depoimento e do da testemunha II), barracão e terreno com vegetação baixa;
- o recorrente não exerce qualquer atividade agrícola na parte rústica do prédio.
12. Em matéria de prova, dispõe o artigo 607.º, n.º 5 do CPC, que, em princípio, “o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os Juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
13. Os resultados da inspeção judicial são, assim, apreciados livremente pelo tribunal, considerando as restantes provas e todos os elementos de convicção disponibilizados pelo processo.
14. Mas esta circunstância não deve fazer esquecer duas coisas: que a prova por meio de inspeção ou reconhecimento judicial é frequentemente idónea para convencer o juiz, de modo extraordinariamente simples, da existência ou inexistência de um facto; que o juiz que a realiza está em condições, melhor que ninguém, de determinar o seu alcance probatório.
15. No caso de colisão entre a prova testemunhal e a inspeção judicial, há que ter em consideração o âmbito desta porquanto o juiz, através dos seus próprios sentidos, examina um local ou objeto. Trata-se de uma prova direta por excelência, e que, por isso poderá gerar um grau de convicção superior aos meios de prova indiretos.
16. A douta sentença recorrida não enferma de qualquer vício ou irregularidade, devendo ser mantida na sua íntegra, Como é de justiça!»
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Na 1.ª instância foram considerados como provados os seguintes factos:
1. O prédio misto denominado de ..., constituído por 3150 m2, inscrito na Matriz rústica sob o nº ...96, Secção CCC e na Matriz urbana sob os nºs artigo urbano nº ...66 e ...81, composto na parte rústica de cultura arvense, nas partes urbanas de edifício de rés-do-chão destinado a arrecadação com a s.c. de 301,44 m2 e logradouro com a área de 771,56 m2 (art. artigo urbano nº ...66) e edifício de rés-do-chão destinado a habitação com a s.c. de 161 m2 e logradouro com a área de 16 m2 (art. ...81), a confrontar a Norte com CC, Sul com ..., Nascente com Herdeiros de GG e Poente com Estrada Municipal, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., com o nº ...30, Freguesia ..., encontra-se inscrito pela Ap. ...20 de 2010/09/30 a favor de AA (Autor da presente acção), por usucapião.
2. O prédio rústico denominado de ... e ..., constituído por 4600 m2, inscrito na Matriz rústica sob o nº ...90, Secção CCC, composto de cultura arvense de sequeiro, a confrontar a Norte com FF, Sul com AA, Nascente com Herdeiros de GG e Poente com Estrada Municipal, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., com o nº ...23, Freguesia ..., encontra-se inscrito pela Ap. ...38 de 2019/11/12 a favor de DD e EE (réus na presente acção), por compra a BB e CC (rés na presente acção).
3. Por escritura pública outorgada em 11 de Novembro de 2019, BB e CC declararam vender a DD e EE, “pelo preço de DEZ MIL EUROS, que já receberam, cujo valor foi pago da seguinte forma: em vinte e cinco de Outubro de dois mil e dezanove, na celebração de contrato promessa o montante de quinhentos euros, pagos através de transferência bancária (…), e no dia de hoje, o remanescente valor de nove mil e quinhentos euros, através de cheque bancário (…)”, o prédio rústico identificado em 2..
4. O terreno identificado em 2. esteve à venda, por tempo não concretamente apurado, mas seguramente por período superior a um ano, através da A... com uma placa lá colocada.
5. As rés BB e CC não deram conhecimento ao autor da intenção de vender o prédio aos réus DD e EE e das condições da venda, designadamente o preço e as condições de pagamento.
6. Antes da haverem sido citados no âmbito dos presentes autos, nunca os réus DD e EE se aperceberam de que o autor tinha interesse na aquisição do prédio.
7. Os réus DD e EE sempre mantiveram com o autor boas relações de vizinhança, pautadas pela cordialidade, inclusive após a aquisição do prédio por aqueles.
8. O autor usa o prédio identificado em 1. predominantemente para sua habitação, utilizando a parte rústica para parqueamento de viaturas e alfaias agrícolas que não cabem no interior do artigo urbano nº ...66.
9. O autor não faz qualquer exploração agrícola na parte rústica do prédio identificado em 1..
2. Factos Não Provados: Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:
a. O prédio identificado em 1. é utilizado pelo autor para fins agrícolas.
b. O terreno identificado em 2. foi oferecido ao autor nas mesmas condições em que acabou por ser vendido, pelos referidos 10.000,00 €.
c. O autor retorquiu que terra tinha muita e já não queria mais.

2 – Objecto do recurso.
Questões a decidir, tendo em conta o objecto dos recursos delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:
1.ª questão – Impugnação da matéria de facto – Saber se deve ser alterada a resposta aos factos 8. e 9. provados e facto não provado 1.
2.ª questão – Saber se se verifica o direito de preferência do A.

3 - Análise dos recursos.
1.ª questão – Impugnação da matéria de facto – Saber se deve ser alterada a resposta aos factos 8. e 9. provados e facto não provado 1.
Em causa estão os seguintes factos constantes da sentença:
Provados:
8. O autor usa o prédio identificado em 1. predominantemente para sua habitação, utilizando a parte rústica para parqueamento de viaturas e alfaias agrícolas que não cabem no interior do artigo urbano nº ...66.
9. O autor não faz qualquer exploração agrícola na parte rústica do prédio identificado em 1.
Não Provados:
a. O prédio identificado em 1. é utilizado pelo autor para fins agrícolas.
Pretende o recorrente que os factos provados descritos em 8. e 9. sejam alterados para:
8. O autor usa o prédio identificado em 1. predominantemente, na sua exploração agrícola, utilizando-o para parqueamento de viaturas e alfaias agrícolas, bem como para reparação e manutenção das mesmas.
9. O autor utiliza o prédio rústico identificado em 1. dos factos provados exclusivamente no exercício das atividades relacionadas com a sua exploração agrícola.
E que o facto descrito em 1. dos Factos não Provados seja alterado para provado: O prédio identificado em 1. é utilizado pelo autor para fins agrícolas”.
É a seguinte a motivação da sentença:
«Quanto aos factos provados em 4. e 8. o Tribunal deu os mesmos como provados por terem resultado da confissão do Autor, em sede de depoimento de parte, conforme consta na respectiva assentada. Relativamente ao facto provado em 8. o Tribunal também atendeu ao resultado da inspecção ao local realizada, da qual resulta que o terreno do autor tem implantada uma casa de habitação, e que o mesmo se encontra inserido em aglomerado urbano, situando-se perto do centro da ..., sendo visíveis casas de habitação ao longo da extensão da rua onde se situa o terreno, quer de um lado, quer do outro.
No que diz respeito ao facto provado em 9., invocado pelos réus em sede de excepção, o mesmo resultou do depoimento de parte do Autor, conforme a respectiva assentada, conjugada com o resultado da inspecção ao local realizada, bem como do depoimento das testemunhas HH, amigo do autor, e II, companheira do autor, que efectuaram um depoimento espontâneo e referiram que o Autor não faz qualquer cultivo na parcela rústica do terreno referido em 1., uma vez que desenvolve a sua actividade agrícola na zona da .... Mais se atendeu à análise crítica das fotografias de fls. 105 a 110.
No que concerne aos factos não provados, os mesmos foram assim considerados por não ter sido feita prova bastante da sua ocorrência, e com base na aplicação das regras do ónus da prova. No que diz respeito ao facto não provado em a. o mesmo resultou contrariado pelo facto provado em 9.. No que diz respeito ao facto não provado em b. o mesmo também resultou contrariado pelo facto provado em 5. e quanto ao facto não provado em c. o mesmo resultou não provado por nenhuma testemunha inquirida ter demonstrado conhecimento sobre o mesmo.»
Cumpre decidir:
A matéria em causa baseou-se essencialmente na inspecção ao local e na Assentada (redução a escrito do depoimento do A.) em audiência, determinantes no caso dos autos.
Com efeito, o artº 493º do CPC determina que, procedendo-se a inspecção judicial, da diligência seja “lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo”.
Tal registo serve para as partes ficarem cientes daquilo que, na perspectiva do julgador, se pode constatar, ou não, no local inspeccionado, servindo, ainda, para relembrar o julgador, na ocasião em que procede à elaboração da decisão relativa à matéria de facto, daquilo que constatou na diligência, para o correlacionar com os restantes elementos probatórios, sendo, ainda, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o elemento relativo a essa diligência que possibilita ao Tribunal “ad quem” aferir, em conjugação com os restantes elementos de prova, do acerto da valoração probatória de que resultou essa decisão.
Ou seja, o que consta do auto de inspecção assume força probatória plena.
Por outro lado, nos termos do « Artigo 463.º - Redução a escrito do depoimento de parte: 1 - O depoimento é sempre reduzido a escrito, na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória. 2 - A redação incumbe ao juiz, podendo as partes ou seus advogados fazer as reclamações que entendam. 3 - Concluída a assentada, é lida ao depoente, que a confirma ou faz as retificações necessárias.»
A formalidade da assentada na acta da audiência de discussão e julgamento encontra-se reservada para a confissão judicial cuja força probatória plena contra o depoente depende da sua redução a escrito.
Assim , também a confissão reduzida a escrito tem força probatória plena.
No nosso caso, concluída a inspeção, a Mmª Juiz de Direito ditou para a ata a seguinte descrição do mesmo:
«Junto à Estrada Principal, (EM ...03), no prédio do autor, encontra-se implantada uma casa de habitação e, nas traseiras dessa casa, um barracão com um portão eléctrico, onde se encontram parqueados dois veículos ligeiros, um veículo de mercadorias, um tractor agrícola e diversos utensílios.
Atrás do barracão, encontra-se uma ceifeira debulhadora de arroz, um freixo e uma vala de escoamento de águas.
Após essa vala, que é possível passar através de uma estrutura em cimento, existe vegetação baixa.
O terreno dos réus DD e EE situa-se a norte do terreno do autor, sendo possível de transpor a pé entre os prédios, encontrando-se com erva baixa e, após a vala, tem quatro oliveiras.
O local situa-se perto do centro da ... e, ao longo de toda a extensão da rua, são visíveis casas de habitação, quer de um lado, quer do outro.»
E
Retomada a presente audiência de discussão e julgamento, pelas 15.22 horas, iniciou-se a audição do depoimento de parte do autor AA, cuja identificação e depoimento de parte se encontra gravado.
Findas o seu depoimento, a Mmª Juiz de Direito ditou para a ata a seguinte matéria assente:
«No seu depoimento o autor referiu que o terreno vendido teve aposta uma placa da imobiliária A..., com a informação de "vende-se" e indicação do número de telefone do agente imobiliário, tendo essa placa estado no local por tempo que não sabe precisar, mas seguramente superior a um ano. Essa placa esteve caída durante algum tempo e, entretanto, acabou por desaparecer. Algum tempo depois viu no local os réus DD e EE dizendo que eram agora os donos do terreno, o que aconteceu pouco tempo antes da pandemia.
Referiu que é agricultor, apenas se dedicando ao cultivo do arroz e que, naquele terreno está implantada a sua casa de habitação e um barracão que utiliza para parquear equipamentos. Uma vez que tem cerca de 10 veículos e várias alfaias agrícolas, designadamente, cinco tractores, duas ceifeiras, uma escavadora, cinco reboques, grades de discos e charruas, que não cabem todos no interior do barracão, muitas vezes utiliza a parte de terreno, que se situa após a vala para parquear esses veículos, uma vez que essa parcela não tem dimensão suficiente para o cultivo do arroz.
A aquisição do terreno que foi vendido poderia permitir fazer uma instalação de secagem de arroz.
Referiu que, nunca mencionou aos réus DD e EE que tinha interesse na aquisição desse prédio e sempre mantiveram boas relações de vizinhança.
Também referiu que, é primo direito da falecida ré CC e que o seu prédio confronta pelo seu lado Norte, com o lado Sul do prédio que foi vendido.»
Concluída a assentada, pelo depoente e Ils. mandatários das partes foi dito, respectivamente, confirmarem e concordarem com a mesma.
Nem a assentada nem o auto da inspeção não foi posto em causa.
E isso basta para que o seu teor seja inatacável.
Atento o exposto e considerando o teor das fotografias de fls. 105 a 110, bem como o depoimento credível das testemunhas HH, amigo do autor, e II, companheira do autor, cremos que o que deve constar dos factos 8 e 9 é a seguinte resposta conjunta:
Factos 8 e 9: «Junto à Estrada Principal, (EM ...03), no prédio do autor, encontra-se implantada uma casa de habitação e, nas traseiras dessa casa, um barracão com um portão eléctrico, onde se encontram parqueados dois veículos ligeiros, um veículo de mercadorias, um tractor agrícola e diversos utensílios e atrás do barracão, encontra-se uma ceifeira debulhadora de arroz, um freixo e uma vala de escoamento de águas.
Após essa vala, que é possível passar através de uma estrutura em cimento, existe vegetação baixa.
O terreno dos réus DD e EE situa-se a norte do terreno do autor, sendo possível de transpor a pé entre os prédios, encontrando-se com erva baixa e, após a vala, tem quatro oliveiras.
O local situa-se perto do centro da ... e, ao longo de toda a extensão da rua, são visíveis casas de habitação, quer de um lado, quer do outro.
O A. é agricultor, mas não faz qualquer cultivo na parcela rústica do terreno referido em 1., (uma vez que desenvolve o cultivo do arroz na zona da ...) onde está implantada a sua casa de habitação e um barracão que utiliza para parquear equipamentos, já que tem cerca de 10 veículos e várias alfaias agrícolas, designadamente, cinco tractores, duas ceifeiras, uma escavadora, cinco reboques, grades de discos e charruas, que não cabem todos no interior do barracão, muitas vezes utiliza a parte de terreno, que se situa após a vala para parquear esses veículos, uma vez que essa parcela não tem dimensão suficiente para o cultivo do arroz.
A aquisição do terreno que foi vendido poderia permitir fazer uma instalação de secagem de arroz.»
De resto, importa referir que os factos impugnados utilizam uma incorrecta técnica jurídica na medida em que se contêm matéria conclusiva (“exploração agrícola” “fins agrícolas”).
No actual regime processual, tal como no pretérito, na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas (que são que a lógica ilacção de premissas) e que comportem matéria de direito pois são os factos que o n.º 4 do art.º 607.º do CPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo juiz, na sentença.
Sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado- neste sentido Miguel Teixeira de Sousa, ‘Estudos sobre o Novo Processo Civil’, Lex, 1997, pg. 312 e Paulo Faria, “A reforma da base instrutória: uma regressão, A Reforma do Processo Civil-Contributos”, Revista do Ministério Público, Cadernos II, 2012, pp 37-48.
Pelo exposto, alteram-se os factos 8 e 9 e elimina-se do elenco dos Factos Não Provados o ponto 1.


2.ª questão – Saber se se verifica o direito de preferência do A.
Com a presente acção, o Autor pretende exercer o direito de preferência na venda de um prédio confinante com um outro de que já é proprietário.
Cremos que a discordância do recorrente quanto à sentença, prende-se não tanto com os factos supra referidos, mas sim com a conclusão retirada pelo tribunal recorrido, que aliás é como já referimos incorrectamente expressa na própria matéria factual.
Ou seja, o recorrente discorda de que o facto de utilizar o seu prédio para habitar, guardar e reparar máquinas agrícolas, traduza uma impossibilidade de preferência, nos termos do Artigo 1381º do CC al. a) do CC.
Quid Juris?
O art.º 1380.º nº 1 do CC tem a seguinte redação:
“Direito de preferência
1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.”
Este artigo é complementado pelo artigo seguinte, que tem a seguinte redação:
Art.º 1381.º
Casos em que não existe o direito de preferência
“Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:
a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura;
b) Quando a alienação abranja um conjunto de prédios que, embora dispersos, formem uma exploração agrícola de tipo familiar”.

E sendo os conceitos de “prédio urbano” e “fim que não seja a cultura” de natureza conclusiva é necessário analisar os factos concretos apurados.
Sabemos que:
- Se trata de um prédio misto denominado de ..., constituído por 3150 m2, inscrito na Matriz rústica sob o nº ...96, Secção CCC e na Matriz urbana sob os nºs artigo urbano nº ...66 e ...81, composto na parte rústica de cultura arvense, nas partes urbanas de edifício de rés-do-chão destinado a arrecadação com a s.c. de 301,44 m2 e logradouro com a área de 771,56 m2 (art. artigo urbano nº ...66) e edifício de rés-do-chão destinado a habitação com a s.c. de 161 m2 e logradouro com a área de 16 m2 (art. ...81).
- O prédio tem implantada uma casa de habitação e, nas traseiras dessa casa, um barracão com um portão eléctrico, onde se encontram parqueados dois veículos ligeiros, um veículo de mercadorias, um tractor agrícola e diversos utensílios e atrás do barracão, encontra-se uma ceifeira debulhadora de arroz, um freixo e uma vala de escoamento de águas.
Após essa vala, que é possível passar através de uma estrutura em cimento, existe vegetação baixa.
O terreno dos réus DD e EE situa-se a norte do terreno do autor, sendo possível de transpor a pé entre os prédios, encontrando-se com erva baixa e, após a vala, tem quatro oliveiras.
O local situa-se perto do centro da ... e, ao longo de toda a extensão da rua, são visíveis casas de habitação, quer de um lado, quer do outro.
O A. é agricultor, mas não faz qualquer cultivo na parcela rústica do terreno referido em 1., (uma vez que desenvolve o cultivo do arroz na zona da ...) onde está implantada a sua casa de habitação e um barracão que utiliza para parquear equipamentos, já que tem cerca de 10 veículos e várias alfaias agrícolas, designadamente, cinco tractores, duas ceifeiras, uma escavadora, cinco reboques, grades de discos e charruas, que não cabem todos no interior do barracão, muitas vezes utiliza a parte de terreno, que se situa após a vala para parquear esses veículos, uma vez que essa parcela não tem dimensão suficiente para o cultivo do arroz.»

A lei civil não nos proporciona a noção de prédio misto (só a lei fiscal e para efeitos fiscais, prédios mistos são os imóveis que não estão caracterizados como prédios rústicos nem como prédios urbanos, desta forma possibilitando à Fazenda Pública que possa fazer esta especializada classificação relativamente a um imóvel em que é ambígua a sua natureza (urbano ou rural), sendo de afastar a sua importação para a lei civil).
Na sede civil dispõe o art.º 204.º do C. Civil, que, considerando existência jurídica exclusivamente aos prédios rústicos e aos prédios urbanos, revelando-os como coisas imóveis (n.º 1, al. a), explicita o prédio rústico como uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes, que não tenham autonomia económica e define prédio urbano como qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro (n.º 2).
A lei civil não conhece o conceito de prédio misto. O prédio misto um “tertium genus”, já que os prédios, devem sempre que possível ser considerados de harmonia com a sua parte principal e essa, a priori, ou é rústica ou urbana. A distinção assenta, pois, numa avaliação casuística. (Ac. STJ de 28.02.2008; Relator Cons. Dr. Fonseca Ramos; www.dgsi.pt).
A doutrina têm recorrido à teoria do valor; teoria da afectação económica; teoria do fraccionamento e teoria da consideração social.
O Prof. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Parte Geral, II, págs. 121 e segs. Direitos Reais, I, pág. 274, refere que “um prédio será rústico ou urbano quando, de acordo com as concepções dominantes na sociedade consista essencialmente no solo ou em construções”.
Parece-nos adequada o critério da teoria da afectação económica: - o prédio será rústico ou urbano, conforme a sua essencial finalidade económica seja a exploração agrícola ou se contenha tendencialmente na habitação familiar; constituindo a casa residencial apenas um acessório destinado à exploração agrícola, o prédio será rústico.
Neste sentido o Ac. STJ de 19-12-2023, proc. nº 1303/20.3T8VRL.G1.S1, Relator: JORGE LEAL, onde se pode ler: «Como critério de distinção entre prédio rústico e urbano tem avultado, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, a orientação de que deve prevalecer uma avaliação casuística, tendo subjacente a destinação ou afetação económica do prédio.»
Cientes de que o que afasta a preferência é, como refere a lei, que “um dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura” vejamos o caso concreto:
Não cremos que se esteja perante um prédio urbano- desde logo porque está inscrito na Matriz rústica e na Matriz urbana– e ainda pela relevância da área correspondente à parte rústica (maior do que a urbana) e a sua composição (cultura arvense) sendo por isso, apto à lavoura, ou à exploração agrícola, pecuária.
Note-se que não pode ser considerado parte urbana a área correspondente ao barracão agrícola, desde logo pela utilização dada ao mesmo.
Por outro lado, o A. – que é agricultor - só não procede ao cultivo nesse prédio porque cultiva arroz e precisa de mais extensão, mas embora tenha no prédio em causa a sua casa de habitação, tem também um barracão que utiliza para parquear equipamentos, já que tem cerca de 10 veículos e várias alfaias agrícolas, designadamente, cinco tractores, duas ceifeiras, uma escavadora, cinco reboques, grades de discos e charruas, que não cabem todos no interior do barracão, muitas vezes utiliza a parte de terreno, que se situa após a vala para parquear esses veículos.
Ou seja, o prédio também permite a sua actividade agrícola, não é de afectação fundamentalmente habitacional, mas antes perante uma parte agrícola com autonomia e relevância funcional e económica.
Desta forma a conclusão é a de não estamos perante um terreno que constitua uma parte componente de um prédio urbano, nem estamos perante um terreno que se destina a um fim não agrícola, pelo que não está afastado o direito de preferência do Autor.
Tanto basta para a procedência do recurso (encontrando-se prejudicada a questão aflorada, relativa ao direito de preferência com base na localização na zona de RAN (Reserva Agrícola Nacional).

4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedentes o recurso de apelação interposto, revogando-se a sentença e:
A) Reconhecer o direito de preferência do Autor sobre o prédio rústico denominado ..., sito no lugar ..., União das Freguesia ..., ... e ..., concelho ..., com a área de 4.600 m2, inscrito na respectiva matriz cadastral rústica sob o artigo ...90 da Secção CCC, a confrontar de norte com FF, de sul com AA, de nascente com Herdeiros de GG e de ponte com Estrada Municipal, substituindo-se aos réus DD e EE e, em consequência,
B) Condenar os RR. a entregar o prédio ao apelante, livre e desocupado e
C) Determinar o cancelamento de todos e quaisquer registos que o 2.º Réu tenha feito a seu favor, por efeito da aquisição do supra referido prédio”.

Custas pelos recorridos. (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

Évora, 11.07.24
Elisabete Valente
Ana Pessoa
Maria Adelaide Domingos