I - A constitucionalização de institutos do direito da família expressa o reconhecimento da importância da dinâmica das relações familiares no seio da sociedade ao mesmo tempo que acentua a obrigação do Estado no desenvolvimento de programas de proteção da família, de tal modo que o direito a constitui-la pode ser entendido como um direito dos pais a ver vencidos todos os obstáculos ao estabelecimento e desenvolvimento da parentalidade.
II - O princípio da proporcionalidade exige que a separação dos filhos relativamente aos pais, designadamente para efeitos de adoção futura, sendo a medida mais gravosa, constitua a ultima ratio e ocorra em situação de grave violação dos deveres funcionais que recaem sobre os pais.
III - O Estado deve promover o mais amplo apoio às famílias biológicas, nomeadamente às monoparentais, privilegiando a colocação dos menores em seio familiar, mesmo o não biológico, ao invés de colocação para a adoção.
IV - Medidas que visem a rutura das relações entre pais e filhos violam direitos fundamentais de uns e outros e, por via disso, têm de ser ponderadas de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido amplo: necessidade, adequação e justa medida.
V - Seriam inconstitucionais, designadamente por violação do disposto no art. 36.º CRPortuguesa, as normas dos arts. 35.º, n.º 1 al. g) e 4.º da LPCJ, e bem assim a norma do art. 1798.º CC, se interpretados com o entendimento segundo o qual existe fundamento para a aplicação da medida de promoção e proteção de confiança com vista à futura adoção, quando não está demonstrado terem sido proporcionadas à mãe estrangeira, vítima de violência doméstica, medidas de apoio concreto que lhe permitissem ter consigo o filho, cuidá-lo e educá-lo, sobretudo quando se vê como possível a reunião das duas em seio de agregado familiar que se oferece para as acolher e apoiar.
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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RELATÓRIO
Os presentes autos de promoção e proteção iniciaram-se por requerimento do MP, apresentado a 4.7.2023, relativamente à menor AA, nascida a ../../2022, atualmente com um ano e sete meses, filha de BB, atualmente com 38 anos de idade, e de CC, atualmente com 39 anos.
Considerava o MP encontrar-se a criança em perigo por sinalizada à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens no dia seguinte ao nascimento, uma vez que a progenitora, guineense a residir em Portugal desde 2021, se encontrava, então, em Centro de Acolhimento, por ter sido vítima de violência doméstica por parte do marido, pai da menina, não contando aquela com qualquer apoio familiar.
Tendo os progenitores inicialmente nisso concordado, foi pela CPCJ aplicada medida de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, o que foi recusado posteriormente pelo pai, tendo sido remetido o processo ao Juízo de Família e Menores.
Nestes autos foi aplicada uma primeira medida provisória:
A 28.7.2023, medida cautelar de apoio junto dos progenitores, a ser executada junto da progenitora na comunidade de inserção CAV ..., sendo os pais impedidos de dali retirarem a criança.
Como fundamentos da medida, referiu-se o facto de a menor e a mãe se acharem a viver naquela comunidade; estarem pendentes inquéritos por violência doméstica contra o progenitor; os pais pretenderem reatar vida em comum; à mãe ter sido diagnosticada doença psiquiátrica, conseguindo, no entanto, assegurar os cuidados necessários à filha.
A 11.10.2023, o instituto de Segurança Social remeteu aos autos relatório, datado de 10.10.2023, onde, entre o mais, referiu o seguinte:
«Em face do exposto, consideramos que, sendo a mãe atenta e cuidadosa com a criança, que se encontra bem cuidada, desenvolvida, com sinais de estimulação adequada, e com vinculação à figura materna, parece-nos que, a intenção dos progenitores voltarem a coabitar, e a posição que ambos assumem ao aceitar a intervenção na família, minimiza o risco para esta criança de tenra idade, pois estará integrada em Estrutura Social para a infância e o agregado será acompanhado pela equipa do CAFAP e pelo técnico gestor do processo.
As características da mãe, com destaque para a avaliação psicológica efetuada na Comunidade de Inserção, constituem igualmente um fator de preocupação, mas que poderão ser minimizados com a intervenção descrita em cima».
A 4.12.2023, teve lugar conferência, ao abrigo do artigo 107.º, n.º 3 da Lei 147/99, de 1.9 (LPCJP), ata onde foi consignada nova decisão provisória determinando a prorrogação da medida de apoio junto da progenitora, com a condição de esta se manter na comunidade de inserção da A..., devendo tal medida ser alterada para acolhimento residencial, caso a progenitora optasse por ali se não manter. Os contactos com o pai ficaram, então, suspensos.
Foram aí considerados os seguintes factos:
• O progenitor é pessoa com personalidade violenta e controladora, nomeadamente da sua mulher;
• Não reconhecendo nas mulheres a mesma dignidade do homem;
• Tal como a família da mãe, tem-na pressionado a voltar a viver consigo, juntamente com a filha;
• Não valorizando as consequências para a filha dessa relação controladora e depreciativa em relação à mulher;
• Não assume responsabilidade pelos seus atos;
• Apresenta uma personalidade autocentrada e rigidificada;
• Necessita de apertado apoio psicológico e treino parental;
• A progenitora é uma pessoa imatura, com dificuldade em gerir situações de stress;
• Situações em que pode ter atos impulsivos e agressivas;
• Não tem capacidade de autocrítica;
• Sendo influenciável por terceiros, e dependente de outros para as decisões da sua vida;
• Encontra-se em estado depressivo;
• Necessita de apertado acompanhamento psicológico e psiquiátrico;
• Bem como de acompanhamento para o exercício das responsabilidades como mãe;
• A família alargada vive na Guiné;
• Encontra-se pendente no DIAP do Porto Inquérito-crime, em que se investiga a prática, pelo progenitor, de crime de violência doméstica, sendo vítima a progenitora;
• A criança está muito ligada, em termos afetivos, à mãe;
• Não tendo, pelo contrário, ligação afetiva com o pai.
Nesse mesmo dia, a criança foi conduzida à associação B..., por a mãe se ter recusado a voltar para o CAV, tendo sido proferido despacho, datado do mesmo dia, decretando a medida cautelar de acolhimento residencial, pelo prazo de três meses, a ser aplicada naquela Casa, mantendo-se a proibição de contactos com o pai e determinando-se a gestão dos contactos com a mãe pela B..., com supervisão do ISS.
Notificados MP e pais para alegar, nos termos do art. 114.º, n.º 1, da LPCJ, veio o MP requerer viesse a ser decretada a medida de confiança da menina a pessoa selecionada para adoção ou a instituição com vista a futura adoção, nos termos dos arts. 35.º, n.º 1 g) e 38.º-A, da LPCJP.
O patrono oficioso nomeado à menor, por seu turno, defendeu a adoção como ultima ratio.
Foram realizadas perícias médico-legais, em psiquiatria, a ambos os progenitores, tendo sido juntos relatórios a 12.12.2023.
O pai veio, a 20.2.2024, solicitar a confiança da menina a familiar que identificou como DD.
Foi apresentado relatório pelo ISS, datado de 21.3.2024, com o seguinte parecer:
«Em face do exposto, constatam-se recentes mudanças operadas na vida da mãe (que conseguiu um espaço habitacional, e a sua inserção profissional), importando avaliar como serão consolidadas essas mudanças e como irão continuar a decorrer os convívios mãe/filha. Importa ainda perceber se, efetivamente, a progenitora tem consciência da necessidade de apoio terapêutico, já que, atualmente, nega ter tomado medicação e refere não precisar do referido apoio. A progenitora assume não reunir, de momento, condições para acolher a AA, sugerindo a entrega da criança à tia-avó como a solução mais ajustada. Pretende, no futuro, criar as condições necessárias para cuidar da filha.
Destacamos o resultado da avaliação forense da mãe, a forma como insistiu em se manter no CAV ..., contrariando o regulamento da instituição e apresentando-se como um elemento perturbador naquele contexto, sem visitar a filha nessa fase (coincidente com a adaptação da AA ao contexto residencial).
O resultado da avaliação forense do progenitor suscita também preocupação, pela necessidade identificada de apoio psicológico e de supervisão da dinâmica familiar, que o próprio rejeita. Encontra-se impedido de ter contactos com a filha, e veio indicar um elemento da sua família para se constituir como retaguarda alternativa.
Relativamente a esta alternativa, salienta-se que o facto de DD não ter tido qualquer contacto com a criança, não se constituindo como referência para a mesma. Parece-nos ainda pouco clara a forma como se apresenta como alternativa de acolhimento para AA (nunca tendo sido identificada pelos pais como referência/suporte), e o efetivo grau de parentesco, que importa aferir, atendendo às diferentes versões apresentadas: pelo progenitor junto da sua mandatária, referindo-se a DD como prima afastada, pela própria, que afirmou ser tia avó da criança, e ainda, pelo CAV ..., a quem a mãe informou que DD seria amiga do progenitor, que o teria ajudado aquando da sua vinda para Portugal.
A forma como DD encarou a problemática que levou ao acolhimento de AA, nomeadamente o entendimento de que entre marido e mulher, não devem existir interferências de outrém, e como aparentou desvalorizar os resultados das perícias forenses dos pais, considerando que os mesmos não necessitam de apoio terapêutico, constitui, igualmente, um fator de ponderação, quanto ao projeto de vida da criança.
Parece-nos ainda que, um possível retorno da criança ao núcleo familiar de origem pressupõe uma efetiva adesão, por parte dos pais, ao acompanhamento terapêutico indicado nas respetivas perícias. Face ao exposto, consideramos necessária a continuidade da medida aplicada de “Acolhimento Residencial”, a executar na B..., onde a criança já se encontra.»
Teve lugar debate judicial, a 8.4.2024, continuando a 12.4.2024, com prolação de acórdão, por maioria, com voto de vencido do juiz de Família e Menores, no qual se decidiu aplicar a medida de apoio junto de outro familiar, na pessoa de DD, identificada nos autos, medida aplicada por seis meses, e com as seguintes condições:
g) DD deve iniciar visitas na casa de acolhimento, durante, pelo menos, 30 dias, em horários a serem acordados com a casa de acolhimento e ISS;
h) Após, e mediante prévia decisão nossa, quando for entendido que a criança deve passar a residir com DD, a progenitora deverá também mudar-se para a casa desta;
i) Os contactos com o pai serão geridos por DD, não podendo aquele fazer parte do agregado;
j) A criança será inscrita em infantário, da escolha de DD;
k) O agregado será acompanhado por CAFAP a indicar pelo ISS;
l) Os progenitores serão seguidos em consultas de psicologia e em sessões de treino parental.
No voto vencido, foi defendida a aplicação de medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, por se considerar preenchido o requisito do art. 1978.º, n.º 1 d) do CC, o que decorre de dois fatores: personalidade autocentrada do pai, com comportamento violentos por parte deste e vulnerabilidade e dependência da mãe.
Desta decisão colegial recorre o MP, visando, exatamente, a confiança da menina com vista para a adoção, com base nos argumentos que assim se elencaram em conclusões:
1ª - Conforme douta decisão proferida no dia 12-4-2024 e tomada apenas com os votos favoráveis das Exmas. Juízas sociais e, assim, por maioria, foi aplicada a favor da criança AA, nascida no dia ../../2022, a medida de promoção e proteção de apoio junto de outro familiar, na pessoa de DD, identificada nos autos, pelo período de seis meses;
2ª – O Mmo. Juiz titular do processo, votando vencido, apresentou a correspondente declaração de voto, nos termos da qual consignou entender que, não estando em causa divergências quanto à matéria de facto, tal, no seguimento do princípio do superior interesse da criança, implicava a aplicação da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, nos termos do artigo 35º, n.º 1, g) da LPCJP;
3ª – Da discordância do entendimento que fez vencimento na referida decisão vem à apreciação de V. Exas o presente recurso, afigurando-se-nos que, tal como entendido pelo Mmo. Juiz titular do processo e que presidiu à diligência – debate judicial – em causa, deve ser aplicada, a favor da mencionada criança, a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção, prevista no art.º 35º, nº1, al. g) da LPCJP;
4ª - Salvo o devido respeito, as Exmas. Juízas sociais não têm razão, afigurando-se-nos que, ao votarem pela aplicação da mencionada medida de promoção e proteção de apoio junto de outro familiar, a executar junto da aludida DD, atuaram no exclusivo interesse dos progenitores da criança e, marcadamente, da progenitora desta, esquecendo que o superior interesse da dita criança reclamava a aplicação da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção e conforme, aliás, declaração de voto do Mmo. Juiz titular do processo;
5ª – Considerando os factos que foram dados como provados na douta decisão ora recorrida e acima referidos, importa destacar, além do mais, que os progenitores da criança não aceitam a necessidade de apoio psicológico e de treino parental, que a progenitora também não aceita a necessidade de acompanhamento psiquiátrico e que a referida progenitora, residindo atualmente num quarto arrendado, na residência situada na rua ..., nº ..., 2.º Dto, no Porto, que partilha com outras duas pessoas, reconheceu não ter, atualmente, condições para assumir os cuidados da filha;
6ª - Da avaliação efetuada, importa destacar que a relação com o marido, progenitor da filha, sempre foi pautada por episódios de violência perpetrados por este desde o início da relação, tendo sido instaurado inquérito por violência doméstica em 2021, no caso, o processo de inquérito nº 667/21.6SLPRT, ao qual foram apensados outros três inquéritos, que ainda se encontram em fase de investigação;
7ª - Realizada perícia de psicologia forense à progenitora BB, conforme relatório datado de 16-11-2023 e junto aos autos, concluiu a Exma. Perita, o seguinte: - No que diz respeito ao funcionamento psicológico, a examinada apresenta fragilidades, nomeadamente ao nível do autocontrolo, autogestão, coping, autocrítica, locus de controlo, ressonância afetiva, maturidade psicológica e autonomia;
- Apresenta-se muito lábil emocionalmente e em situações emocionalmente intensas tende a exibir respostas impulsivas e agressivas;
- Os dados sugerem que a examinada tem capacidade de fazer julgamentos morais das suas ações, contudo revela falta de autocrítica;
- Relativamente às características da personalidade, a examinada parece evidenciar imaturidade, tendo dificuldades em refletir sobre as situações que envolvem ter comportamentos de responsabilidade e autonomia;
- Relativamente às características psicológicas mais relevantes para a parentalidade destacam-se também dificuldades em se posicionar criticamente sobre as suas responsabilidades na gestão e resolução das adversidades que originaram o presente processo, bem como severas limitações em termos de proatividade;
- A examinada tem dificuldade em refletir e agilizar estratégias concretas para orientar a educação e o cuidado à criança de uma forma autónoma;
- Relativamente ao impacto e à sua perspetiva relativamente à problemática que terá dado origem ao atual processo, a examinada apresenta um discurso difuso relativamente à sua capacidade para implementar estratégias que possam contribuir para ultrapassar a situação de risco;
- Como fatores de risco podemos destacar a sua imaturidade, a instabilidade emocional, a fragilidade e vulnerabilidade psicológica que caracteriza o seu funcionamento e que parece condicionar o seu comportamento enquanto figura parental/cuidadora, tendo dificuldades em refletir sobre outro tipo de dimensões relacionadas com as competências parentais necessárias para garantir a segurança, estimulação e práticas educativas ajustadas ao superior interesse da criança, em elevada dependência de terceiros para a gestão do quotidiano;
- A examinada apresenta um quadro de elevada vulnerabilidade em termos psicológicos (quer pelo estado depressivo, quer pelas características da personalidade já elencadas) que parece condicionar o seu comportamento enquanto figura de proteção e de cuidado.
8ª – Mais resultando do mencionado relatório ser, pois, de admitir que a referida progenitora da criança não é completamente autónoma relativamente à capacidade parental, necessitando de medidas de apoio externas, consistentes e duradouras para que possa assumir o papel parental de forma ajustada às necessidades da criança e sendo de considerar que precise de apoio muito diretivo e de uma supervisão bastante ativa no que diz respeito ao seu quotidiano enquanto figura materna/cuidadora;
9ª - Realizada perícia de psicologia forense ao progenitor CC, conforme relatório também datado de 16-11-2023 e junto aos autos, concluiu a Exma. Perita, o seguinte:
- Pode constatar-se uma atitude defensiva e resistente por parte do examinado, com recusa perante algumas questões colocadas;
- Manteve um discurso adequado, mostrando ter competência cognitiva compatível com o seu percurso de vida e formação académica;
- Não se detetaram quaisquer lacunas cognitivas que interferissem na avaliação efetuada;
- Relativamente às outras áreas envolvidas nas competências para o exercício da parentalidade, o examinado apresenta, no plano do conhecimento, algumas fragilidades no que diz respeito à concetualização de condições para o adequado desenvolvimento cognitivo, social e emocional da sua filha, desvalorizando as alegadas vivências disruptivas do casal e que motivou o acolhimento da esposa numa Casa Abrigo e depois no CAV juntamente com a filha;
- O examinado apresenta algumas características de personalidade com impacto nefasto na sua parentalidade;
- O examinado apresenta uma atitude rigidificada e autocentrada, assumindo um papel controlador e de dominância relativamente à sua esposa BB, o que pode prejudicar o desenvolvimento socio emocional da sua filha;
10ª – Mais concluindo a Exma. Perita que o referido progenitor da criança necessita de acompanhamento em Psicologia e Treino Parental, com uma estreita supervisão, por entidade especializada para o efeito, no sentido de ser auxiliado a poder se constituir como uma ajustada figura cuidadora e protetora que promova o adequado desenvolvimento cognitivo, emocional e social, da sua filha, uma vez que apresenta características de personalidade, que poderão interferir negativamente nos seus processos de vinculação afetiva, com um marcado impacto negativo no seu relacionamento interpessoal nomeadamente em relações de maior proximidade como o são as relações de intimidade/familiares (sublinhado e realce nossos);
11ª – Assim e conforme resulta das respetivas perícias efetuadas:
- A progenitora da criança, não só não é completamente autónoma relativamente à capacidade parental, necessitando de medidas de apoio externas, consistentes e duradouras para que possa assumir o papel parental de forma ajustada às necessidades da criança e de acompanhamento em Psicologia e Treino Parental e sendo de considerar que precise de apoio muito diretivo e de uma supervisão bastante ativa no que diz respeito ao seu quotidiano enquanto figura materna/cuidadora, como apresenta um quadro de elevada vulnerabilidade em termos psicológicos (quer pelo estado depressivo, quer pelas características da personalidade ali elencadas), o que parece condicionar o seu comportamento enquanto figura de proteção e de cuidado, pelo que, segundo estamos em crer, o quadro de elevada vulnerabilidade em termos psicológicos que apresenta, porque decorre, não só do estado depressivo, mas também das características da personalidade, mesmo com medidas de apoio externas, consistentes e duradouras, nunca lhe permitirá assumir o papel parental de forma ajustada às necessidades da criança; e,
- O progenitor da criança, que apresenta algumas características de personalidade com impacto nefasto na sua parentalidade e, bem assim, uma atitude rigidificada e autocentrada, assumindo um papel controlador e de dominância relativamente à sua mulher BB, o que pode prejudicar o desenvolvimento socio emocional da sua filha e ainda características de personalidade que poderão interferir negativamente nos seus processos de vinculação afetiva, com um marcado impacto negativo no seu relacionamento interpessoal nomeadamente em relações de maior proximidade como o são as relações de intimidade/familiares, necessita de acompanhamento em Psicologia e Treino Parental, com uma estreita supervisão, por entidade especializada para o efeito, no sentido de ser auxiliado a poder se constituir como uma ajustada figura cuidadora e protetora que promova o adequado desenvolvimento cognitivo, emocional e social da sua filha, pelo que, sendo certo que, quando confrontado, em Tribunal, com o teor dos relatórios periciais, nomeadamente na parte em que se conclui pela falta de competências parentais, afirmou que tais relatórios são uma treta, segundo estamos em crer, nunca irá assumir o papel parental de forma ajustada às necessidades da criança;
12ª - Como escrevemos nas alegações escritas que apresentámos e defendemos oralmente no debate judicial, tendo a criança AA, porque nasceu no dia ../../2022, completado já um ano de idade, a medida de acolhimento residencial que em seu benefício foi aplicada, não constitui a medida mais favorável ao respetivo bem-estar e superior interesse, pois não salvaguarda o direito de a mesma a crescer num contexto familiar estável, protetor, permanente e securizante capaz de promover o seu equilíbrio e desenvolvimento pleno, passando, em nosso entender, o respetivo projeto de vida futuro pela aplicação da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção;
13º - Não sendo de forma nenhuma adequado ao superior interesse da criança viver com ambos os progenitores ou com qualquer um deles, pelas razões acima referidas, ou com a mencionada DD, pessoa que nem sequer conhece e que também não conhece a criança;
14ª - A criança AA, como qualquer criança, tem direito a uma família que a ame, que dela cuide e lhe proporcione a estabilidade e segurança de que carece;
15ª - Ao aplicarem a medida de promoção e proteção que aplicaram, a favor da criança AA, nascida no dia ../../2022 -- apoio junto de outro familiar, na pessoa de DD, identificada nos autos, pelo período de seis meses – as Exmas. Juízas sociais não tiveram em conta que o tempo da criança não é igual ao tempo dos adultos e decisão que, segundo estamos em crer, apenas terá sido tomada, provavelmente por também serem mães e, assim, em função, marcadamente, dos interesses da progenitora, critério obviamente inadmissível, designadamente porque atentatório do superior interesse da criança, sendo certo que a idade da referida criança aconselha a que não se perca mais tempo, impondo-se que lhe seja dada oportunidade de ser amada e feliz, crescendo no seio de uma família que dela cuide com amor e carinho, não podendo ficar indefinidamente numa instituição, que, pelas suas características, jamais lhe poderá proporcionar tais afetos ou dar-lhe as oportunidades inerentes a um núcleo familiar equilibrado que por ela se responsabilize, nem a viver com um completo desconhecido para si;
16ª – Nos termos do disposto no art.º 1978º, nº1, al. d), do Código Civil, “O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações (…) d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança”;
17ª – Dispondo os nºs 2 e 3 do referido normativo que, “Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança” e “Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças”;
18º - Encontrando-se em execução relativamente à criança AA, conforme douta decisão recorrida, a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, resulta do requerimento inicial, ter o presente processo judicial de promoção e proteção sido instaurado uma vez que a referida criança “está exposta a situações de perigo que põem ou podem pôr em causa essencialmente a sua estabilidade e segurança, situações de perigo enquadráveis designadamente no nº1 e nas alíneas c) e f), do nº 2, do art.º 3º da LPCJP;
19ª - Em função de tudo o exposto entendemos que a medida que melhor se adequa à situação da criança AA é a de confiança a pessoa selecionada para adoção ou a instituição com vista a futura adoção, nos termos dos arts. 35º, nº1, al. g) e 38º- A, da LPCJP e conforme aliás posição do Mmo. Juiz titular do processo e que presidiu à diligência – debate judicial – em causa.
Contra-alegando, a progenitora opõe-se à procedência do recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Objeto do recurso: se deverá ser decretada a medida de promoção e proteção de confiança da menor com vista à sua adoção futura.
FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Matéria de facto dada como provada em primeira instância:
a) No dia 08 Novembro de 2022 nasceu AA, tendo a paternidade e a maternidade registadas em nome de CC e BB, respetivamente.
a) [1]AA, após o nascimento, foi residir juntamente com a progenitora para o Centro de Apoio à Vida (CAV) – ..., em ..., Maia, uma vez que referida progenitora estava sem alternativa habitacional.
b) Pelo facto de, por queixas de comportamentos violentos do progenitor da criança para consigo, ter a progenitora aceitado não ir para casa do marido, após o nascimento da criança.
c) Os progenitores de AA são de nacionalidade Guineense, sendo o progenitor nacional da Guiné-Bissau e a progenitora da Guiné Conacri, tendo, contudo, o progenitor nacionalidade portuguesa.
d) Ambos são reciprocamente casados e BB chegou a Portugal no ano de 2021 após ter casado por procuração com CC.
e) O progenitor de AA sempre realizou visitas semanais, enquanto a filha se encontrava naquela comunidade.
f) Sempre demonstrou atitudes violentas para com as técnicas, chegando a dizer que lhes batia, e a aproximar-se das mesmas, fisicamente.
g) Sempre desvalorizava a mulher.
h) E tem uma conceção da figura feminina de subalternidade em relação ao homem.
i) Na altura, a progenitora da criança estava desempregada e beneficiava da prestação de abono de família da filha.
j) Contudo, conseguiu constituir uma poupança para si, que reforçava mensalmente, sendo muito organizada quanto aos seus gastos.
k) O progenitor trabalhava (como ainda trabalha) na Diocese ..., como auxiliar de enfermagem, e como empregado de mesa num hotel.
l) A criança era seguida no Centro Materno Infantil ... (...), nas consultas de Neonatologia e Pedopsiquiatria.
m) Estando a fazer tratamento profilático para a hepatite, já que os pais são portadores da doença.
n) Tendo a consulta de Pedopsiquiatria sido agendada pela médica neonatalogista para despistar a possibilidade de não criação de vínculo materno.
o) A progenitora era seguida na consulta externa do Hospital ... – ..., pela sua condição de saúde (hepatite), cumprindo com os agendamentos de forma autónoma e tendo-lhe sido colocado Implanon, para prevenção de nova gravidez.
p) A progenitora apresenta um quadro depressivo, tendo já recorrido, no passado recente, quando ainda integrava a comunidade terapêutica, ao serviço de psiquiatria do Hospital 1... por pensamentos suicidas e humor deprimido, tendo sido medicada com um antidepressivo e um ansiolítico.
q) Contudo, a referida progenitora da criança resistiu em concordar com a terapêutica, alegando que dessa forma não poderia amamentar a filha durante a noite.
r) Não obstante ter sido esclarecida quanto à compatibilidade da medicação com a amamentação, ainda assim manteve a oposição, tendo sido feito um trabalho de consciencialização para a necessidade de adesão à terapêutica medicamentosa, o que acabou por resultar.
s) Em17-11-2022 foi obtido o primeiro acordo de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, pelo período de seis meses e também para ser executada em Comunidade de Inserção, designadamente na instituição A... – resposta de Centro de Apoio à Vida “...”, em ..., concelho da Maia.
t) Medida prorrogada mais tarde.
u) Durante o período de permanência naquela comunidade, foi elaborada pela respetiva equipa técnica um Plano de Intervenção Multidisciplinar, nomeadamente ao nível de desenvolvimento de competências maternais, pessoais, sociais, familiares e definição do Projeto de Vida.
v) A relação com o marido, progenitor da filha, sempre foi pautada por episódios de violência perpetrados por este desde o início da relação, tendo sido instaurado inquérito por violência doméstica em 2021, no caso, o processo de inquérito nº 667/21.6SLPRT, ao qual foram apensados outros três inquéritos, os quais ainda se encontram em fase de investigação[2].
w) A progenitora, apesar de verbalizar não ter interesse na manutenção da relação com o progenitor da filha, afirmou também não pretender divorciar-se por não ter apoio de qualquer elemento da sua família.
x) Os quais, pelo menos no período de integração na comunidade de inserção, contactavam-na regularmente no sentido de retomar a relação com o marido.
y) Assim, e apesar de revelar medo de “voltar para o CC”, afirmava não ter outra alternativa.
z) Alegando ainda que, dessa forma, e porque o marido voltaria a ser violento para consigo, conseguiria demonstrar à família que não podia viver com aquele.
aa) Depois de, em junho de 2023, ter agredido uma outra utilizadora da comunidade de inserção, foi entendido pela equipa técnica que aquela teria de abandonar este espaço.
bb) Tendo sido colocada a hipótese de ir para um apartamento de autonomia, gerido pela UMAR – Estrutura de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica.
cc) Nessa altura, o progenitor, por não concordar com essa hipótese, retirou o consentimento para intervenção da CPCJ ....
dd) A progenitora sempre se revelou atenta e cuidadosa com a criança, que se encontra bem cuidada, desenvolvida, com sinais de estimulação adequada, e com vinculação à figura materna.
ee) Até, pelo menos, 4 de dezembro de 2023, os progenitores pretendiam voltar a viver juntos, com a filha.
ff) Sendo que, nessa data, a progenitora percebeu que, mantendo essa posição, a filha seria retirada de ao pé de si.
gg) A progenitora apresenta fragilidades, nomeadamente ao nível do autocontrolo, autogestão, coping, autocrítica, locus de controlo, ressonância afetiva, maturidade psicológica e autonomia.
hh) Apresenta-se muito lábil emocionalmente e em situações emocionalmente intensas tende a exibir respostas impulsivas e agressivas.
ii) Tem capacidade de fazer julgamentos morais das suas ações.
jj) Contudo revela falta de autocrítica.
kk) Evidencia imaturidade, tendo dificuldades em refletir sobre as situações que envolvem ter comportamentos de responsabilidade e autonomia.
ll) Apresenta dificuldades em se posicionar criticamente sobre as suas responsabilidades na gestão e resolução das adversidades que originaram o presente processo, bem como severas limitações em termos de proatividade.
mm) Tem dificuldade em refletir e agilizar estratégias concretas para orientar a educação e o cuidado à criança de uma forma autónoma.
nn) Apresenta ainda fragilidade e vulnerabilidade psicológica que caracteriza o seu funcionamento e que parece condicionar o seu comportamento enquanto figura parental/cuidadora, tendo dificuldades em refletir sobre outro tipo de dimensões relacionadas com as competências parentais necessárias para garantir a segurança, estimulação e práticas educativas ajustadas.
oo) Tem um quadro de elevada vulnerabilidade em termos psicológicos (quer pelo estado depressivo, quer pelas características da personalidade já elencadas) que condiciona o seu comportamento enquanto figura de proteção e de cuidado.
pp) Não sendo completamente autónoma relativamente à capacidade parental, necessitando de medidas de apoio externas, consistentes e duradouras para que possa assumir o papel parental de forma ajustada às necessidades da criança.
qq) Já o progenitor, no que se refere às competências para o exercício da parentalidade, apresenta, no plano do conhecimento, algumas fragilidades no que diz respeito à concetualização de condições para o adequado desenvolvimento cognitivo, social e emocional da sua filha.
rr) Desvalorizando as vivências disruptivas do casal e que motivou o acolhimento da esposa numa Casa Abrigo e depois no CAV juntamente com a filha.
ss) Apresenta ainda uma atitude rigidificada e autocentrada, assumindo um papel controlador e de dominância relativamente à sua mulher, o que pode prejudicar o desenvolvimento socio-emocional da sua filha.
tt) - O examinado necessita de acompanhamento em Psicologia e Treino Parental, com uma estreita supervisão, por entidade especializada para o efeito, no sentido de ser auxiliado a poder se constituir como uma ajustada figura cuidadora e protetora para a filha.
uu) Os progenitores não aceitam a necessidade de apoio psicológico, e de treino parental.
vv) E a progenitora não aceita a necessidade de acompanhamento psiquiátrico.
ww) A progenitora, após ter saído da comunidade de inserção, em finais de dezembro de 2023, conseguiu inserção profissional, estando a trabalhar, desde 15 de janeiro deste ano, numa fábrica, no horário compreendido entre as 7h e as 16h30 horas.
xx) O seu contrato de trabalho é um contrato de trabalho sem termo.
yy) Sai diariamente de casa pelas 5h20, para conseguir chegar a horas à fábrica, que se localiza em ..., Matosinhos.
zz) Reside atualmente num quarto arrendado, na rua ..., nº ..., 2.º Dto, no Porto.
aaa) Partilha o quarto com mais duas pessoas.
bbb) Reconhecendo, que, atualmente, não tem condições para assumir os cuidados da filha.
ccc) Assim, aceita que a filha seja confiada aos cuidados de DD, reside na Av. ..., ..., ... ..., Vila Nova de Gaia.
a)[3] Pretendendo ir viver para a casa da referida DD.
b) A qual, depois de numa primeira fase ter dito que estava disponível para dar apoio à criança, no pressuposto de viver com os pais.
c) Afirmou estar disponível para a acolher em sua casa.
d) Dizendo, agora, que também aceita que a mãe da criança fique a viver consigo.
e) A criança não conhece a referida DD.
f) O progenitor também pretende que a filha fique entregue aos cuidados da referida DD.
g) Que é considerada por este como sendo da sua família.
h) A DD trabalha como empregada doméstica, das 09h00 às 16h00.
i) Vive num apartamento arrendado, de tipo T2+1, juntamente com duas filhas.
j) Caso a criança vá viver consigo, pretende inscrevê-la em infantário.
Factos não provados em primeira instância.
a) Que DD seja tia do progenitor da criança.
b) Que os progenitores não pretendam viver juntos, e manter o seu casamento.
c) Que DD esteja zangada com o progenitor.
Fundamentação de direito
A Constituição da República Portuguesa considera a família um elemento fundamental da sociedade merecedora de proteção desta e do Estado de modo a ver efetivadas condições que permitam a realização pessoal dos seus membros (art. 67.º, n.º 1).
Por essa razão, os pais e as mães têm direito à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país (art. 68.º).
Por outro lado, e estritamente ligado ao livre desenvolvimento da personalidade, no que tange aos reflexos deste sobre a liberdade de procriar, encontramos o direito consagrado no art. 36.º, n.º 1, da CRP, segundo o qual “Todos têm direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”.
E os n.ºs 5 e 6: “Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” e “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”.
A constitucionalização de institutos do direito da família expressa o reconhecimento da importância da dinâmica das relações familiares no seio da sociedade, ao mesmo tempo que acentua a obrigação do Estado no desenvolvimento de programas de proteção da família. De tal forma que Guilherme de Oliveira entende que o direito a constituir família pode ser entendido como um direito dos pais a ver vencidos todos os obstáculos ao estabelecimento da parentalidade, Aspetos Jurídicos da Procriação Assistida, in Temas de Direito da Medicina 1, 2005.
A proteção da família é também o leit motiv de instrumentos jurídicos internacionais aos quais o Estado Português se acha vinculado: artigos 12.º e 16.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, artigos 17.º e 33.º; o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, artigos 10.º e 11.º; a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 8.º; ou a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos da Criança.
No plano da União Europeia, é de salientar o disposto nos artigos 7.º, 9.º, 14.º, 24.º (em especial o seu n.º 3, em que se garante a unidade familiar na vertente do direito à convivência) e 33.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Sobre a garantia decorrente do art. 36.º, n.º 1, e o seu confronto com a separação dos filhos relativamente aos pais, decretada pelos poderes públicos, afirmam Jorge Miranda e Rui Medeiros, na Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, anot. XXVIII ao artigo 36.º, pp. 834-835: «Não basta […] que os pais não cumpram os seus deveres para com os filhos, sendo necessário que esteja em causa o incumprimento de “deveres fundamentais”. […] Por outro lado, estando em causa uma medida gravemente restritiva de direitos, liberdades e garantias, não pode deixar o legislador de densificar os deveres fundamentais cuja violação, ainda que objetiva, legitima a imposição de que os filhos sejam separados dos pais. As intervenções dos poderes públicos estão, pois, neste domínio, sujeitas a reserva de lei […]. O princípio da proporcionalidade exige, por último, que a separação, sendo a medida mais gravosa, constitua a ultima ratio, não podendo ser decretada quando existirem outras soluções menos gravosas».
Sendo assim, o “juiz funciona aqui como um garante dos direitos de todos os envolvidos – pais e filhos – estando obrigado a respeitar os equilíbrios constitucionais, tal como legalmente concretizados. Em especial, na perspetiva dos pais que se opõem a uma medida de separação a decretar eventualmente em consequência da violação das suas responsabilidades parentais fundamentais que lhes seja imputada, o processo perante o juiz adquire uma relevância crítica, porquanto é a única via processual que lhes é reconhecida para defenderem o seu direito a conviverem com os seus filhos. (ac. TC 193/2016, de 4.4.2016).
O caráter de ultima ratio de medidas que privem os pais do exercício do poder paternal, como agora pretende o recorrente, ao abrigo do disposto no art. 35.º, n.º 1 g) da LPCJP – confiança com vista a adoção futura -, norma que não dispensa a prevista no art. 1978.º CC (confiança com vista a futura adoção), tem sido bem explicitado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, nomeadamente a propósito de queixas apresentadas contra Portugal tendo por objeto tal tipo de medidas.
Exemplo disso é a decisão Soares de Melo c. Portugal, de 16.2.2016, queixa n.º 72850/14.
O tribunal de Estrasburgo começou aí por mencionar as observações finais do Comité dos direitos da criança das Nações Unidas, de janeiro de 2014, sobre os relatórios periódicos apresentados por Portugal nos quais se destaca a ausência de programas de apoio social de urgência[4], para enfatizar serem as medidas em causa enquadráveis sob o art. 8.º da CEDH, norma que protege o respeito pela vida familiar.
Nessa medida, diz o tribunal, “o facto de uma criança poder ser acolhida num quadro mais propício à sua educação não justifica, só por si, que esta seja retirada pela força aos cuidados dos seus pais biológicos; semelhante ingerência no direito dos pais, a título do artigo 8.º da Convenção, a gozarem de uma vida familiar com o seu filho, deve ainda revelar-se “necessária” em razão de outras circunstâncias (K. e T., supra, § 173, e Kutzner, supra, § 69). Para mais, o artigo 8.º da Convenção coloca a cargo do Estado obrigações positivas inerentes ao “respeito” efetivo da vida familiar. Assim, aí onde a existência de um laço familiar está estabelecida, o Estado deve, em princípio, agir de modo a permitir a este laço desenvolver-se e adotar as medidas adequadas para reunir o parente e a criança interessados”, razão pela qual “há que ter em conta o justo equilíbrio que deve ser respeitado entre os interesses concorrentes – os da criança, os dos dois pais e os da ordem pública (Maumousseau e Washington c. França, n.º 39388/05, § 62, CEDH 2007-XIII) -, tendo em conta todavia que o interesse superior da criança deve constituir a consideração determinante (ver, neste sentido, Gnahoré, supra, § 59), podendo segundo a sua natureza e a sua gravidade, prevalecer sobre o dos pais (Sahin c. Alemanha [GC], n.º 30943/96, § 66, CEDH 2003-VIII). Além do mais, a dispersão de uma família constitui uma ingerência muito grave; uma medida conducente a uma semelhante situação deve, assim, assentar sobre considerações inspiradas pelo interesse da criança e de um peso e de uma solidez bastantes (Scozzari e Giunta c. Itália, [GC], n.ºs 39221/98 e 41963/98, § 148, CEDH 2000-VIII). O afastamento da criança do contexto familiar é uma medida extrema, à qual apenas deveria recorrer-se num quadro urgente de necessidades. Para que uma medida deste tipo se justifique, deve responder à necessidade de proteger a criança confrontada com um perigo imediato (Neulinger e Shuruk c. Suiça [GC], n.º 41615707, § 136, CEDH 2010)”.
Embora reconhecendo caber às autoridades nacionais competentes a apreciação concreta quanto as medidas que devem ser adotadas, o TEDH enfatiza que as restrições aos direitos parentais só se justificam à luz do art. 8.º, “quando a família se tornou particularmente indigna relativamente à criança”, e observa a necessidade de o processo decisório interno ter em conta diversos contributos, como sejam a avaliação psicológica dos pais e a perícia psicológica às crianças[5].
Por tal motivo, naquela situação, foi o Estado Português condenado a pagar indemnização à progenitora afastada dos filhos mercê de medida de promoção e proteção idêntica à aqui pretendida em via de recurso[6].
Na situação que nos ocupa, o tribunal a quo não considerou estarem verificadas objetivamente as previsões da al. d) do n.º 1 do art. 1978.º CC, não obstante ser essa a posição do julgador que votou de vencido, voltando o recorrente a mencionar tal artigo legal.
Naquele normativo prevê-se a medida de confiança com vista a adoção futura se os pais, por ação ou por omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puseram em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, e educação ou o desenvolvimento da criança.
O perigo é o que resulta da legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças (n.º 3)[7].
Na ponderação do risco em que se encontra a criança e do desinteresse dos pais têm os tribunais enfatizado a prioridade que deve dar-se ao superior interesse da criança, conceito suficientemente vago e dúctil para acolher as mais variadas decisões (cfr. ac. desta RP, de 14.12.2022, proc. 377/18.1T8FAF.P1, e ac. STJ, de 13.10.2022, Proc. 26920/.0T8LSB.L1.S1), não deixando de se invocar o caráter de última ratio da medida sob análise (desta Relação e secção, ac. de 24.10.2022, Proc. 452/18.2T8OBR-C.P1), de se atender às entrevistas aos pais (e família alargada), à avaliação instrumental relativa à parentalidade e a entrevistas sociais (desta Relação e secção, o ac. de 13.7.2022, Proc. 1455/20.2T8GDM.P1).
De tudo quanto ficou dito, extraem-se os seguintes critérios orientadores:
- é mandamento constitucional, decorrente de vários preceitos do Texto Fundamental, o que impõe o respeito pela proteção da família, incluindo aí o direito dos pais a verem removidos todos os obstáculos ao exercício da parentalidade;
- o Estado deve promover o mais amplo apoio às famílias biológicas, nomeadamente às monoparentais, privilegiando a colocação dos menores em seio familiar, mesmo o não biológico, ao invés de colocação em estruturas de substituição;
- medidas que visem a rutura das relações entre pais e filhos violam direitos fundamentais de uns e outros e, por via disso, têm de ser ponderadas de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido amplo: necessidade, adequação e justa medida;
- nessa ponderação, a prevalência deve ser dada ao interesse da criança, mas a intervenção do tribunal tem igualmente de garantir os direitos de todos os envolvidos, incluindo dos pais;
- a restrição dos direitos parentais só se justifica quando a família biológica se tornou particularmente indigna relativamente à criança, o que não dispensa o apuramento concreto, por equipas independentes, das capacidades parentais e do relacionamento afetivo existente entre a criança e os pais biológicos.
Aqui chegados verificamos que, nestes autos, não está em causa o facto de a menina se encontrar em risco, pois que nem o pai nem a mãe, por ora, apresentam sequer vontade de tê-la com eles, sendo que o primeiro conta já com histórico de violência sobre a mãe da criança e esta, padecendo de depressão, não manifesta adesão interna a terapêutica consistente, não reunindo, também, do ponto de vista logístico, as condições necessárias para ter consigo a filha.
No caso do pai, a situação está acautelada com a já decidida proibição de contactos com a filha, situação que este terá aceite pois contra ela se não rebelou.
Todavia, podemos afirmar terem sido já tentadas todas as soluções possíveis e desejáveis para potenciar a reunião da família – pelo menos da mãe com a filha – a breve trecho?
O Estado Português interveio de forma suficiente junto da progenitora oferecendo-lhe as condições necessárias e suficientes para, por si, poder prover-se e à filha?
A resposta é obviamente negativa.
Com efeito, o que verificamos é que à mãe foi oferecido apoio logístico/habitacional até dezembro último, tendo estado institucionalizada, com a filha, por falta de outra opção e porque, na verdade, sendo estrangeira, não tem qualquer retaguarda no nosso país e foi vítima de violência doméstica por parte do pai da menina.
Todavia, desde há seis meses, depois de ter deixado a instituição onde estava (não cumpriu as normas internas e foi convidada a deixar o espaço), a mãe conseguiu demonstrar estar suficientemente empenhada para providenciar por sustento e por habitação (já anteriormente, com os parcos rendimentos que detinha, logrou constituir uma poupança para si – al. j), trabalhando regularmente desde janeiro deste ano e tendo mesmo arrendado espaço para habitar.
Assim, ao contrário do que parecia resultar da sua atitude inicial de subalternização relativamente ao marido, também ele estrangeiro mas já naturalizado português e aqui residente há mais de uma década, a progenitora não voltou a residir com aquele e tem vindo a conseguir manter-se de forma autónoma. E, ainda que o tenha feito para evitar que lhe retirassem a filha (al. ff), essa sua vontade indómita, em prol da menina, é também ela significativa da necessidade de o Estado estimular e apoiar o vínculo que assim se manifesta.
Repare-se, aliás, que, ao contrário do que sistematicamente tem sido enfatizado pelos órgãos internacionais e organizações de que Portugal faz parte, não foi sequer o Estado Português a conseguir auxiliar esta mãe a encontrar habitação para si (e para a filha) ou ocupação laboral, ignorando-se que desfecho teve a incipiente tentativa de lhe encontrar um apartamento de autonomia no âmbito da estrutura de apoio às vítimas de violência doméstica (al. bb).
Não é demais recordar a observação oposta pelo TEDH no citado ac. Soares de Melo c. Portugal, relativo exatamente a mãe oriunda de país africano de língua oficial portuguesa, ao mencionar que, antes de decidir retirar os filhos aos pais, o Estado português “tem de adotar medidas concretas para permitir às crianças viverem com a sua mãe, antes de as colocar e abrir um processo de adoção”, cabendo-lhe o inalienável papel de “ajudar as pessoas com dificuldade, de as orientar nas suas diligências e de as aconselhar”.
Na situação vertente, é certo apresentar a mãe fragilidades e debilidades bem descritas supra em gg) a pp), mas, relativamente à filha, sempre se revelou atenta e cuidadosa, de modo que a menina se apresenta bem cuidada, desenvolvida, com sinais de estimulação adequada e com vinculação à figura materna (al. dd).
Cremos, por isso, não estar verificada uma violação grave das suas responsabilidades parentais e não estarem reunidas - nem lá perto - condições para retirar a menina à mãe e colocá-la para adoção, ainda que se concorde que os projetos de vida das crianças terão condições para ser melhor sucedidos quando mais cedo colocados em prática.
Mas, a colocação das crianças de tenra idade para adoção só pode suceder ali onde se verifique terem já sido encetados – com a urgência que estes processos implicam (e, recorde-se, estes autos estão sendo tramitados desde há mais de um ano e a sua demora não pode resultar em prejuízo da mãe e da filha) – todos os meios possíveis para levar de vencida as dificuldades que se entreveem.
Nestes autos, o que já se tentou para auxiliar a progenitora a ter consigo a menina, para além de se acolherem as duas em instituição?
De modo que o projeto de vida de AA, neste momento, se nos afigura dever passar pela presença e contacto estreito com a mãe biológica a quem o Estado deve proporcionar o máximo de apoio possível, mormente no tocante à salvaguarda da sua saúde mental e ao apetrechamento de competências parentais, uma vez que aquela conta mesmo com o apoio de terceiros (a pessoa a quem o tribunal recorrido decidiu confiar a menina e suas filhas) na concretização dessa tarefa.
Neste momento, por isso, é prematura a pretensão de corte dos laços biológicos e afetivos existentes, não tendo sido encetadas vias algumas de suporte e amparo públicos que não o acolhimento assistencial da mãe em estrutura destinada a vítimas de violência doméstica, situação esta – a de vítima de violência doméstica – que é, afinal, a raiz das dificuldades da progenitora e por via das quais o MP pretende lhe seja retirada a filha.
Nesta nossa ponderação não fazemos tábua-rasa do que está provado em mm) a pp) e uu) e vv), pois a mãe mostra resistência a acompanhamento médico e medicamentoso em ordem à promoção da sua saúde mental e não vê com bons olhos a receção de apoio exterior para o desenvolvimento das suas competências parentais, no que não será alheia a diferença cultural evidenciada entre si e a sociedade estrangeira onde se insere, mas parte da obrigação do Estado que decidiu acolhê-la passa pelo oferecimento das condições necessárias para que, paulatinamente, vença tais resistências e o certo é que dos autos não resulta que, em concreto, lhe tenha sido oferecido o que quer que fosse nesse sentido.
O objeto destes autos centra-se na questão de saber se a confiança para a adoção é, neste momento, o único caminho possível para AA, sendo manifesto que o não é, pois que tal desfecho significaria quebrar as mais elementares obrigações legais e constitucionais a que nos achamos vinculados, quando verificamos que, num ano de processo, nenhuma oferta de solução concreta foi sequer equacionada.
Ainda assim, pronunciar-nos-emos sobre a medida concreta achada no acórdão recorrido.
Procurou-se ali optar por uma solução que não foi encontrada pelos serviços sociais, mas pelo próprio progenitor, junto de alguém que não será família direta da menina, mas se mostra disponível para a acolher, bem como à mãe.
Depois de cerca de doze meses sem que outra solução tenha sido encontrada, o que se nos afigura curial é que, pelo menos uma vez, se possibilite a AA e à mãe, junto de um agregado familiar já constituído e que mostra vontade de a acolher, encetarem ambas um caminho conjunto, por um tempo razoável (que se compagine com a necessidade de definir um projeto de vida para a criança com o período necessário para verificar da bondade desta solução).
Este caminho pode ou não resultar, mas não deve, sem mais, ser descartado, sobretudo quando observamos que nenhum outro foi oferecido ou mesmo ponderado até agora.
As suas possibilidades de sucesso dependerão de fatores que se nos afiguram estar suficientemente balizados na decisão recorrida:
- a paulatina adaptação da criança às pessoas que a vão acolher (o que parece estar a ser conseguido, segundo se diz em contra-alegações), com inscrição da menina em infantário e acompanhamento por CAFAP;
- a aceitação, pelo menos por parte da mãe, de auxílio psicológico e treino parental.
Estando todos os envolvidos cientes de que estas são as premissas a cumprir – situação que até agora não ficara definida nos autos – o sucesso deste agregado familiar fica também na dependência das suas vontades e colaboração, cabendo ao Estado zelar para que a oferta desta solução venha a ter frutos, antes de enveredar, sem mais, pela confiança com vista a adoção, apenas movido pela urgência na definição de um projeto de vida para a criança que tarda em ser estabelecido.
O recurso é, assim, de improceder.
Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a decisão recorrida.
Sem custas.
Porto, 10.7.2024
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Carlos Gil
__________________
[1] No acórdão constam duas alíneas a).
[2] Em rigor, porque já constava dos autos (cfr. ofício junto a 26.9.2023), impõe-se se esclareça que naqueles autos de inquérito foi proferido, a 14.7.2023, despacho de acusação contra o progenitor, por um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º, nºs 1, al. a), e 2, al. a), 4, 5 do Código Penal (na redação dada pela entrada em vigor da Lei 44/2018 de 9 de agosto), cometido na pessoa da mulher, entre 29.8.2021 e 17.5.2022.
[3] Na decisão recorrida, após ccc), voltou-se à enumeração inicial.
[4] “39. Ao congratular-se pela existência de um vasto leque de programas de auxílio social, nomeadamente o Programa de apoio social de urgência, o Comité está preocupado com o facto de que numerosas famílias, em particular as que se encontram em situação de pobreza, não beneficiam de uma assistência adequada para exonerar-se das suas responsabilidades de pais criando filhos, nomeadamente em matéria de apoio financeiro, de educação acessível para a pequena infância e de jovens crianças. O Comité está particularmente preocupado com a situação das crianças que se encontram no seio de famílias atingidas pela crise económica atual, que carecem de medidas sociais de discriminação positiva, em particular as famílias monoparentais, as famílias com crianças deficientes e as famílias vivendo em situação de pobreza persistente.
40. O Comité recomenda ao Estado parte o redobrar dos esforços para conceder uma assistência apropriada aos pais e aos tutores legais, no sentido de lhes permitir satisfazer as suas responsabilidades de pais criando crianças, em particular quando se encontram em situações de pobreza. Recomenda ainda ao Estado parte o velar por que nenhum grupo de crianças viva abaixo da linha de pobreza. O Comité recomenda ainda ao Estado parte o reforço do sistema de prestações familiares e de abonos para as famílias bem como de outros serviços, tais como os serviços de consulta e orientação familiares, e, bem assim, os serviços de guarda e de educação da pequena infância, para trazer um apoio às famílias de duas ou mais crianças, às famílias com filhos deficientes e às famílias vivendo em situação de pobreza persistente, de acordo com o documento de orientação da Comissão europeia em matéria de guarda e de educação das crianças.
41. O Comité acolhe com satisfação a adoção da lei relativa à proteção das crianças e jovens em perigo, as medidas adotadas para a reunificação das famílias e os esforços tendentes a promover a redução do número de colocações em instituição, nomeadamente por meio do aumento do número de crianças vivendo em fogos coletivos. O Comité exprime todavia a sua preocupação face:
a) Ao fraco número de famílias de acolhimento e de colocação de crianças em famílias, e face ao recurso ainda muito frequente à colocação em instituição, em particular no que respeita às crianças de menor idade;
(...)
42. O Comité recomenda ao Estado parte a execução das medidas a seguir enunciadas, tendo em conta as Linhas diretrizes relativas à proteção de substituição para as crianças, anexas à Resolução 64/142 de 18 de Dezembro de 2009, da Assembleia Geral das Nações Unidas:
a) Aumentar o apoio concedido às famílias biológicas para evitar as colocações em estruturas de substituição; reforçar as disposições relativas à proteção no seio da família, tal como a família alargada, os sistemas de colocação em família e em estabelecimentos de colocação, a adoção de todas as medidas necessárias para que a proteção de substituição para as crianças jovens, em particular as crianças com idade inferior a 3 anos, se inscreva num quadro familiar;
(...)
57. O Comité acolhe com satisfação a decisão do Estado parte de aumentar os abonos e as prestações familiares em proveito dos casais vulneráveis com filhos, isto é, as famílias monoparentais, as famílias com dois ou mais filhos, as famílias com filhos deficientes e as famílias vivendo numa pobreza persistente; acolhe com satisfação a expansão do programa de refeições na escola e a operação do Programa social de urgência em 2011, com o fim de reduzir ao mínimo os efeitos da crise financeira sobre os casais vulneráveis. O Comité está contudo preocupado com o nível elevado de desnudamento entre as crianças e com a aplicação de medidas de austeridade que têm efeitos penosos sobre as famílias, o que acresce consideravelmente o risco de expor as crianças à pobreza e de afetar o seu gozo de numerosos direitos protegidos pela Convenção, nomeadamente os direitos à saúde, à educação e à proteção social.
58. O Comité insta vivamente o Estado parte a redobrar os esforços para combater, simultaneamente na imediatez e no tempo, o nível elevado de pobreza das crianças, nomeadamente por meio da adoção de políticas públicas e de um Plano nacional de luta contra a pobreza das crianças. Estas políticas e este plano deveriam consistir na operação de um quadro coerente, compreendendo medidas prioritárias de combate à exclusão das crianças, com objetivos precisos e suscetíveis de medição, completados por indicadores claros e por datas limite, e beneficiando de um apoio económico e financeiro suficiente.
(...)”.
[5] 115. O Tribunal observa que, para motivarem as suas decisões, as jurisdições internas basearam-se essencialmente nos relatórios da CPCJP e da ECJ que tinham acompanhado a Requerente no decurso dos anos anteriores. Nota que não foi determinada nenhuma avaliação psicológica, por um perito independente, para avaliar a maturidade e as capacidades educativas e pedagógicas da Requerente (Saviny, supra, § 58) e que uma perícia psicológica das crianças também não foi julgada necessária, quando se verifica que as filhas mais velhas da Requerente asseguravam um papel educativo crucial junto dos mais jovens, ao ponto de constituírem, para estes, pessoas de referência. O Tribunal verifica que o Tribunal da Relação de Lisboa também não tomou em conta os elementos que a Requerente apresentou em apoio do seu recurso para mostrar que tinha procurado soluções para os seus problemas, depois de ter visto serem-lhe retirados os seus filhos (parágrafo 41, supra). O Tribunal verifica, ainda, que, aquando do reexame do caso, com data de 27 de Março de 2014, o coletivo de três juízes do Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, palavra por palavra a decisão precedente do juiz singular por via do processo “copy-paste”, o que não constitui um reexame efetivo da situação (parágrafo 42, supra).
[6] Vale lembrar aquela situação concreta: 106. Ora verifica-se que a Requerente sobrevivia com 393 EUR de diversos abonos familiares por mês, e que ela assegurava as necessidades alimentares e de vestuário da família, com recurso ao Banco Alimentar e a donativos provenientes de particulares ou de associações. Apesar da carência material manifesta, verificada ao longo das diversas visitas ao domicilio da Requerente, as autoridades internas não tentaram suprir estas carências por meio de um apoio financeiro suplementar para cobrir as necessidades primárias da família (por exemplo, em matéria de alimentação, de eletricidade e de água corrente) e as despesas de acolhimento das crianças mais pequenas em creches familiares, de modo a permitir à interessada o exercício de uma atividade profissional remunerada. Na realidade, verifica-se que os serviços sociais que tinham a cargo o acompanhamento da família, esperavam, da parte da Requerente, para além da regularização da sua situação no País, a apresentação formal de um requerimento assinado, descrevendo as necessidades que os próprios Serviços já haviam verificado e comunicado. (parágrafos 23 e 26, supra). O Tribunal entende que as autoridades já deveriam ter adotado medidas concretas para permitir às crianças viverem com a sua mãe, antes de as colocar e de abrir um processo de adoção. Por outro lado, o Tribunal recorda que o papel das autoridades de proteção social é precisamente o de ajudar as pessoas em dificuldade, de as orientar nas suas diligências e de as aconselhar, entre outros, quanto aos diferentes tipos de prestações sociais disponíveis, quanto às possibilidades de obterem um alojamento social ou quanto aos outros meios de ultrapassarem as suas dificuldades (Saviny c. Ucrânia, n.º 39948/06, § 57, 18 de Dezembro de 2008, e R.M.S. c. Espanha, n.º 28775/12, § 86, 18 de junho de 2013). No caso das pessoas vulneráveis, as autoridades devem fazer prova de uma atenção particular e devem-lhes assegurar uma proteção acrescida (B. c. Roménia (n.º 2), n.º 1285/03, §§86 e 114, 19 de Fevereiro de 2013, Todorova c. Itália, n.º 33932/06, § 75, 13 de Janeiro de 2009, e Zhou c. Itália, n.º 33773/11, § 58, 21 de Janeiro de 2014).
107. Se é verdade que, em certos casos declarados inadmissíveis pelo Tribunal, a colocação das crianças foi motivada por condições de vida não satisfatórias ou privações materiais, tal nunca foi o único motivo que serviu de fundamento à decisão dos tribunais nacionais: a estes acresciam outros elementos como as condições psíquicas dos pais ou a sua incapacidade afetiva, educativa e pedagógica (ver, por exemplo, Rampogna e Murgia c. Itália (dec.), n.º 40753/98, 11 de Maio de 1999, e M.G. e M.T.A. c. Itália (dec.), n.º 17421/02, 28 de Junho de 2005).
[7] Art. 3.º da LPCJP: 2 - Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:
a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;
e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;
f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
h) Tem nacionalidade estrangeira e está acolhida em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, sem autorização de residência em território nacional.