Constando da decisão recorrida claramente explicitados todos os factos criminosos que se mostram indiciados, assim como o seu circunstancialismo de tempo, modo e local se mostra devidamente concretizado, o mesmo sucedendo com a indicação da respetiva prova indiciária que os sustenta, que foi, de acordo com as regras da experiência comum, detalhadamente analisada e conjugada., e ali se procedendo à indicação da qualificação jurídica dos factos imputados, a decisão mostra-se devidamente fundamentada, com apresentação do desenvolvimento factual lógico e cronológico das diversas situações que a integram, assim como da prova indiciária, bem como da respetiva qualificação jurídica dos factos, o que satisfaz plenamente as garantias de defesa do arguido, facultando-lhe a dimensão real do atual objeto do processo.
I – RELATÓRIO
1. Após o primeiro interrogatório judicial subsequente à detenção foi determinado, por despacho judicial proferido a 21 de fevereiro de 2024, que o arguido AA, melhor identificado nos autos, aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva.
2. Inconformado com esse despacho, o arguido interpôs o presente recurso, peticionando a este Tribunal da Relação que o mesmo seja revogado “substituindo-se por outro que altere a medida de coação de prisão preventiva para outra menos gravosa como apresentações periódicas às autoridades e proibição de contactos”.
Da motivação do recurso extraiu as seguintes conclusões (transcrição):
“a) Vem o presente recurso interposto da decisão do tribunal a quo que se decidiu pela aplicação da prisão preventiva ao arguido.
b) Independentemente de se poder vir a discutir mais tarde se existem fortes indícios do cometimento dos crimes que são imputados ao arguido e até a sua qualificação jurídica, verdade é que nos casos apresentados quer o desvalor da ação quer o desvalor do resultado não fazem prognosticar a aplicação ao arguido de uma pena única superior a 4 anos de prisão.
c) É verdade que o passado criminal do arguido não abona juízos de prognose favoráveis que a simples ameaça de prisão seja suficiente para esconjurar o perigo de continuação da atividade criminosa, mas isso é questão para a sentença aquando da valoração das necessidades de prevenção especial.
d) Já Carrara alertava que prender alguém só por ser suspeito de ter cometido crimes é um absurdo pernicioso aos fins das penas numa sociedade baseada na dignidade da pessoa humana.
e) Também Eduardo Correia alertava para a necessidade de mentalizar ou consciencializar a sociedade que a prisão não é a resposta adequada para tudo, havendo, aliás, que ser aplicada como última ratio, o que de resto está consignado no artigo 202.º do CPP.
f) É ainda de fazer lembrar que é a própria Constituição, frequentemente olvidada nos tribunais, que consagra que “A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.”.
g) A este propósito, Germano Marques da Silva ensinou que é em liberdade que o arguido se pode convenientemente defender.
h) E é de lembrar que, desde sempre, vivemos numa sociedade de risco, pelo que os perigos pretendidos esconjurar pela aplicação das medidas de coação existirão sempre e não podem servir de pretexto para antecipar e forçar a pena de prisão.
i) E o legislador constitucional estava – e está bem – bem ciente de que os perigos existem e ainda assim consagrou que a prisão preventiva é medida excecional não devendo ser decretada sempre que outras medidas sejam suficientes para esconjurar os perigos.
j) Para concluir que a medida de coação de prisão preventiva não é a única que se mostra necessária, proporcional e adequada à gravidade dos crimes tidos por indiciariamente praticados pelo Arguido.
k) Ao invés, a mesma contraria a natureza excecional consagrada constitucionalmente e ao nível do direito infraconstitucional é desadequada e desnecessária,
l) Pelo que deve a mesma ser substituída por apresentações periódicas às autoridades e medida de proibição de contatos, ou no limite, pela medida de obrigação de permanência na habitação prevista no Artº 201 do CPP..”.
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3. Admitido o recurso, a subir de imediato, em separado e sem efeito suspensivo, ao mesmo respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida.
Formulou as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso tem por objeto aferir se a decisão ora impugnada se mostra devidamente fundamentada e se violou os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade consagrados nos artºs 191º, 193º, nºs 1, 2 e 3 ao aplicar ao arguido a medida de coação de prisão preventiva;
2. Entende o recorrente, em síntese, que a decisão ora impugnada peca por falta, ou insuficiência, de fundamentação dos concretos perigos que impuseram a sujeição do arguido à medida de coação de prisão preventiva bem como a não opção por outras medidas de coação menos gravosas, entendendo que a medida de coação de apresentações periódicas é a adequada a acautelar os concretos perigos que o Tribunal “a quo” entendeu que se verificavam no caso concreto;
3. Salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que a medida de coação aplicada ao arguido por decisão datada de 21.02.2024 respeita os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade sendo a única medida capaz de acautelar os concretos perigos de continuação da atividade criminosa, perturbação do inquérito e da instrução e fuga, estando, igualmente, devidamente fundamentada;
4. Assim, no que tange ao concreto perigo de continuação da atividade criminosa, o Tribunal “a quo”, a fundamentação constante da decisão sob recurso permite aferir em que factos alicerçou o tribunal a sua convicção bem como o raciocínio lógico que efetuou para concluir pela verificação do referido perigo;
5. Com efeito, da leitura dos fundamentos constantes da página 16 da decisão recorrida, concluímos que o tribunal alicerçou a sua convicção na circunstância de o arguido registar várias condenações anteriores pela prática de ilícitos contra o património e pelos quais cumpriu pesadas penas;
6. Ora, se se verificam fortes indícios da prática, pelo arguido, de, pelo menos três crimes de roubo e um crime de furto qualificado, é manifesto (e o tribunal assim o concluiu) que tais condenações, nas palavras do Tribunal “a quo”, “não foram contra motivação suficiente para demover o arguido da prática dos factos que aqui se conhecem, qual aliás, praticou quando em liberdade condicional.”.
7. Mais resulta da decisão recorrida que os factos fortemente indiciados foram praticados quando o arguido ainda se encontrava em liberdade condicional, sendo que “a «espada de Dâmocles» que é a possibilidade de revogação da liberdade condicional não demoveu o arguido de praticar estes factos, sendo que agora, para além de crimes contra o património, passou a praticar crimes que também atentam contra bens jurídicos pessoais (…)”.
8. Julgamos que, no que tange ao concreto perigo de continuação da atividade criminosa a decisão sob recurso mostra-se suficientemente fundamentada.
9. O mesmo sucede quanto à fundamentação do concreto perigo de perturbação do decurso do inquérito e da instrução, na vertente de aquisição e/ou manutenção da prova.
10. Com efeito, entendeu o tribunal “a quo” que tal perigo se verificava porquanto “o crime de coação tentada que lhe é imputado visou precisamente escudar-se da ação da justiça, tendo, também, durante o roubo de que foi vítima BB, ameaçado a mesma de morte caso esta chamasse a polícia.” .
11. Assim, tendo por base os indícios recolhidos assentes nos meios de prova que, à data do primeiro interrogatório, existiam nos autos, bem andou o tribunal ao aplicar ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, por necessária, adequada, e proporcional, sendo a única capaz de acautelar os sobreditos perigos.
12. Com efeito, perante a verificação dos perigos de continuação da atividade criminosa, perturbação do decurso do inquérito e fuga (este último assente no facto de o arguido registar a condenação pela prática de um crime de evasão), as medidas de coação a aplicar teriam, necessariamente, de passar por medidas privativas da liberdade.
13. Porém, considerando a personalidade do arguido, claramente anti-social e indiferente à ação da justiça, e cuja reclusão não o impediu de tentar a fuga, é manifesto que, de entre as medidas detentivas, apenas a prisão preventiva é adequada a sob a suster os sobreditos perigos, tal como salientou o Tribunal “a quo”;
14. Com efeito, aí se pode ler “o arguido demonstrou à saciedade, com o seu comportamento passado, que é completamente indiferente à ação da justiça, pelo que qualquer medida de coação de natureza injuntiva (mesmo a OPHVE), será manifestamente ineficaz para colmatar os apontados perigos.”;
15. Pelo exposto, a medida de coação aplicada ao arguido é necessária, adequada e proporcional às exigências cautelares e à gravidade do crime que se mostra fortemente indiciado, sendo a única capaz de acautelar tais perigos.”.
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4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, com, para além do mais, o seguinte teor:
“A prova recolhida nos autos é esclarecedora quanto à intervenção do arguido na ocorrência dos factos.
Tais factos, a provarem-se em sede de audiência de discussão e julgamento irão conduzir, necessariamente, à condenação do arguido.
Mostra-se plenamente preenchido o conceito de “fortes indícios” conforme é descrito em autorizada jurisprudência (…).
Nessa conformidade, bem andou o Mme Juiz “a quo”.
Vejamos os crimes imputados ao arguido e respectiva moldura penal. - três crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal – 1 a 8 anos de prisão;
- um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, al e) do Código Penal – 2 a 8 anos de prisão; Vale isto por dizer que “in casu” pode ser aplicada a medida de coacção – prisão preventiva.
O Mme Juiz “a quo” fundamentou (bem) a aplicação da medida de coacção imposta. Evidenciou que: “…factos fortemente indiciados foram praticados quando o arguido ainda se encontrava em liberdade condicional, sendo que “a «espada de Dâmocles» que é a possibilidade de revogação da liberdade condicional não demoveu o arguido de praticar estes factos, sendo que agora, para além de crimes contra o património, passou a praticar crimes que também atentam contra bens jurídicos pessoais…”. Está bom de ver que o arguido não só demonstra forte energia criminosa como uma personalidade refractária ao direito e às normas da vida em sociedade.
Os anteriores contactos do arguido com o sistema de justiça não o demoveram da prática de novos crimes. Tudo isto foi devidamente exposto, valorado e atendido pelo Mme Juiz “a quo”. Finalmente, o Mme Juiz “a quo” para sustentar o perigo de fuga adiantou que: “… Existe de igual modo perigo de fuga, sendo que a este respeito, cumpre notar que o arguido já foi condenado pela prática de um crime de evasão, e andou evadido da ação da justiça sabendo que era procurado em …, como demonstram as declarações supra referidas…”.
Face ao exposto revela-se, como muito intenso, o perigo de fuga.
Consequentemente, para conjurar tão evidente perigo de fuga, haveria que aplicar uma medida privativa da liberdade. A compaginação e explanação de todos estes elementos leva-nos a concluir que se mostram totalmente preenchidos os requisitos a que alude a lei e que a decisão se mostra devidamente fundamentada não tendo violado os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade consagrados nos artºs 191º, 193º, nºs 1, 2 e 3 ambos do CPP.
Posto isto e sem necessidade de mais alongadas considerações, não restava ao Mme Juiz “a quo” outra alternativa senão aplicar ao arguido a medida de coação de prisão preventiva * É, para nós manifesto que não colhe a argumentação que o arguido devia aguardar os ulteriores termos processuais sujeito a medida de coacção não privativa da liberdade atenta a verificação dos referenciados perigos.”.
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5. O arguido recorrente, notificado do parecer, não veio responder.
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6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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II – QUESTÕES A DECIDIR.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o despacho judicial que impôs a medida de prisão preventiva –, as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:
- da verificação das condições de aplicação de medidas de coação para além do TIR (e em concreto do perigo de continuação da atividade criminosa e sua intensidade);
- da desnecessidade/inadequação da medida de coação de prisão preventiva.
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III – TRANSCRIÇÃO DO DESPACHO RECORRIDO.
A decisão recorrida tem, para além do mais, o seguinte teor:
“A detenção do arguido é válida, porque efetuada em cumprimento dos mandados cuja emissão foi determinada pelo Ministério Público, nos termos do despacho de fls. 311 e ss., cujos fundamentos se sufragam.
Mostra-se respeitado o prazo máximo para a sua duração previsto na lei.
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Compulsados os autos, julgo fortemente indiciados os seguintes factos:
Inquérito n.º 488/23.1PATNV:
1. No dia 18 de outubro de 2023, pelas 19 horas as ofendidas CC e DDo encontravam-se no interior do estabelecimento comercial de estética “…”, sito na Rua …, n.º …, em ….
2. Nesse dia e hora, AA entrou no estabelecimento comercial, munido com um objeto em tudo idêntico a uma lâmina de uma serra elétrica de cortar pão ou carne e vestindo roupa preta, uma balaclava preta, luvas pretas e usando uma mochila da marca … de cor cinzenta com alças pretas.
3. Após entrar no estabelecimento comercial o AA, sempre empunhando a lâmina, dirigiu-se às ofendidas e disse-lhe: “Isto é um assalto. Não se mexam se não mato alguém. Quero o dinheiro todo”.
4. Com medo do que o AA lhes pudesse fazer, as ofendidas não se mexeram nem se opuseram a que o mesmo se dirigisse à caixa registadora e daí retirasse a quantia monetária de € 70,00, assim como também não se opuseram a que o arguido se dirigisse à mala de ambas e as levasse consigo.
5. A mala da ofendida CC era da marca …, que vale € 80,00 e continha no seu interior óculos graduados da marca …, no valor de € 360,00 e óculos de sol da marca …, no valor de € 47,00, um telemóvel de marca … no valor de € 300,00 e diversos documentos pessoais e cartões bancários da ofendida.
6. A mala da ofendida DD era da marca … e continha no seu interior óculos de sol da marca …, chaves da casa e do seu veículo, € 40,00 em numerários, um telefone de trabalho e diversos documentos pessoais e cartões bancários da ofendida, da filha e de uma tia de nome EE;
7. O AA levou os € 70,00 que se encontravam na caixa registadora, bem como as malas das ofendidas com o respetivo conteúdo contra a vontade e sem o consentimento das ofendidas.
8. Com a sua atuação, o AA, perturbou de modo sério CC e DD no seu sentimento de segurança de tal forma que estas ficaram intimidadas, sendo certo que tal conduta era idónea a forçar as mesmas a deixá-lo levar o dinheiro que se encontrava na caixa registadora e os seus bens.
9. Com a supra referida conduta, o AA quis e conseguiu provocar receio, medo e inquietação nas ofendidas, que temeram pelas suas vidas e integridade físicas, logrando, desta forma, conseguir fazer seus os € 70,00 que estavam na caixa registadora, bem como as duas malas das mesmas com os respetivos conteúdos, mesmo contra a vontade destas, bem sabendo que tal dinheiro e bens não lhe pertencia e que não tinha qualquer direito sobre eles e que atuava contra a vontade das respetivas proprietárias, o que quis e conseguiu.
10. O AA agiu livre, deliberada e conscientemente e bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e mesmo assim não se coibiu de as praticar.
Inquérito n.º 490/23.3PATNV:
1. No dia 19 de outubro de 2023, pelas 13 horas e 25 minutos, FF, acompanhada por GG, encontrava-se no parque de estacionamento do …, sito na Avenida … em ….
2. FF, funcionária da empresa HH deixou no veículo de matrícula …, um ligeiro de mercadorias, uma pasta que continha € 495,00 em numerário e diversos documentos em cima do banco do pendura, tendo fechado a porta mas não trancando a mesma e deslocou-se à parte traseira do veículo.
3. Aproveitando o facto deFF se encontrar dentro do veículo na parte traseira, o AA, fechou a porta lateral do mesmo, deixando a FF fechada no veículo, deslocou-se à porta do pendura, abriu a mesma e retirou a pasta que continha € 495,00 em numerário e diversos documentos.
4. Após, o AA colocou-se em fuga com a referida pasta, levando-a consigo e fazendo-a seus.
5. Com a sua conduta o AA causou um prejuízo patrimonial à sociedade comercial HH no valor de € 495,00.
6. O AA atuou com o propósito de fazer sua a referida pasta, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu legítimo dono.
7. Atuou o AA de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Inquérito n.º 495/23.4PATNV:
1. No dia 22 de outubro de 2023, a hora não concretamente apurada, mas entre as 2 e as 3 da manhã, o AA encontrou-se com diversos conhecidos no estabelecimento comercial denominado de “…”, sito na Rua …, em ….
Processo: 488/23.1PATNV-A.E1
2. Enquanto contava aos presentes os crimes que tinha cometido nos dias que antecederam, disse em tom sério e com foros de seriedade “venho do … para … e vou correr todos ao tiro.” e “tenho 7 munições comigo, aquele II do … também vou limpá-lo”, referindo-se ao ofendido II.
3. Uma das pessoas que estava no local era JJ, amigo de II, o que o AA sabia.
4. AA sabia que o ofendido II viria a ter conhecimento das suas palavras, ou, pelo menos, admitiu essa possibilidade, conformando-se com ela.
Inquérito n.º 533/23.0PATNV:
1. No dia 12 de novembro de 2023, pelas 7 horas a ofendida BB encontrava-se no interior do seu estabelecimento comercial “…”, sito na Rua …, em ….
2. Nesse dia e hora, AA entrou no estabelecimento comercial, munido com uma faca.
3. Após entrar no estabelecimento comercial o AA, sempre empunhando a faca, com cerca de 20 cm de lâmina, dirigiu-se á ofendida e disse-lhe: “Isto é um assalto quero a mala”.
4. A ofendida disse que não tinha ali a mala, altura em que o mesmo começou à procura de algo que pudesse levar e dizendo sempre à ofendida “não chames a policia que eu mato-te”, munido sempre com a faca.
5. Com medo do que o AA lhe pudesse fazer, a ofendida disse-lhe que tinha dinheiro na caixa registadora e não se mexeu nem se opôs quando o mesmo se dirigiu à caixa registadora e daí retirou a quantia monetária de € 30,00, assim como também não se opôs a que o mesmo levasse consigo a quantia monetária.
6. O Nuno Seguro levou os € 30,00 que se encontravam na caixa registadora contra a vontade e sem o consentimento da ofendida.
7. Com a sua atuação, o AA, perturbou de modo sério BB no seu sentimento de segurança de tal forma que esta ficou intimidada, sendo certo que tal conduta era idónea a forçar a mesma a deixá-lo levar o dinheiro que se encontrava na caixa registadora.
8. Com a supra referida conduta, o AA quis e conseguiu provocar receio, medo e inquietação na ofendida BB, que temeu pela sua vida e integridade física, logrando, desta forma, conseguir fazer seus os € 30,00 que estavam na caixa registadora, mesmo contra a vontade desta, bem sabendo que tal dinheiro não lhe pertencia e que não tinha qualquer direito sobre eles e que atuava contra a vontade da respetiva proprietária, o que quis e conseguiu.
9. O AA agiu livre, deliberada e conscientemente e bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e mesmo assim não se coibiu de as praticar.
Inquérito n.º 539/23.0PATNV:
1. Em data não concretamente apurada, mas entre as 20 horas do dia 14 de novembro de 2023 e as 13 horas do dia 15 de novembro de 2023, AA deslocou-se à residência que havia partilhado com KK, sita na Rua …, n.º …, em … e, de modo não concretamente apurado, partiu a porta de entrada e, desta forma, conseguiu introduzir-se no interior da mesma.
2. Já no seu interior agarrou em duas televisões plasma, no valor de € 200,00, cada uma, num computador portátil da marca … no valor de € 200,00 e num telemóvel da marca … no valor de € 600,00 e saiu da residência da KK levando esses bens.
3. As televisões plasma; o computador portátil e o telemóvel pertencem a KK, o que o AA bem sabia.
4. Com a conduta supra descrita, AA retirou do interior da residência da KK os bens supra indicados, sem o conhecimento e consentimento e contra a vontade da sua legítima titular.
5. AA agiu com propósito, concretizado, de se apropriar dos bens supra descritos que se encontravam na residência da ofendida, integrando-os na sua esfera patrimonial, bem sabendo os mesmos não lhe pertenciam e que assim, bem como ao entrar no interior da residência da mesma, que se encontrava fechada, partindo a porta de entrada, actuava no desconhecimento e contra a vontade da legítima proprietária, querendo agir desta forma porque o fez.
6. AA agiu livre, deliberada e conscientemente bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal e mesmo assim não se coibiu de a praticar.
7. No dia 15 de novembro de 2023, pela manhã, o AA, através do n.º de telefone … contatou a ofendida KK e perguntou-lhe se estava em casa, ao que a mesma respondeu que não e desligou-lhe a chamada.
8. Após o AA voltou a contactá-la telefonicamente e disse-lhe, em tom sério e com foros de seriedade que se ela fosse à policia ou contasse a alguém que a matava.
9. Só quando chegou a casa e viu a porta partida é que a KK entendeu o que o AA lhe quis dizem com o telefonema mencionado em 8.
10. Com a sua conduta quis o AA causar na pessoa da ofendida KK, receio, medo e inquietação de que o mesmo viesse a concretizar o que havia proferido e viesse a atentar contra a sua vida, de forma a constrangê-la a que não fosse à policia denunciar o crime de que havia sido vitima.
11. Ao assim proceder tinha o AA a intenção de perturbar a vontade e livre determinação da KK, o que não conseguiu por motivos alheio à sua vontade.
12. O AA agiu livre, voluntaria e deliberadamente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e mesmo assim não se coibiu de as praticar
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Provou-se ainda que:
- o arguido tem os antecedentes criminais constantes do seu CRC de fls. 289 a 309, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
- neste momento trabalha como pintor da construção civil, desde Janeiro do corrente ano.
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Não se indiciaram outros factos relevantes para a decisão, nomeadamente que:
a) AA, ao proferir as palavras descrita no ponto 2 (por ref.ª ao inquérito n.º495/23.4PATNV), sabia, ou pelo menos admitiu como possível, que o ofendido II viria a ter delas conhecimento, agindo com o propósito de que algum dos presentes lhe transmitisse tais palavras ou conformando-se com a referida possibilidade. Com a sua conduta supra descritas quis o AA causar, como conseguiu causar, na pessoa do ofendido II, receio, medo e inquietação de que o mesmo viesse a concretizar o que havia proferido e viesse a atentar contra a sua vida ou integridade física.
c) Ao assim proceder tinha o AA a intenção de perturbar o sentimento de segurança do ofendido e afetá-lo na sua liberdade, o que quis e conseguiu.
d) O AA agiu sempre de forma livre, voluntaria e deliberadamente, querendo causar receio e inquietação na pessoa do ofendido de vir a sofrer algum acto atentatório da sua vida ou integridade física, o que quis e conseguiu.
e) O AA sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e mesmo assim não se coibiu de a praticar.
f) Que o arguido tenha utilizado qualquer objeto (para além do seu próprio corpo) para partir a porta da habitação da ofendida KK.
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Nota-se que todos os factos em referência se consideram fortemente indiciados, com exceção de que tenha sido o arguido a praticar os factos referentes ao inquérito n.º 490/23.3PATNV, sendo que existem indícios de que terá sido o arguido a fazê-lo mas nesta fase se afiguram como ténues e, nesta fase, insuscetíveis de fundamentar medida de coação quanto ao crime de furto que aí se revela.
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Indiciam estes factos os seguintes meios de prova:
Inquérito n.º 488/23.1PATNV:
Documental:
- Auto de notícia de fls. 85;
- Imagens de fls. 128 a 141;
- Autos de apreensão de fls. 117 e 118;
- Relatório de inspeção judiciária de fls. 336 a 338 e reportagem fotográfica de fls. 339 a 341;
Testemunhal:
- CC – melhor identificada a fls. 88;
- DD – melhor identificada a fls. 95;
- LL – melhor identificado a fls. 142;
- MM– melhor identificado a fls. 343.
Do inquérito n.º 490/23.3PATNV:
Documental:
- Auto de notícia - fls. 169 e 170;
Testemunhal:
- GG, melhor identificada a fls. 332.
Do inquérito n.º 495/23.4PATNV:
Documental:
- Auto de notícia - fls. 195;
- Fotografia – fls. 210;
- Visionamento do CD – fls. 219.
Testemunhal:
- II – melhor identificado a fls. 205;
- JJ – melhor identificado a fls. 208.
Do inquérito n.º 533/23.0PATNV:
Documental:
- Auto de notícia - fls. 231;
Testemunhal:
- BB – melhor identificada a fls. 233,
Do inquérito n.º 539/23.0PATNV:
Documental:
- Auto de notícia - fls. 263;
- Fotografia – fls. 267;
Testemunhal:
- KK – melhor identificada a fls. 254.
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O arguido não prestou declarações sobre os factos que lhe vêm imputados, pelo que nada disse que afaste a eficácia probatória da prova já recolhida.
Quanto à ocorrência dos factos propriamente ditos, esta resulta as declarações dos ofendidos e, quanto aos factos do inquérito 495/23.4PATNV, das declarações de JJ, que presenciou os factos.
No entanto, e quanto a estes factos, dir-se-á que a prova produzida não sustenta a conclusão de que o arguido havia considerado seriamente a possibilidade das ameaças que efetuou chegarem ao conhecimento do visado, o ofendido II.
Isto porque de acordo com as declarações da testemunha JJ (testemunha direta dos factos), o arguido havia inclusivamente admitido a prática de outros crimes e dito aos presentes que sabia que a polícia andava à sua procura, pedindo que não contassem a ninguém que ele tinha estado ali.
Parece, pois, que a expetativa e o desejo do arguido era que aquela conversa não fosse divulgada a terceiros.
Quanto aos factos referentes ao inquérito n.º 488/23.1PATNV, a participação do arguido nos mesmos resulta da conjugação das imagens de fls. 128 a 141 (que são compatíveis com a fisionomia do arguido e retratam o autor dos factos a utilizar cartões bancários das ofendidas em terminal ATM, onde ficaram retidos), conjugada com as declarações de LL (que viu mua pessoa com a fisionomia e roupa semanhante à do autor dos factos a falar com o condutor de um veículo de marca …, de matrícula …, tendo este sido identificado como MM, que ouvido como testemunha, identificou positivamente o arguido (que já conhecia) como a pessoa que falou com ele nessa altura e lhe perguntou se queria comprar dois telemóveis.
Quanto aos factos referentes ao inquérito n.º 490/23.3PATNV, a denunciante, FF, descreve o autor dos factos com fisionomia e indumentária semelhante à do arguido, nomeadamente à que lhe foi visionada nas fotografias juntas os autos.
No entanto, esta afirma que apenas viu o autor do crime de costas e a testemunha GG declara que também viu o autor dos factos a uma distância considerável e nã é capaz de o reconhecer.
Quanto aos factos referentes ao inquérito n.º 533/23.0PATNV, o arguido foi reconhecido pela ofendida BB, que já o conhecia da localidade.
Quanto aos factos referentes ao inquérito n.º 539/23.0PATNV, estes resultam das declarações de KK, que recebeu os telefonemas do arguido (seu ex companheiro) que constam nos autos, sendo que o último destes é logicamente explicado pela prática do furto que esta posteriormente veio a constatar.
Não se indicia no entanto que o arguido tenha utilizado qualquer objeto para arrombar a porta da casa da ofendida, pois atentando na fotografia de fls. 267 é possível que a porta tenha sido arrombada com recurso a pontapés e não qualquer objeto.
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Está assim fortemente indiciada a prática, pelo arguido, em autoria material e concurso real de:
- três crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal;
- um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, al e) do Código Penal; e
- um crime de coação agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.º 1 e 2 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
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No mais, atendeu-se ao CRC do arguido e às suas declarações quanto à sua situação pessoal.
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Cumpre definir o estatuto coativo do arguido, tendo em conta as necessidades cautelares do caso concreto.
Apresenta-se como preponderante o perigo de continuação da atividade criminosa, tendo em conta os antecedentes criminais do arguido, que incluem a prática de vários crimes contra o património, nomeadamente furtos qualificados pelos quais cumpriu já pesadas penas de prisão.
As penas aí aplicadas não foram contra-motivação suficiente para demover o arguido da prática dos factos que aqui se conhecem, que aliás praticou quando em liberdade condicional, que apenas terminaria em 14-03-2028. Também a “espada e Dâmocles” que é a possibilidade de revogação da liberdade condicional não demoveu o arguido de praticar estes factos, sendo que agora para além de crimes contra o património, passou a praticar crimes que também atentam contra bens jurídicos pessoais, com violência, nomedamente roubos.
Face a todo este historial, bem demonstrativo da personalidade do arguido, anti-social e indiferente à ação da justiça, o facto de este se encontrar de momento a trabalhar não permite concluir que este alterou toda a sua personalidade e é agora um cidadão cumpridor do direito.
Existe de igual modo perigo de perturbação do decurso do inquérito e d instrução da causa, nomeadamente perigo de que o arguido venha a intimidar testemunhas para condicionar as suas declarações em sede de julgamento.
Note-se a este respeito que o crime de coação tentada que lhe é imputado visou precisamente escudar-se da ação da justiça, tendo também durante o roubo de que foi vítima BB, ameaçado a mesma de morte caso esta chamasse a polícia.
Existe de igual modo perigo de fuga, sendo que a este respeito, cumpre notar que o arguido já foi condenado pela prática de um crime de evasão, e andou evadido da ação da justiça sabendo que era procurado em …, como demonstram as declarações supra referidas da testemunha JJ.
O arguido afirma que se apresentou voluntariamente às autoridades, mas mesmo que tal seja verdade, o certo é que nessa fase não sabia ainda quais os factos a que respeitava essa apresentação, que só lhe foram comunicados apos a sua detenção.
Neste momento o arguido pode conhecer a magnitude das penas de prisão a que se sujeita (sendo muito difícil sustentar que as mesmas possam vir a ser suspensas na sua execução).
Ora como já se disse, o arguido demonstrou à saciedade, com o eu comportamento passado, que é completamente indiferente à ação da justiça, pelo que qualquer medida de natureza injuntiva (mesmo a OPHVE), será manifestamente ineficaz para colmatar os apontados perigos.
A única medida adequada e portando necessária a este efeito é assim a prisão preventiva, sendo esta também proporcional à gravidade dos crimes e às sanções que previsivelmente serão aplicadas ao arguido.
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Termos em que, ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 193º, 196º, 202, n.º 1, als. a) e b) e 204º, als. a), b) e c) do CPP, determino que o arguido aguarde os restantes termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação:
a) TIR já prestado; e
b) Prisão preventiva.
Notifique, dando cumprimento ao disposto no artigo 194º, n.º 10 do CPP.
Emita mandados de condução do arguido ao EP, para cumprimento da medida agora aplicada.
Comunique o teor da decisão ao processo n.º …TXLSB do Tribunal de Execução de Penas do …, com cópia da presenta ata...”.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO.
IV-1. DAS CONDIÇÕES DE APLICAÇÃO DA MEDIDA DE COAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA. O recorrente insurge-se contra a aplicação da medida de prisão preventiva, argumentando com o carácter mitigado dos perigos que fundamentaram a aplicação dessa medida (tendo, apenas na motivação, considerado insuficiente a fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo para justificar a ocorrência dos perigos).
No sentido de que se não verificam os assinalados perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de fuga, exarou nas conclusões do recurso:
“h) E é de lembrar que, desde sempre, vivemos numa sociedade de risco, pelo que os perigos pretendidos esconjurar pela aplicação das medidas de coação existirão sempre e não podem servir de pretexto para antecipar e forçar a pena de prisão.
i) E o legislador constitucional estava – e está bem – bem ciente de que os perigos existem e ainda assim consagrou que a prisão preventiva é medida excecional não devendo ser decretada sempre que outras medidas sejam suficientes para esconjurar os perigos.”.
Cumpre apreciar.
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Não podemos deixar de começar pela afirmação clara de que o despacho recorrido não padece de qualquer nulidade por falta ou deficiência de fundamentação.
Em cumprimento do preceituado no artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, estabelece o artigo 194º nº 6 do CPP que o despacho que aplicar qualquer medida de coação (ou de garantia patrimonial), à exceção do TIR, sob pena de nulidade, deve conter:
a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;
b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
c) A qualificação jurídica dos factos imputados;
d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º.
No caso concreto, cumpre referir que, ao contrário do sustentado pelo recorrente, da decisão recorrida resultam claramente explicitados todos os factos criminosos que se mostram indiciados, assim como o seu circunstancialismo de tempo, modo e local se mostra devidamente concretizado, o mesmo sucedendo com a indicação da respetiva prova indiciária que os sustenta, que foi, de acordo com as regras da experiência comum, detalhadamente analisada e conjugada. Do mesmo modo, ali se procedeu à indicação da qualificação jurídica dos factos imputados.
Deste modo, ao contrário do alegado pelo recorrente, a decisão mostra-se devidamente fundamentada, com apresentação do desenvolvimento factual lógico e cronológico das diversas situações que a integram, assim como da prova indiciária, bem como da respetiva qualificação jurídica dos factos, o que satisfaz plenamente as garantias de defesa do arguido, facultando-lhe a dimensão real do atual objeto do processo.
O mesmo sucede em relação aos pressupostos de aplicação da medida de coação que foi decretada, na medida em que o despacho recorrido faz a referência precisa aos factos concretos que a fundamentaram e que justificam os perigos do art. 204º do CPP, concretamente das suas alíneas a), b) e c), que foram explicitamente fundamentados.
Verificamos, assim, que, independentemente de se concordar, ou não, com tal fundamentação, o tribunal recorrido justificou, por forma cabal, os factos considerados fortemente indiciados, os respetivos elementos de prova que os sustentam, a qualificação jurídica dos factos imputados e, bem assim, a indicação dos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da decretada medida de coação.
De qualquer forma, sempre acrescentaremos que o incumprimento do dever de fundamentação constitui nulidade sanável, que deveria ter sido arguida no próprio ato, nos termos do art. 120º nº 1 e 3 al. a), quando o interessado a ele assista, como é o caso, em que o arguido e o seu Ilustre Defensor estavam presentes. Tal arguição não ocorreu durante a diligência de interrogatório judicial de arguido detido.
Pelo exposto, podemos afirmar que se encontram verificados os requisitos enunciados nas alíneas a) a d) do n°. 6 do artigo 194° do CPP e, ainda, no n°. 1 do artigo 205° da Constituição da República Portuguesa, satisfazendo, por isso, o despacho recorrido, de forma adequada, o exigido por lei quanto à fundamentação do mesmo, razão pela qual entendemos que não merece censura.
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Cumpre avançar.
Resulta do artigo 204° do Código de Processo Penal que nenhuma medida de coação prevista na lei, à exceção do Termo de Identidade e Residência, pode ser aplicada se, em concreto, se não verificar, cumulativa ou alternadamente [conforme resulta do próprio texto legal e é entendimento generalizado na doutrina e jurisprudência]:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo de perturbação para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou,
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidades públicas.
O art. 202º nº 1 do CPP estabelece as hipóteses em que pode ser imposta a medida de prisão preventiva ao arguido, desde que sejam inadequadas e insuficientes as demais medidas para garantir as necessidades cautelares.
O art.193º do CPP consagra o princípio da necessidade, a par dos princípios da adequação e da proporcionalidade, assim como a preferência pela medida de obrigação de permanência na habitação, relativamente à prisão, quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade, resultando, também, a excecionalidade e subsidiariedade da prisão preventiva do texto Constitucional, nomeadamente dos respetivos artigos 27º e 28º.
No caso, considerando os crimes fortemente indiciados [desde logo, três crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, e um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, al e) do Código Penal], mostram-se preenchidos os requisitos do artigo 202º, nº 1, als. a) e d), do Código de Processo Penal.
Considerados os factos fortemente indiciados, o Senhor Juiz de Instrução Criminal, em sede de primeiro interrogatório judicial, decidiu sujeitar o arguido recorrente à medida de coação de prisão preventiva, justificando que sendo particularmente intenso o perigo de continuação da actividade criminosa, e verificando-se ainda os perigos de perturbação do inquérito e de fuga, apenas poderão os mesmos ser acautelados mediante a aplicação ao arguido dessa medida de coacção privativa da liberdade.
O juízo que foi formulado quanto à verificação e à intensidade dos assinalados perigos, mostra-se plenamente justificado e a salvo de qualquer reparo.
O circunstancialismo com que o Tribunal a quo se deparou foi o de um quadro de intensa propensão para a reincidência, denotando-se uma personalidade desconforme com o Direito:
“Apresenta-se como preponderante o perigo de continuação da atividade criminosa, tendo em conta os antecedentes criminais do arguido, que incluem a prática de vários crimes contra o património, nomeadamente furtos qualificados pelos quais cumpriu já pesadas penas de prisão.
As penas aí aplicadas não foram contra-motivação suficiente para demover o arguido da prática dos factos que aqui se conhecem, que aliás praticou quando em liberdade condicional, que apenas terminaria em 14-03-2028. Também a “espada e Dâmocles” que é a possibilidade de revogação da liberdade condicional não demoveu o arguido de praticar estes factos, sendo que agora para além de crimes contra o património, passou a praticar crimes que também atentam contra bens jurídicos pessoais, com violência, nomedamente roubos.
Face a todo este historial, bem demonstrativo da personalidade do arguido, anti-social e indiferente à ação da justiça, o facto de este se encontrar de momento a trabalhar não permite concluir que este alterou toda a sua personalidade e é agora um cidadão cumpridor do direito.”.
Perante esse assinalado quadro, perfeitamente suportado nas circunstâncias de facto que se mostram indiciadas nos autos, nenhum reparo merece a decisão recorrida na vertente em que julgou acentuado o perigo de continuação da atividade criminosa.
Com efeito, não podemos deixar de concordar e de fazer nossa a fundamentação usada pelo Tribunal recorrido, sendo certo que tal perigo se mostra ainda evidenciado quer na própria natureza e circunstâncias dos crimes que se incidiam fortemente nos autos, bem reveladoras da personalidade do arguido. Praticou os factos que ora se indiciam nos autos no decurso do período de liberdade condicional, fazendo tábua rasa das advertências solenes inerentes a essa medida que lhe foi aplicada pelo TEP, revelando assim, não ter interiorizado o desvalor da sua conduta, e exibindo impreparação para em liberdade manter uma conduta conforme ao direito e às regras basilares de vivência social.
O evidente quadro de propensão para a “reincidência” não foi, nem podia ser, ignorado pelo Tribunal a quo que, assim, excluiu a possibilidade de estabelecer um prognóstico favorável sobre o comportamento futuro do arguido. E bem. O comportamento do arguido, ponderada a sua situação anterior em conjugação com os factos fortemente indiciados nestes autos, não permite que se considere provável que, deixado em liberdade, se irá afastar da prática da criminalidade.
Na verdade, não ocorre base para se pensar que, doravante, não voltará à prática de crimes. Os traços de personalidade revelados pelo arguido não permitem que se estabeleça um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do mesmo. Sendo certo que não se pretende assentar tal juízo numa “certeza”, os contornos do caso inviabilizam a possibilidade de acreditar que o arguido será sensível a uma nova advertência que não envolva a privação da liberdade. Para a generalidade dos cidadãos, a experiência de ser visado numa investigação criminal em sede de processo contra si movido, constitui advertência suficiente para sustar o prosseguimento de atividade delituosa. Para a maioria dos cidadãos, a circunstância de se ser detido e levado a juízo, para ser submetido a interrogatório judicial, constitui aviso suficiente para evitar a reincidência. A generalidade dos cidadãos a quem é aplicada uma pena de prisão, encara a inerente advertência com tal seriedade que se aparta do rumo que levou à delinquência. Tudo indica que assim não sucede com o arguido, não ocorrendo circunstâncias que permitam concluir que, desta feita, sustará a prática de crimes, designadamente de roubos. Bem pelo contrário – no seu caso, mostrou intenso desprezo pela advertência que lhe foi feita aquando da concessão de liberdade condicional e, não obstante o alargado tempo de prisão remanescente (a LC apenas terminaria em 14-03-2028), voltou a ser fortemente indiciado pela prática de crimes graves.
Das circunstâncias fortemente indiciadas decorre que o arguido revela propensão para repetir factos semelhantes aos que estão em causa nestes autos, o que indicia que o arguido não interiorizou o desvalor das suas condutas, nem adquiriu capacidade de autocensura que o afaste da senda que tem trilhado.
Não se podendo considerar mitigado o perigo de continuação da atividade criminosa, bem andou o Sr. Juiz de Instrução Criminal ao considerar concreta, real e acentuada a existência de tal perigo.
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Relativamente aos demais perigos assinalados na decisão recorrida, deverá também reconhecer-se que as circunstâncias do caso (designadamente o indiciado comportamento ameaçador do arguido junto das vítimas e, por outro lado, os factos pretéritos relacionados com o seu historial de evasão), tornam bem concretizados e reais os receios vertidos no despacho de aplicação da prisão preventiva.
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Reconhecendo-se a existência e o grau acentuado do apontado perigo de continuação da atividade criminosa, aliado à ocorrência dos perigos de fuga e de perturbação do inquérito, nos termos do art. 204º, als. a), b) e c), do Código de Processo Penal, verificados se mostram os requisitos para aplicação de medida de coação diferente do TIR.
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IV.2. DA (DES)NECESSIDADE/(IN)ADEQUAÇÃO DA MEDIDA DE COAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA.
No despacho recorrido optou-se pela aplicação ao arguido da medida de coação mais gravosa – a prisão preventiva - por se considerar que nenhuma outra seria adequada e suficiente, com o que não se conforma o recorrente.
Observados os autos, e o que foi consignado no despacho recorrido, no que concerne à adequação e proporcionalidade da medida de coação aplicada ao arguido, não nos assaltam dúvidas que a prisão preventiva se revela como a mais acertada e que as demais medidas requeridas pelo recorrente – inclusivamente a obrigação de permanência em instituição, mesmo com vigilância eletrónica – se revelam incapazes de, nesta situação, em concreto, suster e travar os perigos supra elencados, não assegurando a necessária contenção do arguido, uma vez que os meios técnicos postos na sua execução mais não servem do que para constatar as suas “violações”, devendo sublinhar-se a intensidade com que o assinalado perigo de continuação da atividade criminosa se faz sentir.
O decretamento da medida de obrigação de permanência na habitação (só por si, ou mesmo cumulada com outras medidas de coação) pressupõe sempre algum grau de confiança no destinatário, sendo que, no caso, não é possível formular um prognóstico positivo de observância das obrigações decorrentes da medida, desde logo porque nos confrontamos com um cidadão que se mostra distanciado dos valores que disciplinam a vida em comunidade e que acabou de demonstrar desprezo pela advertência contida na aplicação de medida de liberdade condicional.
Os contornos do caso concreto, inelutavelmente, comprometem qualquer possibilidade de ser merecedor da confiança necessária para a implementação de um regime de OPHVE.
Por outro lado, e ao contrário do que parece entender o recorrente, os crimes fortemente indiciados nos presentes autos são graves – disso nos dá sinal, desde logo, a moldura penal correspondente. A intensidade do perigo de continuação dessa atividade criminosa grave, bem assinalado na decisão, demanda a imposição de medida de coação detentiva, na justa medida em que todas as de outra natureza, isoladas ou conjuntamente aplicadas, não mostram eficácia suficiente para a contenção que o caso requer.
E daí ter concluído, e bem, o Tribunal recorrido que apenas a medida de coação mais gravosa, a prisão preventiva, poderá obstar ao existente, concreto e acentuado perigo de continuação da atividade criminosa (exponenciado pelos também verificados perigos de fuga e de perturbação do inquérito).
Do ponto de vista da proporcionalidade, a gravidade dos factos fortemente indiciados, a enérgica reprovação que suscitam e as sanções que previsivelmente virão a ser aplicadas, justificam, sem dúvida, a imposição da prisão preventiva.
Justifica-se, pois, a necessidade de aplicação da medida de coação de carácter excecional que foi decretada.
A necessidade da privação da liberdade por aplicação da prisão preventiva não tem carácter sancionatório, não constituindo antecipação da punição, sendo, outrossim determinada pela forte exigência de que cumpra a função preventiva especial, que o caso concreto dita com especial acuidade.
Em conformidade com quanto fica exposto, a medida de coação de prisão preventiva é, no caso concreto em apreço, a única que salvaguarda de forma suficiente o acentuado perigo de continuação da atividade criminosa verificado, sendo, por isso, necessária, como igualmente é proporcional e adequada, em conformidade com os ditames constitucionais, dos artigos 27º nº 3 alínea b) e 28º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e legais previstos nos artigos 191º, 193º, 202º nº 1 alínea a) e 204º alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal, sendo que nenhum desses preceitos se mostra violado pela decisão recorrida.
Face ao demonstrado acerto do despacho recorrido, que não merece censura, nem reparo, cumpre negar provimento ao recurso.
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V - Decisão.
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando o despacho recorrido que determinou a aplicação ao mesmo da medida de prisão preventiva.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.
D.N. (comunicando-se de imediato a decisão ao Processo de Inquérito nº 488/23.1PATVN).
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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).
Évora, 11 de julho de 2024
Jorge Antunes (Relator)
Laura Goulart Maurício (1ª Adjunta)
Anabela Cardoso (2ª Adjunta)