I. A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, produzida em razão da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, prevê a amnistia de um número concretizado de infrações; e também um perdão de penas, nos termos nela precisados.
II. O perdão de penas caracteriza-se por ser uma medida de graça, por via da qual, a comunidade politicamente organizada, declara de forma geral e abstrata, através de lei formal, uma atenuação da pena ou da sanção aplicadas a crime ou a infração cometida.
III. O perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, incide sobre a pena única até 120 dias (artigo 3.º, § 2.º, al. a) e § 4.º), não sendo aplicável à pena única fixada em medida superior àquela.
Tendo o arguido contestado a acusação e arrolado prova.
A final o tribunal proferiu sentença, na qual o condenou pela autoria de dois crimes de ofensa à integridade física (2), um dos quais na pena de 60 dias de multa e o outro na pena de 100 dias de multa. Operando o cúmulo jurídico das aludidas penas, respeitantes ao concurso de crimes, condenou-o na pena única de 140 dias, à razão diária de 6€.
b. Inconformado com a decisão proferida o arguido apresentou-se a recorrer, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:
«1. Analisando os factos 3. e 7. da matéria provada, ressalta que os mesmos não passam de alegações genéricas, sem qualquer rigor e concretização, sem que dos mesmos resulte qualquer motivação para a prática dos factos pelo arguido, nem as datas concretas da sua prática, pelo que são desprovidos de relevância penal, tendo de ser considerados não escritos e eliminados da matéria provada, por violação irreparável do direito ao contraditório e das garantias de defesa do arguido em processo penal, em clara violação do disposto no artigo 32.º da CRP.
2. Sem conceder, impõe-se alterar a matéria de facto provada, eliminando-se os factos provados 3.º a 8.º e 10.º a 12.º por absoluta carência de prova quanto à maioria dos factos que vieram a ser dados como provados pelo tribunal.
3. Com efeito, as contradições, incoerências e imprecisões das declarações da ofendida, em quem o tribunal fundou a sua convicção para dar como provado aqueles factos provados, são mais do que suficientes para desacreditar e descredibilizar toda a versão da ofendida quanto às agressões (físicas e verbais) de que alegadamente diz ter sido foi vítima, impondo-se a sua eliminação da matéria provada.
4. Importa referir que a versão da ofendida não foi confirmada, direta ou indiretamente por qualquer meio de prova e é seguro que as mesmas são até infirmadas pelo próprio auto de denúncia de fls 2 e 4.
5. A resposta mais constante da ofendida foi “não sei” (a título exemplificativo, minutos 3:51 a 4:11, 4:22 a 4:30, 6:38, 6:57, etc das suas declarações do dia 07/12/2023, das 9h54 às 10h17 das declarações da ofendida).
6. A ofendida não soube sequer justificar a razão das alegadas agressões, nem o contexto em que foram produzidas, afirmando que o arguido, nomeadamente, lhe apertou o pescoço sem dizer nada (minutos 7:35 a 7:48 das suas declarações), e que lhe batia com a toalha molhada sem dizer nada (minutos 9:00 a 9:20 das declarações da ofendida, do dia 07/12/2023, das 9h54 às 10h17), nada dizendo também a ofendida nestas, não sendo sequer as alegadas agressões precedidas de discussões, o que contraria frontalmente regras da experiência comum.
7. A ofendida também não localizou temporalmente as alegadas agressões com a toalha, avançando um aborto que nem se sabe sequer se ocorreu e quando ocorreu, já que a única prova produzida relativamente a este facto foram as declarações da ofendida, declarações essas que são contrariadas pelas as declarações que prestou em inquérito.
8. A ofendida, que nas suas declarações em julgamento, afirmou que o arguido nunca lhe deu bofetadas porque não queria deixar marcas para os pais e os colegas de trabalho não verem (minutos 13:52 a 14:08 das suas citadas declarações), na queixa que apresentou referiu, contraditoriamente, que o arguido lhe desferia murros nas pernas, braços e costas.
9. A ofendida que declarou, em julgamento, que o arguido não a deixava contactar familiares, foi a mesma que declarou que, no dia 29/05/2022, o arguido lhe apertou o pescoço com as duas mãos, deixando-lhe marcas, enquanto os seus pais esperavam por si à porta, deixando o arguido sair de casa a ofendida para ir ter com os pais logo, após a agressão, com as marcas no pescoço (minutos 14:48 a 16:17 das referidas declarações da arguida do dia 7/12/2023).
10. Pais estes que nem sequer foram chamados aos autos para confirmar ou infirmar esta fantasiosa versão.
11. Ora, a prova dos factos cabia à acusação e o que é evidente é que, vindo o arguido acusado de factos em que terceiros terão tido conhecimento direto ou indireto dos mesmos - factos 8. e 9. da acusação – para que os mesmos se dessem como provados, tais terceiros teriam de ser chamados a depor, o que não aconteceu.
12. É que, pelo menos, no caso do dia 29 não temos uma simples agressão praticada entre 4 paredes fora dos olhares de terceiros.
13. Temos uma agressão praticada momentos antes de a ofendida enquanto os pais da ofendida estavam à porta, tendo a ofendida marcas no pescoço que alegadamente os pais viram e, ainda assim, a ofendida não foi ao centro de saúde (sem ter avançado uma razão para não ter ido), nem os pais foram ouvidos para confirmar a sua versão.
14. Não colhe nem é racional, por conseguinte, o argumento avançado pelo tribunal para dar total credibilidade ao depoimento da própria ofendida, de que as condutas criminosas ocorrem no seio do lar, longe dos olhares de terceiros.
15. Em face de todas as contradições evidenciadas nas declarações prestadas em julgamento pela ofendida e entre estas e o auto de notícia, tinha de gerar-se no espírito do julgador uma dúvida insanável sobre a credibilidade da versão apresentada.
16. No âmbito do direito penal há certos princípios básicos, como o do in dubio pro reo, da presunção de inocência e do contraditório que não podem ser desvirtuados ou afastados apenas porque de um lado está um arguido (homem) e do outro uma ofendida (mulher).
17. Sustentando-se a prova dos factos 3 a 8 da matéria provada apenas nas declarações da ofendida, que já se constatou não oferecerem um mínimo de credibilidade e confiabilidade, o princípio do in dubio pro reo impunha que os mesmos fossem dados como não provados.
18. Consequentemente harmonizando a matéria provada, em face das alterações propugnadas, impõe-se a necessária eliminação dos factos 10 a 12 da matéria de facto, por total falta de suporte objetivo.
19. Procedendo a impugnação da matéria de facto, não oferece dúvidas de que o arguido tem de ser absolvido dos crimes em que foi condenado, por não se verificarem os seus pressupostos, ou seja, a prática de um qualquer ilícito criminal por parte do arguido.
20. Ainda que assim não se entenda, sempre as penas de multa parcelares aplicadas terão de ser reduzidas em 20 dias cada uma, em face pessoais do arguido que foram dadas como provadas na Sentença, a ausência de antecedentes criminais e a sua integração pessoal, familiar e profissional na sociedade, e a pena única não poderá ultrapassar os 100 dias de multa.
21. Sempre sem conceder, para o caso de se manter a Sentença ou de se manter a condenação, com redução das penas parcelares e única como requerido, impõe-se a aplicar aos autos da Lei 38º-A/2023, de 2/08 (adiante designada abreviadamente por Lei da Amnistia), que prevê a amnistia de vários crimes e o perdão de penas (artigo 1.º da Lei da Amnistia), relativamente aos crimes praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade (artigo 2.º, n.º1 da referida Lei), por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, perdoando-se as penas aplicadas ao arguido.
22. Decidindo, como decidiu, violou a Exma. Juíza, designadamente, o disposto nos artigos 32.º, n.º 1, da CRP, artigos 127.º do CPP, 143º, do CP, artigos 1º. 2 e 3º, 2 al. a) da Lei da Amnistia e os princípios do in dubio pro reo, do contraditório e da presunção de inocência.»
c. Admitido o recurso o Ministério Público respondeu, pugnando pela sua improcedência, referindo em síntese que:
- Os factos 3. e 7. contribuem para um melhor conhecimento do quadro circunstancial em que se inserem as agressões do arguido à vítima;
- O recorrente impugna a convicção do tribunal, pretendendo substitui-la pela sua, que entende ser melhor;
- O tribunal não se confrontou com qualquer dúvida na análise e valoração da prova e subsequente julgamento dos factos, pelo que não há razão para a invocação do princípio in dubio pro reo.
- A medida das penas aplicadas respeita os parâmetros normativos.
- O perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/023, de 2 de agosto, incide sobre a pena única até 120 dias, não sendo aplicável neste caso.
d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância pronunciou-se no sentido de o recurso não ser merecedor de provimento, referindo no essencial que: «o elemento literal usado pelo legislador não consente outra interpretação que não seja a de que, nas situações em que o arguido tenha sido condenado em pena única – resultante da realização de cúmulo jurídico de penas de prisão ou de multa (uma vez que a lei se reporta genericamente ao cúmulo jurídico sem qualquer referência ou distinção relativamente à natureza das penas cumuladas) – apenas a pena única deverá ser tida em conta para aferição dos pressupostos de aplicação do perdão. (…) Assim sendo, não pode ser aplicado qualquer perdão uma vez que a pena única aplicada se encontra fora da previsão do aludido artigo 3.º, n.º 2 alínea a), ou seja, a medida concreta aplicada é superior a 120 dias de multa.»
e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido não veio apresentar qualquer resposta.
f. Os autos foram aos vistos e à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (3), estando suscitadas as seguintes questões:
i) Erro de julgamento da questão de facto, relativamente aos factos 3. a 8. e 10. a 12.). iii) In dubio pro reo; iv) Erro de julgamento de direito – medida das penas; v) Erro de julgamento de direito – aplicação do perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
B. O tribunal recorrido considerou provado o seguinte quadro factológico:
«1) O arguido AA e a vítima BB mantiveram uma relação análoga à dos cônjuges, com partilha de mesa, leito e habitação, com início no final do ano de 2021, durante o período do Natal, que terminou em 29 de maio de 2022.
2) Durante esse período, o casal residiu no …, n.º …, em …, concelho de ….
3) Desde o final de março de 2022, altura em que a vítima sofreu um aborto, o arguido passou a pautar o seu comportamento para com a mesma com agressividade.
4) Em datas que não consegue precisar, mas entre o final de março de 2022 e o dia 29 de maio de 2022, o arguido, no interior da residência de ambos, por mais de uma vez, desferiu várias pancadas na vítima com uma toalha molhada.
5) Nessas ocasiões, o arguido dirigiu à vítima a expressão “puta”.
6) Numa dessas ocasiões, em 29 de maio de 2022, dentro da residência de ambos referida em 2), o arguido apertou o pescoço da vítima.
7) O arguido revelava ainda ter um comportamento possessivo para com a vítima, não permitindo que a mesma falasse com a família, e por mais de uma vez, retirou-lhe o telemóvel da mão e proibiu-a de contactar com a família.
8) No dia 29 de maio de 2022, a vítima, saturada do comportamento agressivo do arguido, saiu da residência de ambos e foi para a habitação dos seus pais.
9) A vítima foi posteriormente sinalizada para o serviço de teleassistência.
10) O arguido sabia que a expressão que dirigiu à vítima era apta a atingir a sua honra, consideração e dignidade pessoal, e a causar-lhe humilhação, e, não obstante, quis atuar da forma como o fez, com o propósito de alcançar tal resultado, que também logrou conseguir, bem sabendo que ao fazê-lo dentro da residência de ambos, diminuía a capacidade de defesa da mesma, e mesmo assim quis agir da forma como agiu.
11) O arguido atuou, ainda, com o propósito alcançado de atingir e lesar o corpo e saúde da vítima, sabendo que dessa forma lhe causaria dores e lesões, e ainda assim quis agir como agiu.
12) Em todos os factos descritos o arguido AA agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.»
B.1 Tendo motivado a sua convicção nos seguintes termos:
«Em julgamento estavam sujeitos a apreciação factos enquadráveis no contexto da dita “violência doméstica”, sabendo-se que, na grande maioria destas situações, as condutas criminosas ocorrem dentro de quatro paredes, preservadas da observação alheia, só sendo presenciadas pelo próprio agressor e pela vítima.
Por assim ser, as declarações da vítima devem merecer a devida ponderação do julgador na livre apreciação que faça da prova produzida.
Poder-se-á então afirmar que para distribuir da forma supra elencada os factos provados e não provados, o Tribunal teve como principal referência o depoimento prestado pela própria vítima, a ex-companheira do arguido BB, tanto mais que nada há que leve a concluir, ou sequer a suspeitar, de que não falou com verdade.
Assim, importará desde logo realçar que o depoimento de BB revelou-se credível e suficientemente elucidativo quanto à ocorrência dos factos sobre os quais incidiu, não obstante algumas imprecisões relacionadas com datas ou até alguns esquecimentos, perfeitamente compreensíveis face ao seu notório nervosismo, ao contexto em que circunscreveu os comportamentos do arguido e também devido ao distanciamento temporal desde a sua prática.
Descrevendo o período de coabitação com o arguido, BB confirmou os factos vertidos em 1) a 8), 13) e 14) dos Factos Provados, o que fez visivelmente emocionada pelo reviver das situações descritas, ocorridas desde o final de março de 2022.
A credibilidade e segurança que lhe foi atribuída, levou a que o tribunal ficasse plenamente convicto da efetiva ocorrência dos factos dados como provados, sendo essa a justificação para a resposta positiva que obtiveram.
Importa também dizer que a testemunha arrolada pelo arguido não teve a virtualidade de causar qualquer abalo na convicção formada no que concerne à efetiva verificação dos factos dados como provados, desde logo porque nada sabia a tal propósito, tendo-se limitado a confirmar o facto vertido em 16) dos Factos Provados.
Ainda no que concerne às condutas do arguido dadas como provadas, os elementos subjetivos a elas inerentes retiram-se das regras de experiência comum, tendo em consideração a natureza dos factos por si praticados.
Os factos dados por inverificados têm como explicação comum a circunstância de não terem sido confirmados pelo relato da própria vítima, tendo a mesma esclarecido, a propósito das publicações e mensagens juntas pelo arguido em sede de contestação, que a sua conta da rede social Instagram (…) tinha sido clonada há já cerca de um ano, tendo apresentado várias queixas junto daquela rede social pela utilização indevida que alguém estaria a fazer da referida conta, facto que suscitou dúvidas quanto à sua autoria. Também relativamente às mensagens áudio juntas aos autos nenhuma prova existe de que tenham tido origem em telemóvel pertença do arguido ou que sejam da sua autoria, sublinhando-se não ter sido realizada qualquer peritagem aos telemóveis, tanto do arguido como da ofendida.
Finalmente, o Tribunal teve em consideração o teor de fls. 25 a 28, 51 a 54, 58 a 60, 68 a 72, 88 a 92, 157 a 160, 163 a 166, 179 a 181 e 185 a 195 dos autos e, bem assim, atendeu ao CRC do arguido junto aos autos, bem como às declarações prestadas pelo mesmo quanto ao seu atual contexto de vida (estas conjugadas com o teor de fls. 247 e 248 dos autos).»
C. Apreciando
C.1 Erro de julgamento da questão de facto
O recorrente considera que os factos provados alinhados na sentença recorrida sob os n.ºs 3. a 8. e 10. a 12. foram erradamente julgados (não obstante acrescenta que os factos 3. e 7. «são irrelevantes», que deverão ser simplesmente «eliminados»)! Adianta, no essencial, para sustentação da pretensão impugnatória, que tais factos devem ser considerados não provados, «por absoluta carência de prova»! Para tanto ilustrar refere que as declarações da ofendida, nas quais o tribunal firmou a sua convicção, estão cheias de «contradições, incoerências e imprecisões», nomeadamente quanto à descrição das agressões físicas e verbais, sobre as quais nem sequer soube «justificar a razão» de ser das mesmas! «Nem o contexto em que foram produzidas».
Acrescenta que as mesmas são até «infirmadas pelo próprio auto de denúncia» e ainda que nem os pais da ofendida «vieram aos autos corroborar essa versão», nem a ofendida «tão pouco foi ao centro de saúde mostrar as marcas com que alegadamente ficou no pescoço».
Na resposta ao recurso o Ministério Público refere que os factos 3. e 7. contribuem para um melhor conhecimento do quadro circunstancial em que se inserem as agressões do arguido à vítima. Acrescentando quanto ao mais que o recorrente dirige a sua impugnação ao julgamento de facto atacando a convicção do tribunal, pretendendo substitui-la pela sua, que entende ser melhor.
Concordamos integralmente com o Ministério Público.
O recorrente atira ao valor probatório das declarações da ofendida, que procura descredibilizar. Sendo neste exato contexto que faz as referências ao auto de notícia e à ausência de outras testemunhas para corroborarem as declarações prestadas por aquela - meros acessórios para descredibilizar o seu depoimento. E assim porque foi essencialmente nele que o tribunal recorrido firmou a sua convicção relativamente à factualidade que julgou provada.
Talvez devamos começar a nossa apreciação por recordar que não encontramos nenhuma contradição relevante entre os factos constantes do auto de notícia de 6/6/2022 (lavrado no Posto Territorial da GNR de …) e as declarações prestadas pela ofendida na audiência.
Há, claro, pequenas discrepâncias, decorrentes da natureza das coisas, pois que a descrição repetida dos mesmos factos/eventos em momentos diversos no tempo, dão sempre azo a pequenas divergências. O ponto é saber se elas são normais ou anormais. Sê-lo-ão anormais quando, por exemplo, haja flagrante contradição, inexplicada ou inexplicável.
Mas não é isso, notoriamente, o que sucede no presente caso. Para tanto comprovar bastará confrontar criticamente os dois relatos. Mas sobrando dúvidas, por se considerar haver algo inexplicável, seria na audiência que o recorrente deveria ter procurado esclarecê-las.
Por outro lado, contrariamente ao que parece vir pressuposto no recurso, nada impede que a convicção do julgador se alicerce no depoimento de uma única testemunha. Mesmo tratando-se do(a) ofendido(a), ou de declarações do(a) assistente ou do(a) demandante (tantas vezes são apenas estes - e o arguido - quem sabe o que se verdadeiramente passou), desde que a motivação da decisão de facto explicite a lógica e razões do seu convencimento. (4)
A crítica à convicção do tribunal, sustentada na sua livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova que foi produzida.
«A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detetáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e direto com as pessoas. O tribunal de recurso, salvo casos de exceção, deve adotar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.» (5)
A atribuição de credibilidade à prova testemunhal assenta na perceção do julgador, firmada na imediação com a prova e na oralidade que permite a interação necessária aos esclarecimentos pertinentes.
Decidindo o juiz de acordo com a sua livre convicção, o tribunal de recurso só poderá censurá-la se ela for contrária às regras da lógica ou às máximas da experiência comum.
Nas circunstâncias do presente caso, conforme poderemos verificar na motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida, o tribunal a quo justificou por que razão conferiu credibilidade às declarações da ofendida (reconhecendo as fragilidades como sendo próprias das circunstâncias do acontecido). Sendo o elenco de motivos ali explicitados, bem assim como o raciocínio subjacente à tomada de decisão, racionalmente consentâneos com as regras da lógica e da experiência comum, em criteriosa observância dos critérios que inerem ao princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do CPP.
Inexistindo, pois, fundamento para proceder às alterações pretendidas à matéria de facto, mostrando-se o recurso neste conspecto, infundado.
C.2 In dubio pro reo
O recorrente alude também - em registo consequente - ao princípio in dubio pro reo, considerando que «sustentando-se a prova dos factos (…) apenas nas declarações da ofendida (…) o princípio do in dubio pro reo impunha que os mesmos fossem dados como não provados»! Mas impunha mesmo?
Na sua resposta ao recurso o Ministério Público lembra que o tribunal a quo não se confrontou com qualquer dúvida na análise e valoração da prova e subsequente julgamento dos factos, pelo que não vê razão para a invocação do princípio in dubio pro reo. Entendamo-nos. O sentido e conteúdo do princípio in dubio pro reo - que integra uma das dimensões do princípio da presunção de inocência (garantia fundamental plasmada no § 2.º do artigo 32.º da Constituição) (6) - não serve para esgrimir com base na convicção do próprio recorrente! E é isso - e só isso - o que subjaz a este argumento recursivo.
O princípio in dubio pro reo encerra uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
É, em retas contas, uma forma de ultrapassar o impasse probatório em sede factual (um non liquet), id est na fase de apreciação probatória.
Mas não se vulnera esse princípio «quando, de acordo com a opinião do condenado, o juiz devia ter duvidado; mas somente quando o juiz apesar da existência real de uma dúvida condenou.» (7) Pois só o tribunal é tercero en discordia (8), isto é, só o juiz possui as características da independência e de imparcialidade (e, já agora, a necessária preparação técnica) que não só o habilita como o legitima a julgar.
Daí que a tal «dúvida» só poderá ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, de modo evidente, que o tribunal tendo dúvidas (ou não podendo deixar de as ter) sobre o acontecido optou por decidir contra o arguido.
Conforme claramente decorre da sentença, o tribunal recorrido não julgou os factos que o recorrente se apresenta a impugnar, com base em dúvidas que teve relativamente à verificação dos mesmos. Antes os considerou provados por entender que as provas produzidas os demonstram, conforme bem se explicita na motivação da decisão.
A mera (ou interessada) circunstância de o arguido/recorrente - firmado na sua interpretação das declarações da ofendida - entender que tais declarações, só por si, determinariam uma dúvida inultrapassável, não integra o pressuposto constitucional e legal a que vimos fazendo referência. Pois que do julgamento realizado e da sentença recorrida não emerge que o tribunal a quo se tivesse confrontado com qualquer dúvida sobre qualquer dos factos em referência.
Restando, por isso concluir, que nenhuma vulneração sofreu a garantia constitucional da presunção de inocência, nem qualquer outra das garantias processuais do arguido/recorrente, pelo que nada há a alterar à factualidade julgada provada na 1.ª instância.
C.3 Erro de julgamento de direito – medida das penas
Sustenta o recorrente que - a manter-se a condenação - as penas de multa parcelares que lhe foram aplicadas, deverão ser reduzidas em 20 dias cada uma delas, em decorrência das suas condições pessoais, da ausência de antecedentes criminais e da sua integração familiar e profissional na sociedade, não devendo a pena única ultrapassar os 100 dias de multa.
Também nesta matéria importará recordar que o recurso não é uma nova oportunidade para se realizar um novo juízo sobre a decisão de primeira instância ou a este se substituir. Sendo, antes (e apenas) um meio de corrigir o que de menos próprio tenha sido decidido pelo tribunal a quo. Conforme este Tribunal da Relação tem reafirmado nesta matéria, a intervenção do tribunal de recurso deve ocorrer «apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da pena, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. (9) Efetivamente, o recurso não visa nem pretende eliminar a margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de 1.ª instância enquanto componente individual do ato de julgar. A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. (…)» As razões indicadas pelo recorrente visando alterar a medida das penas fixadas, foram já apreciadas pelo tribunal a quo, conforme evidencia o ponto «V» da sentença recorrida: «(…) Considerando que o arguido não tem antecedentes criminais registados, entende o Tribunal que uma pena de multa mostra-se adequada e proporcional à culpa do arguido, satisfazendo as necessidades de prevenção e reprovação dos crimes em causa nos autos.
Atento o conteúdo dos citados artigos 40.º, n.º 1, e 71.º do Código Penal, são de considerar os seguintes fatores, os quais militam contra o arguido:
- As necessidades de prevenção geral são elevadas, atendendo à frequência com que aparecem em Tribunal casos similares ao dos autos.
- O grau da ilicitude é mediano, porquanto inserido dentro dos padrões usuais para o mesmo tipo de conduta.
- O dolo é direto.
A favor do arguido depõem as seguintes circunstâncias:
- Os factos ocorreram normalmente depois de o arguido ter ingerido bebidas alcoólicas, o que constitui fator desinibidor, alterando o comportamento habitual.
- Dos factos não resultaram lesões físicas graves e permanentes para a ofendida.
- O arguido encontra-se inserido familiar e profissionalmente.
- Não tem antecedentes criminais registados.» Tais circunstâncias têm naturalmente de ser ponderadas juntamente com outras que com elas estão conexas. E ter em consideração a gravidade e a extensão dos factos ilícitos praticados, conforme se ajuíza na sentença recorrida. Atentas as exigências de prevenção geral (segundo as quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade da norma violada) e as necessidades de prevenção especial (componente positiva ou de socialização por excelência, cujos parâmetros têm em vista o não cometimento de novos crimes pelo arguido e a sua reinserção) - artigos 40.º, 70.º e 71.º CP – constatamos que a ponderação efetuada na sentença recorrida observa judiciosamente os parâmetros normativos, não sendo merecedora de qualquer reparo. Mostra-se, pois, inconsistente, a pretensão de alteração da medida das penas parcelares e única aplicadas.
C.4 Erro de julgamento de direito – aplicação do perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
No pressuposto da alteração da medida das penas parcelares e (sobretudo) da pena única, o recorrente sustenta estar em condições de beneficiar do perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Com efeito, em razão da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, a referida Lei veio prever, entre o mais, um perdão de penas, nos termos nela precisados.
O perdão de penas é uma medida de graça, por via da qual, a comunidade politicamente organizada, declara de forma geral e abstrata, através de lei formal, uma atenuação da pena ou da sanção aplicadas a crime ou a infração cometida.
Esquematicamente, com referência à Lei citada, poderemos dizer que:
O perdão de penas é aplicável a:
a) Penas de prisão até 8 anos independentemente da natureza do crime (com exceção dos crimes previstos nos § 1.º e 2.º do artigo 7.º da Lei citada), independente do modo de execução da pena (artigo 3.º, § 5.º);
b) A penas de multa aplicadas até 120 dias;
c) A penas de prisão subsidiária ou de substituição de pena de prisão;
d) Às demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.
Acrescendo que a aplicação das medidas de clemência previstas na citada Lei (amnistia de infrações e perdão de penas), dependem da verificação de determinados pressupostos:
- Temporais: a lei é aplicável apenas a infrações cometidas até às 00 horas do dia 19/6/2023 (artigo 2.º);
- Etários: a lei apenas é aplicável a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (artigo 2.º);
- E materiais: a lei não é aplicável aos crimes previstos nos § 1.º e 2.º do artigo 7.º.
Conforme bem refere o Ministério Público na resposta ao recurso, o perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, incide sobre a pena única até 120 dias (artigo 3.º, § 2.º, al. a) e § 4.º), não sendo aplicável neste caso, atenta a medida fixada à pena única.
III – Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a sentença recorrida.
b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Évora, 11 de julho de 2024
J. F. Moreira das Neves (relator)
Jorge Antunes
Nuno Garcia
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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).
2 A alteração da qualificação jurídica firmou-se no seguinte juízo: «perante a factualidade provada, impõe-se a conclusão de que tais factos não integram a prática pelo arguido do crime de violência doméstica, pois não logrou a acusação comprovar nenhuma agressão física ou psicológica que tivessem intensidade suficiente para integrar a prática deste ilícito.»
3 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.
4 Cf. acórdãos da TRCoimbra de 18jan2017 e de 17mai2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1; e acórdão do TRLisboa, de 18jan2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3
5 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27fev2003, proc. 140/03, do qual foi relator o Cons. Carmona da Mota.
6 Em sentido algo diverso Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, 2019, Almedina, pp. 66 ss.
7 Claus Roxin e Bernd Schünemann, Derecho Procesal Penal, Buenos Aires, 1.ª ed., 2019, p. 573 (tradução da 29.ª edição da C. H. Beck, München), Ediciones Didot, p. 573).
8 Título feliz de obra de Perfecto Andrés Ibañez (magistrado del Tribunal Supremo de España), Editorial Trotta, 2015, pp. 251 ss.
9 Acórdão TRÉvora, de 22/4/2014, proc. n.º 291/13.7GEPTM.E1, Desemb. Ana Barata Brito. No mesmo sentido cf. Acórdãos do TRÉvora, de 29/5/2012, proc. 72/11.2PTFAR.E1, Desemb. António João Latas; e acórdão TRÉvora, de 16/6/2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1, Desemb. Clemente Lima, todos disponíveis em www.dgsi.pt