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PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
PERICULUM IN MORA
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I - O periculum in mora refere-se ao perigo no retardamento na tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo do mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido. II - Caberá, assim, ao requerente provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis. III - Não basta a prova sumária no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito. (Sumário elaborado pelo relator)
Texto Integral
Proc. nº 1483/24.9T8STR.E1
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO AA instaurou procedimento cautelar comum contra BB, formulando o seguinte pedido:
«(…), deve a presente providência ser deferida e, por via da mesma, sem audiência do Requerido, nos termos do artigo 366º, nº 1 do C.P.C., para evitar delongas que agravam a situação, pondo em sério risco o fim e/ou eficácia da presente providência, ser:
- restituída, de imediato, a posse à Requerente do imóvel supra referido no artigo 1º, para que o possa habitar;
- ser o Requerido obrigado a desocupar tal imóvel e a retirar todos os seus pertences do mesmo, de imediato, com as legais consequências.
Em consequência, verificando-se o decretamento da presente providência, deve o Requerido ser condenado, a título de sanção pecuniária, nos termos dos artigos 365º nº 2 do C.P.C., no pagamento da quantia de 50,00 € (cinquenta euros), por cada dia de atraso na efetivação da providência.
Mais se requer, nos termos do artigo 369º, nº 1 do C.P.C., que se dispense a Requerente do ónus de propositura da ação principal, uma vez que se consideram alegados e provados os factos constantes da prova documental apresentados pela Requerente, e a prova testemunhal indicada, permitindo a convicção do direito acautelado com o presente procedimento.»
Alegou, em síntese, ser a única proprietária do imóvel melhor identificado nos autos e que, desde 30.03.2013, o requerido habita nele, altura em que a requerente foi residir para uma outra habitação como comodatária, sucedendo que há vários anos que o proprietário da casa onde reside, lhe vem solicitando a entrega da casa e, em dezembro de 2023, enviou-lhe uma carta a denunciar o contrato de comodato.
Mais alega que falou com o requerido, pedindo-lhe para sair da casa, mas este recusa-se a sair, ameaçando que se tiver que sair «parte tudo». Por não dispor de outra casa, a requerente refere que terá de arrendar ou comprar outra casa.
Concluiu assim que a espera por uma decisão que seja proferida no recurso à ação declarativa é incompatível com o justo receio, face à conduta do requerido e aos prejuízos que advêm para a requerente, a qual precisa de uma casa para habitar.
A providência foi liminarmente indeferida, com fundamento na manifesta improcedência.
Inconformada, a requerente interpôs recurso deste despacho, pugnando para que seja revogado, tendo concluído as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
«1 - A apelante não se conformando com o decidido indeferimento liminar do requerimento inicial e recorre do despacho/sentença, colocando à apreciação: saber se há fundamento para rejeição liminar do procedimento cautelar requerido, por falta dos respetivos pressupostos.
2 - A providencia cautelar requerida preenche os pressupostos legais, pelo menos para a produção de prova.
3 - Pelo que se justifica o recebimento da mesma com despacho para produção de prova e posterior decisão.
4 - Já que se encontram alegados factos que demonstram a existência do direito ameaçado.
5 - Bem como factos que demonstram o periculum in mora.
6 - Violou o douto despacho recorrido o disposto no artigo 362º do C.P.C..»
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é a de saber se o presente procedimento cautelar comum deve ser julgado procedente por se verificarem os respetivos requisitos, designadamente o periculum in mora, com o consequente decretamento das providências requeridas.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
Os factos tidos por relevantes são os que resultam do relatório que antecede.
O DIREITO
Os procedimentos cautelares vêm regulados nos artigos 362.º a 409.º do Código de Processo Civil Doravante abreviadamente designado CPC. e são instrumentos que visam antecipar a tutela definitiva do direito ou a evitar que a demora na tramitação da ação coloque em perigo o seu efeito útil ou a sua eficácia (cfr. artigo 2.º, n.º 2 do mesmo diploma legal).
Estão intrinsecamente ligados à tutela cautelar a existência de um conjunto de pressupostos de que a lei faz depender a sua concessão.
Assim, em geral, o Tribunal está adstrito a analisar (cfr. artigos 362.º, 365.º e 368.º do CPC):
i. A probabilidade séria de existência do direito alegadamente ameaçado (fumus boni juris);
ii. Se existe fundado receio de que o direito sofra lesão grave e de difícil reparação (periculum inmora);
iii. A adequação da providência solicitada para evitar a lesão;
iv. Que o prejuízo que para o requerido resulta da providência não seja superior ao dano que se pretende evitar.
Ora, in casu, estão alegados factos que concretizam a probabilidade séria da existência do direito (direito de propriedade da requerente sobre o imóvel em causa), mostrando-se sumariamente provada a titularidade do direito de propriedade, por via da prova documental junta (maxime a inscrição da propriedade a seu favor, constante da certidão de registo predial). Resulta, assim, verificado o primeiro dos requisitos.
E que dizer do segundo requisito. Terão sido alegados factos que concretizem a probabilidade séria da existência do periculum in mora?
É sabido que não basta existir uma lesão grave do direito. Decorre linearmente do disposto no artigo 365º do CPC que, além dessa lesão grave, é necessário que seja uma lesão grave e dificilmente reparável. Significa isto que o periculum in mora terá de ser apoiado em factos concretos alegados e comprovados pelo requerente da providência. Por outras palavras, não pode ter-se como preenchido aquele requisito quando fundado na alegação de situações hipotéticas.
Vale isto por dizer que o perigo a acautelar não é qualquer perigo, mas um perigo especial e real resultante da demora conatural ao processamento da ação a intentar ou já intentada para acautelar o direito ameaçado de lesão.
«O periculum in mora constitui um requisito processual de natureza constitutiva da providência cautelar concretamente requerida – já que a falta desse requisito obsta, por via de regra, ao decretamento efetivo da providência - e traduz-se no prejuízo que poderá advir para o requerente em consequência da tutela definitiva do seu direito. Dito de outra forma, o periculum in mora refere-se ao perigo no retardamento na tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo do mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido. Caberá, assim, ao requerente “provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis”» Marco Gonçalves Carvalho, Providências Cautelares, Almedina, 4ª Edição, pp. 201-203..
Em anotação ao artigo 362º do CPC, explicam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, Almedina, 2017, p. 8. que «não basta a prova sumária no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito».
Mostra-se assim necessário, em primeiro lugar, que a requerente alegue um fundado receio de que o seu direito sofra lesão grave e de difícil reparação.
No caso em apreço, será a mera cessação do contrato de comodato celebrado entre a requerente e um terceiro suscetível de preencher esse requisito?
A esta questão respondeu-se negativamente na decisão recorrida:
«Por um lado, a aludida cessação não implica, de modo automático, a carência de tutela urgente, sobretudo quando a requerente não alega quaisquer outros factos suscetíveis de fundamentar a sua necessidade. E essa exigência coloca-se com especial acuidade quando o que está em causa é o perigo de verificação de prejuízos patrimoniais (maxime, o pagamento da renda numa nova habitação), na medida em que estes serão, em regra, reversíveis através de reconstituição natural, ou passíveis de ressarcimento por via de indemnização, ao contrário do que se verifica em relação aos efeitos naturais ou pessoais que possam resultar da lesão de um direito. Assim, a circunstância de a requerente se ver obrigada a arrendar ou comprar um imóvel (como refere na sua alegação) causada pela falta de renovação do contrato de comodato não consubstancia, por si só, um qualquer prejuízo grave e dificilmente reparável capaz de alicerçar o receio que pretende ver acautelado.»
E, mais adiante:
«Ademais, bem vistas as coisas, a requerente alega e junta um escrito nos termos do qual resulta a sua investidura na qualidade de comodatária, por força da celebração, em outubro de 2013, de um contrato de comodato com um 3.º, sujeito a prazo certo de 2 anos e renovável por iguais períodos. De acordo com os documentos juntos, nos quais a requerente estriba a sua pretensão, descortina-se que a carta dirigida por esse 3.º à requerida com vista à cessação do contrato de comodato data de 20 de dezembro de 2023, ou seja, trata-se de um momento ulterior à renovação do contrato por mais dois anos, de novembro de 2023 a novembro de 2025 (conforme resulta das cláusulas contratuais estipuladas pelas partes). Perscrutando o teor da aludida carta consta, além do mais, que «produzindo a presente denuncia todos os seus efeitos ou seja, no termo da presente renovação impedindo desta forma a renovação automática para o próximo período». Significa que, se bem analisado o teor da referida carta, o contrato terá a sua vigência até ao novembro de 2025. Assim, é apodítico concluir que, não sendo a cessação do comodato suscetível de fundar, ipso facto, o receio de uma lesão grave e dificilmente reparável, a fortiori ratione, menos é quando a ameaça não é iminente nem atual (destaque e sublinhado nosso).
Afigura-se totalmente correto este entendimento, pois ao invés do sustentado pela recorrente, a ameaça de perder a sua habitação não é iminente nem atual, estando pelo menos assegurada a permanência na mesma até novembro de 2025, como de forma clara se expôs na decisão recorrida.
Ademais, como também se refere na decisão recorrida, o requerido reside no imóvel da requerente há mais de 10 anos, e durante todo este período a recorrente não instaurou qualquer ação tendente a obter a sua entrega, sabendo do caráter precário do referido contrato de comodato, citando-se, a propósito, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.10.2020 Proc. 1228/19.5T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt. , no qual se considerou como não verificado o requisito do periculum in mora «quando o requerente teve já tempo e oportunidade de em momento anterior por termo à situação em que se concretiza a situação de perigo de verificação do dano a que se pretende obstar com a providência requerida e só o não fez por inércia».
Assim, não tendo sido alegados factos essenciais que sustentem a pretensão da recorrente, não se justifica o convite ao aperfeiçoamento, como bem se considerou na decisão recorrida.
Em suma, não decorrendo da alegação da requerente/recorrente a existência de factos que configurem a existência de lesão grave e dificilmente reparável, não podia a providência requerida ser decretada, não merecendo qualquer censura a decisão recorrida.
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencida no recurso, suportará a requerente/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
Sumário:
I - O periculum in mora refere-se ao perigo no retardamento na tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo do mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido.
II - Caberá, assim, ao requerente provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis.
III - Não basta a prova sumária no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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Évora, 11 de julho de 2024
Manuel Bargado (relator)
Francisco Xavier
Elisabete Valente
(documento com assinaturas eletrónicas)