CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
ELEMENTOS OBJETIVOS
ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO
Sumário

O crime de desobediência previsto e punível pelo citado artigo 348.º tem como elementos objectivos do tipo (a) existência de ordem ou mandado de autoridade ou funcionário, na acepção do artigo 386.º do Código Penal, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou omissão, (b) a sua legalidade material e formal, (c) a competência de quem a emite, (d) comunicação regular da ordem ao destinatário e (e) incumprimento da ordem ou mandado.
No despacho recorrido, refere-se que a ordem de entrega da carta de condução deverá ser possível de ser cumprida (física ou legalmente) pelo concreto destinatário, de acordo com a situação em causa e as respectivas capacidades, tendo em conta o principio ad impossibilita nemo tenutur (ninguém é obrigado ao impossível).
Ora, no caso em apreço, exactamente porque consta da acusação que o arguido, bem sabendo que tinha que acatar a ordem de entrega, por qualquer meio, da sua carta de condução, dentro do prazo concedido, se quis eximir ao cumprimento, não o fazendo, agindo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal, tal pressupõe, naturalmente, que o arguido o podia fazer, isto é, que tinha os documentos na sua disponibilidade, ou posse, e não os quis entregar, não faltando, por isso, a invocada alegação de facto que consubstancia o elemento típico objectivo do crime de desobediência.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. No Processo Comum, com intervenção do tribunal singular, nº 412/21.6T9LLE, do Juízo Local Criminal de …, Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, a Digna Magistrada do Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, AA, imputando-lhe a autoria material de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º nº 1 al. b) do C.P., nos seguintes termos:

“O Ministério Público, nesta Comarca, para julgamento em PROCESSO COMUM, perante TRIBUNAL SINGULAR, vem, nos termos do artigo 283º do Código de Processo Penal, deduzir acusação contra,

AA, nascido a … de 1949, natural e nacional do …, filho de BB e de CC, residente em …;

porquanto,

Por sentença proferida no âmbito do processo abreviado n.º 1271/03.6GTABF, do Juízo Local Criminal de … – Juiz …, transitada em julgado em 3 de Julho de 2020, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses.

Para tanto, ficou o arguido obrigado a entregar a respectiva carta de condução, no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da dita decisão, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, tendo sido notificado da sentença a 14 de Março de 2020.

Sucede, porém, que o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução, para cumprimento da mencionada sanção acessória.

Bem sabia, o arguido, que estava obrigado a cumprir a pena acessória determinada e que tinha que acatar a ordem de entrega, por qualquer meio, da sua carta de condução, dentro do prazo concedido. Porém, querendo eximir-se ao cumprimento da condenação, não o fez.

O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.”

*

2. Por despacho proferido em 19.02.2024, foi decidido rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação deduzida, nos presentes autos, e determinado a sua devolução, após trânsito em julgado, ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes, nos seguintes termos:

“O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido pela prática de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

O crime de desobediência tem como elementos objectivos:

a) a existência de uma ordem ou mandado;

b) a sua legitimidade;

c) a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;

d) a regularidade da sua comunicação ao agente;

e) a possibilidade de cumprimento da ordem;

f) a falta de obediência;

g) e a previsão da cominação da punição da desobediência numa disposição.

In casu, afigura-se-nos que não foram descritos na acusação todos os elementos objectivos do crime em causa, mediante a narração dos respectivos factos.

Com efeito, a ordem de entrega da carta de condução deverá ser possível de ser cumprida (física ou legalmente) pelo concreto destinatário, de acordo com a situação em causa e as respectivas capacidades, tendo em conta o princípio ad impossibilita nemo tenutur (ninguém é obrigado ao impossível) (Ac. do TRP de 15-03-2023, proc. n.º 11187/18.6T9PRT.P1, www.dgsi.pt).

Ora, não consta da acusação a narração factual da possibilidade de cumprimento pelo arguido da ordem de entrega da sua carta de condução, a qual se teria de retirar de uma disponibilidade da mesma por parte daquele que lhe permitisse proceder a essa entrega, ou seja, teria de constar da acusação que o arguido tinha a carta de condução em seu poder (ou dela podia dispor) quando lhe foi dada a ordem para a entrega ou durante o prazo estabelecido para o efeito.

Conforme se discorre no Ac. do TRG de 08-02-2021 (proc. n.º 103/06.8TAPRG.G1, www.dgsi.pt) num caso de falta de entrega da carta de condução, «para a condenação pelo crime imputado não basta a prova de que o arguido não entregou a carta de condução de que era titular no prazo judicialmente concedido para o efeito, advertido que estava de que não o fazendo incorreria em responsabilidade criminal. Exigia-se ainda que a acusação alegasse e que se provasse que o arguido tinha a carta de condução em seu poder. Ou, pelo menos, algum facto de que inevitavelmente resulte que podia dispor dela para efetuar a entrega. Conforme doutamente se expende no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 03.03.2014, processo n.º 5/12.9PABRG.G1, relator Desembargador Fernando Monterroso, acessível em www.dgsi.pt, (ainda que reportado a crime de desobediência por não entrega de arma num posto policial) «Quem não tem consigo determinado bem, nem pode dispor dele, não comete o crime de desobediência por não o entregar, porque não lhe é possível cumprir. É algo que decorre da própria natureza das coisas.”. E acrescenta-se: «A imputação de que o arguido tinha a arma e os documentos em seu poder, ou, pelo menos, de que podia dispor deles para os entregar, é «facto» que não consta da acusação e tinha de constar, pois a ela compete a alegação e prova de todos os elementos constitutivos do crime. Não contendo a acusação factos suficientes para a condenação do arguido, não pode o tribunal, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal, alargar a investigação a outros factos que permitam a condenação. É que a acusação fixa o objeto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do tribunal. Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório que, nos termos do art. 32 n.º 5 da Constituição, estrutura o processo penal. A acusação deverá conter a «narração» de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido da pena - art. 283.º, n.º 3, al. b) do CPP.» (…) falta a alegação de facto que consubstancia elemento típico objetivo do crime em questão, omissão que não pode ser suprida em sede de julgamento com recurso ao mecanismo da alteração, não substancial ou substancial, de factos (arts. 358.º e 359.º, ambos do CPP). (…) Sendo a matéria de facto provada (…) inidónea a preencher na sua plenitude a tipicidade objetiva do imputado crime de desobediência, impõe-se, antes, a absolvição do arguido».

Em suma, «a possibilidade de cumprimento da ordem, constituindo elemento objetivo do tipo de ilícito, tem de constar da narração dos factos da acusação e depois resultar provada na sentença, sob pena de, no primeiro caso levar à rejeição da acusação por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, n.º 3, al. d) do CPP, e no segundo à absolvição por não preenchimento do tipo de ilícito. E não basta que na acusação ou na sentença se faça na narração dos factos uma mera referência indireta, vaga, imprecisa, conclusiva ou, até, como por vezes sucede, meio implícita nos factos relativos ao elemento subjetivo do tipo, a tal possibilidade, mas antes tem de se descrever de forma clara e inequívoca os factos que levam a concluir pela possibilidade do destinatário cumprir a ordem, sob pena de violação do princípio do acusatório e dos direitos de defesa» (Ac. do TRP de 15-03-2023, proc. n.º 11187/18.6T9PRT.P1, www.dgsi.pt)

Assim, conclui-se pela ausência, na acusação, da descrição de todos os factos integradores do tipo objectivo da infracção imputada.

O Ac. do STJ n.º 1/2015 fixou jurisprudência no sentido de «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal».

O fundamento de tal fixação de jurisprudência, extensível por identidade de razão aos elementos objectivos do crime, foi o de que «a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo», implicando a sua falta a nulidade da mesma (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal) e a sua rejeição nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do Código de Processo Penal.

Não tendo havido lugar a esta rejeição, o tribunal não pode colmatar a deficiência por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal (alteração não substancial dos factos), porquanto «o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental» e «equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica»».

Mas também está vedado ao tribunal o recurso ao mecanismo do art. 359.º do Código de Processo Penal (alteração substancial dos factos), «pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais».

É que a «razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento», de tal modo que a «a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido» (neste preciso sentido e convocando esta jurisprudência, vejam-se os Acs. do TRC de 21-06-2017, proc. n.º 89/12.0EACBR.C1, de 07-03-2018, proc. n.º 189/14.1PFCBR.C1, de 07-11-2018, proc. n.º 132/17.6GAPNL.C1, e de 15-05-2019, proc. n.º 267/16.2T9PMS.C1; o Acs. do TRL de 11-09-2018, proc. n.º 537/15.7PBPDL.L1-5, de 18-09-2018, proc. n.º 1453/15.8S5LSB.L1-5, e de 10-11-2020, proc. n.º 3496/16.5T9CSC.L1-5; e os Ac. do TRG de 03-12-2018, proc.n.º 987/16.1T9VNF.G1, de 09-12-2019, proc. n.º 171/16.4PBGMR.G1, e de 09-03-2020, proc. n.º 1435/18.8T9VNF.G1, todos em www.dgsi.pt).

Dito isto, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b), ex vi art. 386.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a acusação é rejeitada se o juiz a considerar manifestamente infundada, considerando-se como tal se não contiver a narração dos factos.

E de acordo com o art. 283.°, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, «A acusação contém, sob pena de nulidade: b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».

Como se afirmou, na acusação deduzida não se encontram narrados todos os factos referentes ao tipo objectivo do crime em causa, a significar que os factos descritos não consubstanciam a prática de qualquer delito pelo arguido.

Consequentemente, e conforme se sustenta no citado Ac. do STJ n.º 1/2015, uma tal acusação é nula (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal) e, como tal, deve ser rejeitada por manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do Código de Processo Penal.

Rejeitada a acusação «por não conter a narração de todos os elementos típicos do crime imputado, o Ministério Público pode deduzir uma nova acusação (…), suprindo as omissões da primeira peça processual», na medida em que aquela decisão não forma caso julgado material (apenas formal) e, por isso mesmo, o eventual regresso da acusação, desta feita purgada da nulidade de que padecia, não violará o princípio ne bis in idem, pelo que nada obsta à devolução dos autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes. (Ac. do TRC de 13-01-2021, proc. n.º 99/19.6GASAT.C1, www.dgsi.pt; no mesmo sentido, vejam-se os Acs. do TRL de 06-03-2012, proc. n.º 790/10.2TAABF.E1, e do TRE de 10-04-2018, proc. n.º 1559/16.6GBABF.E1, e de 12-01-2021, proc. n.º 482/19.7T9FAR.E1, bem como PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed., UCE, 2009, anotação 6 ao art. 386.º, pp. 974-975).

De resto, o Tribunal Constitucional, no seu Ac. n.º 246/2017, decidiu «Não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes».

Por todo o exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, rejeita-se, por manifestamente infundada, a acusação deduzida nos presentes autos e determina-se a sua devolução, após trânsito em julgado, ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes.

Sem custas (arts. 522.º, do Código de Processo Penal, e 4.º, n.º 1, a), do Regulamento das Custas Processuais).

Notifique.”

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3. Não se conformando com o teor de tal decisão, dela recorreu a Digna Magistrado do Ministério Público, junto do tribunal recorrido, extraindo da motivação de recurso as seguintes conclusões:

“1. Nos presentes autos foi proferida decisão que decidiu rejeitar a acusação deduzida por manifestamente infundada, por o Meritíssimo Juiz entender e em síntese que não foram descritos na acusação todos os elementos objectivos do crime em causa, mediante a narração dos respectivos factos.

2. Em síntese o Meritíssimo Juiz entende que da acusação não consta “a narração factual da possibilidade de cumprimento pelo arguido da ordem de entrega da sua carta de condução, a qual se teria de retirar de uma disponibilidade da mesma por parte daquele que lhe permitisse proceder a essa entrega, ou seja, teria de constar da acusação que o arguido tinha a carta de condução em seu poder (ou dela podia dispor) quando lhe foi dada a ordem para a entrega ou durante o prazo estabelecido para o efeito.”

3. Salvo o devido respeito não vislumbramos que tenha de constar expressamente a referida factualidade, sendo certo que tal factualidade está desde logo implícita na demais factualidade constante da acusação.

4. Em suma e salvo o devido respeito e melhor entendimento entendemos que da acusação consta toda a factualidade necessária e relevante para o preenchimento do crime de desobediência.

Face a todo o exposto, e salvo melhor opinião deverá dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine o recebimento da acusação pública e que determine o prosseguimento dos autos, designadamente, com a notificação do arguido para contestar e agendamento de julgamento em conformidade com o disposto nos artigos 311.º e ss do CPP.”

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4. O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos autos e com efeito devolutivo.

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5. Subidos os autos a este tribunal, nele a Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer, nos termos do qual, concordando e dando por reproduzidos os argumentos aduzidos na motivação de recurso, entendeu que o mesmo merece provimento.

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6. Cumpridos os vistos, realizou-se a competente conferência.

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7. O objecto do recurso versa a apreciação da seguinte questão:

- Saber se estamos perante uma “acusação manifestamente infundada”, por não se encontrarem narrados todos os factos referentes ao tipo objectivo do crime de desobediência e, como tal, merecedora de rejeição judicial, no despacho de saneamento do processo, proferido ao abrigo do preceituado no art. 311º do Código de Processo Penal.

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8. Apreciando:

Nos termos do nº 1 do art. 311º do Cód. Proc. Penal, “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa logo conhecer”.

E nos termos do nº 2 desse normativo, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, esclarecendo o nº 3 que a acusação se considera manifestamente infundada: “b) quando não contenha a narração dos factos”; “d) se os factos não constituírem crime”.

Só uma falta grave, que seja susceptível de comprometer o êxito da acusação e que obste a uma apreciação de mérito, justifica a rejeição liminar.

Ou seja, a acusação só poderá considerar-se manifestamente infundada se se verificarem os “vícios estruturais graves” enunciados no nº 3 do citado art. 311º (assim Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, 2009, p. 789), se não for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves.

Acresce que, para a acusação se considerar manifestamente infundada, nos termos da alínea d) do nº 3 do art. 311º do Cód. Proc. Penal, é necessário que os factos não constituam crime, podendo, obviamente, constituir crime diverso do que é imputado na acusação – caso em que, no decurso do julgamento, se procederá como determinam os arts. 358º e 359º do Cód. Proc. Penal.

O princípio da acusação constitui um princípio fundamental do processo penal e beneficia de tutela constitucional – artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República, significando, essencialmente, que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32º, pág. 205).Uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste precisamente nesta “vinculação temática”: os factos descritos na acusação (normativamente entendidos) definem o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado (J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1981, p. 144).

Temos, pois, que a vinculação temática do tribunal é considerada como a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido e assegura, também, os seus direitos de contraditoriedade e audiência: é indispensável que o arguido saiba com precisão de que facto em concreto se encontra acusado, para que possa apresentar os seus argumentos e os seus meios de contra prova.

No caso concreto, a acusação deduzida foi considerada manifestamente infundada, por o Mmº Juiz ter entendido, em suma, que não foram descritos na peça acusatória todos os elementos objectivos do crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º nº 1 al b) do CP, mediante a narração dos respectivos factos.

Com efeito, o Mmº Juiz a quo considerou que da acusação não consta “a narração factual da possibilidade de cumprimento pelo arguido da ordem de entrega da sua carta de condução, a qual se teria de retirar de uma disponibilidade da mesma por parte daquele que lhe permitisse proceder a essa entrega, ou seja, teria de constar da acusação que o arguido tinha a carta de condução em seu poder (ou dela podia dispor) quando lhe foi dada a ordem para a entrega ou durante o prazo estabelecido para o efeito.”

Consideramos, contudo, que, no caso, tal factualidade está implícita na factualidade constante da acusação.

Vejamos:

O artigo 348 n.º 1 alínea b) do CP estabelece que:

“Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: (…) b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”

Seguindo, no essencial, a formulação de Lopes da Mota (Crimes Contra a Autoridade Pública in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, II, Lisboa 1998, pp 428-9), o crime de desobediência previsto e punível pelo citado artigo 348.º tem como elementos objectivos do tipo (a) existência de ordem ou mandado de autoridade ou funcionário, na acepção do artigo 386.º do Código Penal, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou omissão, (b) a sua legalidade material e formal, (c) a competência de quem a emite, (d) comunicação regular da ordem ao destinatário e (e) incumprimento da ordem ou mandado.

No despacho recorrido, refere-se que a ordem de entrega da carta de condução deverá ser possível de ser cumprida (física ou legalmente) pelo concreto destinatário, de acordo com a situação em causa e as respectivas capacidades, tendo em conta o principio ad impossibilita nemo tenutur (ninguém é obrigado ao impossível), do que não se discorda. (1)

Ora,, no caso em apreço, exactamente porque consta da acusação ( 2) que o arguido, bem sabendo que tinha que acatar a ordem de entrega, por qualquer meio, da sua carta de condução, dentro do prazo concedido, se quis eximir ao cumprimento, não o fazendo, agindo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal, tal pressupõe, naturalmente, que o arguido o podia fazer, isto é, que tinha os documentos na sua disponibilidade, ou posse, e não os quis entregar, não faltando, por isso, a invocada alegação de facto que consubstancia o elemento típico objectivo do crime de desobediência. (3)

É sabido, por elementar, que, de facto, só desobedece quem, tendo na sua mão ou na sua disponibilidade os documentos intimados, os não entrega, após a legítima ordem recebida.

É lógico que só se pode não querer entregar algo que se tenha na nossa disponibilidade ou posse. Não se tendo essa disponibilidade ou posse, não se pode dizer que não se quis entregar, mas sim que não podia entregar.

Nesta medida, face à matéria de facto descrita na acusação pública, importa concluir que se mostra preenchida na sua plenitude a tipicidade objectiva e subjectiva do imputado crime de desobediência.

O recurso será, assim, face aos termos sobreditos, julgado procedente.

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- Decisão:

Em conformidade, com o exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Subsecção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o recebimento da acusação pública, com o prosseguimento dos autos, designadamente com a notificação do arguido para contestar e com o agendamento de julgamento, em conformidade com o disposto nos art. 311º e ss do CPP.

Sem custas.

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(Texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto)

Évora, aos 11 de Julho de 2024

Os Juízes Desembargadores

Anabela Simões Cardoso

António Condesso

Artur Vargues

..............................................................................................................

1 Como consta do despacho recorrido citando os Acórdãos: TRP de 15.03.2023, proc. 11187/18.6T9PRT.P1; TRG de 03-03-2014, proc. 5/12.9PABRG.G1; TRG de 12-01-2015, proc. 2162/12.5TABRG.G2; TRG de 08-02-2021, proc. 103/06.8TAPRG.G1; TRL de 09-05-2017, proc. 2509/15.2T9ALM.L1-5: a possibilidade de cumprimento da ordem, constituindo elemento objetivo do tipo de ilícito, tem de constar da narração dos factos da acusação e depois resultar provada na sentença, sob pena de, no primeiro caso levar à rejeição da acusação por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, n.º 3, al. d) do CPP, e no segundo à absolvição por não preenchimento do tipo de ilícito.

2 É o seguinte o trecho da acusação:

“ Bem sabia, o arguido, que estava obrigado a cumprir a pena acessória determinada e que tinha que acatar a ordem de entrega, por qualquer meio, da sua carta de condução, dentro do prazo concedido. Porém, querendo eximir-se ao cumprimento da condenação, não o fez. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal..”

3 Em sentido semelhante, se decidiu no Ac. TRC de 07.12.2021, proc. 670/19.6T9LRA.C1, em cujo sumário se pode ler: “I – Traduzindo-se a desobediência na omissão de um comportamento, só pode praticar o crime quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem, sendo que a consequência lógica deste entendimento consiste em considerar como indispensável que na acusação pública constem os factos ou eventos da vida real que, pelo menos de uma forma implícita, permitam concluir com segurança que o arguido tinha em seu poder ou dispunha do acesso aos documentos que devia entregar.

II – Constando da acusação pública que o agente «quis não entregar» tais documentos para que foi intimado, e tendo-se dado esse facto como provado, tal bastará para perfectibilizar o elemento da referida posse ou disponibilidade dos documentos na sua esfera, pois quem «quer não entregar documentos» só os pode ter em mãos ou tê-los na sua directa disponibilidade.”