RESPONSABILIDADE CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO OBRIGATÓRIA AO PROCESSO PENAL
INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL CÍVEL
Sumário

I - De harmonia com o art. 615.º, n.º 1 d) do CPC, a omissão de pronúncia é sancionando com nulidade, quando a decisão não resolva todas as questões submetidas à apreciação do tribunal.
II - Tendo o R. invocado a incompetência do tribunal quanto a todo o pedido formulado pelo A. e tendo o tribunal decidido que, relativamente a parte deste (€ 13.683,97), a exceção procedia, caberia à sentença – sob pena de nulidade - explicitar o motivo de direito pelo qual ao demais peticionado não se aplica o raciocínio que determinou a absolvição da instância relativamente àquele valor.

Texto Integral

Processo n.º 6071/23.4T8VNG-A.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

AA deduziu pedido de indemnização cível contra BB, por danos patrimoniais e não patrimoniais causados por este, sendo € 27.183,97, a título de danos patrimoniais; € 50.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais; € 100.000,00, a título de punitive damages.

Os danos patrimoniais estão, assim, discriminados na pi:

a) - € 10.350,00, de perdas salariais, por a A. ter estado de baixa médica, desde julho de 2019 a outubro de 2021 (factos alegados em 72.º a 74.º da pi);

b) - € 2.200,00, que pediu então a terceiros para fazer face a despesas suas (arts. 76.º e 77.º da pi);

c) - € 13.500,00, correspondentes ao que deixou de receber nos meses em que se encontrou desempregada (18 meses), tendo aceite acordo de cessação do contrato de trabalho[1] em virtude da atuação do R. (art. 83.º da pi);

d) - o que despendeu em viagens para consultas (€ 673,92) e em medicamentos (€ 369,15) – arts. 85.º a 91.º da pi;

e) - € 100.000, de danos punitivos.

Invocou a prática de factos consubstanciadores de vinte e um crimes de coação sexual agravada, p.p. pelos arts. 163.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1 b) do CP, pelos quais o demandado foi já condenado em processo criminal.

Em contestação, disse o R. ser incompetente o juízo cível, por ter sido violado o princípio da adesão ao processo criminal, previsto no art. 72.º do CPP, não tendo a A. indicado qualquer das situações de exceção previstas no n.º 1 daquele normativo, e sendo os crimes em causa de natureza semi-pública (art. 178.º, n.º 1 do CP).

A A. exerceu contraditório, dizendo que, à data da acusação criminal, os danos ainda não eram conhecidos em toda a sua extensão, encontrando-se a demandante a ser seguida medicamente mercê das sequelas para si decorrentes dos factos criminais. Verificar-se-ia, assim, a situação prevista no art. 72.º, n.º 1 d) do CPP.

Diz, além disso, que a apresentação de queixa e posterior pedido cível em separado não se excluem mutuamente, ao contrário do que sucede com a prévia dedução de pedido cível que implica a renúncia a procedimento criminal.

Veio a ser proferido despacho saneador, datado de 21.3.2024, que julgou parcialmente procedente a exceção em causa, tendo por verificada a incompetência absoluta do tribunal cível para apreciar os pedidos de condenação do Réu no pagamento do montante de € 13.683,97 a título de danos patrimoniais, e de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais, absolvendo o Réu da instância relativamente aos mesmos, nos termos dos artigos 65.º, 96º/a), 97.º/1, 278.º/1/a), 576.º/1 e 2, 577.º/a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.

Mais julgou improcedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal para apreciar o demais pedido pela Autora.

Desta decisão recorre o R., visando a procedência da exceção de incompetência material relativamente a todo o pedido formulado pela A.

Para tanto, aduziu os fundamentos que assim concluiu:

1.ª) 0 presente recurso vem interposto do Despacho Saneador proferido pelo Mmo. Tribunal a quo no âmbito do proc. n° 6071/23.4T8VNG, que corre termos no Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 3, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, na parte em que julga improcedente a excepção "de incompetência absoluta deste tribunal para apreciar os pedidos demais pedidos formulados pela Autora. ".
2.ª) O Mmo. Tribunal a quo faz uma análise e ponderação aprofundadas e fundamentadas do principio da adesão obrigatória, plasmado no art. 71.° do Código de Processo Penal, das excepções ao mesmo, consagradas no n° 2 do art. 72.° do Código de Processo Penal, bem como da articulado da alínea c) do n.° 1 do art. 72.° do Código de Processo Penal com o n.° 2 do mesmo normativo, que merece o nosso aplauso, quer pelo rigor demonstrado, quer pela sustentação doutrinal e jurisprudencial apresentadas.
3.ª) Quanto aos lucros cessantes (valor que a Recorrida deixou de auferir, a título de vencimento, em virtude da cessação do seu contrato de trabalho), é nosso entendimento que o despacho sob recurso não efectuou uma ponderação adequada das circunstancias do caso concreto, mau grado possuir documentação que lhe permitia fazê-lo.
4.ª) O contrato de trabalho cessou em 03 de Janeiro de 2022, por iniciativa da Recorrida (como a mesma confessa nos itens 59° e 60° da petição inicial) e como resulta do conteúdo do Acorda de Revogação de Contrato de Trabalho, junto como doc. n° 10 com a petição inicial.
5.ª) O Acórdão proferido pelo Juízo Criminal no proc. n° 1067/19.3PIVNG data de 17 de Novembro de 2022, Acórdão este que condena o ora Recorrente numa pena de prisão suspensa e determina o termo da medida de coacção imposta (suspensão do exercício de funções de Presidente da Direcção do Lar ..., onde a Recorrida trabalhava).
6.ª) A Recorrida opta por fazer cessar o seu contrato de trabalho mais de dez meses antes de ser proferido Acórdão de condenação que aplica uma pena suspensa ao Recorrente e faz cessar a medida de coacção imposta.
7.ª) Entre Janeiro de 2022 e Novembro de 2022, não ocorreu nenhuma circunstância que justifique o pedido destes alegados danos em separado, isto é, não ocorreu nenhuma circunstância justificativa da excepção ao princípio da adesão obrigatória, quanta a formulação do pedido de indemnização cível em sede criminal.
8.ª) Se na data da acusação, a Recorrida não podia prever qual o sentido da decisão, também não o podia fazer no momenta em que decide acabar com a relação laboral, o que significa que este termo constitui uma opção da Recorrida que não é idónea para afastar o principio da adesão obrigatória quanta à formulação do pedido de indemnização cível no processo penal.
9.ª) A possibilidade de deduzir pedido de indemnização cível relativo aos invocados lucros cessantes ficou precludida por não ter ocorrido no local e prazo determinados pela legislação penal aplicável (arts. 71°, 72° e 82° CPP).
10.ª) O despacho recorrido deve ser dado sem efeito nesta parte e substituído por outro que julgue verificada a excepção de incompetência absoluta do Mmo. Tribunal a quo para apreciar o pedido de condenação do Recorrente no pagamento da quantia de € 13.500,00 a titulo de lucros cessantes.
11.ª) O Despacho Saneador é omisso quanto aos danos punitivos ou punitive damages (€ 100.000,00), uma vez que a análise que faz e que fundamenta a decisão de verificação da excepção de incompetência absoluta não os refere expressamente, nem por via do seu valor.
12.ª) A ausência de qualquer menção expressa a estes danos constitui uma omissão de pronúncia que determina a nulidade da sentença (art. 615°/n° 1 - d) do Código de Processo Civil).
13.ª) Sem prejuízo e por dever de ofício, sempre se dirá que a argumentação apresentada pelo Mmo. Tribunal a quo no despacho sob recurso aplicável aos danos patrimoniais contabilizados em € 50.000,00 é aplicável, mutatis mutandi, aos danos punitivos contabilizados em €100.000,00.
14.ª) O argumento de que, na data da acusação, não seria possível quantificá­los não procede, dado que, nessa data, também não era possível quantificar os danos não patrimoniais em sentido estrito (€ 50.000,00), mas a lei processual penal, prevendo tais situações, prevê a possibilidade de liquidação em execução de sentença (art. 82° do CPP).
15.ª) Também quanto a esta matéria, o Despacho Saneador, na parte sob recurso, efectuou uma ponderação desconforme às circunstâncias do caso concreto e à legislação aplicável (arts. 71°, 72° e 82° do CPP), sem prejuízo da verificação de vício de omissão de pronúncia, em virtude do Tribunal não se ter pronunciado sabre uma "questão colocada pelas parles ou que seja de conhecimento oficioso", tal como estipula o art. 615°/n° 1 - d) do Código de Processo Civil.
16.ª) O Despacho Saneador sob recurso (na parte identificada), viola o disposto nos arts. 71°, 72° e 82° do Código de Processo Penal, em virtude de desconsiderar o princípio da adesão obrigatória (o qual determina que o pedido de indemnização cível pela prática de um crime deve ser deduzido no processo-crime respectivo), bem como o disposto na alínea d) do n° 1 do art. 615° do Código de Processo Civil (quanto aos danos punitivos), o que determina a sua nulidade.
17.ª) O Despacho Saneador, na parte sob recurso, deve ser dado sem efeito e substituído por outro que determine a incompetência absoluta do Mmo. Tribunal a quo para apreciar e julgar todos os alegados danos (patrimoniais e não patrimoniais) invocados pela Recorrida.

A A. apresentou contra-alegações, opondo-se à procedência do recurso, tendo tal peça processual sido considerada extemporânea e não admitida, por despacho de 20.5.2024.

Objeto do recurso:

- da nulidade da sentença e da competência material do tribunal recorrido para conhecer do pedido indemnizatório fundado na prática de ilícitos criminais.

FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto

Compulsada a certidão junta a este processo a 7.2.2024, verificamos apurados os seguintes factos:

1 - A acusação contra o aqui R., nos autos de processo criminal, n.º 1067/19.3PIVNG, foi proferida a 31.3.2021.

2- Conforme certidão extraída daqueles autos criminais e junta ao presente apenso a 28.6.2024, a carta de notificação remetida à aqui A., ali queixosa, para que apresentasse pedido de indemnização cível, foi depositada em 06.04.2021, considerando-se a mesma notificada no 5.º dia posterior ao seu depósito, ou seja, no dia 11.04.2021, iniciando-se a contagem do prazo para formulação de pedido cível no dia 12.04.2021.

3- Em primeira instância, foi ali proferido acórdão condenatório do aqui R., a 17.11.2022, tendo vindo a ser proferido, pela Relação acórdão em recurso, a 19.4.2023, confirmando o acórdão recorrido.

4 – O aqui R. foi aí condenado, pela prática em relação a AA, em 21 (vinte e um) crimes de coação sexual agravada, previstos e punidos pelos arts. 163.º, n.º 2, e 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles;

- um crime de importunação sexual agravado, previsto e punido pelo art.170º nº1 e art.177.º, n.º 1, b) todos do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão.

5 - Em cúmulo jurídico das penas parcelares, foi condenado na pena unitária de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa pelo mesmo período, mediante a imposição de deveres e regras de conduta indicado.

Fundamentação de direito

Está em causa a violação do disposto no art. 71.º do CPP segundo o qual, em princípio, o pedido cível fundado na prática de um crime deve ser formulado no processo criminal respetivo.

Já no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, o Assento do STJ de 28 de janeiro de 1976 (publicado no DR 1 S-A de 11.3.1976) decidiu que o vício da violação do princípio da adesão obrigatória se reconduz à incompetência material do tribunal cível.

O tribunal a quo entendeu que, estando em causa ação de indemnização por danos decorrentes de crimes de natureza semi-pública, nos termos do art. 72.º, n.º 2 do CPP, a formulação de queixa, com o consequente procedimento criminal, obriga o queixoso a apresentar ali, por adesão, o respetivo pedido cível.

Assim, não só a apresentação de ação cível, em separado, sem exercício de queixa, determina a renúncia do queixoso à queixa, como, em contrapartida, da conjunção daquele n.º 2 com a al. c) do n.º 1 de tal normativo resulta que, se tiver sido iniciado procedimento criminal subsequente a queixa, são válidas as regras gerais (art. 71.º do CPP) que impõem a adesão.

A A. não se opõe a este entendimento, pois não recorreu da decisão em apreço.

Porém, o R. entende que tal raciocínio vale para todo o pedido de indemnização e não apenas para o segmento do qual veio a ser absolvido.

Ora, a A. apresentou queixa criminal e não formulou no processo criminal qualquer pedido de indemnização cível, nos termos do art. 77.º, n.º 2 do CPP.

Em consequência, escreveu-se na decisão recorrida:

“Assim, os factos alegados nos autos relacionados com os danos não patrimoniais, despesas suportadas com o tratamento do seu quadro depressivo e perda salarial decorrente de baixa médica, não podem ser considerados danos novos e a persistência desses mesmos danos ao longo do tempo e o seu possível agravamento não impediam a Autora de ter deduzido pedido cível no processo penal em função dos danos não patrimoniais e prejuízos patrimoniais já sofridos e dos que viesse a sofrer até ficar curada, pedindo a sua liquidação subsequente nos termos do disposto no artigo 82.º do Código de Processo Penal que prevê expressamente a liquidação em execução de sentença e, se necessário, o reenvio para os tribunais civis”.

Mais adiante, explicitou de novo:

“De facto, do alegado na petição inicial resulta que à data da prolação da acusação a Autora já tinha conhecimento dos danos não patrimoniais e dos patrimoniais referentes a perda de vencimento por se encontrar de baixa médica, transportes, despesas médicas e medicamentosas e, embora não estivesse apurado o valor exato nem definitivo desses danos, a mesma poderia deduzir pedido genérico nos termos do disposto no artigo 556º do Código de Processo Civil, liquidando os danos já conhecidos”.

Consequentemente, a sentença absolveu o R. da instância, no tocante ao pedido de compensação por danos não patrimoniais (€ 50.000, 00), bem como o absolveu do valor de € 13.638, 97, de danos patrimoniais (da totalidade pedida a este respeito, que era de € 27.183, 97).

Diz o R. não se ter a sentença pronunciado quanto ao pedido de € 100.000, 00, apresentado sob pretexto de punitive damages.

Refere, por isso, o vício previsto no art. 615.º, n.º 1 d) do CPC.

Este normativo refere-se à omissão de pronúncia, sancionando com nulidade a sentença que não resolva todas as questões submetidas à apreciação do tribunal.

O art. 608.º, n.º 2 CPC, impõe se resolvam na sentença todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, mas já Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol., V, p. 143) explicitava que “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” não significa considerar todos os argumentos jurídicos ou soluções plausíveis de direito, pela simples razão de que o julgador não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 5.º, n.º 3).

Embora Anselmo de Castro (Direito Processual Civil, Vol. II, p. 142) estenda a noção de questões a todas as vias de fundamentação jurídica que as partes tenham exposto, a jurisprudência tem seguido o caminho indicado pelo primeiro jurista. Veja-se, por ex., o ac. STJ, de 3.10.2017, Revista n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1 - 1.ª Secção: A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.

Quer isto dizer que, tendo o R. invocado a incompetência do tribunal quanto a todo o pedido e tendo o tribunal decidido que, relativamente a parte dele (€ 13.683, 97), a exceção procedia, caberia à sentença explicitar o motivo de direito pelo qual, no demais, não se aplica o raciocínio acima mencionado e que resulta da concatenação do disposto nos arts. 71.º e 72.º, n.º 1 c) do CPP (que estabelece como exceção ao princípio da adesão os casos de queixa ou acusação particular).

Ora, o tribunal explicou quais os danos que, mercê deste raciocínio, estariam compreendidos naquela decisão de absolvição da instância e, por via, disso, excluídos do domínio de cognoscibilidade do tribunal cível, nos termos que acima transcrevemos.

Acrescentou, depois, estar verificada uma outra exceção ao princípio da adesão obrigatória, a que decorre do disposto no art. 72.º, n.º 1 d) do CPP – os danos não eram conhecidos ao tempo da acusação formulada em processo criminal ou não o eram em toda a sua extensão – mas, na verdade, não explicitou se, entre estes, estavam ou não incluídos os apodados punitive damages.

Sobre esta figura de danos punitivos, pode ver-se, por exemplo, o ac. do STJ, de 25.2.2014, Proc. 287/10.0TBMIR.S1.

Aí se explicou:
«A natureza punitiva da responsabilidade civil tem sido aprofundada por alguns estudos de direito civil, que a reconhecem com maior amplitude do que a doutrina clássica. Usa-se, para referir esta finalidade repressiva da responsabilidade civil, a expressão «danos punitivos», importada do termo anglo-saxónico “punitive damages”, do qual é uma tradução literal, embora se trate de uma expressão pouco adequada, porque é a indemnização que é punitiva e não os danos.
O conceito de «danos punitivos» ou de «indemnização punitiva» é uma figura com escopos idênticos ao direito criminal, encerrando uma função retributiva, característica da justiça correctiva e uma finalidade preventiva, associada à justiça distributiva. Esta categoria esbate as fronteiras entre o Direito Civil e o Direito Penal, e significa o reconhecimento de que os princípios da responsabilidade civil e da responsabilidade penal são os mesmos. Entre o ilícito civil e o ilícito penal, há um continuum que passa por figuras intermédias como o ilícito de mera ordenação social e a sanção civil punitiva.
O dano tem uma dimensão simultaneamente individual e comunitária. As noções de interesse privado e de interesse público, como sempre reconheceu a ciência jurídica, entrecruzam-se, de forma que a ofensa aos direitos de uma pessoa pode traduzir também ofensa a interesses sociais. Os danos punitivos visam promover o respeito pelas normas de conduta da sociedade e influenciar o comportamento dos agentes económicos. Também são designados por exemplary damages, pois visam orientar os agentes económicos na conduta correcta e exprimem a reacção da sociedade a uma conduta ilícita, que tem impacto, não apenas individual, mas social.
Na prática, a categoria resulta de uma jurisprudência criativa que, preocupada com a justiça, condena o lesante, em casos de dolo ou de culpa grave, ao pagamento de uma quantia mais elevada do que os padrões habituais.
(…)
A condenação ao pagamento de uma indemnização punitiva significa que a finalidade sancionatória da responsabilidade civil passa de meramente secundária ou acessória a finalidade dominante, em certos contextos ou casos específicos, considerados excepcionais. Nestes casos, a incapacidade do agente prever o montante de danos punitivos que lhe será imposto em caso de transgressão de regras de conduta é a única forma de evitar que, orientado por critérios de racionalidade económica, opte por praticar condutas ilícitas, escolhendo incumprir os seus deveres, sempre que preveja que os lucros que a conduta ilícita pode produzir são superiores ao valor das indemnizações que seria condenado a pagar ao lesado.
A incursão de danos punitivos dá-se, quer no domínio da responsabilidade civil extracontratual (lesão de direitos de personalidade), quer na responsabilidade obrigacional, nas situações em que o incumprimento do contrato é perpetrado através de uma conduta fraudulenta.
A doutrina tradicional tem aceitado a finalidade sancionatória da responsabilidade civil, mas apenas com uma natureza acessória ou secundária, sempre subordinada à função reparadora e fundamenta-a na norma do art. 494.º, que confere ao julgador o direito de redução equitativa da indemnização na hipótese de mera culpa, tendo em conta o grau de culpabilidade do agente, as condições económicas do lesante e do lesado e outras circunstâncias do caso[15]. No mesmo sentido, concorrem o regime do art. 497.º, n.º 2, no qual a repartição da indemnização entre as várias pessoas responsáveis se faz na medida das respectivas culpas, e o do art. 570.º, em que a graduação da indemnização, quando haja culpa do lesado, se faz com base na gravidade das culpas de ambas as partes, reflectindo estas normas o carácter punitivo ou repressivo da responsabilidade civil[16].
Para Antunes Varela, «(…) a função preventiva ou repressiva da responsabilidade civil, subjacente aos requisitos da ilicitude e da culpa, subordina-se à sua função reparadora, reintegradora ou compensatória, na medida em que só excepcionalmente o montante da indemnização excede o valor do dano».
Mas o autor, a propósito da causa virtual do dano, afirma que «Não se pode aceitar como boa a afirmação de que seja “nitidamente excepcional” a função sancionatória ou preventiva da responsabilidade, baseada na ilicitude do facto. Será uma função subordinada (…); mas, com a amplitude que o art. 494.º hoje atribui ao poder do tribunal de graduar o montante da indemnização, de olhos postos, acima de tudo, no grau de culpabilidade do agente, não pode seriamente contestar-se o seu carácter geral, fundado na ilicitude do facto».
Contudo, a ciência jurídica tem evoluído e encontramos, desde o final do século XX, defensores de um alargamento da finalidade punitiva da responsabilidade civil.
Pinto Monteiro refere que a dimensão sancionatória da responsabilidade civil implica o reacentuar da finalidade ético-jurídica do instituto e relaciona-se com o emergir do direito civil como direito constitucional das pessoas.
Júlio Gomes acentua o papel da pena privada como uma reacção eficaz face às insuficiências do direito penal e defende a sua aplicação no domínio da difamação via imprensa, criminalidade económica e concorrência desleal.
A figura dos punitive damages, no domínio da responsabilidade contratual, contribui ainda para tornar efectiva a reparação integral do dano, pois os métodos tradicionais de cálculo do dano não garantem tal reparação integral, contribuindo, pelo contrário, para que a parte inocente seja onerada com uma parte substancial dos prejuízos causados pela violação culposa da outra parte.
Menezes Cordeiro acolhe a função punitiva para as indemnizações por danos não patrimoniais, «Quando estejam em causa valores morais – portanto: atinentes à pessoa, à família, à dignidade, à saúde e ao bom nome – a responsabilidade civil deve assumir uma postura mais avançada, retribuindo o mal e prevenindo as ofensas. As agressões, no sentido mais amplo do termo, multiplicam-se, mercê da evolução tecnológica e da crescente pressão das sociedades modernas sobre as pessoas; paralelamente, parece clara a incapacidade do direito penal clássico para assegurar uma protecção. (…) Há pois que facilitar a imputação aquiliana, no tocante a danos morais, quer aligeirando – tanto quanto a interpretação da lei o permita – os seus pressupostos, quer reforçando as indemnizações». Reconhece o autor à responsabilidade civil um papel punitivo: visa ressarcir o mal feito e desincentivar, quer junto do agente, quer junto de outros elementos da comunidade, a repetição das práticas prevaricadoras.»
Assim entendidos estes danos, afigura-se-nos que o entendimento contido na sentença recorrida sobre a aplicabilidade do disposto no art. 71.º do CPP, em concatenação com a al. c) do n.º 1 do art. 72.º do CPP poderia, eventualmente, ser-lhe estendido.
Mas, a verdade, é que a sentença é absolutamente omissa relativamente a estes danos, nada dizendo sobre se os mesmos – em valor não despiciendo, pois é pedida a quantia de € 100.000,00 – estão ou não abrangidos pela obrigatoriedade da adesão ao processo criminal e, por isso, se o seu conhecimento excluído da alçada da jurisdição cível.
A sentença é, assim, nula, por omissão de pronúncia, não bastando que, genericamente, tenha determinado a prossecução dos autos para julgamento no demais, sem esclarecer se esse demais, no tocante aos punitive damages, cabe no âmbito da sua competência material.
Ora, é certo que esta nulidade poderia não impedir este tribunal de conhecer o fundo da questão aqui em causa – se os danos em apreço podem ser conhecidos pela jurisdição cível – como decorre da regra da substituição prevista no art. 665.º, n.º 1 do CPC.
Todavia, além da omissão de pronúncia quanto aos danos punitivos – situação sobre que o tribunal recorrido deve pronunciar-se - verifica-se ainda um conjunto de outras imprecisões na sentença que entendemos deverem ser explicitadas com rigor para que não restem dúvidas sobre quais os danos cujo conhecimento prossegue, de facto, para julgamento.

É que o tribunal recorrido considerou-se incompetente para apreciar o pedido de compensação por danos não patrimoniais (€ 50.000,00) e, bem assim, para apreciar o pedido de indemnização por danos patrimoniais, estes no valor de € 13.683,97.

Afirma a sentença que estão excluídas do seu conhecimento:

- as despesas suportadas com o tratamento do quadro depressivo que afetou a A.;

- a perda salarial decorrente da baixa;

- os transportes;

- as despesas médicas e medicamentosas.

Vemos que o petitório aludiu a danos patrimoniais para cuja indemnização peticionou € 27.183, 97.

Ora, se não nos falham os cálculos (e é possível que falhem), nem este último valor corresponde à soma das parcelas supra elencadas de a) a e), nem aqueles € 13.683, 97, correspondem a todas as parcelas relativas aos danos materiais mencionadas nestas cinco alíneas supra descriminadas, excluindo-se daí as perdas salariais decorrentes da revogação do contrato de trabalho.

Impõe-se, por isso e em rigor, que a sentença explicite quais os danos concretos e seus valores (com referência aos artigos da pi) que se acham incluídos nestes € 13.683, 97.

A sentença é, assim, nula, ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1 d) do CPC.

Fica, deste modo, prejudicado o conhecimento do demais exposto nas alegações de recurso.

Dispositivo

Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente, na parte em que pedia a declaração de nulidade da sentença, declarando a mesma nula, ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1 d) do CPP.

Custas pelo recorrente que retirou utilidade do recurso (art. 527.º, n.º 1, parte final, do CPC).


Porto,10.7.2024
Fernanda Almeida
Manuel Domingos Fernandes
Eugénia Cunha
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[1] Que junta como doc. 10, acordo este datado de 3.1.2022.